Você está na página 1de 32

2

M Ó D U LO

Fı� losofı� a
A ciência
e o real

Capítulo 6
Os textos filosóficos
Todos os direitos reservados à
FTD EDUCAÇÃO
Matriz: Rua Rui Barbosa, 156 – Bela Vista – São Paulo – SP Impresso no Parque Gráfico da Editora FTD
CEP: 01326-010 – Tel.: (0-XX-11) 3598-6000 – Fax: (0-XX-11) 3598-6463 Avenida Antonio Bardella, 300
Caixa Postal: 65149 – CEP da Caixa Postal: 01390-970 Tel.: (0-XX-11) 3545-8600 – Fax: (0-XX-11) 2412-5375
Site: www.ftdse.com.br CEP: 07220-020 – Guarulhos – SP
E-mail: ftdsistemadeensino@ftdse.com.br
Ano de publicação: 2016

O Sistema Marista de Educação é um Projeto Editorial elaborado em parceria entre a


FTD Educação e a União Marista do Brasil e desenvolvido a partir do
Projeto Educativo do Brasil Marista e das Tessituras do Currículo Marista: Matrizes Curriculares de Educação Básica.

FTD EDUCAÇÃO UMBRASIL FILOSOFIA


Diretor-Presidente Presidente do Conselho-Superior Elaboradores de original
Ir. Délcio Afonso Balestrin Ir. Wellington Mousinho de Medeiros Alexandre Ferreira da Silva
Vice-Presidente Diretor-Presidente Fábio Goulart
Ir. Dario Bortolini Ir. Claudiano Tiecher Juliano Mernak de Bittencourt
Diretor-Superintendente Diretor-Tesoureiro COORDENADORES DE CIÊNCIAS HUMANAS
Antonio Luiz Rios Ir. Humberto Lima Gondim E SUAS TECNOLOGIAS
Diretora Editorial de Projetos Especiais e Literatura Diretor-Secretário Lucielma Ribeiro da Silva (PMBCN)
Ceciliany Alves Ir. Vanderlei Siqueira dos Santos Renato Capitani (PMRS)
Diretor Editorial Secretário Executivo Ricardo Santos Chiquito (PMBCS)
Lauri Cericato Ir. Valter Pedro Zancanaro
CONSELHEIRO DE FILOSOFIA
Gerente Editorial Área de Missão Sérgio Augusto Sardi
Sandra Carla Ferreira de Castro Coordenador
Editor Ricardo Spíndola Mariz AGRADECIMENTOS ESPECIAIS
Alício Roberto Egydio Leva Assessoras Durante o desenvolvimento do Sistema Marista de
Divaneide Lira Lima Paixão Educação, a contribuição humana e profissional de vá-
Editor Assistente rias pessoas foi essencial para o sucesso deste projeto.
Georges Nicolau Kormikiaris Michelle Jordão Machado
Registramos aqui nosso agradecimento a todos os envol-
Colaboradora vidos e, especialmente, a:
Daniella Haidar Pacífico COMITÊ GESTOR FTD | PROVÍNCIAS | UMBRASIL
Ir. José de Assis Elias de Brito Ir. Arlindo Corrent, Ir. Gilberto Zimmermann Costa,
Assistente Editorial Ir. Iranilson Correia de Lima, Ir. José Wagner Rodrigues da
Thaís Facin Ir. Manuir José Mentges
Ir. Vanderlei S. dos Santos Cruz, Ir. Lúcio Gomes Dantas, Ir. Paulinho Vogel, Ir. Valdícer
Gerente de Produção Editorial Fachi, Ir. João Carlos do Prado, Barbara Pimpão Ferreira,
Ir. Valter Pedro Zancanaro
Mariana Milani Cláudia Laureth Faquinote, Deysiane Farias Pontes, Irineuda
Ricardo Spíndola Mariz
Coordenadora de Produção Editorial Nogueira, Isabel Cristina Michelan de Azevedo, Letícia
Michelle Jordão Machado Bastos Nunes, Lodovino Jorge Marin, Marcos Scussel,
Luzia Estevão Garcia Antonio Luiz Rios Marcos Teramoto, Maria Waleska Cruz, Mércia Maria Silva
Coordenadora de Preparação e Revisão Ceciliany Alves Procópio, Simone Weissheimer.
Lilian Semenichin Nogueira
Preparação e Revisão COMISSÃO DE VALIDAÇÃO PEDAGÓGICA
Líder UMBRASIL
Adriana Soares de Souza Divaneide Lira Lima Paixão
Revisoras Michelle Jordão Machado
Grace Mosquera Clemente Ricardo Spíndola Mariz
Juliana Cristine Folli Simões Províncias
Lilian Regato Garrafa Flávio Antonio Sandi (PMBCS)
Simone Keiko Shimabukuro Jaqueline de Jesus (PMBCN)
Coordenador de Iconografia e Textos Luciano Miraber Centenaro (PMRS)
Expedito Arantes FTD
Pesquisa Ceciliany Alves
Erika Nascimento, Elizete Moura Sandra Carla Ferreira de Castro
Crédito de imagem de capa
Museu Britânico, Londres.
Foto: Prisma/Album/Latinstock
Coordenadora de Arte
Daniela Máximo
Supervisora de Arte
1a edição – 2016 – 1 2 3 4 5 6 7 8 9

Flávia Yamamoto Boni


Projeto Gráfico Envidamos nossos melhores esforços para localizar e indicar adequadamente os créditos dos textos e imagens
Débora Barbieri presentes nesta obra didática. No entanto, colocamo-nos à disposição para avaliação de eventuais irregularida-
Editoras de Arte des ou omissões de crédito e consequente correção nas próximas edições.
Natália L. B. Ferrari
Patrícia da Rocha Lé As imagens e os textos constantes nesta obra que, eventualmente, reproduzam algum tipo de material de publici-
Diretor de Operações e Produção Gráfica dade ou propaganda, ou a ele façam alusão, são aplicados para fins didáticos e não representam recomendação
Reginaldo Soares Damasceno ou incentivo ao consumo.

SE_MARISTA_EM_2015_FIL_C6.indd 2 1/20/16 3:57 PM


Módulo 1 A filosofia e a vida Módulo 2 A ciência e o real

1 A filosofia: viver, pensar 4 Filosofia e ciência


2 A razão 5 Conhecimento e realidade
3 O raciocínio lógico e o diálogo 6 Os textos filosóficos

Juan Gris, 1925.


El libro abierto.
Óleo sobre tela.
Coleção particular
Maria Helena Vieira da Silva, 1949. Óleo sobre tela. Museu National d'Art Moderne, Centre Pompidou, Paris, França. © SILVA, Maria Vieira da / AUTVIS, Brasil, 2015. Foto: Bridgeman Images/Easypix

6
C a p í t u lo
Maria Helena Vieira da Silva.
Biblioteca de Babel (1949), de

Os textos
O UNIVERSO (que outros chamam a Biblioteca) consti-
tui-se de um número indefinido, e quiçá infinito, de galerias
hexagonais, com vastos poços de ventilação no centro,
cercados por varandas baixíssimas. De qualquer hexágono,
veem-se os pisos inferiores e superiores: interminavel-
mente. […] A Biblioteca é uma esfera cujo centro cabal é
qualquer hexágono, cuja circunferência é inacessível.
[…] a Biblioteca é total e […] suas prateleiras registram
todas as possíveis combinações dos vinte e tantos símbolos
ortográficos (número, ainda que vastíssimo, não infinito), ou
seja, tudo o que é dado expressar: em todos os idiomas. […]
Quando se proclamou que a Biblioteca abarcava todos
os livros, a primeira impressão foi de extravagante felici-
dade. Todos os homens sentiram-se proprietários de um
tesouro intacto e secreto. Não havia problema pessoal ou
mundial cuja eloquente solução não existisse: nalgum he-
xágono. O universo estava justificado, o universo brusca-
mente usurpou as dimensões ilimitadas da esperança. […]
À desapoderada esperança, sucedeu, como é natural,
uma depressão excessiva. A certeza de que alguma pra-
teleira nalgum hexágono encerrava livros preciosos e de
que esses livros preciosos eram inacessíveis afigurou-se
quase intolerável.
BORGES, Jorge Luis. A Biblioteca de Babel. In: Ficções.
Tradução de Carlos Nejar. Porto Alegre: Editora Globo, 1970. p. 61-66.

Novos

O texto acima é um trecho do conto “A Biblioteca de Babel”, do escritor argentino Jorge Luis Borges. No texto, o autor
descreve uma biblioteca infinita, por meio da qual é possível acessar todo o conhecimento concebível no mundo, em todos os
idiomas e dialetos que existem. 1. Resposta pessoal. O estudante pode usar como referência para indicar possíveis “ferramentas” as noções de
conceito, símbolo e teoria, abordadas no capítulo anterior.
1. No início do trecho, o narrador compara o Universo a uma biblioteca. Se o projeto do conto fosse possível, que ferramentas
os seres humanos utilizariam para fazer o universo “caber” nos livros?
2. A pintura de Vieira da Silva representa bem a descrição da biblioteca universal feita no conto? Destaque alguns trechos para
justificar sua resposta. Como você “leu” a pintura para chegar a essa conclusão? Você a “lê” do mesmo modo que o conto?
Por quê? E um texto filosófico? Como você o leria? Essa leitura filosófica seria diferente da leitura da pintura e do conto? Em
quais sentidos? Resposta pessoal. Resposta possível: “De qualquer hexágono, veem-se os andares inferiores e superiores: interminavelmente”.
3. O conto e a pintura “Biblioteca de Babel” fazem referência à ideia de interconectividade e de funcionamento em rede. Como
a internet pode ser comparada a essa biblioteca imaginária?
3. Resposta pessoal. Espera-se que o aluno perceba que o funcionamento da internet só é possível graças à interconectividade dos computadores que
a integram. A biblioteca de Babel supõe essa interligação, como é possível constatar no trecho “De qualquer hexágono, veem-se os andares inferiores e
superiores: interminavelmente. […] ‘A Biblioteca é uma esfera cujo centro cabal é qualquer hexágono, cuja circunferência é inacessível’. ”
saberes
O que é o texto de filosofia?
Sócrates, talvez o mais emblemático dos filósofos, não deixou nada registrado por escrito e
tudo que sabemos a seu respeito – quem foi, o que fez, que ideias tinha e em que acreditava –
nos foi transmitido por terceiros. Essas informações, ideias e crenças chegaram até nós por
meio de textos escritos muito peculiares: os chamados textos filosóficos.
O pensamento eminentemente conceitual – a filosofia – se dá, portanto, sob a forma textual.
Sócrates filosofava pelas ruas e praças de Atenas, mas só conhecemos seu pensamento porque
suas ideias e opiniões foram registradas por escrito, especialmente por seu discípulo Platão.
São esses escritos que chamamos de textos de filosofia, isto é, textos cuja construção
e movimento procuram transmitir o pensamento conceitual dos filósofos. A esses textos
dedicam-se aqueles que querem conhecer as ideias filosóficas desses pensadores e, até
mesmo, produzir um discurso filosófico próprio. Sem o contato com os textos filosóficos é
praticamente impossível filosofar, pois são eles que transmitem boa parte da matéria -prima
da reflexão filosófica acumulada até o presente.
O texto filosófico não precisa, necessariamente, ser produzido por um filósofo para apre-
sentar ideias de natureza filosófica ou até mesmo um conjunto completo de ideias filosóficas.
Autores de outras áreas do conhecimento ou das artes podem produzir reflexão filosófica por
meio de poemas, crônicas ou romances.
O filosofar de poetas, escritores, cineastas, artistas plásticos ou músicos – filmes, escultu-
ras, pinturas ou músicas também têm a capacidade de despertar em nós ideias filosóficas –;
no entanto, não se caracteriza pelo uso preponderante do pensamento conceitual, como ocorre
com a Filosofia, e recorre aos mais variados recursos gráficos e visuais para transmitir ideias
e sentimentos (algo que a Filosofia também é capaz de fazer por meio dos recursos literários
empregados na construção dos textos). Juan Gris, 1925. El libro abierto. Óleo sobre tela. Coleção particular

O livro aberto (1925), de Juan Gris.


Os livros se desdobram para tentar
representar as diversas faces da
realidade.

6
1. Você se lembra de algum livro, filme ou música que despertaram em você ideias filosóficas? Cite alguns exemplos e
comente as reflexões filosóficas promovidas por essas obras.
Resposta pessoal. Quaisquer obras literárias, cinematográficas e musicais podem servir à reflexão filosófica. Há algumas que aparecem com

frequência nos livros didáticos de Filosofia. Entre os literatos, Clarice Lispector, Guimarães Rosa e Fernando Pessoa são constantemente

citados. No cinema, podemos destacar Blade Runner (Ridley Scott, 1982) e Matrix (Andy e Larry Wachowski, 1999), entre muitos outros. Na

música popular brasileira, podemos mencionar composições como Bom conselho (Chico Buarque), Timoneiro (Paulinho da Viola), Oração ao

tempo (Caetano Veloso), Tempo rei (Gilberto Gil), entre outras que abordam os mais diversos problemas filosóficos.

A interpretação do texto filosófico


Quando ainda não conhecemos o que se entende por Filosofia entre os filósofos e estu-
diosos da história da Filosofia, ou quando não estamos familiarizados com a leitura de textos
filosóficos, podemos ter a falsa impressão de que filosofar tem a ver com opiniões pessoais
e que os textos filosóficos são inteiramente subjetivos e, portanto, neles o autor explana o
que pensa sobre algum tema ligado ao ser humano, à cultura ou à sociedade. Tal impressão,
porém, é equivocada e deveríamos, por isso, abandoná-la em definitivo. Além disso, o contato
com os textos filosóficos exige necessariamente que os interpretemos, pois sem interpretá-los
não conseguiremos nos apropriar das ideias que eles pretendem transmitir.
O primeiro passo na interpretação de textos de filosofia é abandonarmos a nossa opinião
pessoal sobre o tema filosófico abordado no texto e evitarmos todo tipo de discriminação As pesquisas de opinião buscam
contra as ideias propostas pelo autor. Se não o fizermos, nossos preconceitos poderão impedir decifrar o gosto popular para
a leitura e a interpretação do texto. O ideal é nos desapegarmos de opiniões preconcebidas e tudo, do melhor creme dental ao
procurarmos dialogar com o texto filosófico, mergulhando, assim, na busca pelo conhecimento candidato mais bem preparado
para o governo.
verdadeiro, justificado e refletido.
Os filósofos chamam as opiniões pessoais de doxas (dóxa),

Dennis MacDonald/Easypix
palavra grega que significa crença comum ou opinião popular.
Filósofos da Grécia Antiga como Sócrates, Platão e Aristóteles usa-
vam o termo doxa como antônimo de conhecimento verdadeiro,
por eles chamado de episteme (epistéme). Desde então, os filóso-
fos têm sido críticos das doxas, pois, além de não corresponderem
à verdade, muitas vezes são utilizadas para persuadir ou enganar
a população, impedindo assim que as sociedades funcionem de
forma justa. Os filósofos gregos antigos insurgiam-se contra os
sofistas e políticos de seu tempo por esse motivo. Hoje em dia, os
discursos de opinião propagados por jornalistas e políticos, muitas
Módulo 2 | Capítulo 6

vezes de natureza sofista, podem ludibriar a população e impedir


o pleno exercício democrático devido às distorções dos fatos e
às mentiras públicas, tal como ocorria na Grécia Antiga. Nesse
contexto, será que a filosofia não se faz tão atual e necessária
como naqueles tempos?

7
Como ler um texto de filosofia?
A leitura de textos de filosofia deve ser feita de forma filosófica, isto é, o leitor deve pensar
e refletir sobre o que está lendo. A esse procedimento damos o nome de responsabilidade
filosófica. Sim, filosofar exige responsabilidade. A falta de responsabilidade filosófica, isto é,
a leitura desatenta e irrefletida, gera erros de interpretação e acaba por impossibilitar o próprio
filosofar. Podemos, por exemplo, interpretar a teoria comunista do filósofo alemão Karl Marx
como uma “teoria política” que defende a transferência do poder de determinada parcela da
população, a classe burguesa, para outro grupo social, o proletariado. Ou podemos interpretá-la
como uma “teoria humanista” que visa superar a desumanização do sistema capitalista com
o fim do dinheiro e da propriedade privada.
Interpretar o comunismo histórico derivado do ideário marxista como um “sistema de discri-
minação” que buscaria o extermínio de povos e raças inteiras é, porém, uma interpretação tão
equivocada quanto dizer que se trata de uma “tática de como fazer unicórnios serem campeões
da Copa do Mundo de futebol”, pois nos textos de Marx não existem considerações a respeito
nem desta nem da interpretação anterior, muito embora críticos do marxismo associem a teoria
comunista a eventos de países cuja configuração política recebeu a influência das ideias de
Marx, países em que assassinatos em massa e perseguições políticas ocorreram de forma
sistemática. Assim sendo, pensar é também saber pensar. Interpretar textos filosóficos exige,
portanto, paciência e dedicação, ou melhor, exige maturidade. Evidentemente, isso pode, à
primeira vista, parecer pouco atraente para os estudantes que se iniciam no estudo da Filosofia,
mas veremos que é algo que pode ser tão divertido quanto jogar videogame.

Saiba

Poucos pensadores foram tão controversos quanto Karl Marx (1818-1883). Por ter deixado uma obra inacaba-
da – muitos manuscritos foram descobertos e publicados décadas após sua morte – e dado origem a inúmeras
correntes políticas, muito do que se fez em seu nome e teve resultados desastrosos em termos humanitários –
mortes, perseguições – costuma ser associado à filosofia marxiana. Marx advogava o estabelecimento do co-
munismo – em alguns escritos, socialismo –, isto é, uma sociedade sem classes fundada “sobre a posse
comum dos meios de produção”. Ele mesmo, porém, não chegou a testemunhar uma sociedade desse tipo,
estabelecida, para alguns, pela primeira vez, com a Revolução Russa, em 1917. Ao sistema político do conjunto
dos países que estabeleceram sociedades semelhantes à russa ou orbitavam ao seu redor, deu-se o nome de
socialismo real. Em 1989, com a queda do muro de Berlim, tem fim essa experiência histórica. Apesar disso,
inúmeras correntes políticas permanecem, ainda hoje, tributárias do pensamento marxiano e em busca de uma
sociedade comunista.

Após abandonar nossa opinião, precisamos ter a consciência de que a leitura filosófica,
muitas vezes, exige ler e reler algumas vezes o mesmo texto.
A primeira leitura é o que chamamos de leitura interna. Nela devemos buscar entender a
mensagem e a coerência interna do texto. Para isso, devemos nos fazer as seguintes pergun-
tas: qual o problema central que o texto aborda? Quais as hipóteses levantadas pelo texto? O
texto nos apresenta alguma solução? Se sim, qual? Se não, por quê?
A segunda leitura é o que chamamos de leitura externa. Nela precisamos pesquisar sobre
informações externas ao texto quando ele foi escrito: os fatos econômicos e políticos do mundo
da época, a idade do autor quando escreveu o texto, suas motivações, leituras, religião, seus
inimigos e amigos. Precisamos considerar o “não dito” do texto para entender melhor a inten-
ção do autor. Por que o autor escolheu esse assunto? Qual a relevância e os desdobramentos
históricos das ideias apresentadas? O texto se opunha a alguma outra filosofia já existente?
São essas algumas perguntas que devem ser feitas neste nível da leitura filosófica.

8
Após as leituras interna e externa estamos prontos não só para termos uma compreensão
Para
realmente filosófica sobre o texto, mas também acabamos por ampliar nosso horizonte de ideias
acerca do mundo que nos rodeia, bem como sobre o universo de sentidos que podemos acionar.
acessar
<http://ftd.li/gvfrch>
A leitura filosófica em movimentos sucessivos produz um caminho que nos permite ultra-
passar os limites de nossas opiniões iniciais. Por fim, devemos apenas ter o cuidado de não No link você pode
assistir a uma palestra
julgarmos algum pensador ou texto de forma anacrônica, ou seja, não podemos condená-los do historiador Leandro
por não possuir algum tipo de conhecimento ético ou científico que ainda não existia em sua Karnal em que ele discor-
época. Por exemplo, não podemos condenar Sócrates por não se indignar contra a escravidão, re sobre a peça Hamlet,
de Shakespeare, em uma
visto que na Grécia Antiga não havia nenhum julgamento moral que condenasse tal prática.
leitura que mostra as inú-
meras camadas de signifi-
A questão do estilo em textos filosóficos cação filosófica presentes
neste clássico do teatro.
Um texto, para ser considerado filosófico, precisa apresentar algumas características básicas, Sua interpretação do texto
por exemplo: argumentação coerente e baseada em fatos, críticas aprofundadas, boas justificativas, conduz, ainda, a uma inquie-
tante reflexão sobre a vida,
questões reflexivas etc. Mas é importante que saibamos que não há um estilo único de escrita o mundo contemporâneo, a
entre os diversos pensadores da história. O filósofo quando escreve é livre para usar o estilo solidão e o Facebook.
que mais lhe agrade para transmitir sua mensagem e para dar vida e significado às suas ideias.
Platão escrevia diálogos em que seu mestre Sócrates desmontava as ideias de senso
comum dos sofistas e fazia nascer novas e melhores teorias. Immanuel Kant escrevia textos
longos e críticos nos quais cada conceito era analisado profundamente antes de ser empre-
gado em sua obra. Ludwig Wittgenstein usava aforismos – pequenas frases como as que,
atualmente, postamos nas redes sociais – para explicar algo ou para fazer as pessoas refletirem
sobre alguma coisa. Os analíticos como Alvin Goldman (1938) transformam seus pensamentos
em fórmulas lógicas que muito se parecem com cálculos matemáticos. Friedrich Nietzsche
(1844-1900), Jean-Paul Sartre (1905-1980) e outros filósofos escreveram algumas de suas
principais ideias em romances ou textos de estilo literário. Por fim, devemos ter consciência de
que o texto filosófico pode transcender a linguagem escrita e, como vimos, tomar a forma de
uma música, de um filme, uma peça de teatro ou até mesmo de uma revista em quadrinhos.

As habilidades trabalhadas pela Filosofia


Imagine só: ler um texto filosófico pode ser tão interessante e recompensador quanto um
jogo de aventura de videogame, ou de RPG, e vencer os mais diversos tipos de desafios. É o
caso de jogos como The Legend of Zelda, Fable ou Final Fantasy. Muitas vezes o personagem
encontra-se em uma misteriosa caverna e o único jeito de superarmos o desafio é investigar
o local, raciocinar bastante, organizar os diversos elementos e informações apresentados e
solucionar todos os enigmas encontrados. Pois bem, para o filósofo contemporâneo esta-
dunidense Matthew Lipman (1922-2010), a leitura filosófica desenvolve justamente nossas
habilidades de investigação, raciocínio, organização de informações e tradução do mundo
que nos cerca. Para Lipman, desde criança possuímos essas habilidades e a Filosofia pode
desenvolvê-las e fortalecê-las.
Heritage Images/DIOMEDIA

Módulo 2 | Capítulo 6

Cena do filme Final Fantasy


(Estados Unidos, 2001), dirigido
por Hironobu Sakaguchi. O di-
retor se inspirou na cultura dos
videogames para realizar o filme.

9
Habilidade de investigação
Tente se lembrar de quando você era criança e brincava com uma bolinha. Se de repente ela
sumia, provavelmente você tentava descobrir para onde a bola havia ido – talvez para debaixo
do sofá, ou para trás da televisão. Ou seja, você se envolvia na tarefa de relacionar elemen-
tos, considerar alternativas, construir hipóteses etc.; no fim, você estava investigando. Hoje,
quando você chega a uma parte complexa de um videogame e não sabe como prosseguir, vai
ter que seguir os mesmos passos de quando era criança e investigava onde a bola teria ido
parar. Se não conseguir superar o desafio, deverá investigar na internet, procurar alguém com
mais experiência naquele jogo etc. Pois bem, essa é exatamente a postura investigativa que
você precisa ter para entender os textos de filosofia que, em um primeiro momento, podem
parecer muito complexos e desafiadores.
A investigação envolve tentativa e erro e, por isso mesmo, a chamamos de uma prática
autocorretiva. Uma simples tentativa não pode ser chamada de investigação. Precisamos
tentar quantas vezes forem necessárias; a cada erro, nos corrigir; a cada acerto, acumular
conhecimento.
Tal como no videogame, a investigação possui vários níveis e, ao longo da vida, o estudo
de textos filosóficos vai nos rendendo a experiência necessária para evoluirmos de “nível”. Por
meio dessa habilidade, aprendemos a associar nossas atuais experiências com o passado e
com aquilo que desejamos que aconteça no futuro. Assim sendo, é por meio da investigação
que podemos explicar, prever e identificar causas e efeitos, atos e consequências, meios e fins.

Para
ler
O mundo de Sofia: Romance da história da filosofia

Editora Companhia das Letras


Jostein Gaarder. São Paulo: Companhia das Letras, 1995

Sofia Amundsen é uma adolescente que passa a receber cartas de um desconhe-


cido com algumas questões existenciais. Inicia-se assim uma viagem pela história da
filosofia ocidental. O livro transforma o aprendizado da história da filosofia em uma
grande aventura e é uma boa alternativa para praticar a leitura filosófica. A obra foi
adaptada depois para minissérie de TV e filme.

Habilidade de raciocínio
Nosso conhecimento baseia-se em nossas experiências de vida, mas não é construído
apenas com elas. É necessário que sejamos capazes de presumir, supor, comparar, inferir,
contrastar, julgar, deduzir, induzir, classificar, descrever, definir, explicar etc. Todas estas capa-
cidades reunidas formam a nossa habilidade de raciocínio.
Se a bolinha que você procurava não estava embaixo do sofá, provavelmente é melhor
procurá-la sob a mesa. Se no videogame a porta para fugir do calabouço está trancada, talvez
seja melhor procurar a chave certa. Raciocínio é o processo de ordenar e coordenar aquilo que
foi descoberto por meio da investigação. Implica em descobrir maneiras válidas de ampliar e
organizar o que foi descoberto ou inventado durante a investigação.
Por meio do raciocínio é possível perceber a lógica existente entre um conteúdo e outro,
entre um conteúdo e um fato, entre um fato e outro fato etc. É justamente por meio dessa
lógica que a racionalidade se mostra possível e que podemos identificar por que alguns argu-
mentos são melhores que outros e por que precisamos ir além do relativismo das opiniões
para podermos filosofar sobre as coisas. Por meio do raciocínio conseguimos ir muito além
de nossas experiências.

10
Habilidade de organização de informações
Após investigar e raciocinar, tanto no videogame quanto na leitura filosófica, é provável
que você se encontre cheio de dados e informações, mas que não saiba exatamente o que
deve fazer com tudo isso. Neste momento é necessário colocar em prática nossa habilidade
de organizar informações para, então, darmos significado às nossas descobertas.
No videogame encontramos, por exemplo, chaves, joias, baús, escadas, manivelas etc.;
nos textos de filosofia vamos achar sentenças, argumentos, conceitos, esquemas. Todos
estes itens juntos formam redes de significados complexas, que necessitam ser traduzidas a
fim de que possamos avançar de “nível” e sejamos capazes de relacionar o texto de filosofia
com nosso dia a dia.

Habilidade de tradução
Traduzir consiste no ato de transferir o que está sendo dito em uma língua para outra sem
que se perca o sentido do que foi dito no idioma original. Muitas vezes, apenas substituir o
idioma não basta. Quantas vezes você já usou o tradutor automático do computador em um
texto da internet e as frases pareceram ficar sem pé nem cabeça? Pois bem, uma boa tradução
geralmente necessita de fortes doses de interpretação.
Tal como se decifra um enigma ou código num jogo, a tradução não se limita à transmissão
de significados de uma língua para outra. Ela ocorre em diferentes modos de expressão, tal
como quando um pintor retrata uma cena, quando um livro é transformado em filme ou um
filme vira um jogo de videogame, quando um músico transforma um poema em melodia etc.
A tradução necessita da interpretação porque é necessário que primeiro se interprete qual é
o elemento principal do texto para só depois conseguirmos traduzi-lo para outra linguagem.
Para vencermos o desafio final, subirmos de “nível” e, enfim, darmos sentido e significado
ao texto filosófico, precisamos perceber que, tanto o texto complexo quanto nossas ideias mais
simples, possuem uma estrutura lógica, e que, ao compreendermos esse mecanismo, se torna
possível traduzir as informações recebidas para nossa própria linguagem mental. Visto que cada
um de nós possui um universo próprio de vivências e teias de significados, possuimos também
uma linguagem mental própria, pela qual, valendo-se das habilidades citadas, podemos melhor
interpretar e transformar o mundo em que vivemos. Diríamos que a boa leitura de um texto
filosófico se determina quando conseguimos traduzi-lo para nossa própria linguagem mental,
mantendo vivo o significado e a reflexão propostos pelo filósofo que o escreveu.
heshphoto/Getty Images

Módulo 2 | Capítulo 6

Para jogar videogame é preciso rela-


cionar elementos, escolher alterna-
tivas, elaborar hipóteses, investigar.

11
Os conceitos

René/AUTVIS, Brasil, 2015.


O que é isso, um conceito? Em seu sentido mais
básico, conceito é uma ideia geral que designa um
objeto ou uma classe de objetos. Por exemplo, quando

René Magritte, 1963. Óleo sobre tela. Menil Collection, Houston. EUA © Photothèque R. Magritte, Magritte,
usamos o conceito de “carro”, pensamos em “veículo
motorizado de quatro rodas”. E isso, a princípio, refere-
-se a todo e qualquer carro existente. Nesse sentido,
conceito é uma abstração, ou seja, é como se retirás-
semos das coisas existentes as suas características
particulares e utilizássemos a palavra em seu sentido
geral. Isso possibilita trabalharmos com a linguagem
em um nível mais “puro”, por assim dizer. Possibilita
também que nosso pensamento estabeleça relações
gerais entre as coisas que existem.
Por outro lado, os conceitos também são determina-
dos pelo modo com que compreendemos determinados
assuntos ou situações. Pois, se de antemão compreen-
demos “carro” como “veículo motorizado de quatro
rodas”, àquilo que estiver fora do escopo desse conceito
não aplicaremos o conceito de “carro”. Por exemplo, se
considerarmos que carros possuem essencialmente
quatro rodas, caso vejamos um carro com seis rodas
ficaríamos em dúvida em aplicar o conceito a esse
objeto. Chamaríamos de “carro de seis rodas”, ou sim-
plesmente daríamos um nome diferente a tal veículo.
Podemos dizer, então, que os conceitos não apenas são
criados a partir do modo de compreensão que temos
de determinado assunto ou situação, mas também o
determina. Então, um aspecto deve ser considerado:
se os conceitos determinam e são determinados pelas
formas de compreensão, é possível que surjam os pré-
-conceitos. Eles ocorrem quando um modo de com-
preensão é limitado e excludente, e julga aquilo a que
se refere de modo depreciativo.
Nesse sentido, ainda que conceitos sejam utiliza-
dos na linguagem cotidiana com um razoável grau de
acordo, não podemos afirmar que exista algo como um
conceito absoluto ou definitivo sobre uma coisa. Na pró-
pria filosofia, dependendo do período histórico ao qual
nos referimos, conceitos deverão ser tratados – e com-
preendidos – de uma determinada maneira. O mesmo
vale para conceitos de um autor determinado. Ou ainda:
a compreensão do que seja um conceito depende da
maneira pela qual os conceitos são utilizados nas ciên-
cias ou na filosofia.

O telescópio (1963), de René Magritte, é apenas um desenho de


um objeto real, o céu, não o próprio céu, parece nos lembrar o
artista. Assim como os conceitos, o desenho é uma representação
da realidade, e não ela própria.

12
Os conceitos nas ciências
Nas ciências empíricas, os conceitos são utilizados em dois sentidos:
a) como generalização ou abstração de algo que existe empiricamente;
b) ou como uma entidade hipotética.
Uma entidade hipotética é algo que supomos existir, mas da qual ainda não possuímos
confirmação. Podemos citar o exemplo de uma infinidade de partículas subatômicas, estuda-
das pela Física Quântica, mas cuja referência empírica direta é especialmente problemática.
Equipamentos como aceleradores de partículas, por exemplo, registram os efeitos de uma
suposta partícula. Ou seja, a partícula, nesse caso, é uma entidade hipotética, pois nós supo-
mos sua existência a partir de seus efeitos. Todos os conceitos que possuem sentido dentro
de uma teoria científica e levam essa teoria a prever alguma consequência, mas que ainda
não foram testados, possuem o chamado caráter de testabilidade. Isso significa que o valor
de verdade das sentenças daquela teoria, que contenham tais entidades hipotéticas, ainda
permanece em aberto. No momento em que os conceitos forem testados, poderão vir a ser
justificados ou descartados.
Nas ciências, alguns conceitos são utilizados como pressupostos ou noções comuns que
servem a toda a comunidade científica. Nesse sentido, em cada área específica do conhecimento
científico existe um conjunto de pressupostos – assumidos como verdadeiros, até que provem o
contrário – que serve de base para todas as sentenças – empíricas ou hipotéticas – pertencentes
a qualquer teoria que esteja naquele momento sendo utilizada. Essa relação determina o que
chamamos de paradigma. Paradigma, em ciência, significa o conjunto de procedimentos e
conceitos pressupostos a serem utilizados pela comunidade de pesquisadores de uma área.

Os conceitos na filosofia
Já na filosofia, há maior liberdade de criação de conceitos. A filosofia analítica ou anglo-
-saxônica tende a utilizar alguns conceitos do mesmo modo que no paradigma das ciências
particulares. No entanto, na filosofia ocidental, cada filósofo cria conceitos próprios, de modo
que o rigor e a coerência se remetem ao sistema filosófico em questão.
Poderíamos então perguntar: o que é isso, um conceito filosófico? Para responder a tal
questão, podemos problematizar a própria noção de conceito na filosofia. Afinal, a filosofia
possui a liberdade de problematizar a si mesma. Vejamos, pois, como alguns filósofos trataram,
de modo específico, da questão do conceito filosófico.

Platão: em busca da essência das coisas


Ao longo de inúmeras passagens dos textos platônicos, o personagem de Sócrates inter-
roga seus interlocutores. E ele sempre pergunta pela definição do assunto que está em questão.
Quando diferentes interlocutores dão respostas distintas (pois cada um difere em opinião, em
parte), Sócrates analisa cuidadosamente os pressupostos de cada um, descarta o que considera
inconsistente e mantém o que parece ser válido. E ele então conduz os interlocutores – e o
leitor – a construir um conceito para o que está em questão.
Platão, por meio do personagem Sócrates, trata o conceito não apenas como uma definição
geral e abstrata que reúne um múltiplo, mas também como aquilo que aponta para a coisa
mesma, a essência daquilo em questão. As características de uma coisa não são apenas o que
ela parece, mas o que ela é. Nesse sentido, há uma dupla dimensão: tanto a epistemologia – a
Módulo 2 | Capítulo 6

teoria do conhecimento – como a ontologia – a teoria do Ser – fazem parte da identificação


de um conceito. E agora perguntamos a você: um conceito pode apontar para a essência de
algo? E se tivermos um sistema de conceitos gerais, podemos ter um sistema que descreve
as essências? Essa foi a grande tentativa filosófica que determinou boa parte do pensamento
no Ocidente, desde os pré-socráticos até Hegel.

13
Bergson: conceito é intuição
Para o filósofo francês Henri Bergson, um conceito
filosófico é uma intuição. Ou melhor, é uma ideia que
parte de uma intuição. Mas o que é isso, intuição?
Nesse caso, é um tipo especial de compreensão das
coisas. Conceitos nos fazem compreender o mundo,
e compreender o mundo é ter uma visão dele. Essas
visões podem ser mais ou menos acuradas, mais ou
menos precisas. Para Bergson, um conceito filosófico
parte de uma visão especial – e às vezes específica
daquele filósofo – das coisas, ou daquilo que está em
questão. E então o trabalho da escrita filosófica é o de
tentar se aproximar, ou expressar da melhor forma – da

René Magritte, 1933. Óleo sobre tela. National Gallery of Art, Washington.
© Photothèque R. Magritte, Magritte, René/AUTVIS, Brasil, 2015
forma mais precisa possível – aquela visão. Quando o
filósofo finalmente encontra a forma mais precisa de se
descrever aquilo, ele criou um conceito.

Se existe um meio de possuir uma realidade abso-


lutamente, em lugar de a conhecer relativamente, de
colocar-se nela em vez de adotar pontos de vista sobre
ela, de ter a intuição em vez de fazer a análise, enfim, de
a apreender fora de toda expressão, tradução ou repre-
sentação simbólica, a metafísica é este meio.
BERGSON, Henri. Introdução à Metafísica.
In: Textos selecionados. Tradução de Franklin Leopoldo e Silva.
São Paulo: Nova Cultural, 1989. p. 134-135. (Os pensadores).

Segundo a definição de Bergson, a metafísica é a


disciplina filosófica capaz de criar, por excelência, con-
ceitos que fazem referência ao real, tentando identificar
as estruturas e os modos de ser de tudo o que existe:

Certamente os conceitos são indispensáveis [à


metafísica], pois todas as outras ciências trabalham
geralmente com conceitos, e a metafísica não pode dis-
pensar as outras ciências. Mas ela só é propriamente
ela mesma quando ultrapassa o conceito, ou ao menos,
quando se liberta de conceitos rígidos e pré-fabricados
para criar conceitos diferentes daqueles que maneja-
mos habitualmente, isto é, representações flexíveis,
móveis, quase fluidas, sempre prontas a se moldarem
sobre as formas fugitivas da intuição.
BERGSON, Henri. Idem, p. 138-139.

A condição humana (1933), de René Magritte. Faz parte da


condição humana buscar e apreender a realidade. Alcançamos a
essência das coisas?

14
A filosofia possui a tarefa criadora de elaborar conceitos, de tal maneira que isso nos faz

New York Public Library Picture Collection/


Photoresearchers/Latinstock
perceber a realidade de modo distinto do que estamos habituados. O elemento da originali-
dade se faz presente no filosofar, não apenas enquanto processo questionador, mas na própria
escrita filosófica. Mas quão original pode ser um conceito filosófico? Quão original podemos
ser ao abordarmos o que está à nossa volta?

Heidegger: o que pode ser colocado em jogo


Para o filósofo alemão Martin Heidegger, a relação entre filosofia e arte se dá, antes de
qualquer coisa, naquilo que é digno de ser pensado. Mas poderíamos perguntar: o que é isso,
o que vale a pena ser pensado? Dito de modo simples, mas ao mesmo tempo sem esconder
a gravidade da questão: tudo o que está à nossa volta. O Ser é digno de ser pensado. O fato
de utilizarmos a linguagem não apenas para designar categorias, mas também para evocar Henri Bergson (1859-1941) foi um
dos mais influentes filósofos de
e provocar reações em nossos interlocutores, é digno de ser pensado. Por que, afinal, nos
sua época. Teve importante atua-
perguntamos sobre a essência das coisas ao nosso redor? ção política e obteve o prêmio
A linguagem humana sempre pressupõe uma conceituação do “ser”, ao menos enquanto Nobel de Literatura em 1928.
Suas principais obras: Matéria e
aquilo que se faz presente ou está dado à nossa volta. O Ser está aí, nós somos, e estamos situa-
memória, Introdução à metafísi-
dos em meio aos entes (que também “são”, enquanto entes). Ente significa: um que é. Mas o ca, A evolução criadora e As duas
Ser nunca se reduz a qualquer ente especificamente. E, ainda assim, nós sempre dizemos: isto é fontes da moral e da religião.
um carro, aquilo é uma árvore. Para Heidegger, a essência do Ser nunca se revela a nós, seja em
qualquer ente em específico. Pois, ao analisarmos, calcularmos e estabelecermos relações entre
os entes, nós apenas encontramos mais entes. O Ser apenas aparece a nós por meio dos entes,
embora nunca se reduza a tal. A sutileza, nesse caso, ocorre pelo fato linguístico de que o Ser
aparece a nós quando nos perguntamos acerca da essência de qualquer coisa.
Nesse sentido, os problemas filosóficos clássicos “O que é isso, uma coisa…?”, “O que é
isso, a essência de uma coisa (seja ela o Homem, a linguagem, o conhecimento, a verdade, o
uno, o múltiplo ou mesmo o próprio Ser)…?” remetem ao modo pelo qual o Ser se apresenta
a nós, sob a forma de questão, enquanto mistério fundamental. A colocação de um problema
filosófico é a experiência mesma existencial de encontro com o mistério, com aquilo que se
desvela a nós enquanto ocultamento essencial.
Para Heidegger, essas perguntas não possuem respostas. Elas deveriam, antes disso,
ser colocadas de forma correta, e poderiam ser eternamente colocadas e recolocadas por
nós mesmos, enquanto seres pensantes, capazes de filosofar sobre as coisas. Tudo o que
está à nossa volta é passível de ser colocado em jogo, de ser colocado enquanto problema
pelo nosso pensar. E é a partir disso que se dá a criação de conceitos. Isso indica também a
relação entre filosofia e arte. Ambas possuem a proximidade no próprio ato de criação, como
diz Heidegger em “Da experiência do pensar”:

Cantar e pensar são os troncos vizinhos do poetar. Eles crescem do Ser e alcançam sua verdade.
HEIDEGGER, Martin apud LIMA FILHO, Mathias de Abreu. A escuta, a espera e o silêncio:
a “indigência da Modernidade” em Heidegger e Rilke. São Paulo: EDUC: FAPESP, 2011. p. 23.

O “pensar” – representando o filosofar em sua essência – e o “poetar” – indicando a criação


artística – estão interligados em sua raiz, remetem-se ao desvelamento daquilo que aparece
a nós como mistério, ao ser problematizado. Conceitos são criados em função de problemas,
Módulo 2 | Capítulo 6

ou seja, em função da maneira pela qual eles apontam a problemas. Um problema filosófico,
por sua vez, remete a outros conceitos. E outros conceitos remetem a outros problemas. E
assim indefinidamente. Um conceito filosófico nunca é puro, imediato ou tão simples em si
mesmo quanto poderia parecer à primeira vista. Se você acha que o conceito de Ser é simples,
deveria reconsiderar isso.

15
Saiba

Millôr Fernandes (1924-2012) foi jornalista, escritor, humorista, desenhista, dra-


maturgo e tradutor brasileiro. Suas frases e aforismos são bastante conhecidos. Às
vezes, eram elaborados na forma de conceitos ou definições “ao contrário”; outras,
brincando com a etimologia ou a imaginação. Conheça alguns.
Dicionovário – Palavras que precisam ser inventadas
Abensuado: louvado cristãmente por ter feito um grande esforço físico. Caligrafeia: letra
ruim. Cãodução: carrocinha de cachorro.
Dicionário etmológico
Comsumo: o que ainda não foi espremido. Jogador: sujeito que arrisca a dor alheia. Ultrajar:
vestir-se excessivamente bem. Veemente: assiste e não conta a verdade.
Dicionário definitivo
Chato: indivíduo que tem mais interesse em nós do que nós nele. Dívida: aquilo que temos
quando não temos tanto quanto devemos. Etc.: forma linguística de dar a impressão que sabe-
mos ainda muito mais.
FERNANDES, Millôr. Literatura comentada. São Paulo: Abril Educação, 1980. p. 54-56.

Deleuze: tramas de conceitos


Por meio desse exercício, você pôde perceber que qualquer conceito, por mais simples
que seja, sempre remete a outros, e a outros, e assim por diante. É como observam o filósofo
francês Gilles Deleuze e o psicanalista belga Félix Guattari:
Numa palavra, dizemos de qualquer conceito que ele sempre tem uma história, embora a história
se desdobre em zigue-zague, embora cruze talvez outros problemas ou outros planos diferentes. Num
conceito, há, no mais das vezes, pedaços ou componentes vindos de outros conceitos, que respon-
diam a outros problemas e supunham outros planos. Não pode ser diferente, já que cada conceito
opera um novo corte, assume novos contornos, deve ser reativado ou recortado.
Mas, por outro lado, um conceito possui um devir que concerne, desta vez, a sua relação com
Devir: vir a ser; tornar-se; a
conceitos situados no mesmo plano. Aqui, os conceitos se acomodam uns aos outros, superpõem-se mudança enquanto passagem
de um estado a outro; em devir:
uns aos outros, coordenam seus contornos, compõem seus respectivos problemas, pertencem à mes-
em estado de mudança. Nesse
ma filosofia, mesmo se têm histórias diferentes. Com efeito, todo conceito, tendo um número finito de sentido, devir é o oposto do ser
enquanto ser imutável e forma
componentes, bifurcará sobre outros conceitos, compostos de outra maneira, mas que constituem
com este uma das mais perenes
outras regiões do mesmo plano, que respondem a problemas conectáveis, participam de uma cocria- oposições filosóficas.
ção. Um conceito não exige somente um problema sob o qual remaneja ou substitui conceitos prece-
dentes, mas uma encruzilhada de problemas em que se alia a outros conceitos coexistentes.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a Filosofia? São Paulo: Editora 34, 1992. p. 29-30.
ASSOCIATED PRESS/Glow Images

Gilles Deleuze (1925-1995), filósofo francês contemporâneo, considerava a filosofia


uma ferramenta para construir conceitos; não para interpretar e refletir a realidade. Dedi-
cou-se à história da Filosofia e a escrever sobre cinema, literatura e arte. Com Félix Guattari,
escreveu O anti-Édipo e O que é Filosofia?

16
Essa passagem de Deleuze descreve a natureza dos conceitos filosóficos. O aspecto de
“devir” indica a potencialidade própria dos conceitos: eles não apenas partem de problemas,
mas também os delimitam. Ao fazerem isso, estabelecem novos planos de possibilidades de
pensamento, que, por sua vez, remetem a outros problemas, e assim sucessivamente.
Conceitos filosóficos conectam-se em rede e adquirem sentido a partir daí. Problemas
adquirem sentido a partir de conceitos, e conceitos adquirem sentido a partir de problemas. Do
mesmo modo, problemas adquirem sentido a partir de outros problemas, e conceitos adquirem
sentido a partir de outros conceitos. Isso não apenas é determinado previamente por nossa
visão de mundo, como também determina a possibilidade de estabelecermos novas visões.
É quando os dilemas surgem em nossa existência que os conceitos se fazem necessários,
pois eles nos permitem diferentes abordagens sobre o viver. Por isso, a filosofia concerne à
nossa própria existência como um todo.

2. Quais as principais características dos conceitos científicos?


Nas ciências, os conceitos são geralmente utilizados como generalização de fenômenos empíricos ou que existem apenas hipoteticamente e

devem ser submetidos a testes; alguns conceitos científicos são convertidos em paradigmas.

3. Como os conceitos são utilizados na filosofia?


Platão considera o conceito não apenas como uma definição geral e abstrata da multiplicidade das coisas que existem, mas também como a

essência das coisas. Para Bergson, a metafísica é a disciplina filosófica capaz de criar conceitos, tentando identificar as estruturas e os modos

de ser de tudo o que existe. Heidegger afirma que os conceitos são criados em função de problemas; um problema filosófico remete a outros

conceitos, que remetem a outros problemas, e assim indefinidamente. E Deleuze considera que os conceitos filosóficos existem em rede

e adquirem sentido a partir de outros conceitos. Problemas adquirem sentido a partir de conceitos, e conceitos adquirem sentido a partir de

problemas; a necessidade deles surge à medida que nossos dilemas são apresentados.


Módulo 2 | Capítulo 6

17
A crítica
Qual o significado do termo “crítica”?
O termo “crítica” vem do grego kritikē, que significa “discernir”, “separar”, “julgar”. Trata-se
do ato epistêmico de depurar e fazer permanecer aquilo que suportou o exame do discerni-
mento. Esta última expressão, por sua vez, tem origem latina. E sua morfologia revela o radical
grego critério (kritérion), de cujo sufixo nominal kri(n) descenderia a palavra latina discernere
(discernir). Portanto, podemos afirmar que, etimologicamente, o termo “crítica” é a ação inte-
lectual de “discernir” segundo um “critério”.
Do grego, o termo foi transposto para o latim e, do latim, para a língua portuguesa. O
termo “crítica” foi registrado em nosso idioma pela primeira vez em 1789, no Diccionario
da Lingua Portugueza, em Lisboa. Foi estabelecido como a “arte de definir o verdadeiro do
falso por meio de critérios”, o que ressalta a conotação, já presente na sentença grega, de
que o estabelecimento de uma verdade, de um tema ou de um objeto depende do critério do
discernimento. Assim, o sentido essencial do termo crítica, o discernir, manteve-se presente
no significado da palavra em português. Você notou que o Diccionario foi publicado em 1789,
ano em que aconteceram eventos históricos muito importantes, que estão, de certo modo,
ligados ao conceito que estamos estudando? Vejamos.

18
A crítica aplicada
O ano da publicação do Diccionario coincidiu com o início da Revolução Francesa. O
levante parisiense e a publicação do Diccionario ocorreram no período do Iluminismo. Em
termos gerais, o Iluminismo foi um movimento filosófico que se propôs a fazer da crítica o
guia da razão. Para os iluministas, uma vez disciplinada criticamente, a razão deveria operar
em todos os campos da experiência humana. Immanuel Kant, um dos filósofos precursores
do Iluminismo, esforçou-se para submeter sua época e também a filosofia a um exame crítico
A crítica é uma atitude diante do
criterioso, do qual nos ocuparemos agora. O entendimento da proposta crítica kantiana vai nos mundo que busca examinar prin-
auxiliar a entender a importância da crítica não apenas para o momento histórico do autor, mas cípios e fatos da vida. O filósofo
também para a nossa sociedade contemporânea. Veremos que o desenvolvimento da ideia de Immanuel Kant (1724-1804), co-
Direitos Humanos está no pensamento kantiano, que tem como base a crítica. nhecido por seus hábitos simples
e regulares, costumava receber
Kant estabelece a crítica como um tribunal onde a razão é, concomitantemente, juíza amigos e admiradores para dis-
e ré. De um modo, ela é atividade da razão empírica (Verstand, em alemão), que faz uso cussões sobre temas filosóficos,
lógico das categorias do intelecto, alcançando consciência de si, porquanto lhe confere limi- políticos e estéticos. Nessas reu-
tes epistêmicos. De outro, estabelecido o campo seguro do conhecimento científico, faz-se niões, ele exercia o que enten-
necessário apresentar um uso puro da razão (Vernunft), que não se ocupa com o condicio- dia, de modo amplo, por crítica:
“um exame livre e público”.
nado (fenômenos), mas, sim, com o incondicionado (numênico), que ultrapassa as possibili-
dades da experiência.

ullstein bild/Getty Images

Módulo 2 | Capítulo 6

19
20
Gianni Dagli Orti/The Art Archive/DIOMEDIA
Assim, na Crítica da razão pura, Kant chega à conclusão de que o conhecimento científico é
resultado, em primeiro lugar, da ação receptiva dos sentidos humanos, que captam os dados da
natureza fenomênica. Em seguida, uma vez que tais dados são recepcionados e internalizados,
são elevados à condição de conceitos, no âmbito do intelecto. A partir de então, a produção
humana científica é possível, enquanto a razão teórica admitirá como conhecimento somente
o que é passível de justificação lógica. Essa crítica da razão a si mesma é de utilidade, pois
evita que seu poder de ciência opere irresponsavelmente no âmbito numênico. Ao proceder
assim, concentra sua pretensão para o conhecimento científico no palco fenomênico, onde
pode desenvolver a técnica e alcançar o progresso tecnológico. Tal é o sentido da crítica kan-
tiana à razão enquanto Verstand, que deve operar no campo fenomênico na busca do seguro
conhecimento por meio dos conceitos lógicos do intelecto.
A crítica kantiana, porém, estendeu-se para além da delimitação segura do saber científico
e filosófico. Todo conhecimento começa pelos sentidos, perpassa o entendimento e vem a
terminar na razão pura. Em outras palavras, para toda a multiplicidade de objetos fenomênicos
existentes, há, para cada um, seu conceito transcendental correspondente. Dentre as importan-
tes implicações dessa afirmação, está uma de natureza social e política: ao justificar o poder
da razão pura, abre-se um campo fecundo para a razão prática, pela qual é possível abordar
problemas que não possuem solução teórica, como o da liberdade humana. Nesse campo prá-
tico, como Kant expõe em sua obra Crítica da razão prática, existem argumentos morais que são
importantes para a formação da cons­ciência política. O filósofo atribui a certos temas morais uma
influência política direta; e, a temas políticos, uma sagrada dignidade moral, atingindo seu ápice
nos ensinamentos acerca do respeito e da reverência pela dignidade do ser humano, base para a
atual Declaração dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU).
A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, uma das fontes de inspiração da
Declaração da ONU, foi aprovada pela Assembleia Nacional Constituinte francesa, em 1789,
fruto do pensamento iluminista e da Revolução francesa do mesmo ano, ela também, fruto
das novas ideias filosóficas críticas do período. Seu primeiro artigo afirma: “Os homens
nascem e permanecem livres e iguais em direitos. As distinções sociais só podem funda-
mentar-se com base na utilidade comum”. A ilustração da página ao lado, do artista francês
Jean-Jacques Le Barbier (1738-1826), apresenta seus 17 artigos.

Esclarecimento é a saída do homem de sua menoridade, da qual ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade
Enem de fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro indivíduo. O homem é o próprio culpado dessa menoridade se a cau-
sa dela não se encontra na falta de entendimento, mas na falta de decisão e coragem de servir-se de si mesmo sem a direção
de outrem. Tem coragem de fazer uso de teu próprio entendimento, tal é o lema do esclarecimento. A preguiça e a covardia
são as causas pelas quais uma tão grande parte dos homens, depois que a natureza de há muito os libertou de uma condição
estranha, continuem, no entanto, de bom grado menores durante toda a vida.
KANT, I. Resposta à pergunta: o que é esclarecimento? Petrópolis: Vozes, 1985 (adaptado).

Kant destaca no texto o conceito de Esclarecimento, fundamental para a compreensão do contexto filosófico da
Modernidade. Esclarecimento, no sentido empregado por Kant, representa
a) a reivindicação de autonomia da capacidade racional como expressão da maioridade.

b) o exercício da racionalidade como pressuposto menor diante das verdades eternas.


Módulo 2 | Capítulo 6

c) a imposição de verdades matemáticas, como caráter objetivo, de forma heterônoma.

d) a compreensão de verdades religiosas que libertam o homem da falta de entendimento.

e) a emancipação da subjetividade humana de ideologias produzidas pela própria razão.

21
A importância da crítica
Agora você já sabe da importância da crítica. Pensar de forma criteriosa, buscando tes-
tar, atestar e justificar seu pensamento, só traz benefícios para quem assim procede, esten-
dendo-se para sua família, comunidade e, por que não, para o seu país? Kant, por exemplo,
sabia que operava uma revolução no campo filosófico e deixou trabalhos que, posterior-
mente, se tornaram a base para avanços políticos e jurídicos. O filósofo apresentou os resul-
tados de sua crítica em pleno fervor iluminista. Sobre essa época, chegou a defini-la como o Heteronomia: condição de
quem não tem autonomia,
tempo da crítica, em que tudo deveria ser submetido à análise. A razão, segundo esses que está submetido à vontade
valores, deve ser voltada à libertação do ser humano de toda heteronomia, por meio de seu alheia.
uso crítico, promovendo experiências sociais e políticas autônomas. Kant oferece uma inte-
ressante definição de Iluminismo, que acentua a qualidade libertadora do conceito que estu-
damos. Descreveu sua época como a época do esclarecimento (Aufklärung), que conduz a
saída do ser humano de sua menoridade para a maioridade. A menoridade é a incapacidade
de fazer uso do próprio entendimento por causa da preguiça e da covardia, indo buscar
socorro em outras pessoas:
É tão cômodo ser menor. Se possuo um livro que possui entendimento por mim, um diretor espi-
ritual que possui consciência em meu lugar, um médico que decida acerca de meu regime etc., não
preciso eu mesmo esforçar-me. Não sou obrigado a refletir, se é suficiente pagar; outros se encarre-
garão por mim da aborrecida tarefa.
KANT, Immanuel. Resposta à pergunta: O que é o Esclarecimento. Tradução de Luiz Paulo Rouanet.
Disponível em: <www.uesb.br/eventos/emkant/texto_II.pdf>. Acesso em: 13 nov. 2015.

A maioridade é a decisão autônoma pela coragem de servir-se do próprio conhecimento


e, publicamente, exercer seu esclarecimento (Aufklärung). Trata-se, portanto, do ato de buscar
o pleno conhecimento e, sobretudo, de realizar o que Kant chama de filosofia prática, aquela
que busca a libertação e consolidação dos Direitos do Homem por meio do processo racional
previamente disciplinado pela crítica, conforme explicado acima. E tudo isso deve ser feito de
forma pública, para conferir maior legitimidade ao processo.

Esse Esclarecimento não exige todavia nada mais do que a liberdade; e mesmo a mais inofensiva
de todas as liberdades, isto é, a de fazer um uso público de sua razão em todos os domínios.
KANT, Immanuel. Resposta à pergunta: O que é o Esclarecimento? Tradução de Luiz Paulo Rouanet.
Disponível em: <www.uesb.br/eventos/emkant/texto_II.pdf>. Acesso em: 13 nov. 2015.

Saiba

A crítica da crítica
O Iluminismo representou a plena confiança na razão e em sua capacidade crítica,
que poderia libertar os seres humanos de sua menoridade intelectual. Filósofos como
Adorno, Horkheimer, Benjamin e Marcuse, entre outros, reunidos no início do século
XX, em torno da chamada Escola de Frankfurt, estabeleceram a crítica dessa razão
iluminista. Para eles, a razão “iluminada” tem aspectos perversos, que podem ser
identificados na razão instrumental – o conhecimento das ciências aplicadas direcionado
à técnica. De acordo com esses pensadores, ela visa o domínio da natureza para os
fins do lucro capitalista. Em lugar da emancipação, a razão instrumental leva à perda
da autonomia do sujeito, por meio da indústria cultural.

22
Vamos integrar o que aprendemos?
Como podemos relacionar as teorias filosóficas sobre a crítica apresentadas até aqui?
Vejamos.
Localizamos a origem da crítica na Grécia Antiga, a partir do termo “crítica”, que significa
“discernir”. A crítica deixa permanecer apenas aquilo que suportou o exame do discernimento
segundo um critério. Nesse sentido, o critério do filósofo Immanuel Kant, à luz da Revolução
Francesa (1789) e do Iluminismo, foi o de definir não somente a sua época segundo uma crí-
tica, mas também a filosofia, a qual submeteu a um exame crítico. Kant concebeu seu projeto

Nicolas Adam Sebastien (1705-78). Louvre, Paris, France. Foto: Bridgeman Images/Easypix
filosófico como uma crítica da razão pura, título de seu livro mais famoso, visando
determinar a legitimidade de suas pretensões, tanto no campo teórico, como no
prático. As implicações epistêmicas, morais, políticas e jurídicas, sobretudo para
o âmbito dos Direitos Humanos, denotam a importância de exercer a autonomia
e o esclarecimento (Aufklärung), tendo em vista a superação da menoridade e,
consequentemente, o uso prático da crítica, expressado na maioridade.
A maioridade relaciona-se a um proceder caracterizado por um exame criterioso,
que objetiva chegar a um entendimento aceitável. Tendo isso em vista, o senso
crítico, traçado ao longo do presente texto, diverge do senso comum, porque supõe
a pesquisa e a reflexão.
A suplantação do senso comum está na origem da própria filosofia. Na Grécia Antiga,
dentre os fatores que motivaram o florescimento da mentalidade filosófica, estava a proble-
matização do conteúdo das narrativas poético-homéricas, inicialmente pelos pré-socráticos
e, depois, por Platão, Sócrates e Aristóteles. E esse proceder, caracterizado por um exame
criterioso que objetiva chegar a um entendimento aceitável, seja negando ou confir-
mando teses, se tornaria uma constante ao longo da história ocidental. Portanto, se
você passa a utilizar o senso crítico, passa a pensar e a refletir e, com isso, aprimora
suas capacidades intelectuais e colabora para a cultura de todos.
Contudo, é importante ser prudente com o modo de pensar do senso comum,
a fim de não discriminar os que procedem de acordo com ele. O senso comum não é
Na mitologia grega, Prometeu
inteiramente errado, haja vista que interessantes questões da filosofia e da ciência emergiram
roubou o fogo do conhecimento
de problemas do dia a dia. Podemos mesmo dizer que o modo como a história foi, é e será para dá-lo aos homens.
narrada vai depender, em grande medida, de nossa capacidade de desenvolver um critério de
leitura pelo qual possamos exercer nossa capacidade crítica. Nesse sentido, a crítica é funda-
mento para a Filosofia, a História, a Sociologia e as demais ciências humanas.

4. “A maioria dos conflitos humanos advém de uma má comunicação, decorrente do fato de não darmos o mesmo sentido
às palavras empregues na linguagem corrente.”
GIULIANI, Bruno. O amor da sabedoria – Iniciação à Filosofia. Lisboa: Instituto Piaget, 2000. p. 177-178.

Por que o exercício da crítica poderia evitar os problemas de comunicação e os conflitos que deles se originam?
O esclarecimento de que fala Kant leva à maioridade intelectual, que promove a crítica aos preconceitos e às simplificações do senso comum.

É a razão crítica que nos torna capazes de experiências políticas autônomas, que evitam os conflitos.
Módulo 2 | Capítulo 6

23
Um conceito não é nem uma palavra, nem uma coisa, nem uma imagem, nem um signo. É uma ideia produzida pelo
espírito para pensar uma parte da realidade. Conceber uma coisa é compreender o que ela é, é construir a ideia dessa
coisa no pensamento. De modo diverso da intuição sensível (como uma cor ou uma dor), um conceito é uma ideia abstrata.
O conceito de vermelho designa todos os vermelhos possíveis, fazendo abstração das suas diferenças e dos seus suportes
materiais. O conceito de dor inclui todos os sofrimentos físicos fazendo abstração das suas particularidades. Um conceito
possibilita, portanto, unir através do pensamento, sob uma mesma ideia, realidades singulares diferentes pertencendo
a uma mesma categoria, correspondendo a uma mesma definição e ligadas a uma palavra. A partir do momento em que
raciocinamos com a ajuda de uma linguagem, conceitualizamos. […] Qualquer pessoa que produz um discurso com sentido
opera uma conceitualização. Constroi, elabora, produz conceitos para compreender o que apreende e o que pensa sobre a
realidade. Uma realidade qualquer – por exemplo, um círculo, uma estrela ou uma sociedade justa – pode ser representada
por uma imagem, um símbolo ou uma palavra, mas para pensar o que faz desses objetos um círculo, uma estrela ou uma
sociedade justa, para ter uma ideia verdadeira, é necessário pensar o conceito do círculo, da estrela ou da justiça, distin-
guir através do pensamento o que diferencia o círculo, a estrela ou a justiça de todas as outras realidades.
[…]
A maior parte do tempo falamos sem verdadeiramente conhecer o sentido dos conceitos que utilizamos. Contentamo-
-nos com imagens aproximadas, com uma linguagem que dominamos vagamente, e isto basta, mais ou menos, para
assegurar a comunicação vulgar e resolver os problemas superficiais da vida corrente. […] A primeira tarefa filosófica
consiste em compreender o sentido exato do que pensamos, em dominar o mecanismo do seu pensamento e o do outro,
para desfazer as armadilhas da linguagem e progredir, para além das palavras, no conhecimento de si e do real.
GIULIANI, Bruno. O amor da sabedoria – Iniciação à Filosofia. Lisboa: Instituto Piaget, 2000. p. 177-178.

1. Pesquise em sites de notícias e em sites de divulgação científica, na internet, e transcreva uma mesma ideia
expressa nos seguintes usos da linguagem:
a) o da comunicação, sem a preocupação conceitual.
Resposta pessoal.

b) o da conceitualização.
Resposta pessoal.

2. Quais as características que diferenciam os dois usos da linguagem que você pesquisou? Busque no texto
citado expressões que ilustrem seus argumentos.
Quando utilizamos a linguagem para fins de comunicação, buscamos imagens aproximadas, com o uso de termos que expres-

sam o pensamento, ainda que vagamente. Para a conceitualização, ao contrário, buscamos a precisão da linguagem, para cons-

truirmos os conceitos que apreendam com o maior rigor possível o objeto que pretendemos definir.
Teia do

3. Que ferramentas são necessárias para fazermos a leitura filosófica de um texto como o apresentado acima?
As habilidades necessárias à leitura filosófica, apresentadas no texto, são: investigação, raciocínio, organização das informações

e tradução.

24
No texto abaixo, extraído da Crítica da razão prática (1788), o filósofo Immanuel Kant apresenta os resultados
de sua investigação acerca do uso prático da razão. Na Crítica da razão pura (1781), ele havia analisado o uso
teórico e especulativo da razão para responder à pergunta: o que posso conhecer? Na segunda crítica, porém,
Kant busca responder outra questão que os seres humanos costumam constantemente fazer: como devo agir?
Leia o texto abaixo e procure em um dicionário todas as palavras que você não conhecer. Depois, de posse
dos significados dessas palavras e levando em consideração o que você estudou neste capítulo, responda
às atividades a seguir.

O presente tratado esclarece suficientemente por que esta Crítica não é intitulada Crítica da razão prática pura mas
simplesmente Crítica da razão prática em geral, ainda que o seu paralelismo com a crítica da razão especulativa pareça
requerer o primeiro título. Ela deve meramente demonstrar que há uma razão prática pura e, em vista disso, critica toda
a sua faculdade prática. Se ela o consegue, não precisa criticar a própria faculdade pura para ver se a razão não se
excede, com uma tal faculdade pura, numa vã presunção (como certamente ocorre com a razão especulativa). Pois, se ela,
enquanto razão pura, é efetivamente prática, prova sua realidade e a de seus conceitos pelo ato e toda a arguição dessa
possibilidade é vã.
Com essa faculdade fica doravante estabelecida também a liberdade transcendental e, em verdade, naquele sentido
absoluto em que a razão especulativa, no uso do conceito de causalidade, a necessitava para salvar-se da antinomia em
que inevitavelmente cai ao querer pensar, na série da conexão causal, o incondicionado; conceito esse que ela, porém,
podia fornecer só problematicamente, como não impensável, sem lhe assegurar a respectiva realidade objetiva, unicamen-
te para não ser contestada em sua essência, mediante pretensa impossibilidade do que ela tem de considerar válido, pelo
menos enquanto pensável, e não ser precipitada num abismo de ceticismo.
Ora, o conceito de liberdade, na medida em que sua realidade é provada por uma lei apodíctica da razão prática, consti-
tui o fecho da abóboda de todo o edifício de um sistema da razão pura, mesmo da razão especulativa, e todos os demais
conceitos (os de Deus e de imortalidade), que permanecem sem sustentação nesta <última> como simples ideias, seguem-
-se agora a ele e obtêm com ele e através dele consistência e realidade objetiva, isto é, a possibilidade dos mesmos é
provada pelo fato de que a liberdade efetivamente existe; pois esta ideia manifesta-se pela lei moral.
[…]

Lei fundamental da razão prática pura


Age de tal modo que a máxima de tua vontade possa sempre valer ao mesmo tempo como princípio de uma legislação
universal.
KANT, Immanuel. Crítica da razão prática. Tradução de Valério Rohden. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 3-4; p. 51.

4. Por que Kant afirma que a lei moral da razão prática prova a existência da liberdade? Como você interpreta a
Lei fundamental da razão prática?
Resposta pessoal.
Espera-se que o estudante consiga associar a razão prática aos atos da vontade humana que, para serem, morais, baseiam-se
na existência efetiva da liberdade. Meus atos são morais, de acordo com a lei moral kantiana, pois são executados por meio da
liberdade que possuo em determinar a mim mesmo formas de ação que valem universalmente, isto é, para todos.

5. Você avalia os seus atos na vida cotidiana com base em algum princípio? Ele tem alguma semelhança com
a Lei fundamental da razão prática kantiana?
Resposta pessoal.
Espera-se que o estudante consiga associar princípios morais aos quais está vinculado à Lei fundamental da razão prática kan-
tiana, por meio de máximas morais comuns como “não faça aos outros o que você não quer que seja feito a você” e outras de
mesmo teor. Embora não se possa compreendê-las como “tradução” da lei kantiana, a reflexão acerca da lei moral permite uma
análise crítica dos limites e alcances das máximas morais do senso comum. É essa análise que se espera que o estudante possa
fazer.

25
Leia o texto abaixo e responda:

Em uma sociedade como a nossa, conhecemos, é certo, procedimentos de exclusão. O mais evidente, o mais familiar
também, é a interdição. Sabe-se bem que não se tem o direito de dizer tudo, que não se pode falar de tudo em qualquer
circunstância, que qualquer um, enfim, não pode falar de qualquer coisa. Tabu do objeto, ritual da circunstância, direito
privilegiado ou exclusivo do sujeito que fala: temos aí o jogo de três tipos de interdições que se cruzam, se reforçam ou
se compensam, formando uma grade complexa que não cessa de se modificar. Notaria apenas que, em nossos dias, as re-
giões onde a grade é mais cerrada, onde os buracos negros se multiplicam, são as regiões da sexualidade e as da política:
como se o discurso, longe de ser esse elemento transparente ou neutro no qual a sexualidade se desarma e a política se
pacifica, fosse um dos lugares onde elas exercem, de modo privilegiado, alguns de seus mais temíveis poderes. Por mais
que o discurso seja aparentemente bem pouca coisa, as interdições que o atingem revelam logo, rapidamente, sua ligação
com o desejo e com o poder. Nisto não há nada de espantoso, visto que o discurso – como a psicanálise nos mostrou – não
é simplesmente aquilo que manifesta (ou oculta) o desejo; é, também, aquilo que é o objeto do desejo; e visto que – isto a
história não cessa de nos ensinar – o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação,
mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar.
Existe em nossa sociedade outro princípio de exclusão: não mais a interdição, mas uma separação e uma rejeição.
Penso na oposição razão e loucura. Desde a alta Idade Média, o louco é aquele cujo discurso não pode circular como o
dos outros: pode ocorrer que sua palavra seja considerada nula e não seja acolhida, não tendo verdade nem importância,
não podendo testemunhar na justiça, não podendo autenticar um ato ou um contrato, não podendo nem mesmo, no sacri-
fício da missa, permitir a transubstanciação e fazer do pão um corpo; pode ocorrer também, em contrapartida, que se lhe
atribua, por oposição a todas as outras, estranhos poderes, o de dizer uma verdade escondida, o de pronunciar o futuro, o
de enxergar com toda ingenuidade aquilo que a sabedoria dos outros não pode perceber. É curioso constatar que durante
séculos na Europa a palavra do louco não era ouvida, ou então, se era ouvida, era escutada como uma palavra de verdade.
Ou caía no nada – rejeitada tão logo proferida; ou então nela se decifrava uma razão ingênua ou astuciosa, uma razão mais
razoável do que a das pessoas razoáveis. De qualquer modo, excluída ou secretamente investida pela razão, no sentido
restrito, ela não existia. Era através de suas palavras que se reconhecia a loucura do louco; elas eram o lugar onde se
exercia a separação; mas não eram nunca recolhidas nem escutadas. Jamais, antes do fim do século XVIII, um médico teve
a ideia de saber o que era dito (como era dito, por que era dito) nessa palavra que, contudo, fazia a diferença. Todo este
imenso discurso do louco retornava ao ruído; a palavra só lhe era dada simbolicamente, no teatro onde ele se apresentava,
desarmado e reconciliado, visto que representava aí o papel de verdade mascarada.
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso [1970]. Tradução de Laura Fraga de Almeida Sampaio. 21. ed. São Paulo: Loyola, 2011. p. 9-12.

6. Quais são os procedimentos de exclusão do discurso a que se refere Foucault? Como você interpreta a ideia
de exclusão do discurso do filósofo? Sobre o que não podemos falar segundo Foucault? Você percebe outros
princípios de exclusão do discurso além dos citados pelo filósofo?
Resposta pessoal.
Espera-se que o estudante consiga identificar interdição, separação e rejeição como os procedimentos de exclusão do discurso
analisados por Foucault e interpretar, de forma problematizadora, a ideia de exclusão (e de excluídos da sociedade) e de tabus.
Espera-se, ainda, que ele apresente algum outro princípio de exclusão do discurso como poder econômico ou faixa etária.

7. Como você compara as análises de Foucault às especulações kantianas sobre uma “lei fundamental da razão
prática pura”? Elas são de mesma natureza? Em que sentido diferem?
Resposta pessoal.
Espera-se que o estudante perceba que os registros das duas análises são opostos no sentido de que a análise kantiana é de
caráter especulativo, isto é, uma análise lógico-filosófica da ideia de razão prática e a análise foucaultiana de caráter histórico, ou
seja, ela leva em consideração o movimento histórico do desenvolvimento das ideias, de acordo com o seu modelo de análise
filosófica das ideias.

26
O filósofo Gilles Deleuze reuniu algumas entrevistas e a elas deu o título de Conversações. Leia a resposta
que ele deu à pergunta sobre o percurso de seu trabalho filosófico e responda:

A história da filosofia não é uma disciplina particularmente reflexiva. É antes como a arte do retrato em pintura. São re-
tratos mentais, conceituais. Como em pintura, é preciso fazer semelhante, mas por meios que não sejam semelhantes, por
meios diferentes: a semelhança deve ser produzida, e não ser um meio para reproduzir (aí nos contentaríamos em redizer o
que o filósofo disse). Os filósofos trazem novos conceitos, eles os expõem, mas não dizem, pelo menos não completamente,
a quais problemas esses conceitos respondem. Por exemplo, Hume expõe um conceito original de crença, mas não diz por
que nem como o problema do conhecimento se coloca de tal forma que o conhecimento seja um modo determinável de
crença. A história da filosofia deve, não redizer o que disse um filósofo, mas dizer o que ele necessariamnete subentendia,
o que ele não dizia e que, no entanto, está presente naquilo que diz.
A filosofia consiste sempre em inventar conceitos. Nunca me preocupei com uma superação da metafísica ou uma
morte da filosofia. A filosofia tem uma função que permanece perfeitamente atual, criar conceitos. Ninguém pode fazer
isso no lugar dela. Certamente, a filosofia sempre teve seus rivais, desde os “rivais” de Platão até o bufão de Zaratustra.
Hoje é a informática, a comunicação, a promoção comercial que se apropriam dos termos “conceito” e “criativo”, e esses
“conceituadores” formam uma raça atrevida que exprime o ato de vender como o supremo pensamento capitalista, o cogito
da mercadoria. A filosofia sente-se pequena e só diante de tais potências, mas se chegar a morrer, pelo menos será de rir.
A filosofia não é comunicativa, assim como não é contemplativa nem reflexiva: ela é, por natureza, criadora ou mesmo
revolucionária, uma vez que não para de criar novos conceitos. A única condição é que eles tenham uma necessidade, mas
também uma estranheza, e eles as têm na medida em que respondem a verdadeiros problemas. O conceito é o que impede
que o pensamento seja uma simples opinião, um conselho, uma discussão, uma tagarelice.
DELEUZE, Gilles. Sobre a filosofia. In: Conversações (1972-1990). Tradução de Peter Pál Pelbart. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2010. p. 173-174. (Coleção TRANS).

8. Em que consiste a filosofia para Deleuze? O que ela não deve fazer? Como você entende a prática filosófica
que Deleuze propõe?
Resposta pessoal.
Espera-se que o estudante consiga apontar o caráter essencialmente conceitual da filosofia para Deleuze. Espera-se, ainda, que
ele associe o trabalho de interpretação do pensamento filosófico à identificação dos seus “subentendidos” e que mostre ter
compreendido que a interpretação filosófica não pode se resumir a repetição ou opiniões em base conceitual.

9. Você associaria os “rivais da filosofia” apontados por Deleuze aos “procedimentos de exclusão” de Foucault?
Justifique.
Resposta pessoal.
Espera-se que o estudante associe a ausência de conceitos do “pensamento capitalista” à ideia de interdição do discurso
promovida pelos mecanismos apontados por Foucault (tabus, a figura do louco etc.), pois assim como os rivais da filosofia não
produzem conceitos, os excluídos de Foucault não tem seus conceitos considerados.

27
O que

1. (UEG-GO) O ser humano, desde sua origem, em sua Tomando como base o conhecimento filosófico, colo-
existência cotidiana, faz afirmações, nega, deseja, que V nas afirmativas verdadeiras e F nas falsas.
recusa e aprova coisas e pessoas, elaborando juízos ( ) 
V A filosofia é um tipo de saber, que não diz tudo o
de fato e de valor por meio dos quais procura orien- que sabe e uma norma que não enuncia tudo aquilo
tar seu comportamento teórico e prático. Entretanto, que postula. O saber filosófico, portanto, é profundo,
houve um momento em sua evolução histórico-social mesmo quando parece mais claro e transparente.
em que o ser humano começa a conferir um caráter
( V ) A filosofia deve ser estudada e ensinada com
filosófico às suas indagações e perplexidades, questio-
base nos problemas que suscita e não apenas
nando racionalmente suas crenças, valores e escolhas.
em virtude das respostas que proporciona a es-
Nesse sentido, pode-se afirmar que a filosofia
ses mesmos problemas.
a) é algo inerente ao ser humano desde sua origem
e que, por meio da elaboração dos sentimentos, ( V ) A filosofia se faz presente como reflexão crítica a
das percepções e dos anseios humanos, procura respeito dos fundamentos do conhecimento e da
consolidar nossas crenças e opiniões. ação, por isso mesmo distinta da ciência pelo modo
de abordagem do seu objeto que, no caso desta,
b) existe desde que existe o ser humano, não haven-
é particular e, no caso da filosofia, é universal.
do um local ou uma época específica para seu nas-
cimento, o que nos autoriza a afirmar que mesmo ( V ) O percurso da filosofia é caracterizado pela exi-
a mentalidade mítica é também filosófica e exige o gência de clareza e de livre crítica.
trabalho da razão.
( V ) O conhecimento filosófico apresenta-se como a
c) inicia sua investigação quando aceitamos os dog- ciência dos fundamentos. Sua dimensão de pro-
mas e as certezas cotidianas que nos são impostos fundidade e radicalidade o distingue do conheci-
pela tradição e pela sociedade, visando educar o mento científico.
ser humano como cidadão.
Assinale a alternativa que apresenta a sequência
d) surge quando o ser humano começa a exigir provas correta.
e justificações racionais que validam ou invalidam
suas crenças, seus valores e suas práticas, em detri- a) V, F, V, F, V c) V, V, F, F, V e) F, V, F, V, F
mento da verdade revelada pela codificação mítica. b) F, V, F, V, V d) V, V, V, V, V

2. (Udesc) Afirma-se, comumente, que as principais 4. (Unicamp-SP)


características da filosofia são a reflexão e a atitude
A dúvida é uma atitude que contribui para o surgimento
crítica. Nesse horizonte, estabeleça a diferença entre
a filosofia e o senso comum. do pensamento filosófico moderno. Neste comportamento, a
verdade é atingida através da supressão provisória de todo co-
O conhecimento do senso comum baseia-se na tradição das
nhecimento, que passa a ser considerado como mera opinião.
experiências vividas, que nos ajuda a interpretar a realidade e
A dúvida metódica aguça o espírito crítico próprio da Filosofia.
forma nossos valores. O conhecimento filosófico se dá quando (Adaptado de Gerd A. Bornheim, Introdução ao filosofar.
Porto Alegre: Editora Globo, 1970, p. 11.)
o próprio pensar torna-se objeto de reflexão e põe à prova as
A partir do texto, é correto afirmar que:
ações humanas e o pensamento. Ele propicia a atitude crítica
a) A Filosofia estabelece que opinião, conhecimento
que leva ao pensamento baseado em argumentos racionais. e verdade são conceitos equivalentes.

3. (UPE) Sobre o conhecimento filosófico, atente ao texto b) A dúvida é necessária para o pensamento filosófi-
que se segue: co, por ser espontânea e dispensar o rigor meto-
dológico.
O conhecimento filosófico é, diversamente do conhe-
c) O espírito crítico é uma característica da Filosofia e
cimento científico, um conhecimento crítico, no sentido de surge quando opiniões e verdades são coincidentes.
que põe sempre em problema o conhecimento obtido pelos
d) A dúvida, o questionamento rigoroso e o espírito
processos da Ciência. crítico são fundamentos do pensamento filosófico
MARTINS, José Salgado. Preparação à Filosofia, 1969, p. 9. moderno.

28
6. A ideologia é a responsável pelo aprisionamento da razão, pois legitima a dominação exercida por uma classe
sobre as demais. A implicação política dessa dominação se manifesta na desigualdade existente na sociedade
e nos privilégios da classe dominante. Para ultrapassar o cativeiro a que a razão está submetida é necessário
superar os preconceitos e desenvolver a consciência crítica que questiona os pressupostos ideológicos.

5. (UEG-GO) da razão e defina o que significa a reflexão emancipa-


tória referida pelo autor.
A ciência desconfia da veracidade de nossas certezas,
de nossa adesão imediata às coisas, da ausência de críti-  estudante poderá utilizar o rascunho para responder à
O
questão.
ca e da falta de curiosidade. Por isso, onde vemos coisas, 
fatos e acontecimentos, a atitude científica vê problemas e
7. (Unimontes-MG) Deleuze e Guattari entendem a filoso-
obstáculos, aparências que precisam ser explicadas.
fia como possibilidade de instauração do caos. Nesse
CHAUI, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 2003. p. 218. sentido, a filosofia é capaz de criticar a si mesma e
também às outras formas de pensar e agir. Com rela-
Com base na afirmação precedente pode-se afirmar
ção à filosofia, podemos afirmar:
que:
a) A filosofia não é um conhecimento acabado, mas
a) a ciência, ao contrário do senso comum, é um co-
uma atitude crítica sobre todos os saberes. A filo-
nhecimento objetivo, quantitativo e generalizador,
sofia não impõe verdades, mas cria e recria cons-
que se opõe ao caráter dogmático e subjetivo do
tantemente espaços de discussões.
senso comum.
b) A filosofia não é um conhecimento exato, uma ati-
b) a ciência domina o imaginário contemporâneo.
tude desprovida de crítica sobre todos os saberes.
Isso significa que, cada vez mais, confiamos no
A filosofia não impõe verdades, mas cria e recria
testemunho de nossos sentidos que promovem
constantemente espaços de discussões.
uma adesão acrítica à realidade dada.
c) A filosofia não é um conhecimento absoluto e não
c) a ciência existe para confirmar nossas certezas co- permite uma atitude crítica sobre todos os sabe-
tidianas, utilizando um pensamento assistemático res. A filosofia impõe verdades e não permite que
que despreza o trabalho da razão. se recriem os espaços de discussões.
d) a rigor, a ciência complementa o senso comum, d) A filosofia não é um conhecimento, mas uma ati-
mas banindo os obstáculos e problemas observa- tude dogmática sobre todos os saberes. A filosofia
dos por nossa percepção imediata das coisas. impõe verdades e exclui as pessoas dos espaços
de discussões.
6. (Vunesp)
Do ponto de vista do Iluminismo, a ilusão deixa de ser 8. (Unioeste-PR)
uma simples deficiência subjetiva, e passa a enraizar-se É no plano político que a Razão, na Grécia, primeira-
em contextos de dominação, de onde a ilusão deriva e se mente se exprimiu, constituiu-se e formou-se. A experiên-
incumbe de estabilizar. O preconceito – a opinião falsa, não cia social pode tornar-se entre os gregos o objeto de uma
controlável pela razão e pela experiência – revela seu subs- reflexão positiva, porque se prestava, na cidade, a um de-
trato político. É no interesse do poder que a razão é captura- bate público de argumentos. O declínio do mito data do dia
da pelas perturbações emocionais, abstendo-se do esforço em que os primeiros Sábios puseram em discussão a ordem
necessário para libertar-se das paixões perversas, e para humana, procuraram defini-la em si mesma, traduzi-la em
romper o véu das aparências, que impedem uma reflexão fórmulas acessíveis a sua inteligência, aplicar-lhe a norma
emancipatória. Deixando-se arrastar pelas interferências, do número e da medida. Assim se destacou e se definiu
a razão não pode pensar o sistema social em sua realidade. um pensamento propriamente político, exterior à religião,
Prisioneira do dogmatismo, que nem pode ser submetido com seu vocabulário, seus conceitos, seus princípios, suas
ao tribunal da experiência nem permite a instauração desse vistas teóricas. Este pensamento marcou profundamente a
tribunal, a razão está entregue, sem defesa, às imposturas mentalidade do homem antigo; caracteriza uma civilização
da religião e de todos os outros dogmas legitimadores. que não deixou, enquanto permaneceu viva, de considerar
(Sérgio Paulo Rouanet. A razão cativa, 1990. Adaptado.) a vida pública como o coroamento da atividade humana.
Considerando o texto e o título sugestivo do livro de Considerando a citação acima, extraída do livro As
Rouanet, explique as implicações políticas do cativeiro origens do pensamento grego, de Jean Pierre Vernant,

29
e os conhecimentos da relação entre mito e filosofia, a) é uma atividade de crítica e de análise dos valores de
é incorreto afirmar que uma dada sociedade, na perspectiva de reorientação
dos sentidos/significados da vida e do mundo.
a) os filósofos gregos ocupavam-se das matemáti-
cas e delas se serviam para constituir um ideal de b) começa dizendo sim às crenças e aos preconceitos
pensamento que deveria orientar a vida pública do do senso comum e, portanto, começa dizendo que
homem grego. sabemos o que imaginávamos saber.
b) a discussão racional dos Sábios que traduziu a or- c) não se distingue da ciência pelo modo como abor-
dem humana em fórmulas acessíveis à inteligência da seu objeto em todos os setores do conheci-
causou o abandono do mito e, com ele, o fim da re- mento e da ação.
ligião e a decorrente exclusividade do pensamento d) é a impossibilidade da transcendência humana, ou
racional na Grécia. seja, a capacidade que só o homem tem de supe-
c) a atividade humana grega, desde a invenção da rar a situação dada e não escolhida.
política, encontrava seu sentido principalmente na e) sempre se confronta com o poder, e sua investiga-
vida pública, na qual o debate de argumentos era ção fica alheia à ética e à política.
orientado por princípios racionais, conceitos e vo-
cabulário próprios. 11. (UEL-PR)
d) a política, por valorizar o debate público de argumen- 90 milhões em ação, pra frente, Brasil, do meu coração.
tos que todos os cidadãos podem compreender e
Todos juntos, vamos, pra frente, Brasil, salve a seleção.
discutir, comunicar e transmitir, se distancia dos dis-
cursos compreensíveis apenas pelos iniciados em De repente é aquela corrente pra frente.
mistérios sagrados e contribui para a constituição Parece que todo o Brasil deu a mão.
do pensamento filosófico orientado pela Razão.
Todos ligados na mesma emoção.
e) ainda que o pensamento filosófico prime pela ra-
Tudo é um só coração.
cionalidade, alguns filósofos, mesmo após o de-
clínio do pensamento mitológico, recorreram a Todos juntos, vamos, pra frente, Brasil, Brasil,
narrativas mitológicas para expressar suas ideias; Salve a seleção.
exemplo disso é o “Mito de Er” utilizado por Platão
(Canção: Pra frente Brasil/ Copa 1970. Autor: Miguel Gustavo)
para encerrar sua principal obra, A República.
Na obra “Resposta à questão: o que é o esclareci-
9. (UFSJ-MG) Sobre a questão do conhecimento na filo- mento?”, Kant discute conceitos como uso público e
sofia kantiana, é correto afirmar que privado da razão e a superação da menoridade.
a) para conhecer, é preciso se lançar ao exercício do À luz do pensamento kantiano, o fenômeno contempo-
pensar conceitos concretos. râneo do uso político dos eventos esportivos
b) o ato de conhecer se distingue em duas formas bá- a) torna o indivíduo dependente, já que a sua menori-
sicas: conhecimento empírico e conhecimento puro. dade impede o esclarecimento e a possibilidade de
c) as formas distintas de conhecimento, descritas na pensar por si próprio.
obra Crítica da razão pura, são denominadas, res- b) forma o indivíduo autônomo, uma vez que amplia a
pectivamente, juízo universal e juízo necessário e sua capacidade de fazer uso da própria razão para
suficiente. agir autonomamente.
d) o registro mais contundente acerca do conhecimen- c) impede que o indivíduo pense de forma restrita,
to se faz a partir da distinção de dois juízos, a saber: pois, mesmo estando cercado por tutores, facil-
juízo analítico e juízo sintético ou juízo de elucidação. mente rompe com a menoridade.

10. (UPE) Que representa a Filosofia? É uma das raras d) proporciona esclarecimento político das massas,
possibilidades de existência criadora. Seu dever ini- pois tais eventos promovem o aprendizado crítico
cial é tornar as coisas mais refletidas, mais profundas mediante a afirmação da ideia de nacionalidade.
(Heidegger, Martin). Nessa perspectiva, é correto afir- e) confere liberdade às massas para superar a depen-
mar que a Filosofia: dência gerada pela aceitação da tutela de outrem.

30
Atividades para construirmos os conceitos que 7. A
apreendam com o maior rigor possí-
1. Resposta pessoal. vel o objeto que pretendemos definir. 8. B
2. Nas ciências, os conceitos são geral- 3. As habilidades necessárias à leitura 9. B
mente utilizados como generalização filosófica, apresentadas no texto,
de fenômenos empíricos ou que são: investigação, raciocínio, organi- 10. A
existem apenas hipoteticamente zação das informações e tradução.
e devem ser submetidos a testes;
11. A
alguns conceitos científicos são con- 4. Resposta pessoal.
vertidos em paradigmas.
5. Resposta pessoal.
3. Platão considera o conceito não 6. Resposta pessoal.
apenas como uma definição geral e
abstrata da multiplicidade das coisas 7. Resposta pessoal.
que existem, mas também como a
essência das coisas. Para Bergson, 8. Resposta pessoal.
a metafísica é a disciplina filosó-
fica capaz de criar conceitos, ten- 9. Resposta pessoal.
tando identificar as estruturas e os
modos de ser de tudo o que existe. O que aprendi
Heidegger afirma que os conceitos
são criados em função de proble- 1. D
mas; um problema filosófico remete
2. O conhecimento do senso co­mum
a outros conceitos, que remetem a
baseia-se na tradição das experiên­
outros problemas, e assim indefini-
damente. E Deleuze considera que
cias vividas, que nos ajuda a inter-
os conceitos filosóficos existem em pretar a realidade e forma nossos
rede e adquirem sentido a partir de valores. O conhecimento filosó-
outros conceitos. Problemas adqui- fico se dá quando o próprio pen-
rem sentido a partir de conceitos, e sar torna-se objeto de reflexão e
conceitos adquirem sentido a partir põe à prova as ações humanas e o
de problemas; a necessidade deles pensamento. Ele propicia a atitude
surge à medida que nossos dilemas crítica que leva ao pensamento
são apresentados. baseado em argumentos racionais.
4. O esclarecimento de que fala Kant 3. D
leva à maioridade intelectual, que
promove a crítica aos preconceitos e 4. D
às simplificações do senso comum.
É a razão crítica que nos torna capa-
5. A
zes de experiências políticas autôno-
6. A ideologia é a responsável pelo
mas, que evitam os conflitos.
aprisionamento da razão, pois
legitima a dominação exercida por
Caiu no Enem. A
uma classe sobre as demais. A
Teia do conhecimento implicação política dessa domina-
ção se manifesta na desigualdade
1. Respostas pessoais. existente na sociedade e nos pri-
vilégios da classe dominante. Para
2. Quando utilizamos a linguagem ultrapassar o cativeiro a que a razão
Módulo 2 | Capítulo 6

para fins de comunicação, busca-


está submetida é necessário supe-
mos imagens aproximadas, com
o uso de termos que expressam o
rar os preconceitos e desenvolver
pensamento, ainda que vagamente. a consciência crítica que questiona
Para a conceitualização, ao contrário, os pressupostos ideológicos.
buscamos a precisão da linguagem,

31


 4169SEM00006



1169SEM00006

32

Você também pode gostar