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HERMENÊUTICA

Sumário
HERMENÊUTICA .................................................................................... 0

NOSSA HISTÓRIA .................................................................................. 2

HERMENÊUTICA .................................................................................... 3

INTRODUÇÃO ......................................................................................... 3

A Abordagem Hermenêutica.................................................................. 11

I. Sobre a interpretação ......................................................................... 11

II. Sobre a experiência da arte ............................................................... 16

III. O encontro com a imagem ................................................................ 22

1. Encontros marcantes com Heidegger ................................................ 29

2. Identidade: apropriação de temas e questões heideggerianas .......... 31

3. Diferenças: distinções e rupturas ....................................................... 36

3.1. Com relação ao tema da tradição ................................................... 36

3.2. Com relação ao tema da linguagem ............................................... 40

3.3. Sobre as rupturas com Heidegger .................................................. 44

Referências............................................................................................ 49

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NOSSA HISTÓRIA

A nossa história inicia com a realização do sonho de um grupo de


empresários, em atender à crescente demanda de alunos para cursos de
Graduação e Pós-Graduação. Com isso foi criado a nossa instituição, como
entidade oferecendo serviços educacionais em nível superior.

A instituição tem por objetivo formar diplomados nas diferentes áreas de


conhecimento, aptos para a inserção em setores profissionais e para a
participação no desenvolvimento da sociedade brasileira, e colaborar na sua
formação contínua. Além de promover a divulgação de conhecimentos culturais,
científicos e técnicos que constituem patrimônio da humanidade e comunicar o
saber através do ensino, de publicação ou outras normas de comunicação.

A nossa missão é oferecer qualidade em conhecimento e cultura de forma


confiável e eficiente para que o aluno tenha oportunidade de construir uma base
profissional e ética. Dessa forma, conquistando o espaço de uma das instituições
modelo no país na oferta de cursos, primando sempre pela inovação tecnológica,
excelência no atendimento e valor do serviço oferecido.

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HERMENÊUTICA

INTRODUÇÃO
É corrente a ideia de que as sociologias compreensivas, por lidarem com
“construções de segundo grau” – interpretações elaboradas pelo pesquisador
acerca de interpretações produzidas pelos atores sociais em sua vida cotidiana
–, estão enredadas na armadilha do psicologismo, do subjetivismo e do
meramente contextual.

O trabalho do sociólogo, nesse caso, seria meramente (re)descrever – em


uma linguagem mais ou menos complexa – aquilo que foi feito ou dito pelos
agentes, enfatizando suas motivações e interesses. Esse pressuposto está
subjacente a duas posições analíticas.

A primeira considera que as sociologias compreensivas não ultrapassam


aquilo que está simplesmente presente aos olhos do observador ou à
consciência do ouvinte.

A segunda parte do princípio que a compreensão proposta por essas


correntes sociológicas é um complemento às explicações macrossociais, pois a
análise das subjetividades deve acompanhar as interpretações de cunho mais
objetivista.

Ambas posições estão de acordo que o campo próprio da compreensão


é a subjetividade. A identificação do objeto da compreensão com a subjetividade
remonta a uma longa controvérsia teórica sobre os fundamentos metodológicos
considerados adequados às ciências sociais.

Tal controvérsia pode ser brevemente resumida nos seguintes termos: por
um lado, há aqueles que argumentam que as ciências sociais devem seguir os
princípios explicativos das ciências naturais, enquanto outros clamam pela
diferença entre elas, tanto em relação aos seus objetos como em relação aos
seus métodos. A explicação e a compreensão, nesse último caso, constituiriam

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atos gnoseológicos distintos para a apreensão dos objetos naturais e culturais,


respectivamente.

Essa controvérsia foi inicialmente formulada pela tradição


Geisteswissenschaftliche (ciências do espírito) presente nas obras de Dilthey,
Simmel e Weber, entre outros.

Entre a Segunda Guerra e a década de 1970, período que Picó (2003)


denominou de “época dourada” da sociologia,1 os fundamentos epistemológicos
das “ciências do espírito” foram usualmente criticados como modalidade de
idealismo: por negligenciarem a importância dos “fatores reais e materiais” da
vida social; por seu caráter contemplativo e descritivo; e por reduzirem a
hermenêutica a uma mera história do pensamento.

De acordo com essa perspectiva, a ideia de compreensão foi amplamente


interpretada em termos psicológicos. Assim, era de se esperar que os quadros
de referência teórico-metodológicos predominantes no pós-Guerra obliterassem,
de uma maneira geral, as pretensões de uma teoria social fundamentada na
“compreensão”.

Contudo, o renascimento da filosofia analítica anglo-saxônica (em boa


medida instigada pelo pensamento wittgensteiniano) e dos movimentos
sociológicos fundamentados no pragmatismo e na fenomenologia recolocou em
outras bases a ideia de compreensão como tema central na teoria social.

Tratam-se de concepções teóricas que, entre outros aspectos,


evidenciam problemas relacionados com a significação na vida cotidiana, com a
linguisticidade da compreensão e com as condições de possibilidade do
conhecimento sobre a ação social (Alves, 2010).

A imagem de que o campo próprio da compreensão é a subjetividade está


associada às concepções hermenêuticas que estiveram subjacentes às
discussões sobre o significado da compreensão.

É bem verdade que a hermenêutica quando se desregionalizou, deixando


de ser uma interpretação do discurso filológico, bíblico ou jurídico para se definir

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como uma teoria geral da interpretação, tomou como um dos temas básico de
investigação a relação entre vida e obra.

Para os teóricos das “ciências do espírito” (Geisteswissenschaften), o


“problema da hermenêutica” resumia-se na questão de como compreender a
vida que se expressa e se fixa em uma obra.

Nesse contexto, Dilthey assumiu uma posição significativa ao tentar


estabelecer uma síntese dos princípios da ciência com os da “filosofia da vida”,
proporcionando um importante modelo para as subsequentes abordagens
relativas à compreensão da ação social.

Para esse autor, se a vida está na origem da obra, a recuperação desta


pela interpretação deve procurar reconstituir o caminho da criação. Preocupado
com a “experiência vivida”, Dilthey atribuiu ao intérprete a tarefa de buscar na
obra os traços do que foi a vida. Para garantir objetividade na realização dessa
tarefa (ou seja, permitir ao intérprete penetrar imaginativamente na mente do
autor).

O termo “idade de ouro”, cunhado por Picó (2003), designa o tipo de


sociologia desenvolvida entre as décadas de 1940 e 1970.

Foi nesse período que se deu a reconstrução das sociologias nacionais e


sua maior institucionalização nas universidades, particularmente nos Estados
Unidos, através dos aportes teóricometodológicos de cientistas sociais como
Parsons, Merton, Lazarsfeld, Lockwood, Dahrendorf, Friedmann , König e
Adorno, entre outros (cf. Friedrich, 2001; Platt, 1996; Hinkle, 1994; Arnove,
1982), procurou prover as ciências humanas de um método específico que fosse
tão válido e rigoroso quanto o das ciências naturais.

Nesse aspecto, Dilthey e seus seguidores, ao buscarem uma “sólida”


base científica para a análise de “significações” ou investigação do sentido,
terminaram por reduzir a hermenêutica a uma questão epistemológica e
metodológica.

Comentando sobre a obra de Dilthey, Bleicher observa: A necessidade de


procurar fazer uma crítica da “razão histórica” para completar a Crítica da razão

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pura de Kant resultou de tensões inerentes à filosofia moderna que, no seu


desenvolvimento, deu origem a um dualismo que surge ao nível da filosofia e da
ciência, da metafísica e da epistemologia, da crença e do conhecimento, do
logos e do ethos, da razão pura e da prática, da filosofia sistemática e da filosofia
da vida, da lógica e da história (Bleicher, 1992: 35).

Os pressupostos iluministas e românticos que estão presentes na teoria


hermenêutica de base diltheyniana expressam um conjunto de polaridades
(como razão/vida, sujeito/objeto) que estão subjacentes a muitas teorias sociais
do século XX.

A concepção de razão do “século da filosofia” esbarra na imprevisibilidade


da natureza humana. Conforme observa Antonio Candido.

Vico (1668- 1744), ao argumentar contra o cartesianismo, defende certa


liberdade de criação para dar expressão à fantasia; Hume (1711-1776), em
oposição às tendências abstratizantes do racionalismo francês, defende a
relatividade do gosto, entendido como algo dotado de subjetividade; Pope (1688-
1744) defende o princípio da naturalidade ao admirar no índio sua disponibilidade
intuitiva para compreensão dos fenômenos naturais; Gravina (1664-1718)
aplaude a sabedoria popular.

Nesse aspecto, JeanFrançois de la Harpe (1739-1803) chegará a criticar


o epíteto atribuído ao século XVIII, como “século filosófico”, ao dizer que “só
poderia sêlo, talvez, na medida que fosse notável pelos progressos sensíveis da
Razão, aplicada a todos os objetos que é capaz de aperfeiçoar, ou pelo menos
melhorar, para a glória e a felicidade da espécie humana” (apud Mongelli, 1992:
134).

[...] à claridade seca do universo cartesiano ia sucedendo uma


penumbrosa magia, mal disfarçada por todo o aparato científico da filosofia,
propiciando interesse bem mais acentuado por aquelas zonas imprecisas que a
psicologia preferia banir, couraçando-se na distribuição dos fatos da alma entre
entendimento e vontade (Candido 1969: 58).

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O Iluminismo deu tanto continuidade como rompimento com a tradição


intelectual do século anterior. Esse movimento duplo é visível na ideia de
“progresso” espiritual – entendida como ampliação qualitativa do saber – que
está presente em todo o século XVIII.

Para os filósofos desse período, a ideia de progresso estava associada à


concepção de que o homem deve tomar diversas direções para decifrar a
totalidade da realidade (incluindo o mundo social), buscando na multiplicidade e
variedade dos âmbitos em que se move uma essência homogênea e
unitariamente informadora (Cassirer, 1943).

Tal essência é alcançada pela razão. A primazia da razão como vetor para
alcançar a essência é partilhada, de maneira geral, pelos pensadores dos
séculos XVII e XVIII. Contudo, há uma diferença significativa na forma como no
século XVIII o Iluminismo realiza esse empreendimento.

O racionalismo do século anterior caracterizou-se pela construção de


sistemas abstratos de explicação da realidade a partir de ideias inatas. Nessa
perspectiva, a razão foi concebida como ferramenta analítica a operar
dedutivamente.

No Iluminismo, já não se admite a premissa de que o pensamento alcança


um verdadeiro saber partindo de um ente supremo e de uma certeza
fundamental através da qual, mediante um rigoroso encadeamento de dedução
sistemática, chega-se a novos princípios.

Em seu Tratado dos sistemas (1749), Condillac (1984), um dos principais


representantes da filosofia francesa do século XVIII, observa que os sistemas
abstratos são compostos por definições frívolas, de uma fecundidade aparente
e inútil.

Ao se oporem à construção de grandes “sistemas” filosóficos e tentarem


empreender uma síntese do empirismo e do racionalismo, os filósofos iluministas
consideram que a realidade objetiva é o ponto de partida de todo o pensamento
e a razão uma força aliada à experiência sensível e à observação.

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Nesse sentido, argumentam que não há oposição intrínseca entre


“experiência” e “pensamento”. Kant, nesse aspecto, é ilustrativo. Ao colocar a
ciência como um empreendimento no qual o homem só conhece as coisas tal
como elas se lhe aparecem, a concepção kantiana é paradigmática, não apenas
dentro do contexto filosófico do Iluminismo, mas também para algumas das
principais vertentes da epistemologia e da teoria social moderna.

Na introdução à Crítica da razão pura, publicado em 1781, Kant observa:


Não resta dúvida de que todo o nosso conhecimento começa pela experiência;
efetivamente, que outra coisa poderia despertar e pôr em ação a nossa
capacidade de conhecer senão os objetos que afetam os sentidos e que, por um
lado, originam por si mesmos as representações e, por outro lado, põem em
movimento a nossa faculdade intelectual e levam-na a compará-las, ligá-las ou
separá-las, transformando assim a matéria bruta das impressões sensíveis num
conhecimento que se denomina experiência? [...] Se, porém, todo o
conhecimento se inicia com a experiência, isso não prova que todo ele derive da
experiência.

Pois bem poderia o nosso próprio conhecimento por experiência ser


composto do que recebemos através das impressões sensíveis e daquilo que a
nossa própria capacidade de conhecer (apenas posta em ação por impressões
sensíveis) produz por si mesma, acréscimo esse que não distinguimos dessa
matéria-prima, enquanto a nossa atenção não despertar por um longo exercício
que nos torne aptos a separá-los (Kant, 1989: 36).

Em sua crítica à “metafísica dogmática”, Kant parte do pressuposto de


que é na determinação puramente empírica da experiência que surge a
objetividade, pois é nela “que justamente se combinam os dados confusos e
mutáveis da sensibilidade com o que por si mesma produz a nossa faculdade de
conhecer” (Silva, 1995: 16).

Em outras palavras, a verdade e a libertação dos preconceitos – princípios


da Aufklärung – só são possíveis se a experiência humana, em si mesma caótica
ou preconceitual, for objetivada, isto é, configurada aprioristicamente através das

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categorias do entendimento humano, pelas estruturas universais de uma


subjetividade anônima e transcendental.

Assim, ao afirmar que as formas a priori da razão são independentes da


experiência, Kant sustentou a ideia de que a razão fundamenta a possibilidade
da experiência, condiciona-a e determina os limites de sua objetividade. Dessa
forma, a concepção empirista da imediaticidade das percepções humanas
singulares é errônea, pois elas já são antecipadamente mediadas pelo próprio
projeto da razão que as experimenta.

O vínculo entre teoria e prática, entre as formas a priori da razão e a


experiência, é visto pelos iluministas como condição necessária para a
explicação da ordem e legalidade absoluta da realidade. Como é do
conhecimento geral, tal vínculo é pautado no modelo epistemológico e
metodológico estabelecido pelas ciências naturais (físico-matemáticas) da
época.

Na busca dessa fundamentação, o Iluminismo instaura uma nova lógica:


a “lógica dos fatos”. Como observa Cassirer, o espírito tem que abandonar-se à
plenitude dos fenômenos e regular-se incessantemente por eles, porque deve
ser seguro e, longe de se perder naquela plenitude, encontrar nela sua própria
verdade e medida (Cassirer 1943: 23).

Assim, ao admitir que a verdadeira explicação da realidade pressupõe


uma lógica fundamentada pelo método da ciências físico-matemáticas, os
iluministas, a princípio, não negam a complexidade e diversidade dos fenômenos
naturais e socioculturais .

O “enciclopedista” Jaucourt, por exemplo, afirma que os preconceitos são


como fantasmagorias “que um gênio maligno tivesse enviado à Terra para
torturar os homens; são uma espécie de enfermidade contagiosa, que como toda
as epidemias, ataca principalmente o vulgo, as mulheres, as crianças e os
velhos, e que só retrocede ante o poder da sabedoria e da razão” (apud Lenk,
1974: 53).

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Contudo, com o objetivo de conhecê-los seguramente, os reduzem a um


único processo discursivo que busca a uniformidade, a causalidade, a
homogeneidade e o determinismo universal.

Nesse aspecto, Ortega y Gasset (1947) chama atenção que o


racionalismo, para salvar a “verdade objetiva”, renuncia à vida. Argumenta que,
sendo a verdade uma, absoluta e invariável, não pode ser atribuída a pessoas
individuais, mundanizadas e passíveis de corrupção. Assim, haveria de supor a
existência de um sujeito abstrato comum a todos os homens.

Para Ortega (1947: 159), “el racionalismo es antihistórico”. Ao cultivar a


ideia de uma regularidade constante e involuntária subjacente aos fenômenos,
que serve de base para a admissão de uma “racionalidade” interna à própria
realidade, a explicação do social pelos pressupostos iluministas tende a reduzir
a variedade observada no mundo empírico à uniformidade, a um esquema
regular e fixo, impondo no processo social um ideal de constância, de
generalidade e classificação produzidas pela razão.

Como diz Eduardo Nicol (1960: 76), “o ideal de história é deixar de ser
histórica. A regularidade do princípio causal suprime necessariamente toda
inovação”.

O Iluminismo, embora enuncie diferenças nas ontologias regionais,


termina por igualar, em relação ao ato e à estrutura gnoseológicos (o modo de
conhecer e a estrutura do conhecimento), o objeto cultural e o natural. A razão,
para os filósofos das luzes, não elimina a ideia da individualidade.

Pelo contrário. O século XVIII afirma a soberania do sujeito da razão. Essa


ideia de autossuficiência do homem, uma espécie de humanismo laico pregado
principalmente pelos ingleses e franceses, encontra em Robinson Crusoe
(1719), de Daniel Defoe, um excelente exemplo: um homem, perdido na solidão
selvagem de uma ilha desabitada, é forçado a recriar, como autodidata, sua vida.
Tomado por uma “resolução destemida”, consciente de suas possibilidades e de
seu destino, artífice exclusivo de seu mundo, metódico e trabalhador infatigável,
Crusoe transforma, pela experiência e pela razão, seus 28 anos de solidão em
triunfo.

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O herói de Defoe é, no fundo, uma imagem abstrata do homem, um ser


individualista em todos os seus sentidos, econômico, religioso, moral.

Os pressupostos iluministas fundamentam, em grande medida, as teorias


sociais que prevaleceram após a Segunda Guerra.

Em termos gerais, essas teorias partem de um princípio: para se adquirir


o status científico é necessário desenvolver um conhecimento capaz de
apreender uma realidade em si mesma.

O que se espera da “imaginação sociológica” é que ela possa apreender


estruturas, sistemas de relações. Em síntese, regularidades (independentes das
vontades ou consciências individuais).

A Abordagem Hermenêutica
Nos últimos anos, a abordagem "hermenêutica" foi introduzida nos
estudos das ciências sociais, especialmente naqueles relacionados às
disciplinas artísticas.

Este texto pretende, em primeiro lugar, analisar a relevância da aplicação


da teoria hermenêutica aos estudos da História da Arte especialmente àqueles
que enfatizam a análise de imagens - para, em segundo lugar, discutir alguns
conceitos sobre a arte extraídos a partir das teorias hermenêutico-
fenomenológicas de Heidegger e Gadamer, que podem servir como base para
uma nova compreensão da experiência artística e, consequentemente, para uma
redefinição do papel do historiador da arte como intérprete.

I. Sobre a interpretação
Um dos pressupostos que dizem respeito ao campo da História da Arte é
sua tarefa ética de explicar o significado das obras de arte. Para este fim, o
historiador aprendiz deve conhecer e manipular diversas metodologias que
permitam desenvolver e testar uma hipótese a partir de argumentos lógicos e
sustentáveis.

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O trabalho do historiador é concebido essencialmente como uma busca,


seleção e análise de dados e documentos que permitam fundamentar e ampliar
a informação da qual parte-se, com o objetivo final de elaborar uma "tese"
verificável sobre o fenômeno ou obra abordada.

O objetivo final seria a avaliação crítica da obra abordada.

Nesse contexto, é curioso que nos últimos anos a hermenêutica tenha


surgido como um apoio teórico para a História da Arte.

Aparece mencionada em trabalhos acadêmicos, como tema de cursos


universitários e até mesmo como uma "metodologia" de base para trabalhos de
tese.

O mais surpreendente é que a menção à hermenêutica aparece


descontextualizada de uma compreensão específica dela mesma, pelo que se
deduz que a maior parte das vezes, e em seu uso difundido, é utilizada como
simples sinônimo do termo "interpretação", e não como uma teoria filosófica
concreta.

A primeira questão surpreendente em relação a esse uso generalizado da


hermenêutica é que está sendo utilizada como uma teoria ou metodologia para
a interpretação de imagens, quando na realidade sua natureza é essencialmente
linguística.

Originalmente, a hermenêutica era "a arte de interpretar textos históricos".


Como pode, então, sua utilização ser extrapolada ao estudo do visual?

Em que se baseiam aqueles que argumentam que uma teoria da


interpretação que foi utilizada historicamente pela escolástica, a jurisprudência e
a filologia pode servir ao estudo de obras de arte?

As respostas estão relacionadas, provavelmente, à drástica mudança de


paradigma que a arte sofreu durante o século XX e a sua consequente falta de
referências interpretativas.

Dada a virada linguística da arte desse século, parece lógico supor que
os parâmetros de interpretação também tenham sofrido alterações.

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A segunda questão que pode ser advertida neste tipo de discurso no qual
surge a hermenêutica é que não se faz qualquer menção a uma tendência ou
autor específicos.

Colocada dessa maneira, pode-se entender que a hermenêutica


é uma única disciplina, de aplicação atemporal e universal, e
não muitas correntes que, ao longo do tempo, tiveram diferentes alcances,
interesses e espectros de aplicação.

A "hermenêutica" torna-se, assim, algo muito vago e abstrato.

Outra questão, ainda mais surpreendente, é a menção à hermenêutica


como uma metodologia.

Dado esse uso, pareceria que a história da arte já a houvesse integrado


como uma "técnica" para cumprir seus objetivos: basicamente, de analisar e
explicar a imagem artística.

Desanimados com o alcance limitado de outras metodologias, como a


iconologia, a iconografia e a semiótica, para explicar as obras e experiências
artísticas - sobretudo as do século XX -, os historiadores parecem buscar na
hermenêutica uma ferramenta para alcançar uma decodificação da obra "passo
a passo". Nesse sentido, ressaltamos aqui o enorme equívoco da classificação,
já que não há conceitos com sentidos mais antagônicos do que a hermenêutica
e a metodologia. Vamos à explicação.

Dissemos que a compreensão convencional da hermenêutica era a da


"arte de interpretar textos".

Nessa fase escolástica e romântica, na qual a disciplina era associada à


exegese teológica e jurídica, e, em seguida, à filológica, o sentido da
interpretação era muito diferente do nosso: "interpretar" significava ter acesso ao
sentido "verdadeiro" do texto.

O que distingue a hermenêutica de Heidegger, Gadamer, Vattimo, e


outros filósofos do século XX, das correntes anteriores é seu reconhecimento de
que o intérprete - o hermeneuta - encontra-se inevitavelmente dentro de um
processo histórico concreto e é, portanto, por ele influenciado ao fazer essa

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interpretação. Independentemente de quão "objetiva" ou "neutra" seja sua visão,


esta sempre será mediada por pressupostos e expectativas decorrentes de sua
condição histórica.

Devido a sua consideração da interpretação textual e histórica como


necessariamente ligada a uma perspectiva concreta, foi atribuído um caráter
fenomenológico às correntes hermenêuticas do século XX.

O objetivo destas correntes é uma "interpretação" entendida como a


revelação de um sentido a partir do encontro dialógico que ocorre, na experiência
artística, entre os fatores que a compõem.

A arte é algo que se estabelece como um lugar mediador que permite a


revelação do Ser (Heidegger) ou como um jogo sério, que estabelece suas
próprias regras e permite, no fluxo da imaginação, o reconhecimento do Ser
(Gadamer).

Em nenhuma das concepções acima encontramos outro "fim" a ser


realizado a não ser o da própria manifestação artística, razão pela qual não se
pode falar, nesses casos, de um objetivo instrumental. Influenciadas pela noção
kantiana do "desinteresse do juízo estético" (a "finalidade sem fim" da arte) - um
dos argumentos fundamentais da estética moderna e, no século XIX, da estética
da "arte pela arte", portanto, da arte moderna -, as noções de Heidegger e
Gadamer divergem, contudo, de nossa compreensão institucional da arte.
Portanto, não podem ser facilmente integradas a metodologias científicas de
caráter empiricista, que tentam "resolver" o problema do sentido da obra (a
"mensagem") de modo mais ou menos direto.

Assim sendo, devem ser consideradas à parte de outras metodologias


como a iconologia, a iconografia ou a semiótica, as quais derivam, indutiva,
dedutiva ou abdutivamente, o sentido da obra tanto do estudo de suas
características como imagem quanto da análise crítica da documentação relativa
a seu autor ou a sua época.

Por tudo isso, falar da hermenêutica como uma metodologia implica uma
contradição: toma-se a disciplina em seu sentido convencional, sua versão

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escolástica, jurídica e filológica, mais do que em suas manifestações filosóficas


no século XX.

É claro que o objetivo dessas manifestações mais recentes pouco ou nada


tem a ver com o trabalho investigativo, de pesquisa, seleção e análise empírica
de documentos para determinar o quê, o quem e o como das obras de arte.

Como Hans Georg Gadamer argumenta, "a experiência e a compreensão


de uma obra de arte significam algo diferente, por exemplo, da compreensão de
ferramentas ou de hábitos que herdamos do passado". 1

Também não tem a ver com concentrar-se no estudo de uma obra como
produto artístico ou focar em um sujeito criador, o artista, para tentar explicar o
que é comunicado.

O objetivo da obra, aos olhos da hermenêutica, não é o de comunicar.


Portanto, não tentará encontrar chaves de "decodificação", como ocorre na
iconografia ou na iconologia, nem derivará seu sentido comunicativo de uma
indução despojada dos parâmetros axiológicos sociais e históricos contextuais:

A obra de arte em si não é um documento histórico, nem por sua intenção


nem pelo significado que adquire na experiência da arte, [...] ela não fala
somente como falam com o investigador da história os resíduos do passado ou
os documentos históricos que determinam algo.

Sem deixar de reconhecer que estes elementos contribuem para o sentido


das obras, a hermenêutica conceitua a produção artística - e, portanto, também
as funções dela derivadas, como a do historiador - a partir de um pensamento
completamente diferente no qual o marco de referência não gira em torno da
relação clássica do sujeito-objeto, entendendo o primeiro como criador, artista
ou espectador e o segundo, o produto ou obra de arte.

Embora a arte tenha um papel importante na filosofia hermenêutica,


especialmente em Gadamer, os parâmetros que esta propõe para a análise são
muito diferentes daqueles apresentados pela História da Arte.

Portanto, sua pertinência de uso como ou dentro da metodologia utilizada


na análise de obras de arte deve ser cuidadosamente estudada e avaliada.

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Os seguintes itens desenvolverão fatores específicos da estética


hermenêutica a serem considerados para tal propósito.

II. Sobre a experiência da arte


Ainda que não seja possível falar da filosofia de Heidegger e Gadamer
como "estética" em sentido estrito, ambos fizeram contri-buições importantes
para a nossa forma de abordagem da arte a partir dos parâmetros convencionais
e institucionais.

Considerando que o pensamento de ambos se inscreve na crítica das


noções fundamentais da filosofia, como a metafísica e a ontologia, seu
pensamento também está associado à crítica da noção tradicional de "estética",
derivada do romantismo e do idealismo alemão.

Tal estética, que aborda basicamente o problema do gosto e da beleza, é


considerada, em sua visão tradicional, um campo dissociado do campo do
conhecimento (que busca a verdade) e da ética (que se refere à questão moral):
o mundo da arte, até Kant, está vinculado à esfera da sensibilidade pura e é
compreendido como contrário ao mundo do conhecimento empírico e racional
da realidade.

Segundo a perspectiva kantiana, a arte se expressa como uma


manifestação a-histórica e a-teleológica, como uma "finalidade sem fim". Trata-
se de uma expressão, portanto, de uma "beleza livre", associada à imaginação
extraordinária do gênio (o "sublime").

Embora a filosofia idealista posterior de Schiller e Hegel tente subsumir a


moral e o conhecimento à esfera superior da estética, sua idealização da arte
manterá a dissociação entre ela e o mundo da práxis.

Como pode a arte ser um parâmetro social superior ou de conhecimento


estando fora da realidade, na esfera do ideal?

Heidegger e Gadamer tentam resolver este paradoxo dissolvendo a


problemática em sua raiz, ou seja, a partir de sua aproximação a um pensamento

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metafísico e ontológico baseado em oposições clássicas: a primeira, a saber,


entre um pólo que conhece e sente (o sujeito) e outro que representa o que se
conhece e se sente (o objeto); a segunda, entre um conhecimento racional
(nous) e outro sensível (aisthesis); a terceira, entre produção e natureza, e assim
por diante.

A abordagem filosófica de ambos autores emerge a partir do colapso das


categorias sob a ideia fenomenológica de um ser que é, e se revela, em um
contexto do qual faz parte. Vejamos como cada um deles desenvolve a ideia da
arte.

As primeiras ideias de Heidegger sobre a arte foram expostas em uma


conferência pública em 1937, chamada A origem da obra de arte, e publicadas
apenas 1952, com o mesmo nome.

Ainda que as ideias sobre a arte expressas pelo autor nesse texto
possam, ser lidas como uma resposta às teorias de Hegel sobre a "morte da
arte", suas ideias a respeito da arte como lugar mediador onde o Ser se "revela"
através do jogo poiético merecem ser consideradas aqui.

Para Heidegger, a arte participa da verdade porque permite a "'des-


ocultação' do ente", a "aletheia": "um dos modos pelos quais a verdade acontece
é o ser-obra da obra.

Ao estabelecer um mundo e fazer a terra, a obra é o prosseguimento da


luta na qual se conquista o 'des-ocultação' do ente em sua totalidade, a verdade".

E a obra se diferencia das coisas, que também são produzidas, por sua
natureza poiética, ou seja, por sua capacidade criativa-imaginativa.

No texto, o filósofo apresenta sua definição de arte como tekné, uma


capacidade produtiva que vai além do "fazer", incluindo tanto o sentido do
criativo, poiesis, quanto um sentido de conhecimento.

Em um texto posterior, A questão da técnica, de 1954, Heidegger faz uma


sugestão breve mas poderosa sobre o importante papel da arte na cultura
industrial moderna.

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Baseando seu argumento em sua noção de tekné, propõe a arte como


uma alternativa à perversão instrumental da vida moderna produzida pelo
pensamento tecnológico dominante.

Salienta a relevância do caráter não-instrumental da arte,


compreendendo-a como um modelo alternativo para nosso pensamento sobre a
existência social em uma cultura tecnológica.

Com seu caráter poiético, a tekné implica a capacidade de "antecipar" a


essência das coisas, e não, como está implícito no entendimento comum da
técnica, um meio para algum fim ou para a produção de objetos.

Em tal compreensão, que se associa a uma qualidade de "localização", a


essência dos objetos permanece oculta.

Assim, segundo Heidegger, é necessário voltar a conceber a técnica


como uma capacidade criativa, e não como um fim prático e instrumental que
mascara a essência das coisas. É preciso voltar-se para observar a arte, uma
experiência complexa que é capaz de "abrir mundos".

Embora Heidegger não estivesse interessado em uma validação do


conceito de arte, é relevante salientar a importância desse conceito como um
modelo ético e ontológico alternativo ao pensamento convencional do mundo
industrial moderno.

A falta de propósitos práticos da arte também está presente na filosofia de


Gadamer, que fundamenta sua proposta hermenêutica na estética, colapsando
o monopólio que as ciências naturais tinham sobre a verdade.

Reconectando as esferas do prático, moral e estético, que Kant havia


separado em suas Críticas, e, em certo sentido, seguindo os passos de
Heidegger, Gadamer propõe um conceito de arte ligado à verdade.

A arte, dizia Gadamer, não possui propósito, e, sim, sentido. Com base
no "livre jogo da imaginação", de Kant, e no conceito de jogo, de Huizinga,
Gadamer descreve a arte como um jogo: um horizonte de autorrepresentação
que surge da relação entre autor, intérprete e público.

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1
9

O espaço da arte, como o do jogo, reside em uma esfera autônoma


abstraída da realidade.

No entanto, a arte não é ficção, pois demanda a seriedade, os limites e o


compromisso próprios do jogo: é uma espécie de movimento virtual que funciona
como o espaço real.

Não há outro propósito na arte além do jogo da arte em si: à medida que
o jogo absorve os jogadores - o autor, o intérprete e o espectador -, a verdade
emerge.

O sujeito e o objeto do jogo da arte confundem-se por estarem presos na


própria experiência da arte. Assim, a estética de Gadamer supera o foco
exclusivo sobre a obra única ou sobre o criador como valores sublimados da
subjetividade próprios da crítica moderna da arte.

O importante é a experiência interpretativa que surge a partir do jogo da


arte. Na hermenêutica gadameriana, a produção artística e o juízo estético são
pensados como uma unidade.

Se a abordagem de Heidegger pode ser considerada mais


fenomenológica, o conceito de verdade em Gadamer é especificamente
hermenêutico: a arte não contém verdade, mas, enquanto
experiência, é verdade.

Não a verdade das ciências naturais, comprovável através da verificação


e da adaptação a determinados parâmetros e acessível pela concepção
intelectual, mas, sim, a verdade do ser que se manifesta na obra e que pode ser
alcançada por meio de uma compressão que une conceito e preceito, inteligência
e sensibilidade.

Um segundo elemento proposto por Gadamer para caracterizar a arte é


seu caráter simbólico. "Símbolo", em seu sentido original, de "tessera hospitalis",
é a tábua de lembrança que era partida pelo anfitrião, diante do hóspede, para
que, muitos anos depois, lhe fosse possível reconhecê-lo, ou a seus herdeiros,
juntando as duas partes.

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0

O símbolo também tem relação com a história contada por Aristófanes


no Banquete de Platão, que conta como os deuses cortaram em duas partes os
homens - que originalmente eram esféricos -, como castigo por seu mau
comportamento, e, consequentemente, os homens, que haviam antes conhecido
a unidade, passariam a vida buscando seu complemento.

Como o símbolo, a arte se refere a algo que não está imediatamente na


obra. A obra é um fragmento de algo que só se completa com a busca e o
encontro, e através da exibição e ocultação (conceitos que Gadamer deriva
da aletheia de Heidegger).

Ao contrário do signo ou da alegoria, a referência simbólica não remete a


algo conhecido ou previamente determinado:

Na impossibilidade de sua substituição, a obra de arte não é meramente


um portador de sentido, como se esse sentido também pudesse ser carregado
por outros portadores.

Ao contrário, o sentido da obra está no fato dele aí residir. Deveríamos, a


fim de evitar falsas conotações, substituir a palavra "obra" por outra, a saber, a
palavra "conformação" (Gebilde).

O simbólico não tem qualidade sígnica, pois sua função não é só a de se


referir ao significado, mas, também, a de fazê-lo presente, representá-lo.

Um retrato, segundo Gadamer, representa alguém ao convocar sua


existência, e não ao marcar sua ausência (isto é especialmente pertinente no
caso das imagens fotográficas, como explica Barthes em A câmara clara, em
termos semelhantes). Gadamer enfatiza que tal representação não implica em
idolatria, visto que não funciona mimeticamente como aparência ou como um
substituto para algo: "na obra de arte não apenas refere-se a algo, mas é
propriamente nela que reside aquilo a que se refere.

Em outras palavras: a obra de arte significa uma expansão do ser". A


mimese da obra de arte não opera como imitação de algo já conhecido, mas
como a convocação de algo a sua representação e presença sensível na obra.

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A menção ao componente sensível ou estético do simbólico é importante


porque estabelece a natureza inabordável do símbolo por meios intelectuais.

O símbolo não é um conceito, mas, sim, uma referência de natureza


essencialmente sensível.

Não se pode falar de uma obra em sentido estrito, diz Gadamer, pois ela
não carrega a conotação de produto acabado.

Como a arte é um processo, a obra está no constante movimento e


transformação de encontro e diálogo com o espectador, que a reconhece por
sua condição de ser si mesma, por sua qualidade única e insubstituível e por sua
suficiência estética (o que Benjamin chamaria de "aura" da obra de arte).

Ainda que a obra possa se referir a um contexto histórico específico, pode


continuar operando em outro contexto espacial ou temporal. E é em relação ao
contexto temporal que Gadamer introduz uma terceira noção característica da
obra de arte: a festa.

A natureza da arte está associada à festa, pois é comemorativa e possui


um tempo próprio. E também comunica nela; não comunica alguma coisa - uma
mensagem -, mas, sim, uma experiência contingente derivada da experiência do
jogo.

Toda obra de arte possui um tempo próprio, que se impõe como uma
"demora" da obra mesma, no tempo presente (dessa forma, diz Gadamer, as
reproduções musicais em disco são reproduções, mas não representações:
constituem meramente uma cópia, mas não têm presente). Nesse sentido, a obra
de arte pode ser vista como uma superação do tempo: em seu presente
contínuo, conjuga-se também o passado.

Por este motivo, diz Gadamer, refutando a noção da "morte da arte" de


Hegel, a arte do passado pode adquirir um novo presente ao reconhecer-nos
nela. Precisamente nisso reside a "atemporalidade" da obra de arte: em sua
capacidade de tornar-se, independentemente do tempo, uma experiência na
qual nos encontramos com nós mesmos.

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2

III. O encontro com a imagem


Uma vez expostas as razões acima, é possível entender por que a
natureza das concepções hermenêuticas da arte dificulta sua aplicação
metodológica: elas propõem uma enorme mudança conceitual na noção de arte
e nos objetivos da apreciação artística.

Não focam, como as estéticas tradicionais, no estudo analítico da obra ou


do autor, nem se concentram, como no pós-estruturalismo, no funcionamento
linguístico e social da obra como um signo.

Mesmo defendendo um caráter simbólico para a obra de arte, também a


expõem a certa incompreensão ou intraduzibilidade que podem ser atribuídas a
sua autossuficiência estética.

Em relação à proposta hermenêutica, a pura compreensão intelectual ou


noética ficaria sempre limitada em seu alcance de interpretação. Poderia
estabelecer-se que a hermenêutica funcionaria em sua abordagem da obra de
arte contrária a metodologias como a iconografia, a iconologia e a semiótica.
Como, então, poderia ser proposta uma possível colaboração entre disciplinas
que parecem ser antagônicas?

O próprio problema sugere que a resposta teria a ver com a possibilidade


de se propor um marco de referência para a operação conjunta das disciplinas,
muito mais do que com a tentativa de delinear um papel estrito para cada delas.

Os parâmetros de funcionamento poderiam ser estabelecidos a partir das


limitações que as disciplinas têm mostrado em sua aplicação ao trabalho da
História da Arte.

A iconografia e a iconologia, por exemplo, dificilmente podem ser


aplicadas a uma grande parte da arte do século XX, aquela que é não-
representativa; a análise formal e estilística ao modo de Wölfflin e Riegl resulta
inadequada para as artes de tempo e de ação; a semiologia não leva em conta
o componente estético da obra de arte, e assim por diante. E a hermenêutica,
que limitações teria?

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3

Conforme argumenta Peter Krieger, citando Richard Rorty, as disciplinas


filosóficas serviriam como fonte de inspiração para a análise da obra, mas não
como um sistema de ensino.

No caso da hermenêutica, as limitações para o trabalho metodológico


derivam dos mesmos propósitos da disciplina, explicados anteriormente. Embora
a hermenêutica esteja interessada em uma compreensão da arte, ela o faz de
um ponto de vista geral, e não particular. Não é, estritamente, uma metodologia.

Como sua forma de proceder não é indutiva nem dedutiva, não considera
sequer o tipo de análise que pode ser realizada por meio da iconografia, a
iconologia ou a semiótica, ainda que compartilhe com todas essas disciplinas -
sobretudo com a iconologia - a vontade de elucidar fenômenos axiológicos gerais
nos quais se inscreve determinada obra.

Nesse sentido, seria possível traçar certo paralelismo entre a iconografia


e a hermenêutica histórica.

No entanto, ao propor esta analogia, é preciso ressaltar que o proceder


de ambas difere radicalmente, visto que a primeira segue uma metodologia
historicista, e a segunda, uma dialógica e filosófica. Em relação ao vínculo entre
a história e a hermenêutica, Gadamer afirma:

(...) a obra de arte é um presente atemporal. Mas isso não significa que
ela não proponha uma tarefa de compreensão e que não seja necessário
encontrar também sua origem histórica.

É precisamente isso o que legitima as pretensões de uma hermenêutica


histórica: que a obra de arte, por menos que deseje ser compreendida em uma
perspectiva histórica e por mais que se pretenda oferecer em sua pura presença,
não autoriza que a interpretem de qualquer maneira sem permitir, com toda sua
abertura e a amplitude de jogo das possibilidades de interpretá-la, que se
estabeleça uma pauta do que é adequado; mais do que isso, assim o exige.

Entanto, pode não ser determinado se é justa ou não a respectiva


pretensão de que a interpretação proposta é adequada.

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A solução para o problema parte, portanto, da possibilidade de construção


de uma "hermenêutica histórica", com base nos fundamentos gerais já expostos
pela hermenêutica filosófica, e, no caso da história da arte, também pela estética.

Embora esta visão hermenêutica apresente um quadro axiológico para a


arte, pode ser considerada como uma base teórica à qual se integram outras
abordagens metodológicas.

É nesse sentido, de sustentação "básica" e "fundamental", que é possível


atrever-se a falar da hermenêutica como proposta "holística": como plataforma
primária ou ponto de partida para a participação de outras disciplinas.

Uma vez que estas procedem metodologicamente, realizando uma


análise da obra a partir de operações concretas, a abordagem hermenêutica da
obra deve ser feita antes destas.

Se se pretende seguir uma abordagem hermenêutica, essas


metodologias devem ser consideradas parte do conhecimento que o espectador
- neste caso, o historiador - inevitavelmente possui ao se aproximar da obra.
Essas metodologias serão articuladas respondendo à pergunta hermenêutica, e
não como uma via de aproximação necessária à obra.

Caso contrário, estaria aí implicado o vínculo entre interpretação e


gerenciamento de dados contextuais da obra e/ou das metodologias de análise
artística.

Para abordar qualquer texto (e, de certa forma, a obra de arte é também
um texto, segundo Gadamer), basta possuir senso comum, essa phronesis ou
prudência descrita por Aristóteles, que é um "sexto sentido" que nos permite
equilibrar a informação intelectual e a sensitiva.

E que, como sugere Gadamer com sua associação entre arte e festa, é
um princípio social, de bem comum. Embora este não seja o lugar para discutir
a falta de "senso comum" de grande parte da arte contemporânea, é necessário
ressaltar, entretanto, que tal situação é bastante frequente e difundida no
universo dos museus: o público se descobre perplexo diante do que é mostrado

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5

na maioria das exposições e, assim, pouco a pouco, a arte se distancia cada vez
mais de uma compreensão e de uma gozo social.

Daí a necessidade premente do trabalho do historiador de arte e de sua


possível proposta de parâmetros de interpretação que permitam a aproximação
do público à obra.

Minha intuição sobre as razões pelas quais se faz necessária uma


integração da hermenêutica à História da Arte gira em torno deste ponto: como
propósito principal, a hermenêutica busca uma experiência repleta de
compreensão e sentido, e não, como outras disciplinas, uma "solução" para o
sentido da obra, construída por meio da aplicação de esquemas e pressupostos:

A representação simbólica que a arte realiza não precisa de qualquer


dependência determinada de coisas previamente dadas.

Justamente nisso reside o caráter especial de arte pelo qual o que acede
a sua representação, seja pobre ou rico em conotações - ou mesmo sem ter
nenhuma -, move-nos a permanecer nela e concordar com ela como em
reconhecimento.

Seja qual for a arte diante da qual nos encontremos, a hermenêutica


propõe a mesma disposição, "ouvir" o texto:

(...) [o reconhecimento] é a tarefa que consiste em aprender a ouvir aquilo


que lá quer falar, e temos que admitir que aprender a ouvir significa, acima de
tudo, elevar-se desse processo que tudo nivela e pelo qual não se ouve mais e
tudo é ignorado, e que uma civilização está se encarregando de expandir.

"Ouvir" a obra, no caso das artes visuais, é "vê-la". Percorrer a obra com
a visão, demorar-se sobre ela com o tempo implícito na autorrepresentação da
obra, que nos propõe "brincar" com ela:

Também se aplica à obra das artes plásticas, é verdade que temos de


aprender a vê-la, e não tomá-la como já compreendida - ou seja, experimentada
como resposta a uma pergunta - pelo olhar ingênuo à totalidade intuitiva que
temos diante. Devemos "lê-la", devemos inclusive soletrá-la até que possa ser
lida.

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Cada obra tem um tempo, um espaço e diferentes "regras do jogo", de


modo que não podemos assumir quais serão os parâmetros de cada uma, nem
como funcionarão. Apenas na verdadeira "demora" sobre a obra é possível
começar a se perguntar e derivar, também, a metodologia mais indicada para
averiguá-los:

[a interpretação (Auslegen)] supõe todo um processo de formação interior


até começar a encontrar, para as observações sobre um quadro ou um texto, os
pontos de vista "corretos" que chegam a ser realmente fecundos no contexto de
compreensão daquilo que é dado.

Mesmo onde, exercendo nosso ofício de historiadores ou críticos de arte,


procedemos metodologicamente, a aplicação sensata do método representa a
tarefa mais apropriada e verdadeira, que ela mesma volta a nos transmitir
novamente por meio do método.

Desse "ver", que é o encontro com a obra, surgirão as perguntas que a


obra nos faz. Perguntar diretamente sobre o significado da obra, diz Gadamer, é
absurdo.

A obra não é um signo que "aponta" para uma mensagem. Perguntar após
ver, entretanto, permite esclarecer para nós mesmos e iluminar a obra
justamente por distinguir-se da própria forma de perguntar. De perguntas básicas
como "a que se refere a palavra 'arte'?" ou "o que significa 'belo'?", Gadamer
deriva outras, mais complexas, que "orientam" suas interpretações:

O que acontece em nossa época ameaça o conceito de "arte" e de obra


de arte?

Terá a ideia de oeuvre perdido seu sentido a partir do momento em que,


com a atual tendência "anti-museu", nossa experiência histórica da arte exige
que a criação artística se funda ao mundo da ação?

Ainda faz sentido partir do caráter singular e único da obra de arte, e da


aura que a envolve?

O conteúdo iconográfico do quadro pertence ao mesmo nível que o das


letras apenas?

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E, dessas perguntas, deriva todo um discurso narrativo que constitui uma


"interpretação".

Não há critério de assertividade, mas um tom interpretativo, que busca a


compreensão total da obra, o que, a nosso ver, não exclui a utilização de
ferramentas que possam advir de outras disciplinas.

Aqui, o historiador certamente hesitará em seu procedimento, pois não há


caminho certo. Construir a interpretação, alcançar o conhecimento, é uma tarefa
que envolve o risco. As palavras de Gadamer a esse respeito ajudarão o
historiador em sua dúvida:

Cada vez que se trata da hermenêutica, que é a arte de entender, posso


ter a certeza total de que alguém perguntará qual é, a meu ver, o verdadeiro
critério. Dirá que tem que haver um critério que autorize avaliar se uma
interpretação está correta ou errada. O que as pessoas imaginam é uma espécie
de instância de controle capaz de ordenar as coisas por meio de algum tipo de
medição, ponderação ou cálculo, e capaz de garantir que as coisas estão em
ordem.

Não há, portanto, um caminho certo a ser percorrido. Apenas a aventura


de criar o caminho ao percorrê-lo. Heidegger e Gadamer nos deixaram algumas
pistas. Cabe a nós continuar seu trabalho.

Podemos dizer que as pesquisas sobre hermenêutica são ainda


relativamente incipientes se comparadas com o andamento de outras
abordagens filosóficas. Sintoma dessa incipiência é a vigência de imprecisões
relativas às distinções entre a hermenêutica cunhada por Heidegger e a
desenvolvida por Gadamer.

É verdade, sim, que ambas comungam de muitos conceitos, mas é


verdade também que são propostas filosóficas distintas. Com relação ao método
filosófico parece que Heidegger é, por assim dizer, mais 'analítico', aristotélico,
ao passo que Gadamer pauta-se pelo dialógico, dialético, socrático-platônico.

Embora o projeto filosófico gadameriano não seja compreensível nem


factível sem a contribuição de Heidegger, ele possui especificidades e uma

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originalidade que precisa ser levada em conta quando nos adentramos no


terreno da hermenêutica.

Daí que, sem a pretensão de esgotar a questão, fazendo um recorte na


história da filosofia, propusemo-nos explicitar algumas aproximações e
distanciamentos entre a proposta hermenêutica de ambos.

Assim, ao explicitarmos e aprofundarmos algumas idiossincrasias


relativas à identidade e às diferenças entre ambos, projetamos justificar nossa
hipótese de que é da tensão dialética de fundo entre essas duas perspectivas
que se nutre a hermenêutica filosófica.

Pressuposto e corolário disso é nossa tese de que a hermenêutica


filosófica de Gadamer extrapola as limitadas interpretações que pretendem
alocá-lo na obra de Heidegger ou tomam-na como simples repetição do mestre.

Na verdade, Gadamer foi um discípulo de Heidegger no sentido autêntico


do termo na medida em que o superou e conferiu uma identidade própria à
hermenêutica.

E, finalmente, projetamos justificar, inclusive, a necessidade de ler-se esta


última à luz da proposta heideggeriana a fim de recuperar, reconstruir e
reelaborar um projeto mais amplo de hermenêutica, ou seja, de metafísica
marcada pela facticidade, de modo que ela [hermenêutica gadameriana] não
seja reduzida nem sucumba a uma filosofia prática.

Para alcançar esse escopo, articularemos nossa reflexão em torno de três


abordagens:

Inicialmente desvendaremos aspectos marcantes dos primeiros


encontros de Gadamer com Heidegger

(1); a seguir explicitaremos aspectos comuns entre a hermenêutica de


ambos e apresentaremos a apropriação crítica de questões heideggerianas por
parte do discípulo

(2); e, ao final, aprofundaremos diferenças [distinções e rupturas] da


proposta gadameriana em relação à heideggeriana

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(3). Nosso objetivo precípuo é de cunho especulativo de modo que os


dados e os conceitos serão apresentados em função das hipóteses de
investigação apontadas no parágrafo precedente.

1. Encontros marcantes com Heidegger


"[...] tinha o temor de que não fosse suficiente o que estava fazendo, de
que a seus olhos fosse trivial ou de que ele o houvesse dito bem melhor ainda,
ou de algo semelhante". (Gadamer apud Grondin, 2001, p. 356)

Em 1992, Paul Natorp apresentou a Gadamer o manuscrito de


Heidegger Interpretações de Aristóteles, assinalando com isso o início da
presença marcante em sua vida (Gadamer, 1996, pp. 248-249). Em 1923,
Gadamer "assistiu todos os cursos de Heidegger", totalizando cinco (Grondin,
2001, p. 141).

Após haver prestado exame de doutorado, em 1922, com a tese Das


Wesen der Lust nach den platonischen Dialogen, no ano de 1925 iniciou seus
estudos sobre filologia clássica prestando exame em 1927, com um trabalho
sobre a poesia de Píndaro, tendo P. Friedländer, E. Lommatzch e Heidegger
como examinadores.

Apenas então Heidegger se mostrou satisfeito com os êxitos e a


capacidade filosófica de Gadamer, oferecendo-se então para orientá-lo na
habilitação acadêmica em filosofia.

Surpreso, Gadamer aceitou seu convite e sob sua orientação escreveu o


trabalho Interpretação do Philebo de Platão, publicado em 1931 em versão
revisada com o título A ética dialética de Platão. Heidegger apreciou e elogiou a
interpretação que seu discípulo fez da proposta de ética de Platão (Grondin,
2001, pp. 187-188).

Passados alguns anos, o próprio Heidegger lamentou e se assombrou


com a demora de Gadamer em escrever um livro passando a cobrar isso dele.

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0

Sobre a tardia aparição de Verdade e método [1960], afirmou: "'sempre


tinha a desgraçada sensação de que Heidegger me espiava por cima dos
ombros'" (Gadamer apud Grondin, 2001, p. 491).

Além desse fator, por assim dizer psicológico, ele confessou que "'durante
muito tempo o escrever constituía um verdadeiro tormento'" (Gadamer apud
Grondin, 2001, p. 491). Por isso, por muitos anos, dedicou-se à interpretação de
obras poéticas e publicações 'pedagógicas' e, por mais "meritórias e necessárias
que fossem na situação de então", o fato é que Gadamer se evadiu, com elas,

Da crescente pressão de oferecer uma obra própria. Ademais, durante


muito tempo não se considerou à altura de semelhante tarefa. Seu lado forte
nunca havia sido a construção conceitual, senão a concretização
fenomenológica, na conversação e na dedicação à história. Foi justamente este
dom da conversação hermenêutica o que desenvolveu em sua obra principal em
forma de uma "hermenêutica" geral. (Grondin, 2001, p. 355, os itálicos são meus)

Enfim, a propósito da nossa reflexão, retomemos aqui a pergunta que


Grondin fez a Gadamer: "sua relação com Heidegger é, naturalmente, uma
relação muito complexa [...] dependendo da perspectiva, pode-se considerá-lo
como um seu aperfeiçoador, ou sua hermenêutica como uma alternativa a
Heidegger.

Em que consiste a sucessão e em que consiste a concepção antagônica?


Como o senhor vê, em geral, a sua relação com Heidegger?"
(Grondin apud Almeida, Flickinger, & Rohden, 2000, p. 219).

Embora Gadamer tenha respondido, rapidamente, a essa questão,


assumimos aqui como tarefa filosófica elaborar nossa resposta à pergunta em
questão, a partir do nosso horizonte, explorando duas linhas de investigação: por
um lado explicitaremos fios comuns que entrelaçam os projetos de ambos e, por
outro, aprofundaremos dimensões distintas e rupturas do discípulo para com seu
mestre.

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2. Identidade: apropriação de temas e questões


heideggerianas
Entre Husserl e Heidegger – e Hegel… (Gadamer apud Kusch, 2001, p.
251)

É inquestionável a vigência de muitos temas e proposições filosóficas


desenvolvidas por Heidegger na hermenêutica desenvolvida por Gadamer. É
patente também a admiração desse para com aquele como nos revelou em
entrevista a Grondin:

Heidegger não pode ser deixado de lado em minha trajetória [...] Fui
admirador de Heidegger [...] O que eu mais agradeço a Heidegger, foi ele me ter
forçado a estudar filologia clássica; pois, através disso, aprendi a acompanhar
mais disciplinadamente a tendência a ele peculiar, a saber, aquela de mostrar, a
partir da língua, o que é propriamente a gênese de conceitos [...] eu admirava a
imaginação e a força do seu pensar. (Gadamer apud Almeida, Flickinger, &
Rohden, 2000, p. 220)

Isso é corroborado pela afirmação de M. Kusch (2001, p. 254): "é


indubitavelmente o mais eminente dos filósofos alemães que se basearam em
Husserl e Heidegger".

Sobre a hermenêutica da facticidade. Ao explorarmos a presença da


filosofia de Heidegger em Gadamer vem-nos, primeiramente, à mente as
reflexões que o primeiro elaborou em torno do que ele designou de hermenêutica
da facticidade.

Resumidamente, ela trata de uma espécie de "luta contra a autoalienação


em nome de um estar desperto humano" e que deveria caracterizar todo labor
filosófico de modo que a tarefa da hermenêutica é fazer acessível, em seu
caráter ôntico, a existência própria em cada caso à existência em questão, fazê-
la partícipe dela mesma, investigar a autoalienação om a qual a existência está
castigada.

Na hermenêutica se esboça para a existência a possibilidade de voltar-se


sobre si mesma e de compreender-se a si mesma. (Grondin, 2001, pp. 147-148)

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Em Ser e Tempo, Heidegger aprofundou a noção de hermenêutica da


facticidade, isto é, "da existência humana fáctica, constatável", o que contribuiu
enormemente para que a hermenêutica se tornasse, aos poucos, em uma
"verdadeira koiné da filosofia" (Gadamer apud Grondin, 2001, p. 26).

Essa apropriação da noção de facticidade marcou decisivamente a


hermenêutica de Gadamer que, por sua vez, conferiu-lhe "uma concepção
dialógica e ética que pode considerar-se já com uma correção hermenêutica a
Heidegger" (Grondin, 2001, pp. 184-185).

Diante do fato de que o próprio Heidegger acabou por abandonar e,


inclusive, rechaçar essa terminologia, seu discípulo teceu o seguinte comentário:

Heidegger foi o primeiro a abrir-nos os olhos para o fato de que neste


assunto nós temos que o abordar relativamente ao conceito de Ser.

Sem dúvida Dilthey, Bergson e Aristóteles contribuíram para que


Heidegger pudesse pensar o ser no horizonte do tempo e a partir da mobilidade
da existência humana, que se desenvolve em direção ao seu futuro e provém de
sua origem.

Desse modo fez do compreender um existencial, isto é, uma


determinação categorial básica de nosso ser-no-mundo. (Gadamer apud Dutt,
1998, pp. 26-27)

No bojo, pois, da noção de facticidade encontra-se explicitado e justificado


o tema do tempo, isto é, da historicidade.

Segundo M. Kusch, em certo sentido, "a historicidade dos seres humanos


consiste em que eles não são nada mais do que um elemento sem poder no
curso da história" de modo que, assim, "analogamente à noção heideggeriana
do Ser como determinante da condição humana, os seres humanos são
ocasionalmente caracterizados por Gadamer como estando sob a tutela da
história" (Kusch, 2001, p. 256).

Constata-se, sim, uma espécie de tutela, pois não temos controle total
sobre a tradição, de maneira que somos determinados, em grande parte, por ela.

32
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3

Vinculado ao tema da facticidade, Gadamer desenvolveu a noção


de fusão de horizontes [Horizontverschmelzung] segundo a qual o intérprete, em
seu encontro com a tradição, é marcado pela temporalidade ao mesmo tempo
em que instaura um horizonte mais amplo.

Ora, ao falar mais precisamente da fusão de horizonte do intérprete com


o horizonte do texto, levanta-se a questão sobre quem é o agente ou o sujeito
autor da ação de fundir.

Em alguns contextos, a resposta de Gadamer [...] parece ser que a fusão


de horizontes, longe de ser de autoria do intérprete, é obra da tradição ou, mais
especificamente, da linguagem [...] aqui, naturalmente, somos lembrados das
afirmações de Heidegger de que a linguagem fala por nós e que nós deveríamos
aceitá-la como nossa mestra. (Kusch, 2001, pp. 256-257)

Dito de outro modo, Gadamer "parece estar dizendo que o horizonte dos
intérpretes nunca é estabelecido por eles.

Os intérpretes dependem da tradição, porque todos os seus interesses


com relação a certas questões e repostas a determinado texto são pré-
delineadas pela história efeitual [Wirkungsgeschichte]" (Kusch, 2001, p. 257) no
que, em parte, tem razão.

Contudo, ao aplicarmos as noções de fusão de horizonte e de história


efeitual ao modelo estrutural do jogo filosófico, percebemos que a determinação
é sempre relativa visto que, para jogar, o sujeito precisa se submeter às suas
regras mas necessita também agir, criar jogadas instaurando algo novo que não
existia nem poderia ser previsto a priori.

Sobre a crítica ao iluminismo. Podemos dizer que ambos se encontram


na esteira dos filósofos críticos do iluminismo, ou seja, da absolutização do poder
da razão clara e objetiva, embora a crítica de Heidegger à ciência moderna, à
técnica, pareça ser mais contundente e incisiva que a de seu discípulo, para
quem

o iluminismo não pode ser considerado uma concepção errada do lugar


dos seres humanos na história.

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4

Afinal, o iluminismo destacou o papel do sujeito-agente e sua tarefa de


libertar-se da tradição e do preconceito, isto é, sua tarefa de determinar sua
própria história.

Em plena concordância com a visão heideggeriana do iluminismo,


Gadamer sugere em alguns lugares que a meta de sua hermenêutica filosófica
é uma "reabilitação" do preconceito e da autoridade e acusa o iluminismo de ter
"um preconceito contra o próprio preconceito". (Kusch, 2001, p. 257)

Importa aqui deixar claro que a crítica e a desconfiança de Gadamer "não


se dirige nunca contra a ciência mesma, porque ela é uma necessidade, mas
contra a fascinação, o deslumbramento e o aturdimento que provoca sua
divinização.

O metodicamente controlável só abarca uma ínfima parte de nossa


experiência de vida" (Grondin, 2001, p. 376). A crítica de Heidegger em relação
à técnica, aos olhos, de Gadamer, foi formulada corretamente: "ele tem razão
quando diz que não é a técnica o perigo, mas a fascinação que advém dela. É a
essa que se precisa ultrapassar" (Gadamer apud Almeida, Flickinger, & Rohden,
2000, p. 221).

Sobre o conceito de verdade. Ambos estiveram às voltas com o conceito


de verdade procurando desvencilhá-lo de uma visão e entendimento científicos.
Em entrevista a C. Dutt, Gadamer reiterou seu propósito filosófico assim: "o
essencial sempre é isto: o método não define a verdade.

Não a esgota" (Gadamer apud Dutt, 1998, p. 54). Essa é uma das pistas
para lermos sua obra e percebermos sua relação com a proposta filosófica de
Heidegger.

É elucidativa, para esse propósito, a afirmação de Hintikka: "qual é a


relação entre verdade e método?

Para Heidegger, não existia nenhum método por meio do qual se pudesse
alcançar a verdade [...]Pode-se somente estar aberto à verdade" (Hintikka, 2000,
p. 492) ao passo que, para Gadamer, a relação entre verdade e método não é
de exclusão mas de tensão complementar.

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É nesse sentido, também, que, para Apel e Habermas, Gadamer é


considerado um continuador direto do pensamento heideggeriano e, "na melhor
das hipóteses, caracterizam a hermenêutica de Gadamer como
uma urbanização da província heideggeriana" visto que ele, num certo sentido,
"reformula a desajeitada metafísica postal de Heidegger em termos mais
familiares" (Kusch, 2001, p. 259).

Em parte, sim, mas não é assim que a hermenêutica filosófica de


Gadamer deve ser compreendida pois, ao mesmo tempo que urbanizou a
província heideggeriana, ele instituiu, gradualmente, sua própria concepção de
hermenêutica filosófica.

Sobre o conceito de phrônesis. Outro conceito vital da filosofia de


Heidegger é o da phrônesis de Aristóteles e que foi tema de um seminário
ministrado por ele em 1923, o qual, por sua vez, causou impacto determinante
em Gadamer e passou a tecer seu projeto hermenêutico (Grondin, 2001, p. 148),
de modo que não foi por acaso que escreveu um texto intitulado "Hermenêutica
como tarefa teórica e prática" (Gadamer, 2002, p. 349).

Basta um rápido contato com seu projeto filosófico para perceber que
conceito de phrônesis constitui a espinha dorsal do procedimento e da estrutura
da hermenêutica filosófica a qual, pensamos, pode ser designada como
uma filosofia prática, segundo a perspectiva do estagirita.

Enfim, há muitos outros traços próprios da hermenêutica filosófica de


Gadamer que constituem uma apropriação da filosofia de Heidegger. Nosso
escopo aqui não é de esgotar a releitura que o discípulo fez do mestre, mas
mostrar algumas verdades hereditárias que revelam a intimidade entre ambos.
Debrucemo-nos agora sobre as distinções e rupturas do primeiro em relação ao
segundo.

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3. Diferenças: distinções e rupturas


"Isto não é mais Heidegger".

O próprio Heidegger, em uma carta a O. Pöggeler de 5/1/1973, assinalou


uma diferença básica entre ele e seu discípulo: "a 'filosofia hermenêutica' é coisa
de Gadamer'" (Heidegger apud Grondin, 2001, p. 21).

Com certa ironia e ceticismo ele pôs um sinal de interrogação à pretensão


universalizante da hermenêutica gadameriana em relação à 'filosofia do ser':
"'em Heidelberg está Gadamer que crê poder solucionar tudo com a
hermenêutica'" (Heidegger apud Gadamer, 2004, p. 56).

Em uma das últimas entrevistas de Gadamer, Vietta nos apresenta uma


breve caracterização psicológica de ambos que vem a calhar bem com o
propósito desse momento da nossa reflexão relativa às distinções entre ambos:

[...] quando Heidegger falava, seu olhar frequentemente não se dirigia ao


interlocutor. Seu olhar, antes, se abria a essa amplitude de um espaço espiritual
sobre o qual pensava e desde cuja intuição falava. Inclusive quando aclarava um
assunto filosófico, como o da fenomenologia, seu olhar não se dirigia tanto ao
interlocutor quanto a aquela forma espiritual sobre a qual havia posto os olhos e
que pretendia explicar.

Com frequência o olhar de Heidegger abandonava o espaço do diálogo e


oscilava em uma dimensão espiritual em relação ao qual abria o diálogo. O olhar
de Gadamer, no diálogo, sempre se dirigia ao interlocutor. (Vietta apud Gadamer,
2004, p. 29)

3.1. Com relação ao tema da tradição


Com relação à noção de consciência histórico-efeitual proposta e
desenvolvida por Gadamer, Heidegger mesmo considerou-a "como não sendo
mais heideggeriana" (Kusch, 2001, pp. 255-256).

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Sabemos também que ela está imbricada, em Gadamer, com a noção


de fusão de horizontes e fato de ele conceder à noção de horizonte uma posição
de destaque em sua hermenêutica já é, naturalmente, um claro sinal da
influência de Husserl.

Podemos apreciar a desaprovação de Heidegger particularmente pelo


exame de alguns outros pronunciamentos de Gadamer sobre essa noção. Ele
não só fala de fusão de horizontes como um evento controlado pela linguagem
ou pela tradição. Ele também fala de ato consciente desta fusão como a tarefa
da consciência histórico-efetiva. (Kusch, 2001, p. 260)

Na esteira de Heidegger, Gadamer confere uma espécie de sujeição à


tradição no processo de fusão de horizontes, porém, distingue-se dele e se
aproxima mais de Husserl ao defender também a atuação "'consciente desta
fusão como a tarefa da consciência histórico-efetiva'" (Kusch, 2001, p. 259)
enquanto um processo similar ao do diálogo.

Assim, para Gadamer, "'todo encontro com a tradição que ocorre dentro
da consciência histórica envolve a experiência de tensão entre o texto e o
presente [...] a consciência histórica tem clareza de que ela é diferente e, por
isso, distingue o horizonte da tradição do seu próprio horizonte'" o que mostra,
de acordo com Kusch, a idiossincrasia da posição gadameriana sobre "fusão
dialógica dos horizontes" e que "é suficiente para apontar o que Heidegger deve
ter considerado como um desvio crucial de sua própria filosofia" (Kusch, 2001,
p. 260).

O fato é que, na contramão da proposta filosófica heideggeriana [...] o


reemprego que Gadamer faz da noção de consciência, depois de Heidegger ter
mostrado que esta noção está inevitavelmente vinculada ao esquema sujeito-
objeto, precisa, aos olhos de Heidegger, ser decepcionante. Contudo, o mais
importante é que Gadamer parece adotar não somente a noção como também
o próprio esquema obsoleto. (Kusch, 2001, p. 260)

Aqui parece que estamos às voltas com uma diferença e um avanço do


projeto gadameriano em relação ao heideggeriano. Podemos dizer que, no
esforço titânico de Heidegger para superar a metafísica da subjetividade, ele

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acabou por dissolver a noção de sujeito no Ser e, por assim dizer, o


impessoalizou.

Em nossa opinião, Gadamer retoma, só que por outra porta, num outro
nível, a noção sujeito [de consciência] sem conceder-lhe, na polaridade com o
objeto, a absolutização que lhe foi outorgada pela metafísica moderna.

Tanto o modelo estrutural do diálogo quanto do jogo destronam a


absolutização seja do sujeito, seja do objeto, ao mesmo tempo em que os
repõem no devido lugar, numa relação tensional incessante. Gadamer, de fato,
retoma e reintroduz, num certo sentido, o esquema Sujeito-Objeto, Consciência-
História, porém, no encalço de Husserl, desloca a ênfase tradicional concedida
a um dos polos para a relação propriamente dita entre ambos [os lados].

Estamos às voltas, pois, com uma diferença entre o mestre e seu


discípulo: para o primeiro, o esquema em questão é, por si só, metafísico em
sentido pleno e negativo do termo e, portanto, injustificável do ponto de vista
filosófico.

Ainda com relação ao mesmo tema, de acordo com Kusch, "Heidegger


dificilmente deve ter-se encantado com o argumento de Gadamer [...] de que o
esquema sujeito-objeto de Husserl é mais especulativo que aparenta ser", pois
para este,

sujeito e objeto não estão estritamente opostos: "a fenomenologia [de


Husserl] procura ser uma pesquisa de correlação. Mas isto significa que a
relação é a coisa mais importante e os pólos que se estabelecem são contidos
dentro dela...".

Precisamos somente lembrar que as concepções de Heidegger de que


"nenhuma modificação deste esquema [sujeito-objeto] pode superar sua
inadequação" e de que "a dialética somente pode ocultar". (Kusch, 2001, p. 261)

Ao apropriar-se da proposta husserliana, Gadamer não apenas corrigiu


seu mestre como também a proposta de Husserl, uma vez que, no modelo
estrutural do jogo, nem a subjetividade nem a transcendentalidade são

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absolutizadas ou negadas, pelo contrário, são situadas e conservadas


relacionalmente e, por isso, potencializadas.

Gadamer sugere "que, longe de estar inevitavelmente presos pela


tradição, os sujeitos humanos podem, até mesmo" – diferentemente de
Heidegger – "dissolver a(s) tradição(ões): por mais que faça parte da natureza
da tradição o fato de ela existir somente sendo apropriada, faz parte da natureza
do homem ser capaz de romper com a tradição, a criticar e dissolver'" (Kusch,
2001, p. 262).

Porém, se com isso ele se distancia de Heidegger e se aproxima de


Husserl, também confere feição própria à epoché husserliana, pois não a
radicalizou. A "epoché hermenêutico-dialógica de Gadamer é bem menos
ambiciosa do que a transcendental de Husserl.

Gadamer não quer dizer que sejamos capazes de libertar-nos de todos os


preconceitos; de fato, ele critica o projeto transcendental de Husserl" e, por outro
lado, embora "concorde em termos gerais com o conceito heideggeriano
de Vorhabe (pré-estabelecido) e o círculo hermenêutico implicado no Ser-no-
mundo do Dasein, a noção de suspensão dos preconceitos pode facilmente
parecer uma traição à concepção de ser jogado de Heidegger e à concepção de
linguagem como meio universal, com a qual aquela noção está vinculada"
(Kusch, 2001, p. 263).

Enfim, em relação ao tema da tradição, Gadamer parece estar mais para


Husserl que para Heidegger:

Parece haver boas evidências para supor que a concepção de Gadamer


sobre a tradição seja, de fato, não apenas influenciada por Heidegger, mas
também informada por Husserl.

Que Gadamer reintroduza – ao menos até certo ponto – a noção de


consciência, bem como a distinção sujeito-objeto, que fale da suspensão dos
preconceitos e que esteja preocupado com a intromissão da racionalidade
tecnológica do mundo prático da vida, encontra uma explicação natural quando
se aponta Husserl como uma fonte importante. (Kusch, 2001, p. 264)

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3.2. Com relação ao tema da linguagem


Um dos principais fios filosóficos que tece o projeto heideggeriano e o
gadameriano é o da linguagem. Para o primeiro, a linguagem 'joga conosco'
indicando com isso que ela é 'mestra do homem' e, portanto, indomável de
maneira que "não temos acesso ao mundo sobre e acima daquilo que a
linguagem revela para nós"; ora, Gadamer comunga dessa concepção na
medida em que "trata a linguagem como uma imagem, uma noção que visa
precisamente apreender a inseparável unidade de linguagem e mundo" (Kusch,
2001, p. 275).

Podemos dizer que a filosofia da linguagem de Gadamer segue


Heidegger, sem adotar, contudo, sua posição radical, como um todo, uma vez
que ela se constitui resultante de duas perspectivas distintas: ele "desvincula as
ideias de Heidegger sobre a linguagem de seu pensamento do Ser" e, por outro
lado, ele "usa a noção husserliana de sombreamento (Abschattung), a fim de
evitar o relativismo linguístico e o kantismo semântico..." (Kusch, 2001, p. 265).

Isso não significa que as preocupações ontológicas de Heidegger estejam


"ausentes da filosofia da linguagem de Gadamer", afinal ele "escreveu
extensamente sobre esse tópico" além do que "a questão do ser (no sentido
heideggeriano) e a questão da linguagem podem ser tratadas separadamente"
(Kusch, 2001, p. 265).

Ao fazer isso ele vinculou o tema da linguagem às questões humanas, daí


porque não a concebe mais prioritariamente como 'morada do Ser', como
propunha seu mestre, mas 'morada do homem'.

Enquanto medium [no sentido de espaço, de lugar] universal de


comunicação e de compreensão (Hintikka, 2000, p. 487), a linguagem é um
modo [humano] de ser partícipe do Ser. Do que se disse é possível apreender a
relação íntima entre linguagem e diálogo em Gadamer, como nos atesta C. Dutt:

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[...] à diferença de Heidegger, você não tem a intenção de criar uma nova
consciência do diálogo e uma nova consciência da compreensão do ser, mas
explicitar a ideia já existente do que é um diálogo.

Por isso incorpora em seu discurso o que em nossos discursos


quotidianos dizemos sobre a "compreensão" e a "conversação".

Em um pequeno texto autobiográfico, você expõe uma réplica à famosa


expressão da Carta sobre o humanismo que considero ilustrativa neste sentido:
"me segue parecendo verdade [...] que a linguagem não é só a casa do ser, mas
também a casa do homem, na qual vive, se encontra com outros, se encontra
com o outro". (Dutt, 1998, p. 58)

As distinções relativas às concepções de linguagem de ambos revelam-


se na abordagem ao conceito de Dasein.

A questão absolutamente central na compreensão de Heidegger – que


permeia toda sua filosofia – estampa-se na questão "quem é Dasein?", ou seja,
"é Dasein um ser humano individual, é ele/ela um ser humano situado em um
contexto histórico e incondicionado pela tradição, ou é Dasein uma natureza
humana universal kantiana?" – e um contato inicial com a obra de Heidegger
revela o tom impessoal atribuído ao Dasein; porém, "em contraste, o que
Gadamer está nos dizendo pode ser dito assim: Dasein está vivo e bem sob a
roupagem da nossa tradição" (Hintikka, 2000, p. 492).

Daí porque há uma imbricação tão íntima entre linguagem e diálogo em


Gadamer para quem o homem não apenas compreende o Ser mas se
compreende compreendendo-se e compreende-o [Ser] no confronto com o[s]
outro[s].

Numa perspectiva, o Dasein parece não possuir sangue, ossos e, noutra,


ele é tomado como um sujeito histórico mas que não se satisfaz com sua
situação uma vez que, no diálogo, está sempre à procura da 'coisa mesma',
daquilo que move toda inquirição filosófica e que constitui a busca metafísica.

Ao dialogar, os parceiros não apenas reproduzem a [sua] realidade mas


a recriam saltando dela e voltando a ela mais universais, visto que o diálogo

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2

possibilita um alargamento de horizontes que os aproxima, em linguagem


platônica, dos deuses e, portanto, mais próximos da vida plena.

O trabalho de habilitação de Gadamer intitulado Interpretação do Philebo


de Platão já continha muitos prenúncios da hermenêutica posterior e da
interpretação que Gadamer ia fazer de Platão.

Neste sentido, chama atenção sua escolha, já naquele momento, do


Philebo, um diálogo tardio, porém no qual Sócrates desempenha um papel
preponderante que revela até que ponto seguiu sendo vivo o motivo da pergunta
pelo bem na "dialética ética" de Platão.

O acento desta dimensão ética, da busca socrática, se opunha, desde


logo, a uma versão puramente conceitual da dialética platônica, que se orientava
pelo modelo de análise conceitual (aristotélico).

A participação na prática dialógica ou hermenêutica se tornou assim uma


chave – e não somente em um adorno – da filosofia platônica. Com isso,
Gadamer pode também relativizar a vigência da crítica de Platão por parte de
Aristóteles.

O Philebo se pergunta por uma "vida mista", que era o único âmbito onde
se podia encontrar o humanamente bom, e demonstrava em que medida Platão
e Aristóteles se encontravam em um mesmo terreno. (Grondin, 2001, pp. 184-
185)

Desse modo, de acordo com palavras de Kusch, "deveríamos observar


que não é artificial argumentar que a descrição de Gadamer acerca do diálogo
hermenêutico é, de fato, uma descrição de um método para obter a verdade"
(Kusch, 2001, p. 261), ou, pelo menos, se trata de um modelo estrutural para
compreendê-la e explicitá-la de modo mais apropriado que o método científico
moderno.

Para o Heidegger da última fase, a verdade enquanto "uma disputa entre


clareira e ocultamento é determinada pelas diferentes mensagens que o Ser
envia para a linguagem.

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Gadamer, de fato, abre mão dessa noção de verdade, apesar de,


ocasionalmente, referir-se à ideia de que a linguagem nos revela a verdade",
porém, além disso, ele mesmo "também mencionou (em comentário pessoal)
que sempre permaneceu comprometido com a noção de verdade como
correspondência apesar de nunca ter abordado esta noção de forma explícita"
(Kusch, 2001, p. 266).

Se para Heidegger, com certa razão, não há método que nos possibilite
acessar a verdade, para Gadamer há modelos estruturais [como diálogo, círculo,
jogo] que contribuem para compreendê-la e explicitá-la – afinal, ela é também
histórica – sem porém esgotá-la.

É verdade que Heidegger não estava interessado primordialmente em


questões como a 'procura de conhecimento' mas com 'a questão do ser, a
questão da metafísica', ou seja, não possuía interesse imediato em preencher
conceitos mas em ocasiões para reflexão filosófica.

Diferentemente, Gadamer possuía tal interesse via dialética (Hintikka,


2000, p. 496), diálogo e hermenêutica enquanto filosofia prática.

Dito de outro modo, ao incorporarem a filosofia prática do estagirita em


seus projetos, "sublinhando sempre a importância da 'sabedoria prática', sob a
forma de phrônesis aristotélica, Heidegger olha em direção à física e à
metafísica [...] em direção à ontologia. Gadamer, ao contrário, permanece
obstinadamente fiel à sabedoria prática aristotélica" (Greisch, 2000, p. 448).

Por outro lado, Gadamer justifica que a linguagem é especulativa no


sentido de que "nunca somos os mestres de nossa linguagem, mas somente os
receptores da verdade que ela revela", e também "porque uma infinidade de
relações, isto é, toda a rede de relações semânticas, está presente em uma
estrutura finita, em uma sentença ou em uma palavra", porém o ponto essencial
é por que a relação entre linguagem e o mundo é uma unidade hegeliana de
identidade e diferença.

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Por um lado, a linguagem não é idêntica ao mundo, mas, por outro, o


mundo não aparece fora da linguagem [...] a linguagem e o mundo não podem
ser desvinculados um do outro.

As relações semânticas entre linguagem e mundo são como


que Aufgehoben: realmente existem, são preservadas, mas também estão
destruídas por nós, por não termos nenhum acesso a elas. (Kusch, 2001, pp.
272-273)

Sobre sua opção por Platão e Hegel e concomitante crítica ao seu mestre,
ele se pronunciou nos seguintes termos: "fui admirador de Heidegger [...] e ainda
hoje, eu diria, meu primeiro livro, A ética dialética de Platão, está ainda por
demais amarrado ao esquema defendido então por Heidegger; Platão é aí
apenas um preparador de Aristóteles.

Hoje, eu diria que ele, com isso, não faz justiça a Platão, de modo que
não enxergou o que Hegel percebeu" (Grondin in Almeida, Flickinger, & Rohden,
2000, p. 220).

Visto assim, Gadamer está mais para o projeto hegeliano, ao passo que
Heidegger se distancia dele; o primeiro assume o método dialético-dialógico
platônico e o segundo o analítico-conceitual aristotélico.

De Hegel, Gadamer incorporou a proposta fenomenológico-dialética,


histórica, sem a pretensão de construir um sistema fechado.

Com relação a esse ponto, lembramos que nossa pesquisa versa sobre a
hipótese de explicitar e justificar uma proposta sistemática – aberta, em
construção, movente – a partir da filosofia de Gadamer na medida em que
assimilou a Fenomenologia do Espírito de Hegel sem a pretensão de encerrá-la
no Absoluto.

3.3. Sobre as rupturas com Heidegger


A originalidade e a força do pensamento de Heidegger fizeram sombra
sobre os filósofos que estiveram à sua volta, inclusive Gadamer.

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As diferenças dos que se lhe aproximavam foram escamoteados ou não


receberam a luz dos holofotes acadêmicos ou sucumbiram ante a força da sua
filosofia. Apesar disso, há rupturas entre o discípulo e seu mestre, mesmo que
não sejam muito contundentes ou claras.

Ao falar de sua caminhada intelectual, Gadamer afirmou que havia na


filosofia de seu mestre uma "falta de precisão conceitual", ou seja, ela era
permeada por uma espécie de "traço poetizante vago" (Gadamer, 1996, p. 249).
Em entrevista a C. Dutt afirmou:

[...] se trata de dons e talentos diferentes. Em primeiro lugar, eu não tenho


naturalmente aquela potência mental prodigiosamente audaz com a qual
Heidegger filosofava.

Sempre disse que uma das diferenças fundamentais entre Heidegger e


eu reside na escrupulosidade da interpretação. Eu tenho interpretado com maior
precaução que Heidegger. Pois eu fico frustrado se não defendo o correto.
(Gadamer apud Dutt, 1998, p. 59)

Poucos meses antes da morte de Gadamer, em entrevista concedida a


Vietta, evidencia-se uma crítica clara e radical a Heidegger: "... uma coisa certa:
nunca pensou nos demais.

Sempre filosofou a fim de alcançar sua própria tranquilidade em relação


ao fim, à morte, a Deus" (Gadamer, 2004, p. 34) sobre o que, com razão, o
entrevistador comentou: "esta é a crítica a um solipsismo fundamental de
Heidegger, solipsismo que a hermenêutica [...] tentou superar pela primeira vez"
(Gadamer, 2004, p. 20).

De certa maneira isso explica a coragem e a dedicação de Heidegger em


filosofar, prioritariamente, pelo silencioso hábito de escrever enquanto que, em
Gadamer, é visível sua dificuldade para tal e sua preferência pelo uso da palavra
oral, dialogada.

Pode-se dizer que Heidegger filosofava escrevendo e daí sua intensa


produção de obras sistemáticas, enquanto que Gadamer preferia filosofar

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dialogando do qual resultaram ensaios e poucos trabalhos sistemáticos à


exceção de sua tese de doutorado e Verdade e método I.

Ao lado disso, tem-se até a impressão de que Heidegger pensa o Ser em


função da morte – com certa razão – para o presente e Gadamer o faz em função
do diálogo com a tradição, com o passado, em razão do sentido e significado do
bem para a vida presente.

O mérito do primeiro está em seu espírito arrojado, provocador, intuitivo


diante do qual seu discípulo pode ser tido como mais conservador, conciliador,
prático.

Num certo sentido, é verdade que Heidegger pode ser tido como um
pensador teológico e sua filosofia apresenta paralelos íntimos com a teologia
especulativa ao passo que Gadamer subsumiu-a na sua concepção de
experiência estética – enquanto experiência da obra de arte.

Diferentemente de Heidegger "que lutou parte de sua vida contra a própria


incredulidade", a questão central para Gadamer "se tratava do homem que
compreende o outro" (Gadamer, 2004, p. 39).

Isso ficou estampado na sua conhecida afirmação segundo a qual "a


possibilidade de que o outro tenha razão é a alma da hermenêutica" (Gadamer
apud Grondin, 1991, p. 160).

Aqui encontramos espelhada a vigência de duas verdades, pelo menos:


o outro é levado a sério e o é, de tal forma, que ele pode, inclusive, ter razão;
esta possibilidade não anula a existência daquele [eu] que se põe no caminho
da compreensão da verdade.

Daí porque, diferente de Heidegger que, em sua busca pela linguagem


autêntica, minimizou o valor da linguagem cotidiana, Gadamer joga e leva a sério
os outros jogos de linguagem e 'acolhe a opinião comum' (Dutt, 1998, p. 57), a
argumentação do outro, de modo que o investigador não apenas é afetado, mas
é inclusive transtornado, conscientemente, pelo processo compreensivo.

Enfim, com Gadamer aprendemos e sustentamos que "a essência do


comportamento hermenêutico consiste em não se guardar nunca, para si, a

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última palavra" (Gadamer apud Almeida, Flickinger, & Rohden, 2000, p. 211), e,
por isso, o melhor que podemos fazer é emitir nossa palavra – sem pretensão
de que seja definitiva, absoluta ou a última – sobre as idiossincrasias da
hermenêutica heideggeriana e gadameriana assim como sobre o tensionamento
constante e entrecruzamento dialético que deve haver entre ambas. Nossa
palavra, ao modo do itinerário de Hermes, é apenas mais uma, em continuidade
ao profícuo diálogo, interminável, acerca das diferenças e identidades entre as
propostas filosóficas em questão.

Dito isso, a reflexão que encetamos corrobora a hipótese de que má


filosofia é aquela que absolutiza um filósofo e sua filosofia, afinal de contas a
crença cega é sempre sintoma de decadência e fraqueza filosófica, pois o reino
do dogmatismo e, portanto, do totalitarismo, é lugar para fracos e incompetentes
se autoafirmarem e se escusarem de emitir uma palavra pessoal sobre questões
humanas.

No confronto dialético-dialógico que procuramos estabelecer entre


Heidegger e Gadamer, aprendemos a lidar não apenas com o mesmo, mas com
o outro, com o diferente, o que constitui sempre um fator de risco, mas também
de riqueza e de plenitude. Isso justifica nossa posição segundo a qual o filosofar
se erige, por um lado, sobre a análise aguda em relação à realidade e, por outro,
sobre o esforço dialógico incessante para emitir a palavra mais apropriada
possível acerca do mundo tal como ele se nos apresenta cientes de que, ao
nosso final, "sempre ficará algo de não dito quando dizemos algo"
(Gadamer apud Almeida, Flickinger & Rohden, 2000, p. 211).

Contudo, isso não nos isenta de emitir, à guisa de conclusão, três


observações finais. Pensamos que, de modo similar à filosofia grega que se
alimenta da tensão dialética entre Platão e Aristóteles, a hermenêutica filosófica
tem sua plenitude na conjunção dialética entre os projetos filosóficos de
Heidegger e de Gadamer.

Ambos nos brindam propostas metodológicas e leituras próprias sobre o


real, afinal de contas, a filosofia não constitui um bloco monolítico ou uma crença,

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pois continua sendo tecida sob diferentes perspectivas temporais e espaciais


nas quais estamos imersos e das quais nos esforçamos para emergir.

Chamamos atenção para a ingenuidade da alocação da proposta


gadameriana, tout court, no mundo heideggeriano, como se aquela constituísse
uma simples repetição deste. Gadamer foi um discípulo autêntico na medida em
que se apropriou de algumas grandes intuições do seu mestre, mas também
conferiu marca própria ao seu labor, superando-o em alguns aspectos.

Nossa leitura tem por escopo justificar a hipótese de que Gadamer


interpreta Heidegger seja porque sua filosofia sustenta e completa a
hermenêutica filosófica, mas, talvez, também porque com ele, seja possível
metamorfosear Hegel com um sistema – mesmo que implícito – aberto,
contingente, finito, em movimento e construção incessante.

Bem, aqui já não sabemos mais se esta era a proposta gadameriana;


contudo, ela é nossa e assumimos o labor de reinterpretar Gadamer a fim de
mostrar que, com Heidegger, é possível justificar que a hermenêutica filosófica
é uma versão da metafísica hodierna – dialética, movente, histórica – o que, por
um lado, nos aproxima e, por outro, também nos distancia de Hegel.

Enfim, estou às voltas com ambos há mais de uma década, mas com uma
dedicação redobrada à hermenêutica gadameriana.

Partindo do pressuposto de que uma adesão cega, incondicional a um ou


outro implica numa crença e, por consequência numa postura dogmática,
antifilosófica, assumi uma postura filosófica que procura costurar um texto
próprio com ambos: de Gadamer fico com a postura dialógico-dialética e o
filosofar enquanto uma filosofia prática nos moldes do estagirita; contudo,
confesso que apenas essa perspectiva prática não me satisfaz e o que lhe falta
encontro no projeto metafísico, visionário e intuitivo do seu mestre.

Assim, desse modo, nos jogamos entre ambos com o escopo de jogar
nosso jogo assumindo seus riscos com suas riquezas, afinal de contas, o
filosofar, como o "Viver – não é? – é muito perigoso. Porque ainda não se sabe.
Porque aprender-a-viver é que é viver, mesmo" (Rosa, 1958, p. 550).

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Referências
Almeida, C. L. Silva de, Flickinger, H-G., & Rohden, L.,
(Orgs.). Hermenêutica filosófica; nas trilhas de Hans-Georg Gadamer. Porto
Alegre: Edipucrs.

Dutt, C. (Ed.). (1998). En conversación con Hans-Georg Gadamer.


Presentación y traducción de Teresa Rocha Barco. Madrid: Tecnos.

Gadamer, H-G. (1996). Mis años de aprendizaje. Barcelona: Herder.

Gadamer, H-G. (1997). Verdade e Método I. Rio de Janeiro: Vozes.


editora Unisinos

Gadamer, H-G. (2000). "Retrospectiva dialógica à obra reunida e sua


história da efetuação" – Entrevista de Jean Grondin com Hans-Georg Gadamer.
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