Você está na página 1de 5

Como parte dos esforços de compartilhar experiência e conhecimento para

avançarmos em formas inovadoras de comunicar no poder público, resolvi sintetizar o


conteúdo do meu trabalho de pós-graduação em Gestão Pública em formato de artigo.

O (não) LUGAR DA COMUNICAÇÃO NO CICLO DE POLÍTICAS PÚBLICAS


Ana Clara Ferrari

Quem nunca se deparou com a famosa frase “temos um problema de comunicação”


no poder público? As transformações da “Nova Era Digital”, as mídias sociais, os
aplicativos, uma grande torrente de novas tecnologias de comunicação, enquanto o
poder público lida diariamente com desafios estruturais da sociedade, como
desigualdade social, qualidade de serviços públicos, gargalos de participação
democrática e exercício da cidadania.

Para iniciar o debate sobre as questões relacionadas aos “problemas de comunicação”


entre poder público e sociedade, é preciso entender que o mundo contemporâneo
digital traz dilemas entre público e privado que transcendem a estrita relação Estado-
Sociedade. É um desafio colocado para a humanidade do século 21. Não é um gargalo
apenas das máquinas estatais, da gestão pública e suas composições. Empresas,
instituições, filantrópicas ou não, privadas ou não, enfrentam o desafio de comunicar
em uma era marcada pela superprodução de conteúdo, baixa assimilação,
efemeridade intensa de interesse e prazos de validade curtíssimos. As pessoas são
bombardeadas por uma enxurrada de informações e não as assimilam totalmente; as
novas tecnologias começam a introduzir uma cultura imediatista e individualista, ainda
que conectada, que perpassam todas as esferas sociais.

Então, de que forma essa complexidade da comunicação do século 21 impacta na força


da inovação do Estado e como superar os descompassos desafiadores colocados às
gestoras e gestores públicos? Existem vários caminhos para construir essa resposta.

Hoje, quero abordar um deles: os perigos de uma visão funcionalista e ferramental da


comunicação no poder público. Quero trazer reflexões também sobre os impactos que
a comunicação causa no ciclo geral da política pública, na própria gestão pública e na
relação entre Estado e sociedade, permitindo afirmar que a comunicação deve
pertencer a todo ciclo da política pública em todas as suas instâncias – não apenas de
forma instrumental nas fases finais, como ocorre atualmente.

DE ONDE PARTIMOS.

Historicamente, a evolução tecnológica não é uma novidade deste século, tampouco a


criação de novas formas de se comunicar. O que difere, então, essa era digital das
outras? A princípio, podemos destacar dois elementos principais: primeiro, justamente
as transformações acontecendo cada vez mais rapidamente, enquanto a taxa de
adaptação do Estado e mesmo da iniciativa privada é mais vagarosa e enviesada; e o
segundo, parte das consequências do primeiro, é o surgimento do fenômeno do
individualismo em rede que, sob a perspectiva do Estado, torna-se quase um
paradoxo, dado que a essência da lógica do poder público é o coletivo, não o
individual. Ou, sendo mais precisa, torna-se um processo mais complexo integrar,
compreender e se articular diante desse fenômeno dentro de um regime que se
organiza, ou deveria se organizar, a partir da lógica da coisa pública, a res publica.

Contido nesse furacão da comunicação do século 21 estão as mídias sociais. Um


produto do cruzamento entre a hiperexposição do privado e a conexão em rede, elas
têm se tornado um instrumento ainda a ser desvendado pelo poder público.

Os reflexos desse tipo de sociedade “hiperconectada” consolidam-se, de forma difusa


e não sistematizada (ao menos para os indivíduos), em uma forte pressão social que
demanda intensamente por respostas rápidas pautadas por comandos digitais e pelo
consumo ávido por conteúdos superficiais de interesse efêmero com alto nível de
compartilhamento. Ou seja, dá a indíviduo a possibilidade de compartilhar e expressar
sua opinião e, portanto, gera uma sensação de pertencimento de aparência coletiva,
mas de caráter individualista.

Essa caracterização é elementar para compreender o papel e o desafio que o Estado


começa a enfrentar diante dessas transformações, já que ele – mesmo com seu caráter
elitista, clientelista e pautado por interesses privados – ainda é o espaço de elaboração
do público, ou seja, da coisa pública, sendo o principal organizador da teia da estrutura
social, econômica, política e coletiva da sociedade.

Então, diante desse cenário, na medida em que se busca fortalecer o diálogo com uma
sociedade pautada pela lógica imediatista e individualista, que o próprio Estado, por
seu caráter elitista também é o principal mantenedor e incentivador desse tipo de
relação, as definições e, consequentemente, as elaborações e decisões sobre o caráter
efetivamente público das políticas acabam se tornando completamente turvas e
difusas. Os desdobramentos dessa tríade de abismos entre a lógica que organiza a
sociedade, os interesses do Estado e os elementos infraestruturais – de classe e de
gestão – que permeiam essas instâncias geram descompassos desafiadores para os
gestores públicos.

O NÃO-LUGAR DA COMUNICAÇÃO

Atualmente, a comunicação na gestão pública é entendida apenas como um conjunto


de ferramentas e estratégias pontuais a serem utilizadas para fazer a informação sair
de um ponto e chegar ao outro. Quando se entende a comunicação dessa forma
funcionalista, ou seja, apenas como uma ferramenta para transmitir uma mensagem e
– decorrente disso, aplicada ao campo das políticas públicas – uma estratégia a ser
utilizada apenas em fases pontuais como divulgação para os stakeholders e
influenciadores nas fases iniciais e/ou para o público-alvo no processo deimplantação,
acontecem dois fenômenos simultâneos na comunicação da política pública: a
subestimação e a superestimação.

A subestimação é encarar a comunicação apenas como ferramentas produtoras de


mensagens que vão sair do poder público levando a informação esclarecida e
iluminada para a população. E, derivada dessa lógica, o baixo investimento em
profissionais de comunicação em todas as áreas do poder público que trabalham com
gestão – não só nas caixinhas de assessoria de imprensa –, já que é “apenas divulgar”,
dá para colocar na internet, nas mídias sociais e fazer uma arte, um texto etc.

Portanto, a partir dessa concepção, a comunicação é subestimada ao longo de todas as


etapas do ciclo de política pública. É óbvio que os gestores se comunicam entre si e
utilizam ferramentas comunicativas em todos os momentos, mas a comunicação
estratégica da política pública – tanto interna e quanto externamente – não é colocada
como prioridade, tampouco trabalhada de forma integrada.

Já o processo de superestimação, geralmente, só acontece quando a política


pública/programa/projeto possui dificuldades e obstáculos na fase de
implantaçãoe/ou possui uma avaliação de processo aquém do esperado. Nesse
momento, imputa-se ao “problema de comunicação” – esta ainda entendida de forma
funcionalista – como o principal responsável pelos nós de gestão, pelos entraves não
calculados e, se a análise negativa envolve a percepção do público-alvo e dos atores, a
responsabilização é praticamente automática: a política/programa/projeto é que não
foi bem compreendida, assimilada e absorvida pelas pessoas por não ter sido bem
comunicada.

Os problemas desse tipo de movimento são evidentes:

1) não compreende nem trabalha com uma perspectiva global de comunicação;

2) deturpa a avaliação de implementação de políticas públicas ao tratar a comunicação


de acordo com a dinâmica de conveniência acima relatada e não considerar efeitos de
assimilação que uma perspectiva global de comunicação traria;

3) ainda que a política pública tenha estratégias de participação cidadã, elas serão
limitadas, pois não estarão integradas às estratégias de comunicação já que não fazem
parte da mesma “caixinha”;

4) como no caso da cena da abertura do texto, tende-se a “resolver o problema de


gestão” na última etapa do processo, com ferramentas de divulgação e estratégias de
comunicação (tratadas como estratégia de marketing também e todas os problemas
derivados dessa lógica que trataremos no tópico seguinte), deixando na mão da
comunicação desafios estruturais para os quais ela não foi incluída, tampouco
preparada;

5) esconde possíveis deficiências e obstáculos de gestão atrás do guarda-chuva da


complexidade da comunicação, apenas vista com essa amplitude quando precisa
acolher limitações estruturais diluídas em diversas fases da política pública.

COMUNICAÇÃO NÃO RESOLVE PROBLEMA DE GESTÃO.

No âmbito da avaliação de política pública, esse guarda-chuva complexo – a


comunicação em sua fase superestimada – pode fazer sombra e ocultar a constatação
de problemas profundos de gestão. Ou seja, o “problema de comunicação” pode ser,
na verdade, o sintoma de um problema maior de gestão que impacta a vida de
milhares de pessoas diariamente.

Outra questão decorrente desse fenômeno guarda-chuva é o uso recorrente de


ferramentas de comunicação para resolver problemas de gestão – principalmente
quando se trata da fase final do ciclo de política pública em que, geralmente, não há
tempo hábil para grandes guinadas administrativas.

Essas perspectivas trazem à tona reflexões para a construção de uma prática que
contemple a inclusão da comunicação não apenas enquanto um conjunto de
ferramentas e estratégias de propaganda.

Porque entender a forma como a população se comunica entre si, com o poder público
e de que maneira ela absorve determinadas experiências oriundas do impacto da
política pública em seu cotidiano e devolve isso à sociedade deve estar entre as
prioridades estratégicas do gestor público para traçar e planejar ações antes, durante e
depois da política pública.

Ao avançar nessa compreensão, é possível identificar também as possíveis


potencialidades a médio e longo prazo da comunicação, tanto para o impacto da área
executora de determinada política pública quanto para o exercício e o fortalecimento
da democracia e da participação no país, por exemplo.

Cada passo rumo à participação é uma fronteira a superar na comunicação, sem essa
perspectiva a chance de perder a capilaridade participativa, restringindo-a apenas aos
impactos diretos e indiretos, com base em uma visão estritamente tecnicista,
aumenta. E o segundo potencial aponta para melhor clareza de critérios de avaliação
da política pública com base nesse novo elemento estruturante do ciclo geral de
gestão em política pública, que engloba todas as fases da policy, desde a formação,
formulação até a implementação – de forma estratégica.

Por fim, para avançarmos qualitativamente, é importante que os gestores públicos


compreendam a complexidade da comunicação e quebrem essa visão funcionalista tão
recorrente nas instituições. Ao fazer isso, o leque de potencialidades na qualidade do
diálogo (interno e com a sociedade) e na exequibilidade da política pública aumenta
significativamente, ampliando o espectro de atuação do gestor e sua equipe,
garantindo um ciclo de planejamento, monitoramento e avaliação mais adequado à
contemporaneidade, uma atualização lenta e gradual dos processos internos e
administrativos tornando processos mais ágeis, eficientes e transparentes e
fortalecendo o poder público e o Estado, criando condições e ambientes favoráveis
para se adequarem às transformações do século 21.

* Ana Clara Ferrari é bacharel em Comunicação Social com especialização em Política e


Cultura pela FACAMP, e pós graduada em Gestão Pública pela FESP/SP. Tem quinze
anos de experiência em comunicação integrada, com passagem em grandes redações
como Globo e BandNews e atua em governo há mais de cinco anos. Integrou a equipe
que fundou as redes sociais oficiais da Prefeitura de São Paulo, foi membro titular do
Conselho Intersecretarial de Governo Aberto e responsável pela criação das redes
sociais da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo. Atualmente, é coordenadora de
comunicação da Secretaria Municipal de Inovação e Tecnologia.

Você também pode gostar