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Coletânea de Contos D2
Coletânea de Contos D2
con
LESC ÊNCIA
DO
A
Sumário
Quem somos nós? 1
Sob pressão 43
Bolo 60
Além da Festa 72
Créditos 88
em somos nós
Qu ?
Esta coletânea de contos trata de questões
muito relevantes! Ela foi elaborada pelos
alunos da disciplina de Psicologia do
Desenvolvimento II, 2023.1, do Curso de
Psicologia da Universidade de Fortaleza.
AVISO!
O tema principal dessa história é mudanças da
adolescência. Se você se sente incomodado com
este assunto, sugerimos que não leia este capítulo!
1
Helena, 13 anos, abriu um olho, depois outro, acordou, sem querer
levantar, mas, ao fazê-lo se olhou no espelho e se sentiu estranha.
Pensou: “Como estou feia hoje. Vou ficar em casa, não me sinto
bonita para sair”.
A adolescente saiu do quarto, ao ouvir sua mãe chamar para tomar o
café da manhã com a família, mas, antes colocou um moletom porque
queria esconder seus seios e sua barriga que doíam e estavam
inchados.
Durante o café da manhã, sua mãe comentou que a noite toda a
família sairia para o aniversário da avó de Helena. Ela pensou em
argumentar com os pais que não iria. Mas, sentiu medo da reação
deles e nada disse. Começou a ficar preocupada porque se sentia
envergonhada de sair se sentindo feia daquele jeito, sem se aceitar
tão bem e se sentindo diferente em relação ao corpo, pois eram
tantas sensações novas e diferentes que vinham surgindo. Mesmo
assim, ela aceitou e foi com os pais à casa da avó.
Foi surpreendida com a quantidade de pessoas que haviam lá. Aos
poucos foi sentindo o coração acelerar, as mãos a suar e um frio
passar por sua barriga, pela presença dos tios, primos e avós. Vários
questionamentos começaram a ser feitos, como: “e os
namoradinhos?”; “e as festinhas?”. Helena voltou a sentir o mesmo de
quando chegou, a pressão de um dia ruim e os questionamentos da
família que a deixavam angustiada; nem ela mesma conseguia
responder aquelas perguntas para si.
Nanda, uma prima muito próxima e da mesma idade que Helena,
notou seu desespero e logo chegou perto para perguntar o motivo da
esquisitice, ela não satisfeita reagiu e disse “ Ah, prima, Todo dia
estou diferente.
AVISO!
O tema principal dessa história é violência na
internet. Se você se sente incomodado com
este assunto, sugerimos que não leia este
capítulo!
2
Foi no meio da gritaria do pátio da escola, que a diretora chamou
minha atenção e me pediu que a acompanhasse. Haviam três garotas
discutindo no pátio, nem eu, a diretora e nem as assistentes de
corredor entenderam o motivo da confusão das três meninas. Então,
foi quando reconheci: era o famoso trio inseparável, essas garotas
tem mais ou menos 14 anos e estavam no 1° ano do ensino médio. Pelo
jeito delas, parece até que elas saíram de algum tipo de filme. Eu,
pessoalmente, só conheço uma das garotas, Manu, que é muito
engajada nas atividades escolares e já veio conversar comigo
algumas vezes sobre o calendário das atividades de esportes da
escola.
Normalmente, elas se davam bem e conseguiam resolver seus
conflitos de maneira calma, até porque elas eram muito amigas, mas
acho que para tudo tem uma primeira vez.
A presença da diretora se aproximando do grupo, fez com que Emma
alertasse as outras meninas, que estavam ainda com muita raiva, em
meio à confusão, para prestarem atenção na figura da diretora. Ela é
alta, elegante, no tipo de estilo que impunha respeito aos outros, ao
lado delas. Assim, quando as meninas enfim pararam de discutir para
serem questionadas pela diretora, que apenas repassou a situação
diretamente para mim.
— Diana, Cleo e Manu, da última vez foi na sala de aula, desta vez
vocês resolveram discutir durante o intervalo inteiro, aos berros, no
meio do pátio da escola. As outras crianças não precisam ouvir a
discussão inteira de vocês. Por isso, estou convocando vocês para
terminar essa conversa na sala da Alice. Caso não a conheçam ainda,
ela é nossa psicóloga e participante das reuniões dos conselhos
estudantis. Acompanhem ela até a sala.
AVISO!
O tema principal dessa história é projetos de vida.
Se você se sente incomodado com este assunto,
sugerimos que não leia este capítulo!
3
Flora não aguentava mais o ritual que seus pais insistiam em manter
de almoçar em família, ela entendia o desejo que eles tinham de
conversar e tentar se entender com ela, e ela sabia que estava
distante deles ultimamente - não tinha como não perceber isso -, mas
na prática eles só sentavam na mesa e discutiam com ela sobre o
vestibular e a importância da faculdade de medicina por uma hora
até que ela terminava de comer e se levantava para ir pro quarto
falar com sua madrinha ou com Maitê. “É estranho que eu só tenha
duas amigas e uma delas é uma mulher de 30 anos?” Era o que
passava na cabeça dela, talvez ela devesse se abrir mais no colégio e
tentar fazer mais amizades… mas ela já conhece Maitê desde o jardim
de infância e todo mundo do colégio é tão chato, passam o recreio em
grupinhos, falando mal da vida alheia e reproduzindo dancinhas
estranhas da internet.
Era mais uma quarta feira igual às outras, mais um dia de aula igual
aos outros - ENEM, ENEM, ENEM, vestibular, vestibular vestibular… -
mais um almoço em família… igual aos outros. Pelo menos hoje era
Strogonoff com batata palha.
— Como foi a aula hoje? Teve aula com aquela sua professora legal
de biologia? — Sua mãe perguntava colocando a comida na mesa e
sentando-se.
— Hoje não. Foi aula só de física 3 e matemática 5. — Ela respondeu,
pensando porque diabos ela tinha que estudar tantas matemáticas e
tantas físicas se tudo que lhe interessava era o português.
Comeram em silêncio por alguns minutos enquanto sua mãe pensava
em outra pergunta para fazer sobre a escola e seu pai refletia sobre
a existência de 5 matemáticas, “pelo menos com esse monte de coisa
pra estudar esses jovens de hoje em dia vão ter menos tempo pra
inventar farra e fazer besteira.” ele pensou.
AVISO!
O tema principal dessa história é a sexualidade.
Se você se sente incomodado com este assunto,
sugerimos que não leia este capítulo!
4
CATARINA
Henry
Nunca tive muita coragem de ir atrás das meninas, meus pais sempre
me alertaram muito de como a minha vida é exposta e como um
pequeno erro pode arruinar a reputação da família, acho que isso me
influenciou a ser muito cauteloso a respeito das escolhas da minha
vida. Mas neste aniversário não consegui não notar uma menina linda
que nunca havia visto, não sei se estava no processo seletivo da
Marienne, que ela havia falado sobre como as minha redes sociais
eram a porta de entrada da minha pessoa pública, que agora eu
precisava mais do que antes, pois estava cada vez mais próximo da
minha nomeação, mas não entendo muito disso, então só concordei e
nunca mais ouvi a respeito. Agora estava indo em direção ao meu
melhor amigo, após ter conversado e ficado com a menina mais
bonita e mais legal da festa, para contar-lhe a grande novidade.
— Diego, você não vai acreditar! Eu acho que estou apaixonado! Ou é
muito cedo pra dizer isso? Bom, eu só sei que a menina mais linda que
já vi está na minha festa e nós acabamos de…
— QUEM?!! - Diego perguntou muito surpreso.
Catarina
Após ter ficado na festa até perto da meia-noite, decidi ir para casa
e processar direito tudo que tinha acontecido naquele local, nada
fazia sentido. Chego em casa e começo a escrever no meio diário
para organizar minhas ideias, onde eu questionava, principalmente,
as possíveis razões para o comportamento do príncipe após o nosso
beijo, mais uma vez, o que aquilo poderia significar?
Henry
Após o meu aniversário, pensei no que faria e cheguei a conclusão que
a decisão mais fácil seria não procurá-la, fingir que o que tivemos foi
apenas mais um beijo, apesar de, para mim, não ter sido. Diego ficou
satisfeito com a minha escolha, falou que vão aparecer outras
meninas que não são “putas” para mim e que logo logo eu iria
esquecer Catarina, tentei acreditar no que ele me falava, não sei
porque me importo tanto com a opinião de Diego. Algum tempo
depois dessa conversa decidi relembrar o caminho que tínhamos feito
até o jardim e, ao chegar lá, não consegui acreditar no que eu via e no
quanto eu era um pouco alheio do que acontecia na minha própria
casa.
Catarina
No momento em que trocamos olhares cheguei a conclusão da dúvida
que estava me matando a semana toda, aquilo significou algo para
ele, não só para mim, como eu estava pensando. Mas, ao mesmo
tempo, outra dúvida surgiu, por que ele não tinha falado comigo? O
que o fez mudar de ideia? Alguma coisa havia acontecido. Foi o
penúltimo dia de treinamento, em alguns dias saberei o resultado que
pode mudar minha vida, mas naquele momento só conseguia pensar
no quanto exausta eu estava, fui diretamente para o meu ritual de
banho que demora, geralmente, uma hora e meia. Quando sai e fui
checar meu celular para dormir, me deparei com a mensagem mais
inesperada, um texto do Henry, vinda de um número que eu não tinha
salvo, pois só ele havia pegado meu número.
AVISO!
O tema principal dessa história é ansiedade e
depressão. Se você se sente incomodado com
este assunto, sugerimos que não leia este capítulo!
5
Que a pressão colocada nos adolescentes no ensino médio é algo
bastante pesado, todos já sabem. Mesmo que seja algo normal e
socialmente aceito em nossa sociedade, ainda é uma questão
bastante preocupante, especialmente no que se refere à valorização
da saúde mental.
Gabriela sempre foi muito reconhecida em sua escola por causa de
sua simpatia e participação não só em atividades obrigatórias, mas
também extras oferecidas pela instituição. A garota sempre se
mostrou muito dedicada aos seus estudos, buscando, por muitas
vezes, uma validação acadêmica quase impossível de alcançar. Essa
necessidade de ser perfeita em relação às suas notas era algo que
havia piorado bastante desde quando entrou no ensino médio, uma
vez que o número de disciplinas e de conteúdos havia aumentado
drasticamente. Além disso, fazia atividades fora do âmbito escolar
que, ao invés de fazerem ela se sentir relaxada, ela se sentia culpada
por não estar estudando naqueles momentos.
Infelizmente, a pressão que Gabriela tinha não era apenas uma
questão de autocobrança, visto que os seus pais também
introjetavam nela suas próprias expectativas, cobrando, assim, as
melhores notas de seu ano, destaque em todas as áreas da sua vida e
sempre reforçaram o fato de como seria importante entrar em
primeiro lugar na melhor universidade federal de seu Estado. Por
mais que ela se sentisse cada vez mais sufocada e aflita pela
situação, não conseguia dizer “Não” aos pais e tomava como certo o
que eles diziam a ela.
Apesar dos inúmeros momentos de angústia, ela tinha amigos que
sabia que poderia contar a qualquer momento. Ricardo, seu melhor
amigo, era o principal de todos eles. Mesmo que fossem amigos
desde a infância, os dois eram pólos completamente opostos.
sob pressão — 44
Enquanto Gabriela não se permitia cometer erros, Ricardo era a
pessoa mais tranquila que a jovem já havia conhecido na vida. Ela
nunca tinha visto o amigo se estressar ou até mesmo brigar com
alguém, além da sua enorme calmaria frente às questões escolares.
Muito dessa tranquilidade vem de seus pais, que são conhecidos por
serem pessoas “good vibes”, além de sempre passarem uma
imagem, na medida possível, equilibrada para o seu filho.
O segundo semestre já havia começado, aumentando, assim, a
pressão em relação ao ENEM, a quantidade de provas e a carga
horária exorbitante, o que contribuía excessivamente com o estresse
da adolescente. Ela já começava a apresentar sintomas graves de
ansiedade, depressão e estresse, o que afetava não só o seu
contexto individual, mas também o seu núcleo social.
— Gabi, por que você não quer sair com a gente? Essa vai ser a
melhor festa do ano! — dizia Ricardo, quase implorando de joelhos.
— Tenho que estudar, Ricardo, estou cheia de matérias atrasadas —
respondia impacientemente.
— Você só saiu comigo umas três vezes desde o começo do ano e
sempre foi embora mais cedo com a desculpa de que estava ou muito
cansada, ou que precisava estudar.
— Tô’ muito sobrecarregada ultimamente para discutir com você,
Ricardo.
— Isso não é uma discussão, Gabi. Eu só quero entender o por quê.
— Porque eu tô’ exausta! Tenho quase três crises de ansiedade toda
semana, não consigo nem dormir, muito menos me alimentar bem há
tempos. Não consigo me concentrar direito e isso está me deixando
cada vez mais ansiosa! — desabafa ela, exasperada. — Ainda tenho
que aguentar os meus pais me cobrando o tempo todo para só tirar
10 nas provas — finalizou ela, parecendo um pouco mais aliviada
depois do desabafo.
— Você nunca me contou nada sobre isso, Gabi… eu poderia ter te
ajudado de alguma forma, meus pais também poderiam…
— Não leva pro coração, mas não quero ajuda agora. Basta continuar
sendo meu melhor amigo que tudo fica bem.
sob pressão — 45
Mesmo com o coração apertado pelo pedido de sua melhor amiga,
ele aceitou a condição e continuou ao lado dela. Evitava demonstrar
sua preocupação por Gabriela na frente dela, mas sempre
conversava com seus pais sobre essa situação. Os mais velhos diziam
que ele deveria ter calma, já que era uma questão muito delicada,
especialmente porque a menina não queria ajuda de ninguém.
Incentivaram ele a sempre ouvir o que ela tinha a dizer quando Gabi
desabafava, sem julgamentos, com total empatia e respeito por ela.
A situação foi se agravando e Gabriela já estava em um ponto que
não conseguia dar conta de mais nada. A garota havia entrado em um
estado de burnout, sentindo um extremo cansaço físico e mental,
dores de cabeça frequentes, sentimentos de fracasso e insegurança,
além da constante negatividade acerca do seu presente e do seu
futuro. Ricardo tentava ajudar da maneira que podia, mas não tinha
aparato suficiente para isso. Além de ser apenas um adolescente, os
pais de Gabi também dificultavam cada vez mais os encontros entre
os dois, visto que, de acordo com eles, “Ricardo era uma má
companhia” ou “Você tem que andar com pessoas mais sérias,
Gabriela!”.
A garota todo dia se sentia como se estivesse lutando contra um
afogamento, contudo, estava cada vez mais difícil resistir ao impulso
de jogar tudo para o ar. Em um dia particularmente mais estressante
que o comum, ela teve uma crise de pânico durante uma aula de
Física. Ela sentiu uma enorme vertigem, além do medo de enlouquecer
ou de perder completamente o seu controle. Ela saiu da sala
rapidamente, deixando todos os alunos assustados pela
repentinidade do ato. Ricardo foi o único a se levantar para ajudar
sua melhor amiga, que claramente não estava bem naquele momento.
— Gabi, o que tá’ acontecendo? — perguntou ele, desesperado. A
menina nem conseguia responder ele, só conseguia chorar e tremer.
Ela se sentou encolhida em um canto e ficou murmurando “Tá tudo
bem” e “Isso vai passar”.
sob pressão — 46
Ricardo apenas se sentou ao lado dela e esperou que a menina se
sentisse um pouco melhor, uma vez que ele nunca havia visto uma
situação dessas e, consequentemente, não sabia como agir.
— Acho que acabei de ter uma crise de pânico, Ric — disse ela depois
de uns dez minutos, com a voz fanha e o rosto avermelhado pelo
choro. — Não aguento mais a pressão que eu tô’ sentindo. Sinto como
se eu fosse uma panela de pressão prestes a explodir. Eu tô’
afundando cada vez a cada dia que passa e não tenho mais forças
para lutar contra isso — desabafou a menina baixinho, encostando a
cabeça no ombro do amigo.
— Há quanto tempo você vem sentindo essas coisas, Gabi?
— Acho que desde o começo do ano. Nunca desabafei sobre isso com
ninguém para evitar preocupação. Tá tudo bem comigo, Ricardo, é só
uma fase ruim.
— Fase ruim de quase um ano? Isso não existe, Gabriela.
— Você pode brigar comigo depois, mas agora não, por favor. Só
preciso do meu melhor amigo agora.
— Certo, ok, vou ser o que você precisa agora.
Eles ficaram na mesma posição por um pouco mais de uma hora,
apenas aproveitando a companhia um do outro em silêncio. Foi nesse
exato momento que Gabriela se deu conta de que algo precisava
mudar. Ela percebeu que estava perdendo sua própria identidade,
sufocada pelas expectativas impostas por si e por seus pais. Ela sabia
que seria um processo doloroso, mas que precisava de ajuda
profissional.
Depois de quase um mês depois desse episódio, Gabriela finalmente
se sentiu pronta para enfrentar a ida ao psicólogo. Logo após aquele
momento com Ricardo, ela conversou com os seus pais sobre como
se sentia em relação a tudo: a escola, a pressão colocada por eles e
todos os sintomas negativos que havia sentido durante muitos meses.
De primeira, seus pais ficaram bastante chocados pelo desabafo de
sua filha, uma vez que ela nunca havia reclamado do comportamento
deles no que se refere aos estudos, todavia, compreenderam o lado
de Gabi e a acolheram como nunca haviam feito.
sob pressão — 47
Desde então, eles se preocupam mais com a saúde mental de sua
filha, incentivam ela a sair nos finais de semana com seus amigos da
escola, especialmente com Ricardo, e se tornaram uma rede de apoio
muito fortalecedora na reta final do processo. Eles também
começaram a estudar mais sobre saúde mental e a importância dela
na vida de uma pessoa. Ademais, começaram a conversar mais com
os pais de Ricardo para aprender a como conversar essas questões
com Gabi da maneira menos invasiva e diretiva possível. Apesar de,
muitas vezes, controlarem o impulso de serem um pouco mais rígidos
com a garota, eles estavam se saindo como bons pais.
A psicóloga havia sido uma indicação de um parente da família, uma
vez que o filho mais velho dela já havia passado pela mesma situação
de Gabriela. Ela estava mais nervosa do que nunca no momento em se
sentou na poltrona em frente à psicóloga:
— Não sei como fazer isso — a menina murmurou mais para si do que
para a psicóloga.
— Fazer o que? — perguntou a mulher, um pouco surpresa pela fala
de Gabriela.
— Essas coisas de conversar com os outros, desabafar, sabe? Nunca
fui muito boa nisso.
— Então comece falando sobre quem você é, Gabriela.
— Ok… meu nome é Gabriela, tenho 18 anos de idade e quero fazer
Medicina. Eu estudo bastante e já tive não sei quantas crises de
ansiedade por causa disso.
— Não tem mais nada que você queira falar? Algum hobbie, alguma
coisa que você gosta de fazer? Nada?
— A minha vida gira em torno dos estudos, não sei fazer mais nada
que não seja sentar a bunda na cadeira e estudar.
sob pressão — 48
— Você percebe o que você tá’ dizendo, Gabriela? Você é uma menina
de 18 anos, que deveria estar vivendo a melhor fase da sua vida, mas
não está aproveitando isso da maneira que deveria. Não estou
dizendo que você deva negligenciar os seus estudos e jogar tudo para
o ar, mas é importante que você tenha momentos de descanso para o
bem da sua saúde mental. Ser saudável não é só comer bem, mas é
estar bem emocionalmente, socialmente e espiritualmente — a
psicóloga deu uma pausa para que Gabi absorvesse o que estava
sendo dito. — Eu não estou aqui para te julgar e ditar o que você deve
fazer, estou aqui para servir de apoio. Não adianta você viver sua vida
com a cabeça no futuro, e não no presente.
A última fala da psicóloga havia virado uma chave na cabeça de
Gabriela. Ela estava tão preocupada em como seria sua vida no
futuro, de como deveria ser, que esquecia de aproveitar momentos
fundamentais. Deixava de sair com seus amigos, de fazer coisas que
gostava, de fazer tudo por causa de coisas que ainda não haviam
acontecido.
Depois de quase um ano da sua primeira consulta, Gabriela estava
progredindo muito bem. Ainda havia momentos em que ela se sentia
como a mesma garota insegura e indefesa de alguns meses atrás,
mas a sua rede de apoio sempre a ajudava e a acolhia da melhor
maneira possível. Seus pais sempre perguntavam como ela estava se
sentindo, se precisava desabafar ou somente descansar. Eles haviam
progredido bastante nesses meses e Gabi não poderia estar mais
feliz pelo relacionamento saudável que eles tinham estabelecido. Ela
também havia desenvolvido hobbies que jamais imaginaria gostar,
dentre eles, fazer crochê e cantar. Saía mais com seus amigos,
especialmente Ricardo, uma vez que haviam se tornado mais
inseparáveis do que nunca.
sob pressão — 49
O que estão
cochichando?
AVISO!
O tema principal dessa história é bullying. Se
você se sente incomodado com este assunto,
sugerimos que não leia este capítulo!
6
Luísa, quando tinha 15 anos, era uma adolescente introvertida e
estudiosa que frequentava a escola local. Agora, com seus 16, estava
enfrentando uma mudança de cidade, o que virou a vida dela de
cabeça pra baixo — era uma nova escola, uma nova casa, e novos
amigos… Ah como ela temia isso. Ela sempre foi tímida, nada que
tenha afetado ela, mas estava com medo de como iria ser essa nova
experiência, mudando de uma escola pública agora para uma
particular. “Será que vão gostar de mim?” era o que ela mais se
perguntava enquanto as aulas não começavam.
Ela era uma menina normal, seus cabelos longos e pretos com certeza
fariam inveja a alguém. Sua vida além da escola era bem calma, tinha
poucas amigas, seu Instagram não era o mais seguido, nem mais
movimentado, mas lá ela postava muitas coisas que gostava, Luísa
era uma entusiasta de moda, amava ver tudo daquele universo e se
via trabalhando com isso, era certeza pra ela já.
E mesmo não achando seu colégio novo o lugar mais legal do mundo,
ela ainda gostava, um sentimento de amor e ódio mesmo… O que
fazia tudo mais suportável era seu trio de amigas, Helena e Julia. Era
assim, pelo menos, até que uma perseguição começou, e Luísa era
regularmente insultada e mal falada pelos populares. Eles a
chamavam de nomes desagradáveis, jogavam bolinhas de papel nela,
riam de seu estilo, empurravam-na pelos corredores e outras coisas
cruéis, como até grudar chiclete em seu cabelo. Cada vez que isso
acontecia, Luísa se sentia acabada e com a autoestima abalada.
Por mais que Luísa não estivesse sozinha, Helena e Julia não
ajudavam-a a responder às ofensas e só ficavam caladas. Isso ficava
rodeando a cabeça dela “se elas não dizem nada… talvez estejam
concordando com isso” — tudo só contribuia para que ela estivesse
odiando mais essa experiência, sentia falta de casa, onde nada disso
acontecia.
Com o tempo, Luísa percebeu que o bullying não definia quem ela era
e que ela era muito mais do que as palavras cruéis que os agressores
usavam para descrevê-la. Seus óculos, cabelos ou timidez não
impedia-a de nada, e passou a enxergá-los como os pontos mais
fortes de sua personalidade. Agora, no final de seu 2º ano do Ensino
Médio, ela se sentia muito mais a vontade no colégio e tentava ajudar
pessoas próximas que sofriam com problemas parecidos.
AVISO!
O tema principal dessa história é sobre
comportamentos autolesivos. Se você se
sente incomodado com este assunto,
sugerimos que não leia este capítulo!
7
Cartaz de conscientização sobre o Setembro Amarelo... É realmente
muito cômico que ninguém verdadeiramente se importa com os
alunos desta escola, e mesmo assim quando chega o tal de "setembro
amarelo", todos os professores vem com este mesmo discurso
manjado.
Ninguém sabe da minha dor, ninguém nem quer saber na verdade...
todas estas marcas que eu carrego nos pulsos, eu as cubro com um
moletom grosso de lã e mesmo nesse calor ninguém questiona o
porquê de eu usá-lo.
E eu não posso contar com nem sequer uma pessoa, eu não tenho
nada aqui, ninguém quer a minha amizade, os professores só ligam
pra notas e para vestibulares, e o Psicólogo dessa escola? Eu não sei
nem como ele se formou, sempre que eu peço ajuda ele sugere
"organizar" meu horário de estudo. Como se toda a minha dor se
resumisse só às minhas notas...
Não vejo sentido em estar mais aqui... Quero ir pra casa, mas não é
como se eu gostasse de estar em casa... Tenho tantas memórias ruins
vindo de lá, cobranças de todos os lados... Nem no meu próprio lar me
sinto protegido por nada nem ninguém, eu... preciso fazer essa
sensação de angústia passar, eu vou para casa...
Vou ao banheiro, preciso resolver isso, não tem ninguém em casa
agora, tenho a oportunidade perfeita de calar essa voz na minha
cabeça, só preciso de algo afiado agora...
Seu irmão sabia que essa escola era complicada, ele percebia quando
você ia embora mais cedo, de novo e de novo. Ele sabia que você não
era acolhido entre seus colegas, mas ele não sabia como chegar em
você. Parecia que você sumia todas as vezes que passava como um
espectro em nossa casa, fechando-se naquele quarto, seu irmão
sabia, mas nunca teve coragem de ousar ir até você. Até aquele dia..
AVISO!
O tema principal dessa história é sobre os
transtornos alimentares. Se você se sente
incomodado com este assunto, sugerimos que
não leia este capítulo!
7
— Que merda!
É a primeira coisa que me vem à cabeça ao deslizar as costas pela
“Carvalheira” e me deixar desabar na grama. Enquanto tento
esconder meu rosto ficando entre meus braços e pernas, percebo
meu corpo tremer, minha respiração ofegante, e minhas lágrimas
deslizantes sobre minhas bochechas, sem saber exatamente se foi
por causa da corrida desesperada que fiz até aqui, ou se foi por
causa da causa desse desespero.
“Por que c@$%/ eu fiz isso?”, é a única coisa que passa pela minha
cabeça nesse momento, intercalado por “eu sou um idiota”, e as
vezes até por um “eu sou um estúpido filha p@$% que não merece
viver”. Já nem sei mais se estou chorando pelo o que fiz, ou pelo ódio
que sinto de mim mesmo. Depois de um tempo dessa
autodepreciação agressiva e miserável, minha mente é tomada
completamente por um novo tormento, dessa vez mais incisivo:
“Por que eu não consigo comer?”
Eu estaria mentindo se dissesse que essa foi a primeira vez que me
fiz essa pergunta, e a resposta sempre estava no espelho, onde tudo
o que eu via era um corpo de 15 anos, alienado e sem nenhum controle
sobre a própria vida, e que não sabe ou não tem coragem de buscar
esse controle porque não fazia ideia de quem ou o que era, e muito
menos sabia o que queria ou deveria ser. Quando olhava para uma
comida, o que eu normalmente pensava era: “pelo menos isso eu
consigo controlar”, eu sei, é bem ridículo, um garoto tendo “um
problema de garota”, mas sinceramente o que não é “um problema
de garota” hoje em dia? Às vezes eu me pergunto se eu sou uma
garota por não conseguir lidar com meus problemas sem chorar…
como agora…
bolo — 61
ou uma garota por não conseguir lidar com meus problemas sem
chorar… como agora… Entretanto, pensava que haviam exceções,
momentos e alimentos que eu não me importava em perder o
controle, pois era melhor do que decepcionar aqueles que eram
importantes para mim, mas pelo visto eu estava enganado.
A merda de hoje me fez lembrar de todos as vezes que fui um escroto
ridículo, como aconteceu dias antes do Natal do ano passado. Eu tinha
14 anos (sim, eu faço aniversário depois do Natal), meus avós viajaram
para a nossa casa para comemorarmos em família, como de
costume, e no dia em que chegaram, minha mãe preparou um jantar,
acho que era a forma dela de agradar os sogros. Quando me
chamaram para comer, eu estava no meio de uma questão de um
simulado Enem, já que é só isso que eu faço agora nessa merda de
vida.
Quando a terminei, desci as escadas e me deparei com todos
sentados à mesa me esperando. Minha primeira reação foi de
extrema confusão seguida pela pergunta:
— O que foi? o que vocês estão fazendo?
Logo em seguida o vovô Miguel respondeu:
— Estávamos esperando você terminar de estudar para jantar todo
mundo junto!
O vovô Miguel é muito atencioso, diferente do filho dele, ele sempre
se mostra muito preocupado com os outros, e tenta deixar todo
mundo confortável, do jeito dele, inclusive eu. Mas mesmo assim, não
pude evitar de ficar extremamente perplexo, “eles estavam me
esperando para comer!”, eu nunca, jamais, imaginaria isso, nem nos
meus sonhos mais loucos.
A caminho de me sentar à mesa, vi uma caçarola de lasanha, a uns
anos atrás, quando eu era criança, estaria saltitando de felicidade, eu
adorava lasanha, e minha mãe sabia disso. Mas agora, quando olhava
aquele aglomerado de massa imersa em molho de tomate, tudo o que
me ocorre é a angústia de pensar o que aquilo faria ao meu corpo.
Várias vezes eu já me perguntei quando foi que eu comecei a me
sentir assim, mas nunca obtive uma resposta concreta.
bolo — 62
O que normalmente eu vejo a internet fazer é colocar a culpa nas
redes sociais, e é verdade que quando eu vejo todas aquelas pessoas
com seus corpos e vidas perfeitas, realizando seus sonhos e vivendo
felizes para sempre, eu não consigo evitar de me sentir ainda pior
sobre mim mesmo ou que deveria estar fazendo mais para não “ficar
para trás”, como meu pai costuma dizer. Mas algo me diz que não é
só isso, “quando foi que eu comecei a usar redes sociais mesmo?”
Antes de me servir, meu pai perguntou por educação:
— Como está indo Abel?
Eu já sabia que essa pergunta não estava sendo direcionada ao meu
bem estar e sim às minhas notas.
— Bem…
— Ótimo… — Ele continua, servindo-se de lasanha — Lembre-se que
só os melhores passam em medicina!
— Hm… — Respondo dando de ombros e olhando para nada.
Eu nem queria fazer medicina, na verdade eu nem sei o que eu quero
fazer, mas eu nunca pensaria em fazer medicina se não fosse essa
incessante encheção de saco dele, mas é claro que ele não sabe disso,
que eles não sabem disso, estavam ocupados demais trabalhando
para saber se o filho estava comendo direito, quem dirá se importar
com seus sonhos e aspirações. Me pergunto se meus pais prestariam
mais atenção em mim se eu começasse a ir mal na escola ou
passasse a noite em festas cheias de bebidas, drogas e sexo sem
camisinha, mas é claro que eu teria que pedir permissão para sair,
igual a tudo na minha vida...
Depois disso, parto para discretamente colocar um pedaço
inexpressivo de lasanha na esperança de que ninguém fosse notar, o
que normalmente acontece, mas dessa vez não foi o caso, não eram
apenas meus pais na mesa.
— Vai comer só isso?! — Diz a vovó Nana olhando pro meu prato
depois de eu ter largado a colher de servir.
— Não estou com muita fome… e eu preciso comer logo para voltar a
estudar… — Digo um pouco acanhado.
bolo — 63
— Mas você precisa comer direito para poder crescer menino! —
Retruca ela com um aroma doce de vó na voz. — Como você espera
estudar de barriga vazia? Olha só para você, está só o couro e o osso!
Dessa vez, as palavras da vovó Nana não soaram doce… na verdade
soaram com um tom de ácido angustiante, como se estivesse
correndo as minhas roupas e me expondo para todos. Eu só quis me
esconder, o que me fez baixar a cabeça e querer me cobrir em meus
ombros.
— E nós todos estávamos aqui te esperando para comer! —
Continuou vovô Miguel — E você quer comer rápido para já poder
voltar para o seu quarto?!
— Bem… eu não pedi para vocês me esperarem! — E de repente
percebi que o que eu falei soou pior do que eu pretendia. Todos
olharam pra mim como se eu tivesse acabado de ofender 20 minorias
com uma única frase. Eu só queria sumir.
Depois de alguns segundos de silêncio, minha mãe, que estava calada
até agora, pronunciou:
— Seus avós têm razão Abel, você precisa comer direito!
Não sei exatamente o que deu em mim, só sei que, ao ouvir aquelas
palavras, aquelas palavras saindo da boca da minha mãe,
imediatamente sentir uma pressão de ódio inflar no meu peito,
acompanhada de uma elevação de voz imprevisível:
— AH, ENTÃO AGORA VOCÊ SE IMPORTA COM O QUE EU COMO?!
QUER CONTROLAR ISSO TAMBÉM?
Dava para ver claramente o choque no rosto da minha mãe, o
semblante paralisado, assim como o dos meus avós, e eu não tive
coragem de olhar para o de meu pai, só conseguia imaginar… Quando
vi o estrago da bomba que havia soltado, e senti minha garganta
começar a se fechar em lágrimas, disse saindo às pressas da mesa:
— Preciso estudar!
No meu quarto, estava na mesma situação presente, fechado,
angustiado, com ódio de mim mesmo, “Por que caralhos eu fiz isso?”...
“eu sou um idiota”...“Por que eu não consigo comer?”.
bolo — 64
E como agora, lembro-me de pensar que parte de mim só queria se
enterrar no chão e se esconder onde ninguém pudesse ver essa cena
deplorável, e parte de mim só queria que alguém aparecesse por
aquela porta, que alguém me desse atenção, que alguém me
ajudasse… mas não foi o que aconteceu.
Agora, ao pé da "Carvalheira", eu até peguei meu celular e pensei em
mandar mensagem para Alice, minha amiga, mas não quis incomodá-
la, ela mesma já tem seus próprios problemas para resolver.
Entretanto, dessa vez, o inesperado tomou conta do lugar ao qual não
foi chamado, quando tirei meus olhos da tela, vi algo novo, alguém que
não estava aqui antes, misterioso. O mundo estava embaçado por
conta das lágrimas em meus olhos, mas dava para ver que tinha
alguém ali, em pé a poucos metros à minha frente, olhando para mim.
Ao esfregar meus olhos para tentar enxugar as lágrimas e ao
aproximar-se da figura misteriosa, consegui ver que se tratava de
uma garota. Através dos óculos era possível ver que ela estava com o
mesmo semblante paralisado de minha mãe, como se nunca tivesse
visto um garoto chorar antes, mas com bochechas mais
rechonchudas e avermelhadas.
Depois de alguns segundos, ela se ajoelhou e estendeu o braço em
minha direção com um lenço a mão, daqueles que você usa para
limpar os óculos, e perguntou:
— Você está bem?
…
Um momento de silêncio pairou o ambiente antes que eu pudesse
responder a essa simplória pergunta incompreensível, como se não
estivesse sendo capaz de escutar o que estava ouvindo, olhar o que
estava vendo, presenciar o que estava bem à minha frente, mesmo
encarando obsessivamente. Como uma súbita reanimação, meu
corpo recuperou o fôlego da alma, e respondi:
— Sim! — Quase como um susto — Estou bem… — mais tímido,
desviando o olhar para baixo acompanhado de um dar de ombros.
bolo — 65
Como as garras de um gato apanhei rapidamente o lenço de sua
mão, mas sem nunca encontrar o olhar. Enquanto uso o tecido macio
abruptamente para enxugar meus olhos e nariz, e enquanto a garota
misteriosa não parava de me dissecar com olhos, a correnteza de
climão guiada pelo silêncio estava me sufocando, mais do que minhas
próprias lágrimas.
— O que foi?... Nunca viu ninguém chorando não? — Dessa vez, ousei
levantar o olhar, afrontoso.
— Bem, sim… Só não esperava ver você chorando! — Disse ela
desajeitada, quase inaudível, como se tivesse percebido a
inconveniência.
— Você sabe quem sou eu? — A dúvida penetrou meu olhar.
— Bem… sim! Você é o Abel… Nós estudamos na mesma escola… — A
decepção e o constrangimento passeiam em seu sorriso nesse
momento. Ela espera alguns segundos na esperança de que eu fosse
lembrar apenas com essas informações, mas percebe que estava
enganada.
— Eu me chamo Carol, sou da turma do segundo ano A…
Continuo encarando com uma interrogação expressiva flutuando
acima de mim apesar das esperançosas tentativas dela.
— A esquisitona que só senta perto do canto das sementes!
— Ahh! — Como um atropelamento o reconhecimento vem a minha
cabeça.
Carol, a garota assanhada que está sempre sozinha, sentada sempre
próxima a janela que dá à um pé de ninho, onde ninguém quer ficar por
conta da sujeira que fica com a queda das sementes. Para ser
honesto, é só isso que sei sobre ela. Nunca a vi conversando com
ninguém da sala, nem mesmo com o “grupo dos esquisitos”, sempre
entrando muda e saindo calada. Mas porque então ela veio falar
comigo?
— Carol! Lembrei!... Então… o que você está fazendo aqui? — Digo
tentando diminuir o desajeito dessa “conversa”.
bolo — 66
— Bem, eu gosto de vir a esse parque, tem muitas plantas. Mas…
sinceramente, eu é que deveria estar fazendo essa pergunta! O que
você está fazendo aqui chorando sozinho ao pé de uma Babosa
Branca?
— Babosa Branca? Então esse é o nome dela?! Sempre a chamei de
“Carvalheira”.
— Carvalheira?! Por que? — Perguntou ela demonstrando muito
interesse.
— É por causa do meu irmão, sempre que ele estava passando por
um momento difícil ele vinha para cá. Ele me disse que essa árvore era
como um cavaleiro medieval de histórias de fantasia, que o protegia
do mundo real para que pudesse pensar, imaginar… — falar do meu
irmão me lembrou a angústia de quando cheguei aqui, ela voltou para
embargar minha voz.
— Ele me disse, que quando eu estivesse passando por um momento
difícil também, eu poderia vir aqui, que ela iria me proteger também…
me levar embora dessa realidade… me deixar em paz… —
Vislumbrando o nada, sinto meus olhos lacrimejarem novamente, mas
luto com tudo que tenho para impedi-las de sair, uma tentativa
miserável de tentar não transparecer o que está acontecendo
comigo. Inútil, obviamente.
— Então você… está passando por um momento difícil? — Não tenho
como ver seu rosto, mas sei que estava com um semblante
preocupado.
Minha resposta é o silêncio.
— Tem alguma coisa a ver com o seu irmão?
Novamente, o silêncio, mas dessa vez desviando ainda mais o rosto,
como se estivesse querendo fugir.
— Ele… faleceu?
— O QUE?! — Sem nem me dar conta estava de corpo todo diante
dela — Não é isso! Eu só… — Falho com a minha voz — Eu fiz merda tá
legal! Eu… — Já estava novamente, de corpo e olhar, buscando o nada,
buscando a coragem para dar um último suspiro, como se fossem
minhas últimas palavras — Magoei ele…
bolo — 67
Já nem estava mais lutando para manter minhas lágrimas em
cárcere, e choro um choro quieto, sutil, silencioso, para que ninguém
veja. Como podem duas míseras gotas de água do mar serem tão
difíceis de barrar? Não há dúvidas de que eu falhei na missão que eu
mesmo me dei de tentar fazer com que ninguém me visse nessa
situação. Dessa vez, tinha alguém ali, me observando a cada
movimento, a cada soluçada. Dessa vez, tinha alguém comigo.
Em algum momento, ela encostou a palma da mão em minhas costas,
fez contato. Não sei que propriedades mágicas existem nessa simples
ação, mas, de alguma forma, ela me fez me sentir melhor?! Como se
todo o peso que eu sentia estivesse sendo tirado das minhas costas, o
que pelo menos tinha alguém me ajudando a carregá-lo, um alívio. Me
vi capaz de recuperar o fôlego, de “engolir o choro”. Me vi até, em um
canto de olho, com coragem de tentar novamente um contato visual.
Carol não tinha falado nada até agora, mas, mesmo que só por um
vislumbre, sabia que ela estava lá para me escutar, sabia que seria
ouvido pelo menos uma vez na vida. Eu posso contar a minha história.
— Bem eu… tenho um problema… ou talvez eu seja o problema… eu já
nem sei mais. Enfim… Eu não consigo comer! Eu não sei bem o que
acontece comigo, mas… Sempre que eu olho para uma comida,
qualquer que seja, tudo o que passa na minha cabeça é que eu preciso
me controlar, que eu não posso exagerar, que eu preciso tomar
cuidado e ter controle na minha vida! E… Hoje de manhã… O meu
irmão, que é a pessoa mais incrível de toda a história do c@$%/ do
universo, veio até mim com um bolo… — comecei a me exaltar
gradativamente — Um bolo! De cenoura com cobertura de chocolate,
simplesmente o meu bolo favorito! O melhor que já existiu! Só que,
adivinha só, eu não consegui comer!... E o meu irmão, maravilhoso
como ele é, disse que percebeu que eu não estava comendo direito
esses dias, e que estava começando a se preocupar. E que por isso
ele fez esse bendito bolo, para que eu comesse!... Eu não sei o que deu
em mim nessa hora, mas… acho que eu não conseguia aceitar o fato
de que alguém percebeu que tinha algo de errado comigo… e é claro
que o meu irmão iria perceber!
bolo — 68
Por que ele não perceberia? Ele é a pessoa mais próxima a mim! A
única que realmente se importa comigo, que confia em mim!... E eu
nem sei como ele é capaz de fazer isso, porque eu mesmo não confio…
Acredita que eu fui a primeira pessoa a quem ele contou que era gay?!
Sério, não sei como ele pode pensar tanto de mim já que eu só faço
merda… como hoje, que eu me neguei tanto a comer um c@$%/ de
um simples pedaço de bolo que acabei derrubando ele todo no chão!
O bolo que o meu irmão fez para mim!...
Depois de uma pausa para tentar me recompor, continuei:
— Eu sei o que você deve estar pensando, “nossa que garoto ridículo,
chorando por causa de um bolo”, e você tem razão, eu sou ridículo! —
Disse escondendo meu rosto entre todo o meu corpo.
Novamente uma névoa pesada de silêncio tomou conta do espaço.
Porém, dessa vez foi cortada por Carol:
— Na verdade… eu também já chorei por causa de um bolo…
Levanto a cabeça e retruco:
— Não precisa dizer isso só para me fazer sentir melhor! O que? Vai
me dizer que não conseguiu comer também?! Olha só para você, seu
corpo está perfeito! — Digo voltando a cabeça de volta ao meu corpo.
— Na verdade… eu chorei porque eu comi… um pedaço de bolo!
Por algum motivo, aquilo havia me atingido como uma bala
atravessando por trás da minha nuca. Arregalei os olhos e voltei-me
novamente a observar Carol, não conseguia nem imaginar que tipo de
pintura sua expressão estava escrevendo.
— E depois… — Ela continuou — Me arrependi e… coloquei tudo para
fora… — Agora, sua presença se tornara triste… solitária… escura.
— Como? — Perguntei sem saber se deveria ter perguntado.
Palavras não foram convidadas para essa resposta, elas não
estavam nem perto de estarem vestidas adequadamente para
expressar o significado do simples gesto de direcionar dois dedos a
boca. Enquanto isso, eu estava falhando na procura de qual sapato
usar para se adequar a esse chapéu que me havia sido entregue e que
estava apertando a minha cabeça como nunca antes.
bolo — 69
Por incrível que pareça, o silêncio, que eu venho tentando evitar
desde o momento que Carol disse que sabia quem eu era, parecia ser
o que calçava melhor, apesar de parecer muito desconfortável e feio.
Felizmente, Carol percebeu que havia me colocado em uma saia justa
por conta do aperto das dúvidas e resolveu ela mesma continuar a
conversa.
— Se você quiser saber o porquê eu faço isso, eu não sei e também
queria saber! Tudo o que eu sei é que eu não consigo me controlar…
quando eu vejo uma comida, eu não consigo parar… mesmo eu só
querendo parar eu não consigo!... E depois… eu me arrependo
amargamente, ao ponto de eu ter que…
Ela não ousou continuar, dava para ver pela queda de seus olhos que
aquilo, falar de seus problemas, da sua vida, estava parecendo tão
difícil para ela contar para mim, quanto foi para mim contar para ela.
Ela… esteve aqui para me ouvir… Me senti no lugar de também estar
aqui ouvi-la, mas não queria pressioná-la a falar. Portanto, tudo o que
me veio a cabeça para não deixá-la presa naquele silêncio
ensurdecedor que se seguiu foi:
— Eu… nunca esperava encontrar alguém que também tivesse
problemas com a comida… Quer dizer, eu sabia que tinham pessoas
que também passavam por isso, mas… nunca pensei que fosse
encontrá-las pessoalmente! — Digo tentando aliviar a tensão. E acho
que funcionou, pelo menos um pouco, pois Carol faz um sorriso
singelo e desajeitado.
— Ei — Continuo — Mais cedo, você disse que não espera me
encontrar aqui chorando… Por que? Por que é tão inacreditável assim
me ver chorando?
— Ahh, você sabe… — Diz ela dando de ombros e desviando o olhar.
— Na verdade eu não sei não. - Retruco.
— É que você é o Abel!
— Como assim?
— Você sabe ué — Ela me aponta os braços e continua — Você está
sempre entre os melhores alunos da escola, é popular, faz esportes,
já foi líder de sala…
bolo — 70
— E o que isso tem a ver? — Pergunto cada vez mais confuso.
— Para quem vê de fora, parece muito que você tem a vida perfeita…
sabe?
— Ah! — Fico estático por um momento e depois me solto em uma
gargalhada - Bem, acho que você já tem sua resposta.
— Sim! — Diz ela rindo também.
— Ei — Chamo — Você esteve aqui para me escutar e isso me ajudou
muito, fico grato. Então, se você precisar de alguém para conversar
também, pode me chamar! Eu vou te passar meu número.
— Ah, claro! — Diz ela tirando o telefone do bolso — Então depois eu
te mando mensagem, é que já está ficando tarde e eu preciso voltar
para casa.
— Ah sim claro! — Digo ao nos distanciarmos enquanto nos
despedimos
— Mas ei! - Carol me chama novamente — O que você vai fazer sobre
aquela história do bolo?... e o seu irmão?... — Novamente ela se
mostra preocupada.
— Não sei… — Respondo depois de um longo suspiro — vou pensar
ainda…
Pauso por um instante enquanto procuro as palavras.
— Eu só… Queria conseguir comer…— solto mais um suspiro, dessa
vez, quase como um riso.
Carol solta mais um sorriso singelo e diz:
— Eu só queria conseguir parar de comer…
bolo — 71
Além da Festa
AVISO!
O tema principal dessa história é o abuso de
drogas. Se você se sente incomodado com
este assunto, sugerimos que não leia este
capítulo!
9
Gabriela era uma jovem de 15 anos, que estudava no 9° ano do
fundamental, Ela era introvertida, mas sempre foi muito curiosa e
buscava novas experiências. Seus pais tinham dificuldade de entendê-
la, e sempre a proibiam de sair sozinha, por isso eram raras as
ocasiões onde a garota buscava a permissão deles. Gabriela nunca
conseguiu fazer muitos amigos na escola, não se sentia parte de
nenhum grupo, e isso lhe doía, ela não se encaixava, todos sabiam, e
ela também.
Há alguns anos, Gabriela havia conhecido uma garota chamada
Marcela, que na época já tinha 15 anos de idade. Ela havia recém
chegado de outra cidade, e ainda não conhecia ninguém, se mudara
para mesma rua de Gabriela, e por “bons modos” foram de porta em
porta, Marcela e seus pais, anunciando a chegada da nova família na
rua. Gabi sempre achou esse um jeito estranho para o início de uma
amizade, fato irrelevante para quem tinha tão poucas.
Durante o tempo que se passou, Marcela chamou Gabi para sair
algumas vezes, mas os convites eram sempre negados com a mesma
frase: “foi mal amiga, meus pais não deixaram, não adianta”. Ano
após ano, a mesma coisa.
Só que, agora, quem tem 15 anos é a Gabi, e esse tempo que se
arrastou parecia se estender como uma infinidade. Ainda assim, isso
não era suficiente: o “ninho” virou cativeiro e ela não cabia mais ali.
Marcela ainda mantinha contato, e em todo aniversário ainda
mandava um convite, só que dessa vez foi diferente: Gabi não
recebeu um papelzinho colorido com a data, hora e local da festa. Foi
um convite mais simples, sendo uma mensagem em seu celular que
dizia apenas: “Gabi, hoje é meu aniversário, vai ser na minha casa
mesmo, queria que tu viesse mas se teus pais não deixarem mais uma
vez, eu entendo“.
além da festa — 73
Gabriela já estava cansada. Era revoltante. Não tinha amigos na
escola, não podia sair de casa, e as poucas oportunidades que tinha
de sair eram por conta da Marcela. E mesmo assim, toda santa vez
ela acabava não indo.
— Já chega!!!
Triste, estressada e esgotada com tantas proibições, simplesmente
decidiu que ia e pronto! Sem ninguém saber mesmo. Afinal de contas,
se ela fizesse tudo certo, esse dia passaria despercebido. Respondeu
a Marcela com um curto e direto; “que horas começa?”
Marcela não demorou a responder: “sei lá, vem tipo umas 20h”. Um
frio cortante tomou conta do corpo inteiro de Gabi, “eu vou mesmo
fazer isso? eu vou!”
Sair da casa não foi um grande sacrifício, os pais de Gabi não
deixavam ela sair, mas obviamente eles podiam. Só foi preciso
paciência para achar a chave certa, cautela para abrir o portão e
coragem para correr até a casa de Marcela.
A casa era grande e estava cheia de pessoas, o ambiente estava
escuro, com luzes coloridas, e a música alta demais. O ambiente não
combinava com ela, mas ela parecia não combinar com nada. A
sensação de estar deslocada não era novidade, doeu, mas ela já
conhecia essa dor fria. Não conhecia nem falava com ninguém, tensa
dos pés a cabeça, e a ideia de ter ido escondida à festa continuava
martelando sua cabeça. Eram coisas demais, um mundo inteiro de
informações dentro de uma casa, dentro de uma garota, dentro de
uma cabeça. Gabi sentia que ia explodir a qualquer momento.
Marcela estava rodeada de amigos. Demorou um pouco pra notar,
mas acabou percebendo a presença de Gabi. Marcela até que tentou
enturmá-la, só que falar com as outras pessoas era um desafio muito
grande pra Gabi, a diferença era clara: Marcela flutuava no ambiente
como uma pluma, Gabi jazia na terra feito rocha, imovel e estática.
Ela não queria ser assim, não queria estar assim. Percebendo o
desconforto de Gabi, Marcela pega um copo cheio de bebida, na
frente de Gabi, e tira do bolso um saquinho plástico minúsculo. Ela
pega algo que estava ali dentro, coloca em um copo com bebida e diz:
além da festa — 74
— Se isso não te fizer melhorar essa cara, nada mais no mundo vai!
Nada disso parecia certo, ela já tinha ouvido sobre isso na escola.
Mas aquele momento poderia ser único. Sentiu que ela poderia ficar
mais feliz, mais leve, livrar-se do estresse e fazer parte de alguma
coisa ao menos uma vez. Então ela bebeu mais, mais e mais, se
divertiu e riu com os amigos de Marcela. Estava se sentindo meio
tonta, mas feliz e relaxada. Depois, uma das pessoas do grupo
ofereceu a ela um comprimido, e Marcela incentivou Gabi a tomá-lo.
Ela já estava tão alcoolizada que não conseguiu perguntar o que era
aquele comprimido. Não se preocupou, queria curtir o momento.
Aceitou e, depois de colocar aquilo debaixo da língua, como mandou o
amigo de Marcela, ela se divertiu como nunca, as cores pareciam
mais vivas, e finalmente sentiu-se parte de um grupo de amigos.
Enquanto se divertia, durante todos esses pequenos eventos, um
garoto observava Gabi de longe. Ele percebeu que, no decorrer da
festa, o comportamento de Gabriela havia mudado: estava mais leve,
extrovertida, aberta a conversas. Por isso, achou que seria uma boa
oportunidade para abordá-la. O menino chegou perto de Gabriela e
eles começaram a conversar. Gabi estava gostando da conversa,
mas percebeu que o comportamento do garoto estava estranho. O
garoto começou a se comunicar de forma suspeita, expressando seu
desejo por Gabriela. Porém, ela, por estar sob efeito de substâncias,
não estava consciente e não pôde compreender claramente quais
eram as suas intenções, Depois de um tempo, o garoto lhe disse:
— A música tá muito alta,que tal a gente ir pra um lugar com mais
privacidade?
Gabriela aceitou, e foi puxada pelo braço em direção ao quarto. Lá, o
garoto conversou com ela, depois começou a fazer perguntas
pessoais, então tentou beijá-la e tocá-la. Naquele momento, Gabriela
começou a se sentir desconfortável e recuar, mas o garoto
continuava tentando. Naquele momento o incômodo de Gabriela, em
relação aquela situação crescia, e as investidas do garoto também.
Ela notou que a mão dele passava pelo seu corpo, mas ela não
conseguia pedir ajuda.
além da festa — 75
Gabriela ouvia as pessoas do lado de fora daquele quarto, ouviu que
um outro garoto não deixava ninguém entrar. Ela tentou acalmar-se
mas o desespero foi tomando conta, pois apesar das tentativas,
Gabriela não conseguia sair dali. Ela olhou nos olhos dele e observou
seu cabelo, e no momento que em ela sentiu mais medo, ela pode
ouvir um amigo dele o chamando pelo nome:
— Enzo, sai daí!
E naquele mesmo momento, Marcela entrou no quarto e avisou que
seus pais chegaram para buscá-la, pois sentiram a falta da filha e
conheciam bem o caminho da casa da amiga. Quando a viram,
perceberam que a filha não estava em si, e receberam-na com gritos.
— Gabriela, por que você está assim?! O que foi que você aprontou?!
Agora que você não vai mais sair de casa mesmo, garota! — disse a
mãe, que olhava furiosamente para Gabriela. — Vamos agora!
Assim, os pais de Gabriela a levaram embora da festa. Ela não sabia
se estava mais atordoada pelo que acabara de acontecer, ou se
estava mais ansiosa com a situação e com os gritos que levava,
desde que entrou no carro até em casa, de seus pais.
No dia seguinte, Gabriela acordou sentindo um mal-estar físico e
mental muito grande: sentia dores de cabeça e enjoos, além de se
sentir muito triste. Lembrou de muitas coisas que aconteceram
ontem e, estando sóbria, sofreu muito mais. Mesmo assim, se forçou
a ir à escola, pois não queria dar ainda mais motivos para seus pais
brigarem com ela.
Por celular, Gabriela marcou de se encontrar com Marcela, no
intervalo da escola. Elas conversaram sobre o que aconteceu na
festa, e Gabriela ressaltou como o momento foi bom, mas se sentiu
muito mal pelos seus pais. Ela procurou saber se aconteceu alguma
coisa que não lembra, e falou sobre muitas coisas, mas não queria
tocar no assunto do que ocorreu com Enzo, pois ainda se sentia muito
triste, irritada, ansiosa e culpada com a situação. Depois de muitos
desabafos de Gabriela, Marcela comentou:
— Logo depois da aula, eu e meus amigos, aqueles da festa, estamos
indo procurar… Você sabe, né? Aquelas balinhas. Você quer ir com a
gente? Parece que você gostou.
além da festa — 76
Gabriela estremeceu. Por um instante, ela hesitou. Mas lembrou da
sensação tão boa que essa pequena balinha lhe causou. "Será que
devo ir?", pensava. Era uma oportunidade: seus pais não iriam saber
de nada, pois pensariam que Gabriela estaria na escola. Além disso,
pensava: "Eu já não vou poder sair de casa por nada. Já estou presa.
Qual o problema de me permitir essa diversão de novo? Eu finalmente
vou poder ser amiga de alguém". Com todos esses pensamentos
passando pela sua cabeça, Gabriela aceitou o convite.
Quando tocou o último sinal da escola, Gabriela dirigiu-se à porta
para esperar Marcela e pôde observar os colegas que também
estavam saindo e ouvir algumas conversas que aconteciam. Até que
ela ouviu:
— Enzo, você nem falou como foi aquela festa, e aí?
Ao ouvir aquele nome ela estremeceu. Virou-se, e então percebeu
que aquele menino que estudava na sua escola era o mesmo que a fez
sentir o maior medo de sua vida. Em meio a um estupor de
pensamentos, Marcela chega:
— Vamos Gabriela?
Gabriela sentiu que precisava de algo que tirasse aquela sensação
ruim que sentia. Ao encontrar seus novos amigos, ela já tomou a
iniciativa de perguntar o que eles haviam levado, e já foi beber com
eles para relaxar. Dessa vez acho que merecia 2 comprimidos para
livrar-se daquele sentimento de medo e de nojo que teve ao ouvir Enzo
e seus amigos.
No dia seguinte, além de, mais uma vez, sentir um grande mal estar,
ela percebeu também que sentia-se mais triste do que nunca. Pensou
que sua cabeça ia explodir de dor, mas teve certeza que precisava ir a
escola falar com o Diretor, ele precisava fazer algo em relação ao
menino que tentou abusá-la. Esperou as primeiras aulas passaram e
foi correndo para a sala de direção, ela precisava usar aquele
segundo de coragem para falar com aquele homem mais velho sobre
a situação que viveu. Ao chegar na direção pediu um tempo a sós com
o Diretor e disse:
além da festa — 77
— Senhor, sei que não sou a melhor aluna da minha série, mas nesse
momento preciso que acredite em mim. Em uma festa na casa da
Marcela, o Enzo, do terceiro ano, tentou agarrar-me e aproveitar-se
de mim enquanto eu não estava sóbria. Eu senti muito medo e acho
que essa situação precisa de uma punição exemplar. Ele prosseguiu
com o ato porque meus pais chegaram, mas e se eles não
chegassem?
Ela fez uma pausa e tentou não chorar, mas seus olhos encheram-se
de lágrimas. Gabriela respirou fundo e continuou:
— O que o senhor vai fazer?
O diretor, então, ficou em silêncio. Gabriela ficou de cabeça
abaixada, esperando o acolhimento que certamente viria, e ouviu as
seguintes palavras:
— Gabriela, eu não posso agir nessa situação, pois o fato não
aconteceu dentro da área escolar, e nem sei se isso realmente
aconteceu! Como você sabe se ele estava fora de si? Sinceramente,
nem eu nem ninguém fará algo a respeito, pois sem provas ou
testemunhas afirmando que você não queria estar naquele local,
nada pode ser feito. Aconselho você a parar de usar as coisas que
você usa, nunca passaria por algo assim se estivesse em casa
estudando.
Aquelas palavras entraram como facas nos ouvidos de Gabriela, a
emoção foi tão ruim quanto o que o rapaz a fez sentir naquele quarto
escuro. Ela não conseguia acreditar no que ouviu. Levantou-se e saiu
de lá correndo para o banheiro, e mandou mensagens para Marcela
perguntando se poderiam ver seus amigos hoje novamente. Gabriela
contou que precisava relaxar. Pensou que merecia sentir aquela paz
instantânea, e que tinha direito de tirar algumas sensações ruins que
sentia. As duas faltaram às últimas aulas para encontrar aqueles que
continham as substâncias que elas queriam. Essa foi a primeira vez
que ela fumou um cigarro, ele fazia Gabriela sentir-se mais relaxada,
e finalmente ela sentiu que era livre das suas preocupações.
além da festa — 78
Nessa noite, ela dormiu bem, mas cada dia sem usar nada era como
estar presa mais uma vez a noite, a toda realidade tão injusta, que
esmagava impiedosamente qualquer tentativa de fugir. Todos
recomendavam tantas coisas, mas todos se importavam tão pouco.
Gabi mais uma vez recorreu a Marcela, só que, nesse ponto, tudo
tinha um preço: as drogas já não eram cortesia, o vício já tinha se
instalado e quem fornecia sabia bem disso. Gabi precisava arranjar
alguma forma de conseguir usar, estar presa àquilo tudo de novo não
era uma opção, tudo era, menos isso. Ela buscou ajuda, ela ouviu o que
lhe disseram, ela gritou, e ninguém veio ajudar. Decidiu que não iria
mais depender de ninguém pra lidar com a dor que sentia, mesmo que
fosse necessário fugir pra sempre, então pra todo sempre ela
fugiria.
além da festa — 79
O mundo oculto
de Clarice
AVISO!
O tema principal dessa história é suicídio. Se
você se sente incomodado com este assunto,
sugerimos que não leia este capítulo!
10
Vocês conhecem alguma Clarice, gente?
Todo mundo conhece pelo menos uma, eu acho! Eu vou contar agora a
história da minha amiga, Clarice, ou melhor, um pouquinho dela. Eu
conheci a Clarice já no terceiro ano, mas nem sempre fomos amigas.
Na verdade, é até meio constrangedor assumir que minha best friend
hoje, na verdade, foi quase cancelada pela nossa turma da escola
pelo simples fato da gente não conhecê-la bem. E tipo, por não
conhecer os problemas dela, não íamos muito mesmo com a cara
dela também.
Mas deixando esse longínquo e tenebroso passado para trás, vamos
aos fatos, né?
Clarice, assim como todas nós, apenas uma adolescente comum,
como a maioria no ensino médio: Cheia de dúvidas e empolgações, em
busca de respostas em meio a suas muitas confusões. Não, na
verdade, ela parecia ser meio esquisitona no começo das aulas.
Todo mundo sabe que o terceiro ano é o CAOS NA TERRA, e por isso,
tanto por motivo de tempo e até um pouquinho de impaciência
mesmo, digamos que nosso poder de socialização diminui um pouco,
se é que vocês me entendem? Já seriam muitos conflitos e muitas
dúvidas, pensar no Enem, vestibular e questionamentos em relação a
vários sonhos e ao futuro, porém, já passados quase 30 ou 40 dias do
início das aulas, aparece aquela novata.
Olhos cinzas e sem expressão, cabelão grande, porém sempre
jogados de lado e uma mecha rosa.
— A novata mais calada de todas, diziam os meninos brincando.
Não interagia, não olhava muito para os lados como se fosse ou muito
tímida, ou como se não quisesse dar abertura mesmo. Cheguei a
achar que ela tinha um jeitinho meio de “superior”, mas ao mesmo
tempo bastante introspectiva, no mundo dela.
AUTORES
O MUNDO OCULTO DE CLARICE ISSO NÃO É UM CONTO DE FADAS
Erica Lopes Clara Mamede
Felipe Alencar Damayane Marques
Gabriele Lourenço Agnes Albuquerque
Gleiva Rios Isabela Maia
Tanara Muniz Marina Leal
Ana Vitória Estanislau
O QUE ESTÃO COCHICHANDO?
Gerusa Borges TODO DIA EU TÔ DIFERENTE
Taíssa de Almeida Lara Guimarães
Letícia Luna Alessandra Natasha
Ana Júlia Araújo Alícia Vasconcelos
Rodrigo Maia
DIANA, CLEO E MANU
Vanessa Bezerra QUANDO AS FERIDAS CICATRIZAM
Maria Clara Ivo Luan Oliveira
Ana Luíza Lima Luan Vieira
Vanessa Boris Samuel de Queiroz
Ana Valquíria Hannah Hagne
Clarice Rocha
BOLO
SOB PRESSÃO Ana Máira Lima
Clarice Galdino Ingrid Ávila
Gisele Soares Larissa Gonçalves
Larissa Teles Letícia Freitas
Rogaciano Sampaio Paulo Yuri
Davi Ferreira Vinicius Chaves
Rebeca Luana Sabrina Crisóstomo