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Direito e Sociedade
Teoria e Prática

3
Direção Editorial
Willames Frank da Silva Nascimento

Comitê Científico Editorial

Dr. Alberto Vivar Flores


Universidade Federal de Alagoas | UFAL (Brasil)

Drª. María Josefina Israel Semino


Universidade Federal do Rio Grande | FURG (Brasil)

Dr. Arivaldo Sezyshta


Universidade Federal da Paraíba | UFPB (Brasil)

Dr. Dante Ramaglia


Universidad Nacional de Cuyo | UNCUYO (Argentina)

Dr. Francisco Pereira Sousa


Universidade Federal de Alagoas | UFAL (Brasil)

Dr. Sirio Lopez Velasco


Universidade Federal do Rio Grande | FURG(Brasil)

Dr. Thierno Diop


Université Cheikh Anta Diop de Dakar | (Senegal)

Dr. Pablo Díaz Estevez


Universidad De La República Uruguay | UDELAR (Uruguai)

4
André Luís de Almeida Barros
Antônio Tancredo Pinheiro da Silva

Direito e Sociedade
Teoria e Prática

5
DIREÇÃO EDITORIAL: Willames Frank
DIAGRAMAÇÃO: Willames Frank
DESIGNER DE CAPA: Willames Frank

O padrão ortográfico, o sistema de citações e referências bibliográficas


são prerrogativas do autor. Da mesma forma, o conteúdo da obra é de
inteira e exclusiva responsabilidade de seu autor.

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direitos da Creative Commons 4.0
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2020 Editora PHILLOS ACADEMY


Av. Santa Maria, Parque Oeste, 601.
Goiânia-GO
www.phillosacademy.com
phillosacademy@gmail.com

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

S135p

BARROS. André Luís de Almeida; SILVA. Antônio Tancredo Pinheiro,

Direito e sociedade: Teoria e Prática. [recurso digital] / André Luís de


Almeida Barros; Antônio Tancredo Pinheiro da Silva. – Goiânia-GO:
Editora Phillos Academy, 2020.

ISBN: 978-65-88994-22-1

Disponível em: http://www.phillosacademy.com

1. Direito. 2. Sociedade. 3. Direitos Fundamentais. 4. Capitalismo.


5. Filosofia do Direito. I. Título.
CDD: 340

Índices para catálogo sistemático:


Direito 340

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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO: Direito e Sociedade .......................... 9


André Luís de Almeida Barros
O QUE SE DIZ E O QUE SE FAZ: As políticas
públicas na efetivação dos direitos fundamentais
sociais ........................................................................................ 11
Enio Afonso Ferreira Silva
Capitalismo e Direito: uma crítica a partir de Marx e
Pasukanis.................................................................................. 27
Carla Janaina dos Santos
Maria Adriana Torres
Relações Familiares os desafios da sua atual
configuração e estrutura....................................................... 46
Deiver Neves Ferreira Barbosa
Diocésar Taffarel
Ingrid Ester Steiner Taffarel
Karoline da Silva Santos
Maria Viviane de Carvalho Tenório Andrade Lima
Sônia Maria Albuquerque Soares
Zelinda Maria Albuquerque Pinheiro
Alienação Parental e suas consequências
para o menor ............................................................................ 70
Marcelly Setton Ramos
O princípio da eficiência como reflexo do
Gerencialismo ......................................................................... 81
Sebastião Grangeiro Bisneto

7
Missão constitucional da Polícia Militar do Brasil ...... 99
Sebastião Grangeiro Bisneto .......................................................... 99
Mulheres e vulnerabilidade: encarceramento em massa
nos Estados Unidos e no Brasil ....................................... 117
Maria Adriana Torres

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APRESENTAÇÃO
Direito e Sociedade

No limiar da segunda década do Século XXI, é


possível perceber as acentuadas transformações pelas quais
vem passando a sociedade brasileira. Oscilações econômicas,
crises políticas com rumores de ruptura institucional,
mobilizações de rua com fortes críticas à democracia
representativa, a continuidade da pandemia que trouxe
mudanças nos costumes, na dinâmica do trabalho e nas
relações sociais como um todo. Nesse contexto, é preciso
observar que, em todas essas nuances de transformações
perpassadas nas diversas áreas da atividade humana, reclama-
se a reflexão e a crítica permanente do direito.
Com efeito, a construção do presente modelo de
sociabilidade concentra importantes alicerces nas concepções
e pressupostos do direito: fenômeno que não deve ser
compreendido doutra forma, senão como instância de
relações sociais que fundamenta e viabiliza as demais esferas
de relações, ao mesmo tempo em que, por si mesma, também
se individualiza e constitui suas próprias relações, afetadas
por determinações relativamente autônomas.
Assim, compreender a realidade social demanda
considerável esforço intelectual fundado em pressupostos
teóricos, que servem de direcionamento geral para a
observação objetiva e imparcial dos fenômenos sociais em
curso. É, justamente, a esse sentido que se alinha a proposta
da presente obra, qual seja: tomar a abordagem jurídica sobre temas
variados como fio condutor de uma análise panorâmica do atual contexto
histórico.

9
Conforme a ortodoxia do Positivismo Jurídico, não
deve haver espaços vazios no ordenamento normativo, visto
que a ausência de regulamentação pode gerar insegurança que
pode desaguar em crises e rupturas. Portanto, a
previsibilidade e a elaboração efetiva de normas jurídicas
necessárias ou úteis à garantia da coesão social assumem
protagonismo no âmbito da política do direito, da política
legislativa, como pressuposto de governabilidade e de
continuidade das relações sociais vigentes.
Diante disso, novamente se evidencia a necessidade
de permanente reflexão-crítica do direito, desde as propostas
em discussão nos parlamentos até a eficácia social das normas
em vigor. E, essa tarefa de pensar crítica e permanentemente
o direito não se deve limitar às atividades dos poderes do
Estado, mas tornar-se um elemento entranhado na rotina
daqueles que devem ser os maiores interessados nas coisas do
direito: o cidadão brasileiro.
Apresenta-se, pois, um desafio colossal aos
estudantes da Ciência Jurídica e aos operadores do direito:
promover a democratização do conhecimento jurídico,
tornando-o palatável ao cidadão, para que ele compreenda a
si mesmo através da compreensão da sociedade e não
somente possa pensar sobre o que vive, mas viver conforme
o que pensa. Afinal, o que é a sociedade, senão um complexo
de relações humanas em constante transformação? E, qual a
contribuição que cada um pode e deve dar nesse processo
histórico?

André Luís de Almeida Barros,


Maceió-AL, 02 de março de 2021.

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O QUE SE DIZ E O QUE SE FAZ:
As políticas públicas na efetivação dos
direitos fundamentais sociais

Enio Afonso Ferreira Silva1

INTRODUÇÃO

Os direitos fundamentais são essenciais no estado


Democrático de Direito, pois em se falar assim evoca, em
termos weberianos, um “tipo ideal” de Estado que tem
compromisso de consagrar os direitos fundamentais sociais o
que necessita para a sua fruição, da elaboração e da
implementação de políticas públicas, as quais são à luz da
Constituição responsabilidades dos Poderes Legislativo e
Executivo.
A satisfação da concretização de sua eficácia é um
enorme desafio a ser vencido, inclusive pelo poder judiciário,
com lastro em toda sociedade o que é na atualidade inegável,
isso se dá em razão da expressiva ineficiência da

1 Mestre em Direitos Humanos pela Universidade Tiradentes


UNIT/SE. Especialista em Direito Constitucional - UNIDERP/MS.
Especialista em Direito e Processo do Trabalho – CESMAC/AL.
Bacharel em Direito/CESMAC/AL. Professor de Direito
Constitucional no PROESP da Universidade Estadual de Alagoas
(UNEAL). Sócio Efetivo do Instituto de Direito Administrativo de
Alagoas (IDAA), integrante do grupo de estudos controle da
administração pública - GECAP/IDAA. Professor Universitário.
Servidor Público Estadual

11
Administração na concretização de tais direitos, como
precariedade de serviços públicos básicos, gastos
exorbitantes, ou seja, da ausência ou mesmo inercia dos
poderes, o que requer direito de prestações (garantia positiva)
por parte do Estado.
Para discussão dessa obra, sem olvidar que o termo
direitos fundamentais, aquele que por sua vez surgiu na
França no século XVIII, resultado de um movimento
político-cultural, e depois com suas ideologias; nos
restringiremos ao plano da positivação, sendo normas
jurídicas exigíveis, a ser perseguida pela superioridade
constitucional.
Assim, o presente trabalho tem por objetivo
evidenciar que as políticas públicas de origem polissêmica são
instrumentos de concretização dos direitos fundamentais
sociais, e que a atividade judiciaria tem nos últimos tempo
assegurado o seu controle, em atenção a uma a problemática
que evidencia a não garantia positiva dos poderes Legislativo
e Executivo na concretização dos direitos fundamentais
sociais.
Já na hipótese busca estabelecer que as políticas
públicas têm por finalidade precípua a implementação dos
direitos fundamentais sociais que demandam prestações
positivas do Estado, numa justificativa que decorre da
possibilidade do Poder Judiciário controlar políticas públicas
que versam sobre direitos fundamentais sociais como
garantidor de tais valores.
Metodologia logico-dedutivo numa abordagem que
deriva de analise bibliográfica por consultas de livros, revistas
especializadas; doutrinaria, jurisprudenciais. Tendo como
resultado que o judiciário deve tratar de questões sociais na
garantia da concretização dos direitos fundamentais sociais

12
consagrados em nossa carta cidadã, em razão da ausência por
vezes dos Poderes Legislativo e Executivo.

DIREITOS FUNDAMENTAIS
Direitos fundamentais como gênero

Os direitos fundamentais constituem os valores mais


elevados ao ser humano que necessitam ser catalogados em
um documento jurídico revestido de força normativa
superior as demais normas do sistema, razão pela qual o
catálogo desses direitos encontra-se no início da Constituição
de 1988, evidenciando a vontade do legislador originário.
Essa carga axiológica produz um resultado inegável à
população, visto que sua aceitação é o cerne que decorre da
proteção ao princípio da dignidade humana, este que reside
no Artigo 1º, III da Constituição Federal de 1988, e constitui
um dos fundamentos da República Federativa do Brasil,
irradiando em toda a carta.
E, ainda enquanto princípio, ou seja, norma
constitucional, “[...] não é apenas uma arma de argumentação,
ou uma tábua de salvação para a complementação de
interpretações possíveis de normas postas [...]” (NERY
JÚNIOR E NERY, 2009, p.151), pois mesmo sozinho, por
si só, já estruturaria todo o sistema jurídico.
A dignidade, pode ser em vários sentidos como
dignidade espiritual, dignidade intelectual, dignidade social e
dignidade moral é essencialmente um atributo da pessoa
humana pelo simples fato de alguém ser humano, vindo a ser
merecedor de respeito e tutela, pouco importando sua
cidadania estatal, gênero, raça, credo ou posição
socioeconômica, como traz o ministro Alexandre de Moraes
quando afirma:

13
A dignidade é um valor espiritual e moral inerente à
pessoa, que se manifesta singularmente na
autodeterminação consciente e responsável da
própria vida e que traz consigo a pretensão ao
respeito por parte das demais pessoas, constituindo-
se em um mínimo invulnerável que todo estatuto
jurídico deve assegurar, de modo que, somente
excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao
exercício dos direitos fundamentais, mas sempre
sem menosprezar a necessária estima que merecem
todas as pessoas enquanto seres humanos.
( MORAES, 2002. p. 128)

A dignidade da pessoa humana disposta na


Constituição é um valor supremo da democracia, inclusive
mesmo um comportamento indigno não perde à pessoa os
direitos fundamentais que lhe são inerentes, ressalvada é claro
quando a incidência de penalidades constitucionalmente
autorizadas, é notável a preocupação do constituinte
originário com a garantia e a efetiva materialização dos
direitos fundamentais.
Ela é utilizada como referência em outros
dispositivos, e não apenas na indicação dos fundamentos do
Estado de Direito Brasileiro. Assim, dispõe por exemplo Art.
170 da CF/88. A ordem econômica, fundada na valorização
do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim
assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da
justiça social, observados os seguintes princípios:
Do mesmo modo, o princípio aparece no art. 266, §
7º, CF/88:
Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial
proteção do Estado.

§ 7º Fundado nos princípios da dignidade da pessoa


humana e da paternidade responsável, o
planejamento familiar é livre decisão do casal,

14
competindo ao Estado propiciar recursos
educacionais e científicos para o exercício desse
direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte
de instituições oficiais ou privadas.

Fica demostrado em apertada síntese, não passando


pelas teorias de Georg Jellinek, oriundas da segunda metade
do sec. XIX e apresentada por Robert Alexy que busca
explicar o papel dos Direitos Fundamentais na relação entre
Estado e o particular, visto que não ser o objetivo do
trabalho; que os direitos fundamentais destina-se a resguardar
dignidade da pessoa humana, em um valor que dimensiona e
humaniza, em sentido amplo, pois “sem os direitos
fundamentais, o homem não vive, não convive, e, em alguns
casos, não sobrevive” (BULOS,2007, p.401).
E, no reconhecimento da condição humana, aduz
Alves:
“Na medida em que reconheço em mim a dignidade
e estendo este reconhecimento à vida coletiva dou
abertura para a integração com o outro. E quando
se projeta direitos de caráter fundamental e suas
garantias se realiza o deslocamento de um olhar
individualista para um olhar sociocultural.” ALVES
(2014, p.105)

Assim sendo, a consagração jurídica dessa integração


numa sociedade plural e multidimensional intensifica o
respeito pela dignidade humana evidenciados no respeito nos
direitos fundamentais.

Direitos fundamentais como espécie – Direitos


Sociais

De origem histórica decorrente da crise do Estado


liberal e na consagração do referencial do Estado Social de

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Direito, que buscam mecanismos sólidos de redução das
desigualdades socioeconômicas entre os integrantes da
sociedade, encontra-se os direitos sociais.
Sendo espécies do gênero “direitos fundamentais”, presente
no Capítulo II do Título II da nossa Constituição de 1988.
Eles são genericamente enunciados no artigo 6º, a saber:

Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a


alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a
segurança, a previdência social, a proteção à
maternidade e à infância, a assistência aos
desamparados, na forma desta Constituição.

Os direitos sociais, também denominados de


“direitos de segunda dimensão” – juntamente com os direitos
econômicos e culturais, as quais revelam a ordem cronológica
do reconhecimento e afirmação dos mesmos, frutos da
mudança das condições sociais que foram concebidos
historicamente. Como afirma Silva (2001, p.290) “(...) valem
como pressupostos do gozo dos direitos individuais na
medida em que criam condições materiais mais compatível
com o exercício efetivo da liberdade”
A principal diferença entre os direitos sociais e os
direitos de defesa é o seu objeto. Pois os chamados direitos
de defesa buscam uma abstenção do Estado, exigindo deste
prestações negativas, são os conhecidos direitos de primeira
dimensão, já os sociais têm um agir do Estado,
consubstanciado em prestações positivas em favor do
cidadão em sentido lato, assegurando-lhe o mínimo
existencial em igualdade.
Nessa racionalização, Ingo Wolfgang Sarlet afirma
que:

16
Enquanto os direitos de defesa se identificam por
sua natureza preponderantemente negativa, tendo
por objeto abstenções do Estado, no sentido de
proteger o indivíduo contra ingerências na sua
autonomia pessoal, os direitos sociais prestacionais
têm por objeto conduta positiva do Estado (ou
particulares destinatários da norma), consistente
numa prestação de natureza fática. Enquanto a
função precípua dos direitos de defesa é a de limitar
o poder estatal, os direitos sociais (como direitos a
prestações) reclamam uma crescente posição ativa
do Estado na esfera econômica e social.
Diversamente dos direitos de defesa, mediante os
quais se cuida de preservar e proteger determinada
posição (conservação de uma situação existente), os
direitos sociais de natureza positiva (prestacional)
pressupõem seja criada ou colocada à disposição a
prestação que constitui seu objeto, já que objetivam
a realização da igualdade (SARLET, 2001, p. 261).

O gozo desses direitos requer do Estado um atuar


permanente numa ação que decorre de prestação positiva de
uma natureza material e fática, não sendo meros conselhos
por se tratarem de normas de cunho programáticos de baixa
efetividade em razão de serem planos políticos de ação, mas
mecanismos concretos, no dizer de KRELL (2002,p.20) ”elas
não representam meras recomendações (conselhos) ou
preceitos morais com eficácia ética-política meramente
diretiva, mas constituem Direito diretamente aplicável.”

INSTRUMENTO DE EFETIVAÇÃO
As Políticas públicas

Partindo-se da premissa de que a presença das


políticas públicas na vida das sociedades é fato crescente e
incontestável, logo tal realidade é um produto socialmente

17
necessário, pois não se dá simplesmente pela ampliação da
ação do Estado, mas também e principalmente – pelas
exigências feitas e vocalizadas pela sociedade, em razão da
omissão ou ausência do Estado.
Elas, políticas públicas, são definidas e praticadas em
termos históricos, pois cada sociedade tem um critério de
políticas públicas, seja no sentido da reprodução de certos
modos de conceber e fazer, de financiar e gastar, seja no
sentido das carências e dos problemas que se dispõem a
enfrentar.
Para proposta do trabalho, nos restringiremos, de
modo singelo em razão de tratar-se de termo polissêmico, o
que na doutrina e jurisprudência pátrias também não existe
uniformidade quanto à sua definição, nos utilizaremos como
“os meios necessários para a efetivação dos direitos
fundamentais” (FREIRE JR., 2005, p. 48). Claro não
olvidando o texto de Haroldo D. Lasswell, publicado em
1951, para entender o objetivo lato sensu do estudo, o que
não iremos tratar.
Por essa racionalização conforme reza o art. 3º da
CF/88, onde evidência uma carta de intenções a serem
materializadas, o que não é um rol taxativo; ver-se que a
maior finalidade do Estado é a realização dos direitos
fundamentais inoculado em seus direitos e garantias, então
questiona-se: Como alcançar as suas finalidades?
Não esquecendo o que Barbosa firma (1932, p.11
apud MORAIS, p. 64, 2004), “Os direitos são disposições
meramente declaratórias, imprimindo existência legal aos
bens e valores por eles reconhecidos, enquanto as garantias
são disposições assecuratórias que têm por finalidade
proteger direitos”

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Diante da dessa indagação, tem por resposta: - as
Políticas públicas! As quais têm como objetivo primordial
concretizar as espécies de direitos fundamentais – sociais,
como com maestria afirma Bucci:

“o programa de ação governamental que resulta de


um processo ou conjunto de processos
juridicamente regulados – processo eleitoral,
processo de planejamento, processo de governo,
processo orçamentário, processo legislativo,
processo administrativo, processo judicial – visando
coordenar os meios à disposição do Estado e as
atividades privadas, para a realização de objetivos
socialmente relevantes e politicamente
determinados.
Como tipo ideal, a política pública deve visar a
realização de objetivos definidos, expressando a
seleção de prioridades, a reserva de meios
necessários à sua consecução e o intervalo de tempo
em que se espera o atingimento de resultados”
BUCCI (2006, p. 39).

E, como programa por uma ótica da Constituição, as


políticas públicas segundo Coelho, elas:

“Atuam como: linhas de ação estatais, que


conjugam meios para alcance de determinado
resultado; devem, necessariamente, observar os
parâmetros ditados pelas normas constitucionais;
voltam-se para a implementação de direitos
fundamentais que demandam ações”. (COELHO,
2010, p. 98),

As quais encontra-se estruturado em numa


espécie de ciclo de procedimentos, quais sejam: entrada do
problema na agenda públicas, estruturação do problema,
conjunto das soluções possíveis, análise dos pontos positivos

19
e negativos das mesmas, tomada de decisões implementação
e avaliação.
É através do problema e não qualquer um, mas
aqueles considerado “público” os quais desrespeitam direitos
e garantias fundamentais objetivas, que viola o mais
importante fundamento constitucional da Republica - a
dignidade humana, “o piso vital mínimo.” O princípio
norteador de todas carta cidadã.
As políticas públicas, inclusive, sendo como aquele
mecanismo de efetivar o acesso das camadas mais
desfavorecidas aos direitos fundamentais de natureza social.
Visto que, o Estado, gerindo os interesses da sociedade,
busca, através do Legislativo e Executivo, as metas e os
instrumentos de interesse da comunidade, conforme dispõe
a Constituição.
As políticas públicas, assim, revelam-se como uma
necessária intervenção do poder público na sociedade. Como
afirma Appio que:

As políticas públicas implementadas pelo Estado


brasileiro podem ser consideradas setoriais, na
medida em que atingem determinados segmentos
da sociedade, a partir de necessidades específicas.
[...] As chamadas políticas de inclusão têm por
finalidade assegurar o acesso efetivo de segmentos
pouco representados da população aos bens sociais
fundamentais, com o que se reduz o impacto de um
modelo puro de democracia representativa
(APPIO, 2007, p. 115).

E, ocorrendo a não fruição por seus titulares –


Legislativo e Executivo, das políticas públicas, o que gera
ofensa aos princípios garantidos pela a Constituição, ora

20
tendo o poder judiciário o dever de tutelar uma série de
direitos fundamentais e que, em razão do princípio da
inafastabilidade do controle de jurisdição, presente no seu
artigo 5º, inciso XXXV, ele não pode afasta-se, quando há a
violação dos direitos fundamentais sociais
constitucionalmente consagrados, em prestações positivas.
Um ponto importante a ressaltar foram os
“movimentos constitucionalista” e fazendo um corte bem
depois da evolução histórica e, já no neoconstitucionalismo
ou pós-positivismo e, deixando a questão mais normativa do
viés histórico e, agora é enaltecer a primazia do princípio da
dignidade da pessoa humana, o qual é guarnecida e
promovida pelos Poderes Públicos e pela sociedade, assim
como afirma Agra:

“O neoconstitucionalismo tem como uma de suas


marcas a concretização das prestações materiais
prometidas pela sociedade, servindo como
ferramenta para implementação de um Estado
Democratico Social de Direito. Ele pode ser
considerado como movimento caudatorio: a)
positivação e concretização de um catálogo de
direitos fundamentais; b) onipresença dos
princípios e das regras; c) inovações hermenêuticas;
d) densificação da força normativa do Estado; e|)
desenvolvimento da justiça distributiva”.
(AGRA,2008,p.31).

E, nesse papel mais humanista, o judiciário ganha


destaque, visto que as políticas públicas são instrumentos de
concretização dos direitos sociais e que os seus titulares
busquem a sua efetivação por via judicial, quando necessário;
visto ser vedado, por mandamento constitucional, ao
Judiciário, escusar-se de solucionar os conflitos nos casos
concreto. Assim descreve a Carta Cidadã em seu artigo 5º,

21
XXV: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário
lesão ou ameaça a direito.”.
O fato, entretanto, do poder judiciário desenvolver
uma postura mais ativa não significa colocá-lo em situação de
superioridade aos outros poderes, mas sim no comprimento
do mandamento constitucional e na necessidade de
eficazmente aplicá-la, pois a efetivação de direitos
fundamentais, devem ser considerados o núcleo essencial da
democracia constitucional, como aduz Júnior, (2010, p. 533)
“é inegável que o grau de democracia em um país mede-se
precisamente pela expansão dos direitos fundamentais e por
sua afirmação em juízo”.
O que se diz e o que se faz, diz respeito ao “se”. Se a
atividade judiciária asseguraria a fruição desses direitos
fundamentais em caso de inércia ou mesmo ineficiência dos
demais entes estatais na busca da sua satisfação diante da
realidade contemporânea, para tal realidade o que tem sido
considerado que é legitima!
Inclusive o Supremo Tribunal Federal - STF já se
posicionou nesse sentido, embora a competência de efetivar
políticas públicas não se inclua entre as funções institucionais
típicas do Judiciário, ocorre que sua incumbência lhe poderá,
excepcionalmente, ser imputada, em descumprimento ao
comando constitucional.

E M E N T A: CRIANÇA DE ATÉ CINCO


ANOS DE IDADE – ATENDIMENTO EM
CRECHE E EM PRÉ-ESCOLA SENTENÇA
QUE OBRIGA O MUNICÍPIO DE SÃO
PAULO A MATRICULAR CRIANÇAS EM
UNIDADES DE ENSINO INFANTIL PRÓXI-
MAS DE SUA RESIDÊNCIA OU DO ENDE-
REÇO DE TRABALHO DE SEUS RESPONSÁ-
VEIS LEGAIS, SOB PENA DE MULTA

22
DIÁRIA POR CRIANÇA NÃO ATENDIDA [..]
LEGITIMIDADE CONSTITUCIONAL DA
INTERVENÇÃ O DO PODER JUDICIÁRIO
EM CASO DE OMISSÃO ESTATAL NA
IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLI-
CAS PREVISTAS NA CONSTITUIÇÃO –
INOCORRÊNCIA DE TRANSGRESSÃO AO
POSTULADO DA SEPARAÇÃO DE
PODERES [...] Embora inquestionável que resida,
primariamente, nos Poderes Legislativo e
Executivo, a prerrogativa de formular e executar
políticas públicas, revela-se possível, no entanto, ao
Poder Judiciário, ainda que em bases excepcionais,
determinar, especialmente nas hipóteses de políticas
públicas definidas pela própria Constituição, sejam
estas implementadas, sempre que os órgãos estatais
competentes, por descumprirem os encargos
político-jurídicos que sobre eles incidem em caráter
impositivo, vierem a comprometer, com a sua
omissão, a eficácia e a integridade de direitos sociais
e culturais impregnados de estatura constitucional.
[...] O Poder Público – quando se abstém de
cumprir, total ou parcialmente, o dever de
implementar políticas públicas definidas no próprio
texto constitucional – transgride, com esse
comportamento negativo, a própria integridade da
Lei Fundamental, estimulando, no âmbito do
Estado, [...] A inércia estatal em adimplir as
imposições constitucionais traduz inaceitável gesto
de desprezo pela autoridade da Constituição e
configura, por isso mesmo, comportamento que
deve ser evitado. É que nada se revela mais nocivo,
perigoso e ilegítimo do que elaborar uma
Constituição, sem a vontade de fazê-la cumprir
integralmente, ou, então, de apenas executá-la com
o propósito subalterno de torná-la aplicável
somente nos pontos que se mostrarem ajustados à
conveniência e aos desígnios dos governantes, em
detrimento dos interesses maiores dos cidadãos. –

23
A intervenção do Poder Judiciário, em tema de
implementação de políticas governamentais
previstas e determinadas no texto constitucional,
notadamente na área da educação infantil (RTJ
199/1219-1220), objetiva neutralizar os efeitos
lesivos e perversos, que, provocados pela omissão
estatal, nada mais traduzem senão inaceitável insulto
a direitos básicos que a própria Constituição da
República assegura à generalidade das pessoas.
Precedentes [...] (STF, ARE 639337 AgR, Rel. Min.
Celso de Mello, Segunda Turma, DJe-177, de
1º/9/2011).

Com isso evidencia a preservação da supremacia da


Constituição e a tutela dos direitos fundamentais nela
consagrados.

CONSIDERAÇOES FINAIS

Portando, ver-se que as políticas públicas têm por


finalidade precípua a implementação e concretização dos
direitos fundamentais sociais que demandam prestações
positivas do Estado e que esses mecanismos se revestem de
atos e normas da Administração, conforme inclusive
jurisprudência dos Tribunais Superiores.
A manifestação de uma postura ativa do poder
judiciário nas fruição das políticas públicas não interfere no
juízo de conveniência ou mesmo de oportunidade do gestor
Público, especialmente em razão do princípio da
inafastabilidade, pois não se pode desrespeitar direitos
fundamentais sociais de prestação positiva, o que na verdade
é obrigação do poder público sua efetivação.

24
Poder Judiciário, sem ofender a separação dos
poderes, faz para sociedade um papel de destaque na atual
conjuntura político-jurídica de nosso país, participando
expressivamente na transformação da realidade social, o que
se diz mormente pelo fato de que temos um país em que a
desigualdade é vista em cada esquina, sentida em cada afronta
aos mais necessitados.

REFERÊNCIAS

AGRA, Walber de Moura. Curso de Direito


Constitucional.4.ed. ver. e atual. Rio de Janeiro. Forense,
2008.

APPIO, Eduardo. Discricionariedade Política do Poder


Judiciário. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2007.
FREIRE JR., Américo Bedê. O controle judicial de
políticas públicas. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2005.

ALVES, Miriam Coutinho de Farias. O paradigma de gênero


da ciência jurídica: horizontes do feminismo na concretização
dos direitos fundamentais da mulher. Tese de doutorado em
direito. Programa de pós-graduação da UFBA. Faculdade de
direito. Universidade Federal da Bahia, 2014.

BARBOSA, Rui. Comentários a Constituição brasileira.


São Paulo: Saraiva, 1932, p. 11; Moraes, Alexandre de. Direito
constitucional. 15.ed. São Paulo: Atlas, 2004, p.64

BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito


Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007, p.401

COELHO, Helena Beatriz Cesarino Mendes. Políticas


públicas e controle de juridicidade: vinculação às

25
normas constitucionais. Porto Alegre: Sergio Antônio
Fabris Ed., 2010.

CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de Direito


Constitucional. 4. ed. Salvador: Juspodivm, 2010.
FREIRE JR., Américo Bedê. O controle judicial de
políticas públicas. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2005

KRELL, Andréas J. Direitos sociais e controle judicial no


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MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil


interpretada e legislação constitucional. São Paulo: Atlas,
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Andrade. Constituição Federal comentada e legislação
constitucional. 2.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2009.

SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos


Fundamentais. 2 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2001.

SILVA, José Afonso da. Curso de direito Constitucional


Positivo. 16. ed.São Paulo: Malheiros, 2001.

26
Capitalismo e Direito: uma crítica a partir
de Marx e Pasukanis2

Carla Janaina dos Santos3


Maria Adriana Torres4

Entender o funcionamento do Direito na sociedade em que


predomina o modo de produção do capital não é tarefa fácil,
pois requer um estudo aprofundado de como o capital se
apropria do Direito como um dos meios para reproduzir-se.
Desta forma, intentamos compreender o Direito enquanto
um complexo social, através de uma pesquisa teórica
mediante abordagem crítico-dialética para desvelar suas
especificidades e seus nexos com o sistema capitalista. Por
isso, para estudar esse complexo, nos utilizamos do
arcabouço teórico-metodológico deixado por Karl Marx que
nos permitiu enxergar o Direito como uma particularidade da

2 Eugeny Pasukanis é um jurista russo que viveu na época da União


das Repúblicas Socialistas SoviéticasURSS. É de sua autoria o livro
intitulado A teoria geral do direito e o marxismo, considerado, na
atualidade, um dos principais estudos sobre o Direito na perspectiva
marxista.
3 Possui graduação em Serviço Social pela Universidade Federal de

Campina Grande- UFCG, campus de Sousa-PB (2015). Trabalhou


durante dois anos (2016-2018) na Política de Assistência Social do
município de Maceió- Al. Atualmente é Mestranda em Serviço Social
pela Universidade Federal de Alagoas-UFA e faz parte do grupo de
Estudos e Pesquisas em Direito, justiça e sociedade-DJUSS/CNPq.
4 Possui graduação em Serviço Social pela Universidade Federal de

Alagoas - UFAL (2000), Mestrado em Serviço Social (2003) e


Doutorado em Sociologia (2009), ambos pela Universidade Federal de
Pernambuco - UFPE e Pós-doutorado em Direitos Sociais pela
Universidade de Salamanca - USAL/Espanha (2019). Atualmente é
Professora no departamento de Serviço Social da Universidade Federal
de Alagoas-UFAL.

27
totalidade social determinada pela categoria trabalho. No
modo de produção capitalista, este complexo é determinado
pelo trabalho abstrato/explorado, produtor de mercadorias e
de relações sociais contraditórias reificadoras do
antagonismo que há entre trabalhadores e donos dos meios
de produção. Portanto, a pesquisa realizada permite constatar
que é dessa base material produtora de mercadorias e de
relações sociais desiguais que se dá o Direito, a que faz alusão
Pasukanis (1972) em seus escritos respaldados no marxismo.

INTRODUÇÃO

Essa pesquisa é resultado do trabalho desenvolvido


durante o processo de estudo na pós-graduação para a
obtenção do título de mestre em Serviço Social pela
Universidade Federal de Alagoas-UFAL. Esse estudo da
especificidade do Direito na sociedade capitalista foi tratado
em um dos capítulos da dissertação. Por ser uma questão
complexa, nosso estudo não se esgotou nesse nível da pós-
graduação, continuando a instigar aprofundamentos
ulteriores. Por isso, achamos oportuno publicar o que
conseguimos apontar até o presente momento.
Este artigo está dividido em duas seções nas quais se
realizam, de forma sucinta, devido aos requisitos da
publicação, um estudo sobre como o Direito, complexo
social que tem por base a divisão da sociedade em classes
sociais antagônicas, se configura com uma especificidade
alcançada apenas no modo de produção do capital. Para
entender o porquê disso, é preciso desvelar as determinações
do Direito e sua função social advindas das necessidades de
reprodução da ordem burguesa.

28
Por isso, na primeira seção, trataremos de analisar
como a força incontrolável do capital produz e reproduz
mercadorias e, ao mesmo tempo, produz e reproduz relações
sociais extremamente desiguais que acabam por necessitar do
Direito. Na segunda seção abordaremos como o Direito, por
estar diretamente determinado por essa base de produção de
mercadorias, contribui para a reprodução da sociedade
capitalista.
A seguir, analisaremos a sociedade capitalista e a
produção de mercadorias inerentes às relações jungidas pelo
capital.

O CAPITAL E A ESPECIFICIDADE DA
MERCADORIA

Para compreender a especificidade do Direito na


sociedade capitalista por meio da análise marxista
pasukaniana, antes faz-se necessário explicitar o
funcionamento da sociabilidade em que predomina o capital5
e a peculiaridade que está envolta à produção de
mercadorias6. Neste sentido, Marx (1975) assevera que o

5 O capital, ainda segundo Mészáros (2002, p. 96), é “[...] em última


análise, uma forma incontrolável de controle sociometabólico. A razão
principal por que este sistema forçosamente escapa a um significativo
grau de controle humano é precisamente o fato de ter, ele próprio,
surgido no curso da história como uma poderosa – na verdade, até o
presente, de longe a mais poderosa – estrutura “totalizadora” de
controle à qual tudo o mais, inclusive seres humanos, deve se ajustar
[...]”.
6 A mercadoria é, “antes de tudo, um objeto externo, uma coisa que,

por meio de suas propriedades, satisfaz necessidades humanas de um


tipo qualquer. A natureza dessas necessidades – se, por exemplo, elas
provêm do estômago ou da imaginação – não altera em nada a questão.
Tampouco se trata aqui de como a coisa satisfaz a necessidade
humana, se diretamente, como meio de subsistência [Lebensmittel],

29
capital já submetia a sua força aos homens antes mesmo de
findar a organização feudal. Porém, a generalização dessa
força se deu apenas no sistema capitalista. Assim, o fim do
feudalismo aconteceu porque na base desse sistema começou
a desenvolver o capital, que precisava se expandir e que
encontrava limites para sua expansão no interior da ordem
feudal. Por isto, ao se livrar das restrições objetivas e
subjetivas que o sistema feudal impunha, o capital, de acordo
com Mészáros,

[...] se transforma no mais dinâmico e mais


competente extrator de trabalho excedente em toda
a história. Além do mais, as restrições subjetivas e
objetivas da autossuficiência são eliminadas de uma
forma inteiramente reificada, com todas as
mistificações inerentes à noção de “trabalho livre
contratual”. Ao contrário da escravidão e da
servidão. Esta noção aparentemente absolve o
capital do peso da dominação forçada, já que a
“escravidão assalariada” é internalizada pelos
sujeitos trabalhadores e não tem de ser imposta e
constantemente reimposta externamente a eles sob
a forma de dominação política, a não ser em
situações de grave crise. Assim, como sistema de
controle metabólico, o capital se torna o mais
eficiente e flexível mecanismo de extração do
trabalho excedente (MÉSZÁROS, 2002, p. 102-
103).

Assim, com o fim do Antigo Regime, a nova


organização social não encontra limites para sua expansão,
visto que não há como controlar o capital, e além disso, como
Mészáros (2002) deixa claro, a generalização desta nova
forma de produzir riquezas tem em sua base a escravidão

isto é, como objeto de fruição, ou indiretamente, como meio de


produção” (MARX, 2013, p. 130).

30
assalariada em que a exploração do trabalhador é velada por
uma relação de igualdade.
Além deste velamento, esta nova base determinante
das relações sociais que é o trabalho assalariado, segundo
Marx (1975), se mantém através de uma relação entre
desiguais, em que de um lado está o trabalhador e do outro o
capitalista. O trabalhador, visto não possuir meios de
produção, vive de vender a sua única mercadoria, a sua força
de trabalho, para produzir outras mercadorias que contém
trabalho não pago. O capitalista é o dono dos meios de
produção e é quem o contrata. Nessa relação, o trabalhador,
com sua força de trabalho, tem a particularidade de conferir
valor às mercadorias que produz. No processo de produção,
ele produz um valor excedente, pois ele trabalha não só o
tempo necessário que corresponda ao valor do seu salário,
mas também trabalha horas a mais não pagas. Estas horas em
que ele produz mercadorias e o seu trabalho não é pago são
chamadas por Marx (1975) de mais-valia. O capitalista usufrui
desta exploração, pois o trabalho excedente é a fonte da sua
riqueza. Desta forma, ao mesmo tempo em que o trabalhador
gera riqueza para o capitalista, também gera pobreza para si
mesmo. O próprio trabalhador mantém esta base social de
exploração.
É preciso salientar que nos modos de produção
escravista e feudal, as mercadorias já existiam, pois não se
produzia apenas para o uso, mas também para a troca.
Todavia, esta forma mercantil não era a via predominante. A
generalização da troca mercantil se dá apenas no sistema
capitalista. Esse sistema se particulariza porque a mercadoria
produzida pelo trabalhador tem como principal função
atender o valor de troca, como Marx (1975) afirma. O

31
objetivo da produção é gerar lucro para a apropriação privada
do burguês e não para atender as necessidades humanas.
Com isso, a mercadoria produzida na sociabilidade
burguesa traz consigo uma especificidade que não havia nas
outras sociabilidades. Como afirma Marx (2013, p. 132):

Prescindindo do valor de uso dos corpos das


mercadorias, resta nelas uma única propriedade: a
de serem produtos do trabalho. Mas mesmo o
produto do trabalho já se transformou em nossas
mãos. Se abstraímos seu valor de uso, abstraímos
também os componentes [Bestandteilen] e formas
corpóreas que fazem dele um valor de uso. O
produto não é mais uma mesa, uma casa, um fio ou
qualquer outra coisa útil. Todas as suas qualidades
sensíveis foram apagadas. E também já não é mais
o produto do carpinteiro, do pedreiro, do fiandeiro
ou de qualquer outro trabalho produtivo
determinado. Com o caráter útil dos produtos do
trabalho desaparece o caráter útil dos trabalhos
neles representados e, portanto, também as
diferentes formas concretas desses trabalhos, que
não mais se distinguem uns dos outros, sendo todos
reduzidos a trabalho humano igual, a trabalho
humano abstrato.

Destarte, o valor da mercadoria é advindo da força


de trabalho empregada na sua produção, e é justamente por
conter força de trabalho que as mercadorias podem se igualar
a outras mercadorias. Desta forma, o que iguala uma
mercadoria a outra é o trabalho abstrato contido nela, ou seja,
as formas concretas dos trabalhos se apagaram e se reduziram
a trabalho humano abstrato. Como consequência disso, o
produtor da mercadoria não reconhece mais o produto que
produziu, pois como o autor explicou, o que importa e gera
lucro no sistema capitalista é o tempo de trabalho despendido
na produção. As qualidades sensíveis de quem produz e do

32
que se produz perdem importância e tudo passa a ser
mercadoria, inclusive a força de trabalho (MARX, 2013).
Através da mercadoria produzida pelo modo de
produção capitalista não é possível perceber, de forma
imediata, que ela é resultado do trabalho explorado e que o
único meio de comercializá-la e igualá-la às outras
mercadorias é, exatamente, por conter dispêndio de forças de
trabalho equivalentes que lhe determina valores para serem
vendidas. Pelo fato de a mercadoria encobrir a exploração,
ela então carrega uma mistificação. Isso significa que tudo
passa a ser comercializado. Esta comercialização coloca
sujeitos opostos como iguais.
Assim, neste modo de produção, as relações de
exploração são mascaradas pela forma como o trabalho se
realiza. O trabalhador se vê livre como um pássaro como
afirma Marx (1975), pois ele está livre para ir ao mercado
vender a sua força de trabalho, uma forma feitichizada de
liberdade que reifica o trabalho alienado. Porém, essa
liberdade é falsificada, pois a força de trabalho é o único bem
que o trabalhador tem e ao vendê-la ela torna-se mercadoria
apropriada pelo capitalista.
Para o autor referenciado, como já foi dito, esta
relação é desigual, pois proporciona riqueza de um lado e
miséria do outro. Esta relação é, portanto, a base que mantém
o sistema capitalista em pé e é também determinante das
relações sociais. Toda a superestrutura da sociedade burguesa
tem como fator determinante essa relação de exploração que
aliena e oprime o trabalhador.
Apesar de este modo de produção encobrir as
relações de exploração, muitos trabalhadores, já no primeiro
estádio de desenvolvimento do capital, se organizam e
reivindicam por melhores condições de vida (SIMÕES,

33
2013). Para este autor, é da luta dos trabalhadores, no
momento da expansão do capital industrial, que surgem os
primeiros direitos que asseguram à classe social dos
trabalhadores direitos sociais.
Como exemplo de constituições desse período de
luta temos os movimentos ludista e cartista e as legislações de
fábrica, com significativa participação do movimento
operário inglês, em decorrência da alta exploração do
proletariado e da sua luta organizada para fins de conter os
abusos dos donos dos meios de produção sob a proteção do
Estado burguês. Além desses movimentos e legislações,
também observa-se as lutas dos trabalhadores contempladas
em algumas passagens da Constituição mexicana de 1917, que
segundo Rizzi e Faria (2016), foi a primeira constituição
mundial que assegurou direitos sociais, e, também deste
período, temos a Constituição alemã de 1919, mais conhecida
como Constituição de Weimar.
Estas duas constituições são exemplos da
intervenção do Estado7 garantindo direitos sociais aos
trabalhadores. É por isto que no modo de produção
capitalista o Direito alcança uma particularidade específica
que não tinha antes nas outras sociabilidades. Veremos isso a
seguir.

7 Apesar do Estado se colocar como social neste momento, ele não


exclui o seu caráter de submissão à classe dominante. Como Engels
(1984) afirma, o Estado surge subordinado à classe dominante para
contribuir para a manutenção desta no poder. O Estado, portanto,
representa sempre os interesses da classe dominante, mesmo
garantindo algumas melhorias para os trabalhadores.

34
A ESPECIFICIDADE DO DIREITO COMO UM
MEIO DE REPRODUÇÃO DA ORDEM DO
CAPITAL

Na sociabilidade capitalista, a especificidade do


Direito se dá porque pela primeira vez na história ele se
generaliza de modo tal que todos passam a ser sujeitos de
Direito. Como exemplo acima demonstramos as primeiras
constituições que atendem a toda a sociedade e, em especial
aos trabalhadores, garantindo direitos sociais. Segundo
Pasukanis (1972), é apenas no sistema capitalista que o
aparato jurídico passa a regular todas as instâncias da vida
social e garante direitos tanto à classe abastada quanto aos
destituídos de riqueza. Assim, o referido autor afirma que
apenas na sociedade capitalista o Direito se generaliza e ganha
uma dimensão universal.
Veja-se que, por exemplo, nas sociabilidades
anteriores ao capitalismo “o escravo está totalmente
subordinado ao seu senhor e [...] esta relação de exploração
não carece de qualquer construção jurídica particular”
(PASUKANIS,1972, p. 109). Ou seja, nessas sociabilidades,
nem todos eram sujeitos de Direito e por isso não podiam
vender sua força de trabalho porque ela era expropriada sem
nenhum encobrimento. A relação de exploração era direta e
não necessitava de um contrato por meio jurídico entre as
partes. Esta necessidade e especificidade do Direito se dá
apenas no sistema capitalista onde a divisão do trabalho se
realiza de forma mais complexa. A reprodução desta
complexidade necessita de um ordenamento que contribua
para a sua manutenção e por isso o Direito reflete as relações
econômicas burguesas e nunca vai além delas.

35
Para Mascaro (2007), nas sociedades anteriores ao
capitalismo também não havia instância jurídica específica,
pois o Direito não estava separado da religião, por exemplo.
Muitas regras sociais eram impostas através da ordem
religiosa, pois esta regulava e mandava, assim como o rei, ou
o senhor feudal ou o senhor de escravos. Dessa forma,
percebe-se que o Direito não se constituía como o complexo
específico que é hoje. Antes ele estava totalmente imbricado
com essas instâncias sociais.
Pasukanis (1972) também deixa claro que antes do
sistema do capital a própria lei não igualava os seres humanos,
por isso nem formalmente havia a igualdade entre todos. “A
igualdade dos sujeitos era pressuposta apenas no concernente
a relações compreendidas numa esfera relativamente
limitada” (PASUKANIS, 1972, p. 121). Ou seja, os sujeitos
tinham igualdade de direitos apenas em âmbitos específicos,
como a igualdade entre os nobres, entre o clero; ficando o
restante da população desigual em relação a estes. Dessa
forma, nem todos eram sujeitos de direitos e nem todos eram
iguais formalmente.
Como no sistema capitalista os servos são libertados
dessa relação de servidão, eles se tornam livres porque nesta
nova base social está o trabalho assalariado que condiciona
os homens a se tornarem força de trabalho “livre”. Com isso,
pelo fato de a sociedade capitalista colocar todos no âmbito
da lei como livres e iguais é que será permitido a criação de
direitos que representem os destituídos de riqueza. Assim, os
direitos sociais garantidos aos trabalhadores são frutos da luta
e organização destes, mas também representam o contrato
social que coloca explorado e explorador no mesmo patamar.
Neste sentido,

36
[...] é apenas na sociedade burguesa capitalista, onde
o proletariado surge como sujeito que dispõe da sua
força de trabalho como mercadoria, que a relação
econômica da exploração é juridicamente
mediatizada sob a forma de um contrato
(PASUKANIS, 1972, p. 23).

Esta nova condição humana de “liberdade” requer o


reconhecimento na forma da lei. É por isso que há a
necessidade de um contrato social entre os sujeitos. O
capitalista compra a força de trabalho e o trabalhador a vende.
Sendo assim: “para que alguém compre e alguém venda, é
preciso que exista, juridicamente, a liberdade de contratar”
(MASCARO, 2007, p. 14).
É no modo de produção capitalista que se “cria todas
as condições necessárias para que o momento jurídico esteja
plenamente determinado nas relações sociais”
(PASUKANIS, 1972, p. 39). Isto acontece porque, segundo
Mascaro (2007, p. 12), com o “comércio, a exploração do
trabalho mediante salário, a mercantilização das relações
sociais, tudo isso deu margem a um tratamento do Direito
como uma esfera social específica”. Assim, há uma ligação
intrínseca entre a “forma jurídica e a forma mercadoria”.
Conforme Pasukanis:

A sociedade capitalista é, antes de tudo, uma


sociedade de proprietários de mercadorias. Isto
significa que as relações sociais dos homens no
processo de produção revestem uma forma
coisificada nos produtos do trabalho que surgem,
uns em relação aos outros, como valores. A
mercadoria é um objecto no qual a diversidade
concreta das propriedades úteis se torna
simplesmente a envoltura coisificada da
propriedade abstracta do valor, que se exprime
como capacidade de ser trocada, numa determinada

37
proporção, por outras mercadorias (PASUKANIS,
1972, p. 110-111).

Da mesma maneira que a mercadoria encontra no


dispêndio da força de trabalho o seu equivalente geral com as
outras mercadorias, os sujeitos encontram no Direito o seu
equivalente geral aos outros sujeitos, visto que “é a ideia de
equivalência decorrente do processo de trocas mercantis que
funda a ideia de equivalência jurídica” (NAVES, 2000, p.58).
A relação social de produção burguesa é regulada pelo Direito
e é somente por meio dessa base, que supõe a divisão do
trabalho, que a forma jurídica se constitui. Destarte, a forma
jurídica tem uma funcionalidade diretamente ligada ao modo
de produção burguês, pois, “é preciso que a relação
económica da troca exista para que possa nascer a relação
jurídica do contrato de compra e venda” (PASUKANIS,
1972, p. 86).
Com isso, Pasukanis (1972) ensina que o sujeito é
núcleo da relação jurídica e que ele só passa a ser sujeito de
Direito ao poder dispor da sua força de trabalho e oferecê-la
no mercado como uma mercadoria. Por sua vez, a forma
jurídica só passa a existir quando há essas relações de compra
e venda de mercadoria generalizada entre os sujeitos. É
somente quando a força de trabalho passa a ser mercadoria
que o sujeito passa a ser sujeito de Direito. Desse modo, “tal
como a riqueza da sociedade capitalista reveste a forma de
uma enorme acumulação de mercadorias, também a
sociedade, no seu conjunto, se apresenta como uma cadeia
ininterrupta de relações jurídicas” (PASUKANIS, 1972,
p.75). Sobre essa questão, Naves (2002) elucida que:

38
A forma jurídica nasce somente em uma sociedade
na qual impera o princípio da divisão do trabalho,
ou seja, em uma sociedade na qual os trabalhos
privados só se tornam trabalho social mediante a
intervenção de um equivalente geral. Em tal
sociedade mercantil, o circuito das trocas exige a
mediação jurídica, pois o valor de troca das
mercadorias só se realiza se uma operação jurídica –
o acordo de vontades equivalentes – for introduzida
(NAVES, 2000, p. 57).

O produto do trabalho só pode ser vendido no


mercado por causa do equivalente geral, força de trabalho,
que determina o seu valor, e os produtores das mercadorias,
portanto, só podem vender a sua força de trabalho porque
são colocados como sujeitos de Direito livres e igualados aos
detentores dos meios de produção. O contrato de trabalho os
coloca como sujeitos iguais. Essa relação encobre que o
trabalhador sofre uma expropriação tanto do produto que
produziu, como uma expropriação social no sentido geral.
Por trás do aparato jurídico há a manutenção da exploração
e feitichização da relação do contrato.
Destarte, o Direito regula as relações sociais
produzidas pelo sistema capitalista que tem como base a
exploração do trabalhador, mas a sua forma técnica burguesa
não lhe permite legislar para questionar as bases de
reprodução da desigualdade e da maioria dos casos que tenta
solucionar que, na verdade, é mais um reflexo da
intensificação das mazelas produzidas pelo capital.
O indivíduo, por sua vez, tenta se adequar ao
ordenamento jurídico sem questionar a base determinante da
reprodução da pobreza. As pessoas que criam as leis e que as
executam estão revestidas dos princípios da ideologia
dominante e, por isso não vão além do que a sociedade lhes

39
permite. Pasukanis também esclarece que esses princípios de
regulação

[...] constituem resultados de um pôr consciente,


que enquanto pôr deve determinar as factualidades.
Por isso, as reações sociais a ele também acabam
sendo necessariamente de outra qualidade. Por essa
razão, é facilmente compreensível que a crítica
popular e também a literária à injustiça no direito
aplicado de modo consequente se concentre nessa
discrepância na subsunção do caso singular
(PASUKANIS, 1972, p. 242).

Nesse sentido, cria-se uma ideia de querer melhorar


o sistema jurídico como se ele pudesse ser justo com todos
os sujeitos. Como se a injustiças sociais acontecessem de
forma individualizada por causa de erros na aplicação do
Direito e não por fazer parte de um sistema desumano.
Por isso, as relações sociais que estão embutidas na
manutenção deste complexo reproduzem a forma do capital,
ou seja, a base de produção da riqueza que coloca o trabalho
assalariado como justo, encobrindo, assim, todo o processo
de alienação8 e exploração do trabalhador. A forma jurídica,
portanto, está subordinada a essa relação, pois “[...] a relação
jurídica é diretamente gerada pelas relações materiais de
produção existentes entre os homens” (PASUKANIS, 1972,
p. 90). E com isso “a forma jurídica, na sua forma
desenvolvida, corresponde precisamente a relações sociais
burguesascapitalistas” (PASUKANIS, 1972, p. 108).
Assim, a especificidade da forma do Direito, para
Pasukanis (1972), está nas relações de produção burguesas,
onde a mercadoria se generaliza. As relações jurídicas são

8 A respeito da
concepção marxiana de alienação, ver A ideologia alemã
(MARX; ENGELS, 2009, p.48- 49).

40
determinadas pelos compradores e vendedores de
mercadoria, pois é somente com esta base de produção que
iguala os sujeitos e os coloca como detentores de Direito, que
o complexo jurídico se generaliza. Desse modo, a forma
jurídica está intimamente ligada com a forma mercantil. Por
isso, “[...] a esfera da circulação das mercadorias ‘produz’ as
diversas figuras do direito [...]” (NAVES, 2000, p. 54). Dito
por outras palavras:

[...]. Quando toda a vida económica se edifica com


base no princípio do acordo entre vontades
independentes, cada função social reveste, de uma
maneira mais ou menos reflectora, uma carácter
jurídico, isto é, torna-se simplesmente não apenas
uma função social, mas também um direito
pertencente a quem exerce estas funções sociais
(PASUKANIS, 1972, p. 100).

Como na sociedade capitalista tudo passa a ser


mercadoria, inclusive a força de trabalho, então, da mesma
maneira, o Direito passará a ser aplicado em diversas
situações, até mesmo para aplicar penas que privam os
sujeitos de liberdade. Consoante Naves (2000), quando tudo
é comercializado, o Direito se adequa a esta realidade e passa
a atuar também na esfera de compensação da ofensa, ou seja,
os sujeitos que cometeram crimes terão como pena, no
sistema capitalista, a retirada de sua liberdade e para tê-la de
volta é necessário que paguem por ela. Para isso, é condição
indispensável para que o sujeito se comercialize, ou seja, para
que possa dispor de seu tempo como bem entender, que ele
seja livre para representar a mercadoria que sua força de
trabalho constitui. Desta forma, fica claro que a subjetividade
jurídica de se pôr livre e igual ao outro é especifica da
sociedade capitalista, pois,

41
[...] se a liberdade, esse atributo da personalidade,
existe por e para a troca, isto é, para que se constitua
um circuito de transações mercantis, então o
homem só é livre uma vez inserido na esfera da
circulação. Se, portanto, é a troca que constitui a
liberdade do homem, podemos dizer que quanto
mais se alarga a sua esfera de comercialização, mais
livre então pode ele ser, de tal modo que a expressão
mais ‘acabada’, a mais completa, a mais absoluta de
sua liberdade é a liberdade de disposição de si
mesmo como mercadoria. Aqui podemos encontrar
o homem reduzido à sua ‘essência’: no ato de troca
de si mesmo o homem realiza a sua liberdade,
portanto, a liberdade do homem aparece no ato de
disposição de si como mercadoria, no qual o
homem se torna um proprietário que carrega em si,
em sua ‘alma’, o objeto de seu comércio (NAVES,
2000, p. 67).

Veja-se que a liberdade do homem no sistema


capitalista é reduzida à liberdade de se vender como
mercadoria, e mais livre é quem mais relações comerciais
realiza. É a possibilidade que o homem tem de se vender que
o torna livre, que o afasta das relações de servidão. Ao ser
proprietário de sua força de trabalho, ao poder vendê-la por
um salário, é que garante ao sujeito a sua liberdade. Segundo
Naves (2000), a incapacidade de vender-se torna-o escravo
ou preso. É esta a garantia que o Direito dá aos sujeitos: a
possibilidade de ser proprietário de si mesmo. “Na condição
de sujeito-proprietário, o homem faz circular a si mesmo
como objeto de troca [...] e é somente essa condição que
realiza a sua liberdade” (NAVES, 2000, p. 68).
Tudo isso faz do Direito, no sistema em que
predomina o modo de produção do capital, um complexo
social com uma especificidade peculiar que o direciona a
encobrir as relações sociais capitalistas e a reproduzi-las.
42
Porém, embora todos esses apontamentos nos mostrem que
o Direito tem sua função social ligada à ordem de reprodução
do capital e, apesar das conquistas nesse âmbito, como as
liberdades individuais e os direitos sociais apresentarem
limites que se enquadram no interior da ordem burguesa, eles
são avanços que, segundo Marx (2009), representam o
desenvolvimento histórico de lutas trilhadas pela
humanidade. A luta e as conquistas, mesmo situadas no
âmbito do Direito, exprimem um grande salto alcançado pelo
conjunto de homens e mulheres que lutaram e lutam por
melhores condições de suas vidas.
Tais lutas e conquistas, conforme Marx (2009),
integraram o processo da emancipação política, que se
configura no patamar de liberdade mais avançado que a
humanidade pôde conquistar no interior de uma sociedade
de classes. Para além disso, só a conquista da emancipação
humana numa ordem superior à sociabilidade regida pelo
capital poderia elevar a humanidade a um patamar superior
de liberdade.
Portanto, a crítica ao Direito pelo viés marxista
pasukaniano não menospreza esse complexo e as conquistas
e lutas realizadas em seu âmbito, mas mostra os seus limites,
a sua natureza e a sua função social. Além disso, revela que a
luta que a humanidade deve realizar para dar fim a toda
exploração do homem pelo homem, tem que estar ligada à
luta por uma sociedade para além do capital.

CONCLUSÃO

Por tudo que foi dito, ficou claro que todas as pessoas
se tornam sujeitos de Direito apenas na sociedade capitalista,
pois nessa sociabilidade a base material de produção da

43
riqueza iguala, no âmbito formal, sujeitos desiguais. Por conta
disso, a universalização do acesso ao Direito por todos os
sujeitos, independente de sua classe social, se concretiza
somente quando todas as pessoas podem dispor de seu
tempo livre como “bem entenderem”. Isto só foi possível
com a emancipação política que libertou os indivíduos das
condições de vida determinadas pelo trabalho servil. Desta
forma, a emancipação alcançada com o fim do feudalismo
representa um grande salto na história da humanidade. No
entanto, ela se configura como um limite estrutural, pois se
situa no interior da ordem burguesa e não pode ir além dela
e, com isso, as lutas situadas no âmbito do Direito estão
enquadradas nesta emancipação. Ao entender isso, não
estamos afirmando que as lutas por direitos são inúteis, muito
pelo contrário, estamos afirmando que elas devem estar
subordinadas a um horizonte maior que é a emancipação
humana. Portanto, o entendimento da especificidade do
Direito na sociedade regida pelo capital nos mostra os seus
limites e as suas possibilidades.

REFERÊNCIAS

ENGELS, Friedrich. A origem da Família, da


Propriedade Privada e do Estado. Trabalho relacionado
com as investigações de L.H. Morgan. 9. ed. Tradução de
Leandro Konder. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1984.

MARX, Karl Heinrich; ENGELS, Friedrich.1818-1883. A


ideologia alemã. Karl Marx, Friedrich Engels; tradução de
Álvaro Pina. – 1.ed. São Paulo; Expressão Popular. 2009,
p.128.

44
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45
Relações Familiares
os desafios da sua atual configuração e
estrutura9

Deiver Neves Ferreira Barbosa;


Diocésar Taffarel;
Ingrid Ester Steiner Taffarel;
Karoline da Silva Santos;
Maria Viviane de Carvalho Tenório Andrade Lima;
Sônia Maria Albuquerque Soares;
Zelinda Maria Albuquerque Pinheiro

RESUMO: A pesquisa discute as transformações dos laços


familiares no panorama da sociedade atual, numa perspectiva
interdisciplinar, proporcionando a compreensão e
aprofundamento para a atualização dos conhecimentos na
área de Direito de Família, através do suporte teórico-
metodológico que possibilita o entendimento acerca da sua
configuração e estrutura. A investigação parte do
questionamento a respeito das relações entre as
características da família na atualidade e as tensões entre a
necessidade de segurança jurídica, diante do imperativo
constitucional da justiça material nas relações familiares. Isso
porque a estrutura familiar passou por uma mudança de
valores sociais que acabou modificando seu conceito ao
longo da história, que atualmente evidencia que o afeto é
essencial para a sua constituição, bem como que há
necessidade de o ordenamento jurídico brasileiro reconhecer

9Esteartigo é resultado de um Projeto desenvolvido pelo Programa


Semente de Iniciação Científica do Centro Universitário Cesmac.

46
as novas modalidades familiares, com novos valores e
costumes, levando em consideração os princípios
constitucionais da dignidade da pessoa humana, da igualdade
e da liberdade, que impuseram o reconhecimento de novas
espécies, como a união estável e a família monoparental, à
sociedade e ao direito brasileiro, ao mesmo tempo em que
surgiram novos desafios e novas perspectivas que abrangem
o direito de família nos dias atuais. O estudo tem como
método de procedimento uma pesquisa bibliográfica, com a
coleta de matérias publicadas em sites especializados, de
Tribunais de Justiça e fontes doutrinárias, tais como, livros,
manuais, revistas acadêmicas e artigos científicos. Além disso,
foram utilizados, como forma de averiguação,
posicionamentos jurisprudenciais, legislação em geral e
específica, para se compreender as modificações acontecidas
nas relações familiares sob um enfoque constitucional,
estabelecendo um paralelo entre a transformação dos
vínculos familiares e sua repercussão na judicialização dos
seus conflitos.

INTRODUÇÃO

Quando se busca descrever a importância da família


em sua função de amparo à pessoa nas diversas fases de vida,
constata-se que a compreensão é variável de acordo com as
expectativas dos movimentos que estabelecem as relações
sociais ao longo do tempo. Em uma perspectiva civil-
constitucional, ela é conhecida como uma instituição plural,
alvo de amparo estatal, voltada para a promoção do bem-
estar e desenvolvimento das pessoas que a compõem. Assim,
são vários os direitos e deveres lhe conferidos, todos

47
relacionados à promoção da dignidade da pessoa dos
membros, sejam eles crianças, adultos ou idosos, como
entendem Venosa (2016), Lôbo (2018), Madaleno (2019) e
Dias (2018).
A concepção de família adequada ao atual contexto
social é, então, decorrente do entendimento, numa
perspectiva constitucional do Direito de Família moderno,
como o local de apreciação do ser humano, por meio da
realização pessoal de todos os membros da entidade familiar,
com fundamento na efetivação do princípio constitucional da
dignidade humana e igualdade jurídica, além da afetividade e
pluralidade.
Diante dessas e outras questões, discute-se a
compressão de família de acordo com as perspectivas dos
movimentos que constituem as relações sociais ao longo do
tempo, sob uma argumentação reflexiva pautada nos
princípios de justiça apresentados na Constituição, mas não
esquecendo a caminhada histórica e social da família
brasileira, já que as relações familiares tiveram sua função
social transformada e já não se espera dessas relações
somente o cuidar e manter a prole.
Pode-se pensar, então, a configuração familiar em
termos dos arranjos e disposições dos membros que
compõem uma família. Sendo assim, as famílias têm diversas
configurações que variam desde as que reproduzem o modelo
tradicional definido pela consanguinidade e parentesco, até as
que coexistem nos dias atuais, como estruturação jurídica e
psíquica, com a regulação de novas formas de relações
sociofamiliares.
Assim, aborda-se o tema dando ênfase às relações
familiares conectadas com a evolução social, em que a
afetividade e o atendimento à dignidade da pessoa humana

48
funcionam como princípios. Desse modo, são feitas reflexões
delineadas em ações voltadas às relações familiares e sociais
com os espaços culturais brasileiros.
Nessa perspectiva, questiona-se: quais as relações
entre as características da família na atualidade e as tensões
entre a necessidade de segurança jurídica diante do
imperativo constitucional da justiça material nas relações
familiares?
A hipótese que foi trabalhada foi a de que, apesar dos
novos rumos que o Direito de Família tem tomado, com a
regulação de novas formas de relações sociofamiliares e os
novos paradigmas de família através das relações familiares,
apesar da conjugação dos princípios constitucionais que
norteiam a disciplina jurídica da família em favor da pessoa,
sabe-se que ela enfrenta dificuldades de diversa ordem, assim,
tratar das suas configurações é um desafio, tendo em vista a
profunda mudança no seu perfil.
O objetivo deste estudo é discutir as transformações
dos laços familiares no panorama da sociedade atual, numa
perspectiva interdisciplinar, proporcionando a compreensão
e aprofundamento para a atualização dos conhecimentos na
área de Direito de Família, através do suporte teórico-
metodológico que possibilita o entendimento acerca da sua
configuração e estrutura.
O estudo tem como método de procedimento uma
pesquisa bibliográfica, sendo baseado em textos jurídicos e
interdisciplinares, para se identificar a percepção atual das
relações familiares brasileiras, por meio do estreitamento e
entrelaçamento dos conhecimentos direcionados para o seu
estudo que, certamente, contribuirão para a compreensão de
conceitos – entre eles o de configuração e estrutura familiar

49
– que permitem a aproximação do levantamento das
diretrizes propostas.

CONFIGURAÇÃO E ESTRUTURA FAMILIAR:


DESAFIOS DIANTE DOS MÚLTIPLOS MODELOS E
PADRÕES

Tratar de configuração e estrutura familiar está


ficando cada vez mais difícil nos dias atuais, pois, nas últimas
décadas, a família vem mudando e adquirindo um novo perfil.
Alguns aspectos marcam essa redefinição e funcionamento
do que é o núcleo familiar, como a família monoparental,
família homoafetiva, entre outras.
Para Nader (2016), a família é uma instituição social
formada por mais de uma pessoa física, que juntas têm o
propósito de desenvolver entre si alguns pilares, como o da
solidariedade nos planos assistenciais e da convivência, ou
simplesmente são aquelas pessoas que descendem uma da
outra ou de um tronco em comum.
Essa definição é um conceito doutrinário, já que a
Constituição Federal de 1988 e o Código Civil de 2002, como
afirma Gonçalves (2017), não destacaram um conceito de
família; apenas estabeleceu a sua estrutura. Para ele, não há
identidade de conceitos no Direito como há na Sociologia,
uma vez que a natureza e a extensão do que é a família variam
de acordo com cada ramo do Direito brasileiro.
No entanto, as leis em geral ainda se referem à família
como um núcleo mais restrito, constituído pelos pais e filhos,
chamada de família nuclear, pois é resultante de um
casamento ou união estável, composta por pessoas de sexo
diferentes, com a intenção de estabelecerem uma comunhão
de vidas e de terem filhos.

50
Os laços de consanguinidade e parentesco eram as
referências que definiam a configuração familiar da maioria
da sociedade. Hoje em dia, não é tão simples identificar e
classificar as pessoas que pertencem ao mesmo grupo
familiar. Nader (2016) explica que alguns autores até usam a
expressão polimorfismo familiar, para afirmar que, na vida
prática, a sua composição se apresenta sob múltiplos modelos
e padrões.
Por esse motivo, não se pode mais definir família
apenas como a união entre pais e filhos, uma vez que a
tradicional cedeu lugar a diversas novas configurações,
levando em conta que elas estão se constituindo por livre
iniciativa dos indivíduos que, no entanto, ficam a mercê dos
efeitos jurídicos previstos pelo legislador brasileiro que, diga-
se de passagem, é extremamente relutante e vagaroso em
acompanhar as suas transformações ao longo do tempo, seja
por dogmas religiosos, seja por simples ineficácia
parlamentar.
A esse respeito, Venosa (2016) menciona que o
Código Civil de 2002 (considerado avançado para a época)
não se preocupou em trazer regramento jurídico para esses
novos núcleos familiares, tendo em vista as novas
modalidades de família que já estavam surgindo. E desse
modo, segundo ele, a legislação cível brasileira perdeu uma
grande chance de trazer inovação e amparo aos indivíduos
que dele necessitam, deixando o papel da definição familiar
muitas vezes por conta de outros agentes, como, por
exemplo, os tribunais por meio da jurisprudência.
Pode-se pensar, então, a configuração familiar como
um termo entre os arranjos e disposições dos membros que
compõem certo núcleo familiar. Sendo assim, as famílias têm
diversas configurações que variam desde as que reproduzem

51
o modelo tradicional definido pela consanguinidade e
parentesco, até as que coexistem nos dias atuais, como
estruturação jurídica e psíquica, com a regulação de novas
formas de relações sociofamiliares.
É importante asseverar que toda a sociedade possui
reflexo das mudanças realizadas no âmbito e no núcleo
familiar. Nesse sentido, um dos grandes desafios do Direito
é acompanhar as mudanças decorrentes até a aplicação
concreta da norma, para isso fazendo uso dos mecanismos
referentes à interpretação constitucional e infraconstitucional
das normas jurídicas adequando às necessidades da realidade
que os casos concretos demandam.
Um grande exemplo disso vem exposto nos
julgamentos da ADI n° 4277 e ADPF n° 132, propostas pelo
Procurador Geral da República, bem como pelo Governador
do Rio de Janeiro no STF. Precipuamente, as ações tiveram
início com o delinear de discussões envolvendo o não
reconhecimento de casais homoafetivos para que eles não
tivessem direito aos benefícios do INSS, por não constituir
uma relação de união estável. Porém, com o condão fático
muito além de uma discussão previdenciária, o STF foi
chamado a decidir sobre o reconhecimento da União Estável
entre pessoas do mesmo sexo, mesmo que no Código Civil
de 2002, em seu art. 1723, exponha in verbis: “Art. 1.723. É
reconhecida como entidade familiar a união estável entre o
homem e a mulher, configurada na convivência pública,
contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de
constituição de família.”
Instado a se manifestar, o Tribunal atribuiu
interpretação conforme a Constituição, ampliando as
hipóteses do art. 1723 a casais do mesmo sexo. Vale vistas
aos trechos da decisão proferida:

52
O sexo das pessoas, salvo disposição constitucional
expressa ou implícita em sentido contrário, não se
presta como fator de desigual ação jurídica.
Proibição de preconceito, à luz do inciso IV do art.
3º da Constituição Federal, por colidir frontalmente
com o objetivo constitucional de promover o bem
de todos. Silêncio normativo da Carta Magna a
respeito do concreto uso do sexo dos indivíduos
como saque da kelseniana norma geral negativa,
segundo a qual o que não estiver juridicamente
proibido, ou obrigado, está juridicamente
permitido. Reconhecimento do direito à preferência
sexual como direta emanação do princípio da
dignidade da pessoa humana: direito a auto-estima
no mais elevado ponto da consciência do indivíduo.
Direito à busca da felicidade. Salto normativo da
proibição do preconceito para a proclamação do
direito à liberdade sexual. O concreto uso da
sexualidade faz parte da autonomia da vontade das
pessoas naturais. Empírico uso da sexualidade nos
planos da intimidade e da privacidade constitu-
cionalmente tuteladas. Autonomia da vontade.
Cláusula pétrea. 3. TRATAMENTO CONSTITU-
CIONAL DA INSTITUIÇÃO DA FAMÍLIA.
RECONHECIMENTO DE QUE A CONSTI-
TUIÇÃO FEDERAL NÃO EMPRESTA AO
SUBSTANTIVO FAMÍLIA NENHUM SIGNIFI-
CADO ORTODOXO OU DA PRÓPRIA
TÉCNICA JURÍDICA. A FAMÍLIA COMO
CATEGORIA SÓCIO-CULTURAL E PRIN-
CÍPIO ESPIRITUAL. DIREITO SUBJETIVO
DE CONSTITUIR FAMÍLIA. INTERPRE-
TAÇÃO NÃO-REDUCIONISTA. O caput do art.
226 confere à família, base da sociedade, especial
proteção do Estado. Ênfase constitucional à
instituição da família. Família em seu coloquial ou
proverbial significado de núcleo doméstico, pouco
importando se formal ou informalmente constituí-
da, ou se integrada por casais heteroafetivos ou por
pares homoafetivos. A CONSTITUIÇÃO DE
1988, AO UTILIZAR-SE DA EXPRESSÃO
FAMÍLIA, NÃO LIMITA SUA FORMAÇÃO A

53
CASAIS HETEROAFETIVOS NEM A
FORMALIDADE CARTORÁRIA, CELEBRA-
ÇÃO CIVIL OU LITURGIA RELIGIOSA.
FAMÍLIA COMO INSTITUIÇÃO PRIVADA
QUE, VOLUNTARIAMENTE CONSTITUÍDA
ENTRE PESSOAS ADULTAS, MANTÉM COM
O ESTADO E A SOCIEDADE CIVIL UMA
NECESSÁRIA RELAÇÃO TRICOTÔMICA.
NÚCLEO FAMILIAR QUE É O PRINCIPAL
LÓCUS INSTITUCIONAL DE CONCREÇÃO
DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS QUE A
PRÓPRIA CONSTITUIÇÃO DESIGNA POR
INTIMIDADE E VIDA PRIVADA (INCISO X
DO ART. 5º). [...] (STF - ADPF: 132 RJ, Relator:
Min. AYRES BRITTO, Data de Julgamento:
05/05/2011, Tribunal Pleno, Data de Publicação:
DJe-198 DIVULG 13-10-2011 PUBLIC 14-10-
2011 EMENT VOL-02607-01 PP-00001). (grifos
no original).

É necessário que se entenda que não reconhecer


casais do mesmo sexo como um novo conceito de família
significaria certamente no Direito fechar os olhos à realidade,
não atribuindo o que ele se presta a servir: a Justiça.
Tudo isso confirma o fato de que a família, ou
melhor, seu núcleo axiológico está em permanente estado de
transição, a todo o tempo, e cabe ao Direito se adaptar aos
liames que ela adota.

CONFIGURAÇÃO HISTÓRICA E ESTRUTURA-


ÇÃO FAMILIAR ATUAL

Diversos são os paradigmas que atingem a concepção


atual de família. Não é diferente também o entendimento dos
tribunais a respeito do tema, valendo mencionar que hoje,
muito além do caráter biológico que se tinha como elemento
nuclear alguns anos atrás, o Direito passou a enxergar o

54
direito à felicidade dos indivíduos envolvidos na relação
familiar, bem como o de escolha e os novos laços que
compreendem a família. Este tipo de desdobramento
conceitual que a estruturação familiar atinge é fruto de uma
grande evolução concebida a partir da evolução da sociedade
em geral, destacando-se como marco político o advento da
Constituição Federal de 1988.
Observa-se que os tribunais vêm alcançando este
novo paradigma da configuração familiar. É válido citar
julgamento do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, pelo qual
se discutia a paternidade socioafetiva:

AGRAVO DE INSTRUMENTO - NOVOS


CONTORNOS DA CONCEPÇÃO DE
FAMÍLIA, SOB A ÉGIDE DA CONSTITUIÇÃO
DE 1988 - PATERNIDADE SOCIOAFETIVA -
DIREITO DE VISITAS - AUSÊNCIA DE
ELEMENTOS QUE DESABONEM A
CONDUTA DO PAI - BEM ESTAR DA
CRIANÇA. - Após o advento da Constituição
Federal de 1988, surgiu um novo paradigma para as
entidades familiares, não existindo mais um
conceito fechado de família, mas, sim, um conceito
eudemonista socioafetivo, moldado pela afetividade
e pelo projeto de felicidade de cada indivíduo.
Assim, a nova roupagem assumida pela família
liberta-se das amarras biológicas, transpondo-se
para as relações de afeto, de amor e de
companheirismo [...]. (Agravo nº 234.555-1,
acórdão unânime da 2ª Câmara Cível, TJMG,
Relator Des. Francisco Figueiredo, pub.
15/03/2002). - Também na regulamentação de
visitas, deve ser considerado o bem estar da criança,
prevalecendo aquilo que vai incentivar seu
desenvolvimento físico, social e psíquico da melhor
maneira possível, garantindo, sempre, seus direitos
e sua proteção. - Recurso desprovido. (TJ-MG - AI:
10115120014515001 MG, Relator: Eduardo

55
Andrade, Data de Julgamento: 07/05/2013,
Câmaras Cíveis / 1ª CÂMARA CÍVEL, Data de
Publicação: 16/05/2013).

A forma de organização da família construída


historicamente favorece a geração de vínculos entre seus
membros, que elaboram, cognitivamente, formas de
representá-la mentalmente. Tais representações decorrem da
estreita comunicação/relação entre sistemas culturais
produzidos e determinações históricas e sociais. A família é,
portanto, uma instituição cuja dinâmica e organização estão
intimamente ligadas a processos e práticas sociais. (ARAÚJO,
2005).
Ainda de acordo com o autor acima citado, dentre os
outros vários entendimentos a respeito do termo família, há
o que define tal instituição como uma delimitação de
indivíduos ligados por laços de consanguinidade e de
casamento; e outro que a entende como um grupo doméstico,
cuja convivência numa mesma unidade residencial permite
que seus membros estabeleçam entre si relações
psicoafetivas, sociais e econômicas por um longo período de
suas vidas, o que corrobora o desenvolvimento da afetividade
e da interdependência sociocultural entre eles. Isso porque o
legislador e o aplicador da lei não podem desconhecer
estudos antropológicos e sociológicos, pois estes evidenciam
não somente a multiplicidade de estruturas e funções
familiares, como revelam também diversas causas
responsáveis pela alteração da família ao longo do tempo.
Para compreender melhor essa instituição é
fundamental, portanto, analisar sua forma de organização, as
relações estabelecidas entre os membros que a compõem, as
interações entre sua dinâmica interna e a realidade externa na
qual está inserida e, sobretudo, as mudanças que sofreu ao

56
longo do tempo. Estudos históricos, metodologicamente
delineados, demonstram que a família é uma instituição em
contínua mutação e que ao longo de sua construção histórica
não apresenta uma formação de caráter linear, o que
impossibilita que novos tipos familiares sejam considerados
de qualidade superior aos tipos familiares anteriores.
Pesquisas que se baseiam nas teses evolucionistas da família
revelam a existência de uma íntima relação entre os processos
econômicos e culturais de uma determinada época e a forma
de sua organização, conforme Araújo (2005).
Fazendo uma retrospectiva acerca da configuração
familiar, observa-se que, nas sociedades primitivas, um
período matriarcal antecedeu o período patriarcal. No
período matriarcal, a linha feminina determinava a filiação e
a poligamia era culturalmente aceita. Morgan (1871, apud
ARAÚJO, 2005) refere várias formas de ser família: a
consanguínea, envolvendo os avós, seus filhos, netos e bisnetos,
que deviam formar casais, com exclusão de matrimônio
apenas entre pais e filhos; a punaluana, que passa a admitir
casais não consanguíneos, determinando, quanto aos casais
consanguíneos, que irmãos e primos não podiam ter um
casamento comum; a sindiásmica, caracterizada por uniões
mais longas e pela existência de um par preferencial, com
contínua redução de casamentos entre parentes; e a
monogâmica, decorrente das mudanças na força econômica,
que passou a se concentrar nos homens, com predomínio do
pai, cujo fim era procriar, para que seus filhos se tornassem
herdeiros de suas riquezas. Na família monogâmica, a
fidelidade conjugal/monogamia era exigida apenas da
mulher, podendo o homem romper laços conjugais, bem
como praticar a infidelidade.

57
Diante dessa concepção, a monogamia não surgiu
como forma de caracterizar um matrimônio mais elevado,
mas como uma escravização da mulher pelo homem, com o
fim de preservar a transmissão de bens por herança,
caracterizando, pois, um matrimônio por conveniência.
Segalen (1999, apud ARAÚJO, 2005) não hierarquiza as
formas de ser família de ontem e de hoje, ressaltando apenas
que as diferenças existentes entre elas se devem às diferentes
circunstâncias que as envolvem.
O autor acima citado aponta que, com o movimento
de industrialização, que passou a ter a família como
participante ativa do processo de produção social, essa
instituição é forçada a modificar suas relações internas e
externas, permanecendo apenas como espaço de reprodução
biológica e onde se estabelecem vínculos afetivos, uma vez
que a reprodução social se dava fora da família. A Escola de
Chicago, porém, ignorou as consequências do racionalismo
econômico, concentrando-se na função afetiva da família,
que começa a perder não somente a função econômica, mas
também a função educadora, que passam a ser exercidas pelo
Estado. No contexto das relações sociais globais,
caracterizadas por uma maior divisão social do trabalho, é
possível compreender a família moderna, que passa a ter
diminuídas as suas funções de produção econômica familiar,
a partir do ingresso da mulher e do menor nas atividades de
produção de riquezas.
No Brasil, a partir do Código Civil de 1916, o
percurso do Direito de Família, do ponto de vista jurídico,
teve alguns marcos históricos que contribuíram efetivamente
para a construção das famílias brasileiras: a Lei do
reconhecimento de filhos ilegítimos, o Estatuto da Mulher
Casada, a Lei do Divórcio e a Constituição da República. No

58
longo processo de transformação, que teve início com a lenta
e gradual desvinculação de um regramento de origem
nitidamente religiosa, diversos arranjos familiares somente
recentemente tiveram seu reconhecimento formal. Como
consequência, o surgimento de novas situações familiares
vem desafiando o direito codificado, destacando-se as
diversas possibilidades de parentalidade resultantes do
avanço científico e médico que popularizou a utilização de
técnicas de reprodução assistida.
O Código Civil de 1916 contemplava o matrimônio
como base da família na sociedade cristã moderna, devendo
o Direito de Família se ocupar das relações familiares que
compreendiam o casamento, o pátrio-poder, e tutela e a
curatela. A Constituição republicana de 1934 reconheceu e
consagrou o casamento civil, admitindo a celebração do
casamento religioso com efeitos civis, desde que cumpridos
os requisitos legais. Ao homem cabia a chefia da sociedade
conjugal e, nesta sociedade, a mulher ocupava uma posição
de inferioridade e incapacidade. A ausência da virgindade, ora
exigida, constituía causa de anulação do casamento. Por outro
lado, as relações sem casamento eram reprovadas moral,
social e civilmente, atingindo, consequentemente, os filhos
que delas eram frutos, que eram discriminados por sua
condição de ilegítimos.
Antes da Constituição de 1988, somente poderia ser
destinatária de proteção jurídica a família legítima constituída
pelo casamento civil. As relações informais entre homens e
mulheres, construídas à margem do casamento civil, então
denominadas concubinatos, por afrontarem a única forma
permitida de sua formação, não geravam direito algum.
Ocorre que, com a entrada em vigor da atual Constituição,
ela era fundada no companheirismo, ora denominada união

59
estável, passando a ser considerada uma forma legítima de
construção familiar. Assim, casamento e união estável
merecem igual proteção do Estado, uma vez que amor,
afeição e solidariedade dignificam a união entre homem e
mulher que se juntam para constituir uma família.
No panorama da Constituição de 1988, a filiação
brasileira está consagrada pelo princípio da paridade. Assim,
revogaram-se- as regras do Código Civil de 1916, bem como
leis que estabeleciam qualquer privilégio ou desigualdade em
virtude da filiação, não admitindo quaisquer denominações
discriminatórias relativas aos vínculos de filiação. Nesse
contexto, desapareceram os conceitos de filiação legítima e
ilegítima, pendente de vínculo matrimonial dos pais. Além de
admitir o reconhecimento dos filhos adulterinos, havidos
fora do matrimônio por qualquer dos cônjuges, a
Constituição também passou a admitir a possibilidade de
dissolução do vínculo matrimonial e a emancipação da
mulher casada.
Com o princípio constitucional da dignidade da
pessoa humana, a paternidade passa a ser vista sob a ótica de
sua concepção cultural, conquistando relevância social e
adquirindo valorização jurídica, passando a ser considerada
não somente a de origem biológica, mas também a que se
sustenta no vínculo afetivo. A paternidade real é cultural, não
biológica; é fruto das relações de sentimentos que vão sendo
cultivados e dos vínculos afetivos que se formam com a
convivência, como mostra Madaleno (2019).
Nessa perspectiva, as novas tendências do Direito de
Família brasileiro podem ser divididas em alguns planos,
conforme o autor acima citado, dentre os quais: 1) o amor, o
afeto, o aspecto emocional e a relevância destes para a busca
da autenticidade nas relações; 2) o princípio da paridade entre

60
cônjuges e companheiros; 3) a igualdade dos filhos de
qualquer natureza, incluindo os filhos adotivos; 4) o
reconhecimento e a proteção do concubinato; 5) a primazia
dos interessas da criança e do adolescente.
Desse modo, as relações afetivas vivenciadas dentro
do núcleo familiar, pela interação dos membros da família,
constituem força propulsora de valores na sociedade
contemporânea, possibilitando o surgimento de novas
relações sociais. Assim, a busca de relações afetivas estáveis e
livres revelada, nas formas de escolha do parceiro conjugal,
no rompimento de tal parceria e na possibilidade de uma
compor nova relação, corrobora a afirmação da
individualidade.
Na tentativa de compreender a atualização do
modelo familiar, em decorrência das novas circunstâncias,
convém destacar que a participação da mulher no mercado
de trabalho vem gerando uma espécie de vazio nas funções
de criação, educação e sustentação dos filhos, bem como uma
diminuição no tamanho da família, como uma forma de se
buscar diminuir as distâncias existentes entre os ganhos
salariais e os recursos necessários ao sustento do grupo
familiar. O novo modelo familiar também é caracterizado
pelo aumento das dissoluções de vínculos matrimoniais e
familiares, que leva não somente a novas recomposições de
estrutura familiar, como também ao crescente número de
pessoas vivendo sozinhas. (MADALENO, 2019).
Além disso, o autor aponta que a Constituição
brasileira de 1988 também elevou, à condição de entidade
familiar, a comunidade monoparental, formada por qualquer
um dos pais e seus descendentes, como, por exemplo, a
maternidade independente formada por mães solteiras, diante
do crescente número de tal modalidade de comunidade,

61
decorrente, por exemplo, das separações fáticas, dos
divórcios, de casos de viúvas que criam seus filhos sozinhas.
Assim, é possível reconhecer que as relações afetivas
vivenciadas dentro do núcleo familiar, pela interação dos
membros da família, constituem força propulsora de valores
nas sociedades contemporâneas, possibilitando o surgimento
de novas relações sociais. A busca de relações afetivas
estáveis e livres, revelada nas formas de escolha do parceiro
conjugal, no rompimento de tal parceria e na possibilidade de
uma compor nova relação corroboram a afirmação da
individualidade, conforme Araújo (2005).
É dessa forma que as instituições familiares na era
atual negam as estruturas uniformes, rígidas e hierarquizadas
do passado. As famílias na pós-modernidade são instituições
mais flexíveis e abertas, prevalecendo à inclusão sobre a
exclusão, ampliando a autonomia individual e valorizando a
realização pessoal do indivíduo. (MALUF, 2010).
Cabe salientar que, muito além de buscar a atual
configuração e conceituação de família, a missão que o
Direito busca hoje é encontrar algo totalmente contrário a
isso, explicando melhor, algo que fuja do conceitualismo que
se busca para definir um instituto tão vasto e indefinido
quanto o conceito da família hoje, afinal, como já dito,
existem diferentes óticas familiares. Entende-se que o direito
busca auferir um “não conceito de família”, pelo qual tudo que
se componha pelo afeto, pelos vínculos estabelecidos, bem como o direito
das pessoas de serem felizes pode ser considerado família.
Cumpre observar que, da mesma forma que a
concepção do que é família na atual conjuntura é algo
diversificado, também o faz a configuração familiar. Hoje em
dia, é perfeitamente possível casais do mesmo sexo, famílias
multiparentais, monoparentais, enfim, das mais diversas

62
formas que se podem atingir a estruturação do que é
considerado família, como apontados nos estudos de Venosa
(2016), Lôbo (2018), Madaleno (2019) e Dias (2018).

TRANSFORMAÇÕES NAS RELAÇÕES FAMILIA-


RES SOB O ENFOQUE CONSTITUCIONAL E
SUA RELAÇÃO COM O CÓDIGO CIVIL DE 2002

Como já exposto anteriormente, o advento da


Constituição de 1988 trouxe, ao Direito de família, uma
verdadeira revolução axiológica, sendo que, para Madaleno
(2019), com a promulgação da Constituição Federal de 1988,
houve a primeira e verdadeira grande revolução no Direito de
Família brasileiro, a partir de três fundamentos basilares,
quais sejam, o da família plural, com várias formas de
constituição – casamento, união estável e monoparentalidade
familiar, o da igualdade no tratamento jurídico da filiação,
desvinculada dos preconceitos que doravante se encontrava
eivada e a sedimentação do princípio da igualdade entre
homens e mulheres.
Para além de uma nova conceituação de entidade
familiar, a Constituição de 1988, acolhendo inúmeras
sugestões da sociedade civil, voltou-se muito mais para os
aspectos pessoais do que para os patrimoniais das relações
familiares, destacando-se os temas relacionados ao
fortalecimento da família como união de afetos, igualdade
entre homem e mulher, guarda de filhos, proteção da
privacidade da família, proteção estatal das famílias carentes,
aborto, controle de natalidade, paternidade responsável,
liberdade quanto ao controle de natalidade, integridade física
e moral dos membros da família, vida comunitária, regime
legal das uniões estáveis, igualdade dos filhos

63
independentemente da origem, responsabilidade social e
moral pelos menores abandonados e facilidade legal para
adoção.
Para Venosa (2016), embora o Código Civil de 2002
procure fornecer uma nova compreensão do instituto família,
adaptada aos tempos atuais, revela-se incipiente a iniciativa de
evolução nesse sentido. Na esteira das diretrizes
constitucionais vigentes, a atual codificação civilista procura
estabelecer uma completa igualdade jurídica dos cônjuges e
dos companheiros, do homem e da mulher, ao tempo em que
contempla o princípio da igualdade jurídica de todos os
filhos, independentemente de sua origem.
Lôbo (2018) adverte que o atual Código Civil, apesar
de conter uma mudança de paradigma do enfoque
individualista para o da solidariedade social, ainda manteve
destacada presença dos interesses patrimoniais em
detrimento dos de natureza pessoal, em variados institutos do
Livro IV, dedicado ao direito de família, desprezando-se a
questão essencial da afetividade. Da mesma forma, defende
o autor, não resolveu o descompasso da legislação civilista
com o texto constitucional, visto que várias das normas
infraconstitucionais estão calcadas em paradigmas passados e
em desarmonia com os novos princípios constitucionais,
desencontrando-se com a concepção de família atual, que é
marcada por outros interesses de cunho pessoal ou humano,
tipificados pela pluralidade, solidariedade e afetividade, estes
dois últimos elementos aglutinadores e nucleares distintos
dos outrora existentes.
Assim, para além das famílias formadas
exclusivamente pelo casamento, há formatos outros que
também são reconhecidos como arranjos familiares, a
exemplo dos que são formados pela união estável ou por

64
pessoas do mesmo sexo (família homoafetiva), das famílias
monoparentais, das famílias provenientes do vínculo de
parentesco ascendente ou descendente, das famílias oriundas
do convívio entre parentes ou pessoas que não sejam
parentes, das famílias originadas em decorrência do
desfazimento de uniões anteriores e da criação de novos
vínculos e das famílias fundadas exclusivamente no afeto.
Por óbvio, como o processo legislativo não tem
acompanhado, no que diz respeito ao Direito de Família, a
evolução da sociedade brasileira, na qual se verifica a
existência dessa pluralidade de modelos familiares
multifacetados, na maioria das vezes ficando estes
desamparados pela legislação, observa-se um significativo
aumento da demanda nas Varas de Família que, ao tempo em
que sobrecarrega e congestiona o Poder Judiciário, faz com
que ele assuma um protagonismo cada vez mais acentuado
como agente regulador dos conflitos familiares, na medida
em que é nele que acabam desaguando as questões
controversas relacionadas ao Direito de Família.
Entretanto, de acordo com Lôbo (2018), nem sempre
os conflitos familiares necessitam ser solucionados
provocando-se a intervenção do Estado, mediante atuação de
um juiz togado. Segundo o autor, o processo judicial envolve
a questão da invasão da privacidade das relações familiares,
bem como da intimidade, da vida privada, da honra e da
imagem das pessoas envolvidas, o que muitas vezes contribui
para o acirramento das diferenças existentes, contrapondo-se
as partes envolvidas em uma verdadeira disputa figadal, na
qual a lógica possível é tudo ou nada, certo ou errado,
inocente ou culpado. Cita o autor a Lei nº. 11.441/2007 como
sendo um avanço legislativo, na medida em que retirou a
exclusividade da intervenção judicial para o divórcio, quando

65
houver consenso entre os cônjuges quanto aos alimentos, à
partilha do patrimônio e à utilização ou não do prenome de
um pelo outro, dispensando-se, nesse caso, o processo
judicial, permitindo aos cônjuges que procedam ao divórcio
mediante tão somente a lavratura de escritura pública.
Outro fato que vale a pena comentar é que a
judicialização dos conflitos familiares envolve demandas
judiciais, provenientes das relações familiares, que dizem
respeito não somente à separação conjugal, mas também
demandas outras que surgem após a ação de separação ou de
divórcio, como, por exemplo, questões relacionadas à guarda
dos filhos e ao patrimônio familiar, as quais muitas vezes não
satisfazem uma ou ambas as partes, podendo até mesmo
agravar a crise familiar que se instalou.
Nesse sentido, assevera Lôbo (2018), é que ganha
importância a mediação, instituto inserido no ordenamento
jurídico pátrio pela Lei nº. 13.140/2015, considerado um
instrumento valioso para a solução dos conflitos familiares
em questões que versem tanto sobre direitos disponíveis
quanto sobre direitos indisponíveis que admitam transação,
no qual o mediador se posiciona não na função de julgador,
mas com a responsabilidade de fazer com que os litigantes se
aproximem para que eles próprios possam alcançar o
consenso possível para a questão que se apresenta. Destaca
ainda o autor que a mediação supera a judicialização como
forma de resolução dos conflitos, no sentido de que ela está
relacionada à assunção de responsabilidades pelos envolvidos
em face das próprias decisões compartilhadas, tendendo a ser
mais duradouras e efetivas que as decisões judiciais que, ao
contrário, não têm o condão de encerrar os conflitos.

66
CONCLUSÃO

A disciplina das relações familiares no Brasil


encontrou uma grande reforma e evolução com o advento da
Constituição de 1988, especialmente no tocante a ampliação
democrática imposta pelo Princípio da Dignidade da Pessoa
Humana, que revelou a superação do pater familis, retirando a
figura do homem do centro da composição familiar e
tornando a disciplina da família isonômica entre todos os
membros que compõem determinada relação familiar, além
de reconhecer diversos institutos de forma ética e moral.
Atualmente, por exemplo, o ordenamento jurídico
brasileiro supera os dogmas de que a família somente é
composta por um homem e uma mulher após o vínculo
matrimonial, haja vista que vem buscando um conceito
amplo e aberto (por que não dizer indeterminado?) de família,
sendo a sua constituição atualmente muito mais pautada no
afeto e na felicidade das pessoas que a compõe.
Essa multiplicidade das composições familiares
reflete um caráter extremamente humano de se pensar o
Direito de Família nos dias atuais, porém, é certo que muitas
vezes os diplomas civis brasileiros carecem de legislações
efetivas que atendam aos anseios de todos os sujeitos
envolvidos em uma relação familiar, o que confirma a
hipótese levantada no início desta pesquisa, ou seja,
atualmente a família alicerça sua definição além dos fatores
biológicos e legais, pois os aspectos da subjetividade que
agregam os significados da convivência, por exemplo,
adquirem uma importância explicativa acentuada na
significação da configuração familiar.

67
Como exemplo do que foi discutido, pode-se citar a
atual Constituição brasileira em relação à disciplina da União
Estável, ficando muitas das vezes na mão do julgador por
meio da jurisprudência a ampliação e reconhecimento das
novas modalidades e configurações familiares que a realidade
social atual impõe.

REFERÊNCIAS

ARAÚJO, Walter da Rocha. A família hoje. Ciência


Consciência Humanismo: CCH em ação. Maceió:
Centro Universitário de Ciências Humanas, v. 01, n. 01,
fev/jul. 2005.

BRASIL. Código Processo Civil (2015). Planalto.


Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivi.
Acesso em: 20 out. 2017.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil


de 1988. Planalto. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br.Acesso em: 27 fev. 2019.

BRASIL. Código Civil 2002. Disponível em:


https://legislacao.presidencia.gov.br. Acesso em: 27 fev.
2019.

BRASIL. Código Civil 1916. Disponível em:


https://www.google.com.br. Acesso em: 27 fev. 2019.

CARTILHA do Divórcio para os Pais. Conselho Nacional


de Justiça – CNJ. Brasília, 2015. Disponível em:
https://www.cnj.jus.br. Acesso em: 08 dez. 2019.

68
DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias.
22. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018.

GONVALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro.


Direito de família. 14. ed. São Paulo. Saraiva, 2017.

LÔBO, Paulo: Direito civil - famílias. 8. ed. São Paulo:


Saraiva, 2018.

MADALENO, Wolf. Novas perspectivas no direito de


família. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2019.

MALUF, Adriana Caldas do Rego Freitas Dabus. Novas


modalidades de família na pós-modernidade. São
Paulo: Atlas, 2010. E-book.

NADER, Paulo. Curso de Direito Civil. Direito de


família. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016.

VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil: Família. 16. ed.


São Paulo: Atlas, 2016.

69
Alienação Parental
e suas consequências para o menor

Marcelly Setton Ramos

O presente capítulo tem como objetivo identificar a


influência que o divórcio/separação, guarda compartilhada e
o desconforto entre os cônjuges diante dessa nova realidade,
pode causar ao menor ou adolescente que se encontra em
fase de descoberta de sua personalidade. Essas influências
negativas ou atos que condicionam o menor a agir em
confronto com um dos genitores são causadas não só pelos
pais das crianças, mas também pelos parentes de um modo
geral, como tios, avós e irmãos.
Esses atos de extrema covardia e crueldade, vão de
encontro ao princípio da dignidade humana ocasionando um
malefício à criança que irá perpetuar por toda a sua vida, e
esse ato é denominado de Síndrome de Alienação Parental.
A Síndrome da Alienação Parental, já havia sido
delineada em 1985 pelo psiquiatra Richard Gardner, onde ele
define essa síndrome como um distúrbio em que o menor é
manipulado por um dos genitores para fazer com que os laços
de afetividade sejam rompidos. Nesse caso, a criança está
sendo usada pelo abusador/genitor para atingir diretamente
o pai ou a mãe que está do outro lado da situação, geralmente
é aquele que não detém a guarda do menor.
Existe uma linha tênue entre a Alienação Parental e a
Síndrome da Alienação Parental. A primeira diz respeito as
atitudes que desabonam a imagem do pai ou da mãe,
imputando calúnia ou dificultando o convívio do outro

70
genitor com a criança. O conceito legal trazido pela Lei
12.318/2010 em seu artigo 20 diz que: Considera-se ato de
alienação parental a interferência na formação psicológica da
criança ou do adolescente promovida ou induzida por um dos
genitores, pelos avós ou pelos que tenham a criança ou
adolescente sob a sua autoridade, guarda ou vigilância para
que repudie genitor ou que cause prejuízo ao estabelecimento
ou à manutenção de vínculos com este. Já o segundo refere-
se a doença psicológica causada pela alienação, tornando a
segurança e a saúde emocional do menor uma doença
causada pela violência psicológica.
A Síndrome da Alienação Parental é manifestada
principalmente quando os genitores estão disputando a
custódia da criança, numa combinação entre a ação negativa
de um dos genitores e a própria atividade da criança que foi
influenciada em caluniar o genitor alvo. As causas para essa
crueldade são as mais variadas como inveja, ciúmes,
chantagem emocional contra o ex-cônjuge no intuito de fazer
com que ele desconsidere a separação por exemplo, entre
outros fatores.
Com o passar dos anos, algumas mudanças foram
acontecendo no que diz respeito as liberdades do homem e
da mulher. E com isso, os pensamentos sobre o estilo de vida
de um casal e a dinâmica familiar, foram sendo moldados para
a nova era. A partir desse pensamento, o homem,
principalmente, começou uma reivindicar o seu direito em
lutar pela guarda de seus filhos pleiteando a guarda conjunta,
ou a guarda unilateral a depender de cada caso, ou ajuste de
horários para visitas, entre outros motivos. Assim diz Maria
Berenice Dias:
A evolução dos costumes, que levou a mulher para
fora do lar, convocou o homem a participar das tarefas

71
domésticas e a assumir o cuidado com a prole. Assim, quando
da separação, o pai passou a reivindicar a guarda da prole, o
estabelecimento da guarda conjunta, a flexibilização de
horários e a intensificação das visitas.
Em 90% dos casos, são as mães que possuem a
guarda dos filhos e consequentemente quando se fala em
alienação parental, costumeiramente são elas que exercem
essa manipulação fazendo com que seus filhos tenham
pensamentos maléficos contra seus pais, como também
dificultam o convívio sadio entre pai e filho, acusam de abuso
sexual de maneira enganosa, ou até mesmo alegam falsas
agressões físicas e tudo isso com o escopo, segundo elas, de
proteger seus filhos do pai tóxico. Vale salientar que isso não
é uma regra, uma vez que a situação pode ser inversa, como
acontece em alguns casos, e será o pai quem exercerá essa
influência negativa contra a mãe.
Diante da evolução dos novos modelos de formação
familiar, essa nova era foi ficando cada vez mais consolidada,
e nessa perspectiva, as tarefas domésticas que antes eram
exercidas somente pela mãe, passou a ser de responsabilidade
do pai também, e a mãe que antes tinha o dever de cuidar dos
filhos, buscou sua independência financeira e foi alçar novos
rumos com o trabalho fora de casa.
Com isso as novas estruturas familiares foram sendo
moldadas e a evolução na criação dos filhos foi ficando cada
vez mais humana e centralizada na divisão das tarefas entre
pai e mãe. Como diz Rodrigo da Cunha Pereira:
A sociedade moderna tinha a ideia de que em caso de
dissolução da sociedade conjugal, a guarda dos filhos era
preferencialmente da mãe. Isso porque havia a noção de que
a mãe teria um instinto materno, que garantiria à criança um
desenvolvimento saudável, daí criou-se o mito de que a

72
mulher seria a mais apta a ficar com a guarda dos filhos.
Assim, consoante Pereira, “as concepções jurídicas e culturais
se misturavam”. (PEREIRA, 2004, p. 134).
Podemos dizer que o marco inicial da Síndrome da
Alienação Parental foi moldado nas mudanças que ocorreram
com a evolução da forma de constituição familiar. As
manipulações feitas pelos pais, mães para com seus filhos,
também foram seguindo as transformações culturais do que
hoje é denominado de família.
O divórcio em si já é uma situação que na maioria das
vezes ocasiona conflitos entre os cônjuges, e essa situação de
dor acaba resvalando nos filhos. O pai ou a mãe, quando
imbuídos de rancor e intolerância, consciente ou
inconscientemente, transforma seus filhos em moeda de
troca, tornando-os alvo de uma grande disputa de egos,
dificultando assim, o convívio com o ex-cônjuge e seu
desenvolvimento psicológico. Roberto Senise Lisboa, diz
sobre Alienação Parental:
Alienação parental é o ato de interferência na
formação psicológica da criança ou do adolescente, a fim de
que o menor seja induzido a repudiar o estabelecimento ou a
manutenção da relação com o seu genitor. (SENISE, 2012,
p.339).
Normalmente o ponto crucial dessa síndrome, é o
desacordo ou a não aceitação por um dos cônjuges em um
divórcio por exemplo. Os que estão envolvidos nesse
processo, acabam fazendo da separação uma verdadeira
guerra onde as desavenças são o ponto principal e a origem
de todo o desconforto familiar. O que ocorre é que um dos
genitores, transforma a situação da separação em um
verdadeiro campo minado em que o principal alvo atingido é

73
a criança que será instrumento de manipulação contra o ex-
cônjuge. Jorge Trindade diz:
A SAP (Síndrome de Alienação Parental) se
caracteriza por um conjunto de sintomas pelos quais um
genitor, denominado cônjuge alienador, transforma a
consciência de seus filhos, mediante diferentes formas e
estratégias de atuação, com o objetivo de impedir,
obstaculizar ou destruir seus vínculos com o outro genitor,
denominado cônjuge alienado, sem que existam motivos reais
que justifiquem essa condição. (TRINDADE, 2007, P.101).
Podemos definir uma diferença entra a Síndrome da
Alienação Parental e a Alienação Parental propriamente dita.
Diante da síndrome, a personalidade do menor é moldada
através das sequelas da alienação. A criança é utilizada como
instrumento para ferir o genitor e com isso a sua estrutura
psicológica é totalmente modificada, gerando assim, uma
agressividade na criação do menor e uma distorção da
personificação daquele que a criança tem como pai ou como
mãe. Segundo Maria Berenice Dias:
É preciso se ter presente que esta também é uma
forma de abuso que põe em risco a saúde emocional e
compromete o sadio desenvolvimento de uma criança. Ela
acaba passando por uma crise de lealdade, o que gera um
sentimento de culpa quando, na fase adulta, constatar que foi
cúmplice de uma grande injustiça.
O objetivo de toda essa manipulação exercida na
criança contra um dos genitores, é fazer com que o
psicológico do menor desenvolva um sentimento de repúdio
contra seu pai ou sua mãe e assim ter a vida social de todos
os envolvidos afetada de tal forma que tem como resultado
marcas e feridas incuráveis trazidas por essa síndrome. A
professora Priscila Fonseca diz:

74
“A síndrome da alienação parental não se confunde,
portanto, com a mera alienação parental. Aquela geralmente
é decorrente desta, ou seja, a alienação parental é o
afastamento do filho de um dos genitores, provocado pelo
outro, via de regra, o titular da custódia. A síndrome da
alienação parental, por seu turno, diz respeito às sequelas
emocionais e comportamentais de que vem a padecer a
criança vítima daquele alijamento. Assim, enquanto a
síndrome refere-se à conduta do filho que se recusa
terminante e obstinadamente a ter contato com um dos
progenitores, que já sofre as mazelas oriundas daquele
rompimento, a alienação parental relaciona-se com o
processo desencadeado pelo progenitor que intenta arredar o
outro genitor da vida do filho”. (FONSECA, Síndrome da
Alienação Parental. Artigo).
A ação que é exercida por parte daquele que aliena, é
uma ação dolosa, aquela com intenção de prejudicar, de
causar dano a outrem e essa manipulação, não traz riscos
somente naquele momento, mas sim se perpetua por toda a
vida do menor e dos envolvidos. Assim diz Jussara Meireles:
Assim, se o filho é manipulado por um dos pais para
odiar o outro, aos poucos, suavemente se infiltrando nas suas
ideias, uma concepção errônea da realidade, essa alienação
pode atingir pontos tão críticos que a vítima do ódio, já em
desvantagem, não consegue revertê-la. (MEIRELLES, 2009,
p. 265.).
Podemos então definir que quando o filho sofre
abusos psicológicos por parte de um dos genitores que
normalmente é aquele que detém a guarda, a essa conduta
podemos chamar de alienação parental. Já a síndrome da
alienação parental é tudo aquilo que se transforma numa
sequela, modificando a personalidade da criança após todos

75
os atos negativos contra aquele que se tornou alvo do cônjuge
abusador. São alguns exemplos desses abusos o fato de fazer
a criança escolher entre ficar com a mãe ou com o pai
ameaçando-a das consequências pela escolha errada, ou fazer
com ela ignore a outra pessoa, dificultar a visita de quem não
detém a guarda, manipular o psicológico da criança até o
ponto que ela comece a ter o mesmo discurso do cônjuge
abusador, entre outros atos maléficos ao convívio do menor
e ao seu desenvolvimento psíquico e físico.
Através desses atos, a criança acaba perdendo o
referencial de família e por consequência as suas relações
sociais acabam sendo afetadas ocasionando uma instabilidade
em seu emocional. Vale salientar, que a causa da síndrome
não é a separação ou o divórcio em si, pois a origem principal
está na pessoa que não aceita a nova realidade que se perfaz
no rompimento dos laços matrimoniais, o divórcio ou a
separação de fato, é apenas o ponta pé de todo o desconforto
familiar e manipulação do alienador.
Quando a situação de alienação parental é
judicializada e chega até o Poder Judiciário, o juiz determina
que as visitas entre genitor e filho sejam suspensas diante da
gravidade do fato. É determinado que sejam realizados
estudos psicossociais para que seja averiguada a veracidade
do que foi dito. O processo é moroso e com isso a
convivência entre o genitor que está sofrendo a alienação e
seu filho acaba sendo afetada e o distanciamento entre pai ou
mãe e filho é inevitável, surgindo sequelas graves devido a
cessação das visitas.
A alienação parental não é um processo exercido
somente pelo pai ou pela mãe, mas pode acontecer também
por outros membros da família como os avós, tios, irmãos, o
que resulta numa grande dificuldade na relação familiar de um

76
modo geral. Podemos dizer que o alienador pode ser, além
dos genitores, uma pessoa que tenha autoridade, guarda ou
vigilância sobre o adolescente ou a criança. Já o genitor
alienado é o pai ou a mãe a quem o ataque está sendo
direcionado.
Quando o detentor da guarda, e aqui estamos falando
no caso de abuso cometido por aquele que detém a guarda
do menor, percebe que conseguiu gerar na criança um
sentimento de repúdio e ódio pelo outro genitor, ele percebe
também que acabou deixando a criança com um sentimento
de culpa, uma vez que ela passa a ter a ideia de que se voltar
a se relacionar com o outro genitor, está cometendo um erro
ou até mesmo uma traição com aquele com quem reside.
A síndrome da alienação parental uma vez instalada
na criança, ele acaba se transformando numa espécie de
protetor ou defensor do alienador e a partir desse momento,
a criança passa a ter o mesmo discurso de ódio sobre aquele
ex-cônjuge alvo que está sofrendo os abusos.
A Lei 12.318/2010 (Lei da Alienação Parental), traz
os atos que podem ser reconhecidos pela perícia ou até
mesmo pelo juiz e que caracterizam a alienação parental.
Segundo o art 2º da citada lei são eles:
Realizar campanha de desqualificação da conduta do
genitor no exercício da paternidade ou maternidade; dificultar
o exercício da autoridade parental; dificultar contato de
criança ou adolescente com genitor; dificultar o exercício do
direito regulamentado de convivência familiar; omitir
deliberadamente a genitor informações pessoais relevantes
sobre a criança ou adolescente, inclusive escolares, médicas e
alterações de endereço; apresentar falsa denúncia contra
genitor, contra familiares deste ou contra avós, para obstar
ou dificultar a convivência deles com a criança ou

77
adolescente; mudar o domicílio para local distante, sem
justificativa, visando a dificultar a convivência da criança ou
adolescente com o outro genitor, com familiares deste ou
com avós.
O simples indício do ato, já é motivo suficiente para
restar caracterizado tal abuso, não havendo necessidade de
provas concretas da alienação, posto a gravidade da situação.
Uma das medidas adotadas e trazidas pela lei de Alienação
Parental é a advertência, uma medida branda, mas que pode
ser convertida numa pena mais severa que seria a suspensão
do poder familiar para o alienador. Nesse caso, não há um
prazo mínimo legal estipulado, isso significa dizer que a
suspensão pode perdurar até a plena capacidade civil do
adolescente.
O legislador se mostrou atento e preocupado com o
menor diante de tantas mudanças no contexto social e
familiar. Em sendo a parte mais fragilizada da situação no
caso de alienação parental, a criança se encontra em constante
transformação do seu cotidiano e consequentemente das
mudanças psicológicas naturais de sua evolução. Assim diz o
artigo 3º da Lei 12.318/2010:
A prática de ato de alienação parental fere direito
fundamental da criança ou do adolescente de convivência
familiar saudável, prejudica a realização de afeto nas relações
com genitor e com o grupo familiar, constitui abuso moral
contra a criança ou o adolescente e descumprimento dos
deveres inerentes à autoridade parental ou decorrentes de
tutela ou guarda.
A violência que é gerada pela alienação parental
tendo como atitudes negativas do alienador com seu filho e
consequentemente com quem sofre o abuso, gera um
desenvolvimento desproporcional da criança quando ela

78
pratica ações como querer se manter distante do pai ou da
mãe, acusar injustificadamente, injuriar, lançar para com seu
pai ou sua mãe discursos de ódio, isso gera um sentimento
em que o amor familiar vai se distanciando e seu
desenvolvimento saudável vai ficando cada vez mais
comprometido.
Algumas transformações no Código Civil foram
feitas no intuito de minimizar toda a violência física e
psicológica cometida contra o menor, bem como assegurar
seus direitos e punir aquele que comete tamanha crueldade
contra o filho e o outro genitor.
A guarda compartilhada foi uma das mudanças
instituídas no Código Civil e que acaba gerando uma
diferença considerável na vida do menor, em casos onde se
evidencie que sua possibilidade é saudável para todos os
envolvidos. O instituto da guarda compartilhada, veio como
uma forma de tentar, a princípio, apaziguar o momento após
o divórcio, já que esse pode ser o marco inicial para aquele
que não aceita a nova realidade e com isso se utiliza da
alienação parental para atingir quem propõe a separação e
consequentemente seu próprio filho.
Dessa maneira, a alienação parental deve ser
duramente combatida posto que é praticado um abuso moral
contra a criança ou o adolescente, as relações familiares são
afetadas em todos os sentidos, o amor entre os envolvidos
acaba sendo substituído pelo rancor e pelo ódio, bem como
fere o direito de uma convivência familiar saudável. Não
devemos esquecer que a proteção integral oferecida pelo
Estatuto da Criança e do Adolescente, deve ser ampliada no
intuito de coibir esse comportamento tão nocivo ao menor.
Assim diz a nossa carta magna (Constituição Federal) em seu
artigo 227:

79
É dever da família, da sociedade e do Estado
assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta
prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à
educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade,
ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária,
além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência,
discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
(Redação dada Pela Emenda Constitucional nº 65, de 2010).

REFERÊNCIAS

BERENICE Dias, Maria. Incesto e Alienação Parental. 9


Edição,Editora Revista dos Tribunais 2013.

CUNHA Pereira, Rodrigo da.Divórcio - Teoria e Prática - 4ª


Ed., São Paulo, 2012.

SENISE Lisboa, Roberto. Manual de direito civil, v. 5 :


direito de família e sucessões / 7. ed. – São Paulo : Saraiva,
2012.

TRINDADE, Jorge. Síndrome da Alienação Parental (SAP).


In: DIAS, Maria Berenice (coord.). Incesto e alienação
parental: realidades que a Justiça insiste em não ver. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.

http://www.mariaberenice.com.br/uploads/Síndrome da
Alienação Parental: O que é isso?

FONSECA, Síndrome da Alienação Parental. Artigo


MEIRELLES, 2009, p. 265

Gardner, R. A. (1985a) Recent trends in divorce and custody


litigation. The Academy Forum, 29(2):3-7
http://www.alienacaoparental.com.br/biblioteca.

80
O princípio da eficiência como reflexo do
Gerencialismo

Sebastião Grangeiro Bisneto10

A finalidade deste capítulo é demonstrar que a elevação da


eficiência à categoria de princípio geral da administração
pública é o ápice de um processo que, no Brasil, se iniciou em
meados da década de 1960. Longe de ser meramente a
inclusão de mais um verbete na Carta Cidadã, significou em
verdade a consagração máxima do gerencialismo, cujo
movimento se intensificou a partir de 1990. O problema que
norteou a pesquisa é perquirir as origens dos modelos de
gestão em busca de elementos que possibilitem identificar a
preparação do referido cânone. Assim, os tópicos percorrem
desde os estados absolutistas, passando pelo modelo
burocrático, que vigorou por mais de um século, até a
formulação da Nova Administração Pública. Neste ínterim, a
investigação coteja as sementes ideológicas que culminaram
nos seguintes marcos contemporâneos: racionalização,
produtividade, economicidade e celeridade. São, na verdade,
diferentes facetas do mesmo fenômeno, que surte efeito
sobre todas as entidades que direta ou indiretamente
administram o interesse público. A metodologia do trabalho
se baseou na pesquisa bibliográfica da doutrina especializada
e de documentos normativos constitucionais, legais e

10Bacharel em Segurança Pública e em Direito pela Universidade


Federal de Alagoas. Atualmente é primeiro-tenente da Polícia Militar
de Alagoas.

81
infralegais, estruturando-se no modelo dedutivo e analisando
o objeto sob o enfoque qualitativo.

INTRODUÇÃO

O gerencialismo, mais comumente referido como


perspectiva gerencial aplicada à administração pública,
promoveu uma crescente mudança na índole da condução
dos interesses dos cidadãos, que culminou com a formulação
da contemporânea New Public Management ou Nova
Administração Pública.
A readaptação do ferramental do setor privado para
a seara pública acarretou algumas transformações
importantes. Esta pesquisa se propõe a demonstrar que o
advento do princípio da eficiência, através da Emenda
Constitucional nº 19/95, é uma destas transformações, pois
coincidiu com a remodelação operada nos entes estatais.

GERENCIALISMO E A NOVA ADMINISTRAÇÃO


PÚBLICA

Durante o Absolutismo, antes da estruturação do


Estado de Direito e do estabelecimento de limites ao Poder
Público, o soberano realizava concretamente seu arbítrio sem
óbices ou mecanismos de fiscalização. A vontade da
Administração, que se confundia com a pessoa do
administrador, era expressa e cumprida sem observância a
qualquer baliza, bastando apenas ser conveniente ao rei. Pior
ainda: o interesse público era, na verdade, o interesse velado
(ou, muitas vezes explícito) do soberano.

82
Na Constituição Política do Império, de 1824, o art.
99 ilustra este período: “A Pessoa do Imperador é inviolável,
e Sagrada: Elle não está sujeito a responsabilidade alguma”
[sic]11. O modelo patrimonialista, assim denominado,
caracterizava-se pela falta de distinção entre res publica (coisa
do povo) e res principis (coisa do príncipe).
Com o constitucionalismo democrático a lei (que é a
expressão da vontade popular) passou a delimitar o poder
estatal, condicionando-o ao atendimento obrigatório dos
parâmetros legais. E este poder foi fracionado, tripartido, em
um sistema de pesos e contrapesos (checks and balances) onde
cada ente é incumbido do controle e fiscalização dos demais.
Fruto dessa evolução, o modelo burocrático surgiu
como uma maneira de podar os excessos do patrimonialismo.
Os atos públicos praticados neste regime haurem
legitimidade das normas racionalmente definidas, isto é,
concebidas segundo um procedimento formal e impessoal.
A administração pública burocrática funciona
independentemente da vontade dos administradores, porque
se desenvolve, em tese, com base no profissionalismo
(estruturação de planos de carreira ligados à meritocracia), na
impessoalidade (distanciamento da interpretação e do arbítrio
pessoais) e no formalismo (utilização de rotinas e processos
padronizados).
No Brasil, as reformas burocráticas se iniciaram a
partir do final da década de 1930, em que o governo federal
fomentou a aceleração da industrialização, por meio de
crescentes intervenções nos setores de bens e serviços. “O

11 BRASIL. Constituição Política do Império do Brasil (1824).


Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao2
4.htm>. Acesso em: 7 abr. 2020.

83
Estado foi o próprio financiador do desenvolvimento
industrial, em certos setores da economia, em face da
iniciativa privada não ter suportabilidade financeira para
investimentos de tal jaez” [sic]12. E, para acompanhar o
crescimento econômico, fez-se necessário remodelar o
aparato administrativo.
A Constituição de 1937 previa no art. 67 um órgão
investido desta missão, cuja criação se deu por força do
Decreto-Lei nº 579 de 1938. O Departamento
Administrativo do Serviço Público (DASP) e as Comissões
de Eficiência, instituídas em cada Ministério, formavam um
sistema de aperfeiçoamento dos entes públicos.
Conquanto se predisponha a minimizar os efeitos
negativos de seu predecessor, a implantação da burocracia
também suscitou disfunções ou aspectos indesejáveis. O
excesso de formalidades levou à ineficiência da máquina
pública, porque obcecada pelo controle dos atos dos gestores
e, portanto, autorreferente. Perdeu-se a noção de que o
serviço público deve ser voltado para a satisfação das
necessidades dos cidadãos, o que, por si só, já desvirtua
qualquer propósito de existência do Estado.
Na segunda metade do século XX, após a crise
petrolífera da década de 70, operou-se mais uma grande
inovação. As abordagens estruturalistas, com conceitos mais
precisos, do ponto de vista científico, promoveram uma
recontextualização nas grandes organizações. O foco foi
paulatinamente redirecionado e os intermináveis formulários
cederam espaço para a gestão centrada no resultado, que
mitigou o excessivo controle burocrático com o objetivo de

12 GORENDER, Jacob. A burguesia brasileira. 3ª ed. (2ª


reimpressão), São Paulo: Brasiliense, 2004, p. 71.

84
conferir fluidez à estrutura. Resgatou-se, por assim dizer, o
afã de servir a sociedade.
A nota característica do modelo gerencial é a
importação de técnicas e ferramentas do setor privado para a
aplicação no campo da gestão pública, pois, segundo o
pressuposto taylorista, gestão é igual em toda e qualquer
organização, independentemente do seu contexto e
natureza13.
Há, portanto, um forte viés neoliberal com a crença
em um aparelho estatal mínimo e enxuto. Longe de ser uma
negação, o gerencialismo é, na verdade, uma superação
dialética do molde anterior, porque incorpora vários de seus
critérios (meritocracia, impessoalidade, racionalidade etc.).
Trata-se de uma evolução no plano conceitual14, pois foi o
modo de enxergar os serviços públicos que se modificou.
Nasceu a New Public Management enquanto resposta política à
crise do Estado-Providência (que estava fora de controle e
representava uma fonte de desperdício de recursos)15.
Assim, a administração gerencial se calca na
equiparação do usuário de um serviço público a um cliente
de organização privada. Para tanto, prima por atingir algumas
metas: transparência, decorrente da necessidade de motivar
as decisões e do livre acesso da população às informações;

13 CARVALHO, Elisabete R. Reforma administrativa sob o mote


do new public management: os casos de Portugal, Espanha e
Irlanda. Universidade Técnica de Lisboa, 2008, p. 5. Disponível em:
<http://www.academia.edu/3648988/NPM_em_Portugal_Irlanda_
e_Espanha>. Acesso em: 7 abr. 2020.
14 SANTOS, Anderson F. dos. Evolução dos modelos de

administração pública no Brasil. In: Revista Científica


Multidisciplinar Núcleo de Conhecimento. Edição 04, Ano 02,
Vol. 01, p. 848-857, 2017, p. 854.
15 CARVALHO, Elisabete R. Op. Cit., p. 4.

85
responsabilidade (accountability), que determina a submissão
do Estado à fiscalização e controle interno e externo;
descentralização, por meio de delegação de funções com
finalidade de garantir celeridade aos procedimentos;
participação social, em que o administrador busca do
administrado soluções e novos pontos de vista (pois a
democratização da gestão infunde mais legitimidade nas
ações); competição administrada, em que se fomenta uma
pretensa concorrência pela utilização dos serviços prestados;
e eficiência, que é o ponto-chave deste artigo.
A doutrina credita tradicionalmente ao Decreto-Lei
nº 200 de 1967 a inauguração da reforma gerencial brasileira.
O objetivo principal foi descentralizar as atribuições das
entidades públicas, com a criação de autarquias, fundações e
empresas estatais (empresas públicas e sociedades de
economia mista). Obviamente, o legislador, ao garantir maior
autonomia aos entes da Administração Indireta, ambicionava
tornar a gestão mais especializada, técnica e, portanto, ágil.
Em 1995 foi estabelecido o Plano Diretor de
Reforma do Aparelho do Estado (PDRAE), que enfocava o
controle dos resultados – em contraposição ao controle de
processos – além de mais uma etapa na descentralização:
surgiram as Agências Reguladoras (Agências Autônomas, nos
termos do próprio Plano16) como instrumentos para fiscalizar
e disciplinar os serviços prestados, além do setor público não-
estatal17 (organizações sociais e organizações da sociedade

16 BRASIL. Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado


(1995). Elaborado pela Presidência da República. Disponível em:
<http://www.bresserpereira.org.br/documents/mare/planodiretor/
planodiretor.pdf>. Acesso em: 7 abr. 2020.
17 BRESSER-PEREIRA, Luiz. C. Da administração pública

burocrática à gerencial. In: BRESSER-PEREIRA, L. C.; SPINK, Peter

86
civil de interesse público), fruto de um crescente ciclo de
terceirização (que as corporações privadas nomeiam de
outsourcing).
Dois dos principais consectários do PDRAE são o
implemento da Lei de Responsabilidade Fiscal e a Emenda
Constitucional nº 19/9818. A Lei Complementar nº 101 de
2000 – LRF – estabeleceu normas de finanças públicas
voltadas para a responsabilidade na gestão fiscal, como
consta ipsis litteris em seu cabeçalho. E a Emenda
Constitucional nº 19 de 1998 foi a instrumentalização das
mudanças da reforma administrativa iniciada em 1995.
Ferramentas como o contrato de gestão e o acesso dos
usuários aos registros e informações das entidades públicas
foram elevados ao mais alto status jurídico. Ademais, insculpiu
a eficiência entre os preceitos reitores da administração
pública, que será aclarada no tópico seguinte.

EFICIÊNCIA ADMINISTRATIVA

Anteriormente à EC nº 19/95, a dicção original da


Lei Maior de 1988 já fazia menção expressa a diferentes
manifestações do mandamento da eficiência em relação às
instituições públicas, a exemplo do art. 74, II, que impõe a
exigência de que os Poderes Legislativo, Executivo e
Judiciário mantenham um sistema integrado de controle
interno com a finalidade de “comprovar a legalidade e avaliar
os resultados, quanto à eficácia e eficiência da gestão

(Org.). Reforma do estado e administração pública gerencial. 7ª


ed. (4ª reimp.), Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2009.
18 NOHARA, Irene P. Reforma administrativa e burocracia:

impacto da eficiência na configuração do direito administrativo


brasileiro. São Paulo: Atlas, 2012.

87
orçamentária, financeira e patrimonial nos órgãos e entidades
da administração federal, bem como da aplicação de recursos
públicos por entidades de direito privado”; e do art. 144, §7º,
que irroga a uma lei a disciplina da organização e
funcionamento das entidades prestadoras de segurança
pública “de maneira a garantir a eficiência de suas atividades”.
Ademais, não era um conceito estranho à doutrina
especializada. Hely Lopes Meirelles colacionou o dever de
eficiência como inerente ao múnus público, entronizando-o
como “o mais moderno princípio da função administrativa,
que já não se contenta em ser desempenhada apenas com
legalidade, exigindo resultados positivos para o serviço
público e satisfatório atendimento das necessidades da
comunidade e de seus membros”19. Correspondia, portanto,
ao dever de boa administração desenvolvido pela doutrina
italiana.
Apesar de o supramencionado Decreto-Lei nº 200 de
1967 trazer ferramentas relacionáveis direta ou indiretamente
à eficiência, foi a Emenda Constitucional nº 19 de 1998 que
a incrementou no rol de princípios gerais da administração
pública. O Texto Máximo passou a albergar um dos mais
proeminentes preceitos do gerencialismo.
Esta inclusão foi curiosamente rechaçada por ilustres
administrativistas brasileiros; alguns pela desconfiança
quanto à índole neoliberal20 da reforma operada; outros pela
imprecisão do termo, pois no direito comparado, denomina-

19 MEIRELLES, Hely L. Direito Administrativo Brasileiro. 31ª ed.


São Paulo: Malheiros Editores, 2005, p. 102.
20 Bockmann Moreira acredita ser um arroubo da administração

privada competitiva e que sua inserção no ordenamento jurídico não


traz nenhuma novidade. MOREIRA, Egon B. Processo
administrativo: princípios constitucionais e a Lei 9.784/99. São
Paulo: Malheiros Editores, 2000, p. 78.

88
se boa administração (Itália), eficácia (Espanha), não-
burocratização (Portugal), etc.; por fim, relatam que é um
palavra morta, inócua, sem que se modifique a mentalidade
dos governantes21.
Contudo, a Lei Máxima não se refere a boa
administração; e neste caso não parece haver vantagem
substancial em adotar as preferências doutrinárias, nacionais
ou estrangeiras, em detrimento do texto constitucional. Deve
haver, portanto, no mínimo, uma consequência simbólica
para eficiência ter sido positivada na Constituição e não ter
permanecido na gama de preceitos reconhecidos ou
implícitos. Simbólica no sentido de que põe às claras a
decisão legítima do constituinte de privilegiá-la como um dos
critérios centrais na prestação dos serviços públicos.
Princípios são normas jurídicas com alto teor de
generalidade e abstração que subjazem e conformam o
ordenamento jurídico e todos os comandos legais que o
compõem. Além de possuir uma textura aberta, eficiência
transporta um conceito jurídico indeterminado, que só pode
ser moldado diante da situação fática, mas que pode sofrer
influências semânticas de padrões morais, sociais, culturais,
políticos, geográficos, dentre outros22.
Como um norte hermenêutico, a eficiência pode ser
enxergada como um dos “fundamentos filosóficos do Direito
público moderno, inserindo-se em temáticas como a da

21 Bandeira de Mello assume uma posição crítica em relação tanto à


ideologia quanto ao vocábulo escolhido pelo legislador; Carvalho Filho
considera impreciso o termo e inútil a sua juridicização; Afonso da
Silva nega, inclusive, seu caráter jurídico.
22 SOUZA, Antônio F. de. Conceitos indeterminados no direito

administrativo. Coimbra: Almedina, 1994, p. 27.

89
legitimidade do poder e da governabilidade”23, pois uma
democracia representativa precisa conter mecanismos que
facultem ao cidadão uma defesa contra atos ineficientes ou
negligentes, pois ambos afrontam os objetivos pretendidos
pela lei.
Isto posto, não se pode negar a positividade e a
validade jurídica do princípio sob o argumento de que seu
conteúdo se abebera originalmente de saberes extrajurídicos
(administração de empresas ou economia). A Ciência do
Direito não é autopoiética, apartada da realidade humana ou
do “mundo da vida” (no dizer husserliano). A dogmática se
vale, a fortiori, de reflexões produzidas no seio da zetética para
construir seus significados.
No mínimo, procedendo a uma análise literal, a
cabeça do art. 37 ordena a sua observância à administração
pública direta e indireta de qualquer instância. Pessoas
jurídicas de direito público políticas (União, Estados, Distrito
Federal e Municípios), pessoas jurídicas de direito público
administrativas (autarquias, fundações públicas e consórcios
públicos), pessoas jurídicas de direito privado estatais
(empresas públicas, sociedades de economia mista e
consórcios públicos privados), pessoas jurídicas de direito
privado prestadoras de serviços públicos, serviços sociais
autônomos e entidades do terceiro setor que desenvolvam
atividades correlatas à função administrativa estão, todos eles,

23 GABARDO, Emerson. O princípio da eficiência. In:


CAMPILONGO, C. F; GONZAGA, A. de A; e FREIRE, A. L.
(coords.). Enciclopédia jurídica da PUC-SP. 1ª ed. São Paulo:
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017, p. 327.
Disponível em:
<https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/82/edicao-
1/principio-da-eficiencia,-o>. Acesso em: 7 abr. 2020.

90
submetidos ao dever de eficiência24, seja pelo critério
orgânico (formal), seja pelo funcional (material), no caso dos
entes privados.
Deve-se buscar a solução ótima na concretização da
finalidade pública. Mas como saber qual o patamar ótimo?
Ou ainda, qual o conteúdo material da eficiência? Eficiência
administrativa é tão abstrata quanto moralidade. Como
nenhuma acepção específica foi indicada pelo constituinte,
cabe aos intérpretes a importante tarefa de perquirir o seu
significado, propondo sentidos que serão mais ou menos
aceitos, conquistando maior ou menor consenso ou
possibilidade de aplicação.
Para Afonso da Silva, “eficiência não é um conceito
jurídico, mas econômico; não qualifica normas; qualifica
atividades”25. Cuida-se da busca por conseguir: maior output
(resultado) com o mesmo input (recursos); mesmo output com
menos input; ou ainda os dois esforços combinados26, que é a
relação custo-benefício. Envolve necessariamente um trade
off, situação onde as escolhas são conflitantes. Quando um
administrador escolhe adotar menor custo na produção de

24GABARDO, Emerson. Op. Cit., p. 329.


25 AFONSO DA SILVA, José. Curso de Direito Constitucional
Positivo. 25ª ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros Editores, 2005, p.
671.
26 ALCÂNTARA, Christian M. Os princípios constitucionais da

eficiência e eficácia da administração pública: estudo comparativo


Brasil e Espanha, p. 26. In: Revista da Academia Brasileira de
Direito Constitucional: Constituição, Economia e
Desenvolvimento. Curitiba, 2009, n. 1, ago-dez. p. 24-49. Disponível
em: <http://www.abdconst.com.br/revista/osprincipios2.pdf>.
Acesso em: 7 abr. 2020.

91
determinado bem, aceita imprimir menor qualidade neste
produto27.
É óbvio que essa definição possui perfeita
aplicabilidade nas empresas privadas, mas não é suficiente
para abarcar as contingências dos órgãos governamentais.
Naquelas, predominam aspectos financeiros e,
principalmente, a maximização do lucro, ao passo que nestas
devem sobrelevar as necessidades dos cidadãos e o interesse
público.
No ramo privado, a insatisfação (percepção da falta
de qualidade) dos clientes faz com que procurem outro
produto, serviço, marca, empresa etc.; no espaço público,
quase nunca há essa possibilidade: o utente do serviço
público é, por vezes, obrigado a utilizá-lo como única
alternativa. Por isso, eficiência administrativa não pode ser só
uma proporção matemática entre recursos e resultados, uma
mera economicidade (que é apenas um de seus atributos).
No domínio do direito, deve-se ampliar os
horizontes. Distingue-se de seus cognatos da seguinte
maneira: eficácia diz respeito aos meios e instrumentos
empregados pelos agentes na execução de seus deveres;
efetividade é aferição dos resultados obtidos28. Eficiência
congloba estes dois aspectos, a par de outros comandos. Por
isso se fala em pluridimensionalidade.

27 VAZ, J. C.; LOTTA, G. S. A contribuição da logística integrada às


decisões de gestão das políticas públicas no Brasil. In: Revista de
Administração Pública. Rio de Janeiro, 2011, n. 1, jan-fev, p. 107-
139. Disponível em:
<http://www.scielo.br/pdf/rap/v45n1/v45n1a06.pdf>. Acesso em:
7 abr. 2020.
28 MARINHO, Alexandre; FAÇANHA, Luís O. de. Programas

sociais: efetividade, eficiência e eficácia como dimensões


operacionais da avaliação. Rio de Janeiro: IPEA, 2001.

92
Operando-se uma dissecação, é possível identificar
quatro atributos da eficiência administrativa: racionalização,
produtividade, economicidade e celeridade29. O primeiro se
refere às ferramentas, expedientes e processos utilizados no
desempenho da função administrativa, que devem ser
lógicos, compreensíveis, aptos a cumprirem sua finalidade, e
com vistas a eliminar erros e imprecisões. Produtividade, por
sua vez, aponta para a geração de vantagem ou valor. O foco
é o benefício gerado para o destinatário (equivale a
efetividade). O resultado deve ser ótimo; o bem ou serviço
deve ser prestado com qualidade.
Economicidade, que é um dos aspectos mais levados
em consideração pelos administrativistas, significa a
proporção entre o produto final e os fatores empregados na
produção. É relação de custo para a realização do bem ou
serviço e o benefício para o usuário, ou seja, eficácia dos
meios. Nessa acepção, possui similitudes com o conceito de
eficiência econômica (maior output com menor input: custo-
benefício).
A celeridade é o último e um dos mais relevantes
aspectos, citado inclusive em posteriores reformas do texto
constitucional. Aqui, o foco é o tempo, pois um serviço
extemporâneo pode tornar inútil ou impossível o resultado,
diminuindo-lhe a relação custo-benefício30.

29 GABARDO, Emerson. O princípio da eficiência. In:


CAMPILONGO, C. F; GONZAGA, A. de A; e FREIRE, A. L.
(coords.). Enciclopédia jurídica da PUC-SP. 1ª ed. São Paulo:
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017, p. 330.
Disponível em:
<https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/82/edicao-
1/principio-da-eficiencia,-o>. Acesso em: 7 abr. 2020.
30 Ibidem, p. 330.

93
A partir da Emenda Constitucional nº 45 de 2004,
tradicionalmente denominada de reforma do Judiciário,
eficiência enquanto celeridade passou a ser, inclusive, direito
fundamental inserto no inciso LXXVIII do art. 5º: “a
todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a
razoável duração do processo e os meios que garantam a
celeridade de sua tramitação”. Não é apenas duração razoável
do processo judicial. Celeridade deve ser observada na
tramitação de processos administrativos também.
Como se trata de princípio geral, eficiência também
configura um critério de medição do comportamento
gerencial. Porquanto, os controles administrativo (interno,
operacionalizado pelos próprios órgãos) e legislativo são
reconhecidos pela Constituição Federal nos arts. 70 e 74. O
controle judicial, por outro turno, padece de certa celeuma
doutrinária, que deve ser enfrentada em pesquisa própria,
pois extrapola os objetivos aqui colimados.
Por fim, releva notar uma importante observação
formulada por Maria Sylvia Zanella Di Pietro. Não apenas o
modo de atuação do agente público deve ser eficiente
(melhor desempenho possível das atribuições com o objetivo
de produzir os melhores resultados); a maneira de estruturar
e regulamentar os órgãos da Administração Pública também
deve seguir o mandamento, porque isto reflete diretamente
na qualidade da prestação do serviço público31. É evidente,
portanto, que o princípio não orienta unicamente os serviços
voltados para a coletividade, mas também se aplica aos
serviços internos das entidades investidas do ofício
administrativo.

31DI PIETRO, Maria S. Z. Direito Administrativo. 27ª ed. São


Paulo: Atlas, 2014, p. 121.

94
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Da segunda metade do século XXI em diante, a


administração pública passou por, pelo menos, duas grandes
transformações. Nesta senda, não apenas as ferramentas de
gestão foram modificadas, mas a índole foi constantemente
se atualizando. Nos estados absolutistas, havia mínima ou
nenhuma accountability. O monarca não era obrigado a prestar
contas a seus súditos.
Em sequência, oriundo da fragmentação do poder
estatal, adveio a reforma burocrática, lastrada em normas
racionais e procedimentos padronizados. A administração se
desvinculou da pessoa do administrador. Porém, com as
distorções subsequentes, mais uma vez o aparato
governamental passou por alterações. A visão foi
redirecionada, importando técnicas das organizações
privadas.
No Brasil, a Nova Administração Pública foi
inaugurada em 1967 com as medidas de descentralização.
Entretanto, somente na década de 1990 que se tornou uma
tônica governamental. Não por coincidência, a Emenda
Constitucional nº 19, que incluiu o verbete eficiência no caput
do art. 37, foi promulgada em 1995.
Elevar eficiência ao status de princípio geral a coloca
no patamar de proposição que condiciona e confere sentido
a toda a estrutura normativa do sistema. Por conseguinte, este
cânone, eminentemente gerencial, deve ser realizado em
todos os seus prismas (racionalização, produtividade,
economicidade e celeridade) e por todos os envolvidos na
gestão dos interesses públicos (sejam organismos estatais ou
privados).

95
É certo que uma administração ineficiente jamais foi
aceitável. Nos limites da lei, as atividades estatais devem ser
sempre exercidas em nome do povo, do qual dimana todo e
qualquer poder. Eficiência administrativa é, portanto, mais
uma instância de concretização do Estado Democrático de
Direito.

REFERÊNCIAS

AFONSO DA SILVA, José. Curso de Direito


Constitucional Positivo. 25ª ed. rev. e atual. São Paulo:
Malheiros Editores, 2005.

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da eficiência e eficácia da administração pública: estudo
comparativo Brasil e Espanha, p. 26. In: Revista da
Academia Brasileira de Direito Constitucional:
Constituição, Economia e Desenvolvimento. Curitiba, 2009,
n. 1, ago-dez. p. 24-49. Disponível em:
<http://www.abdconst.com.br/revista/osprincipios2.pdf>.
Acesso em: 7 abr. 2020.

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(1824). Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Cons
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Estado (1995). Elaborado pela Presidência da República.
Disponível em:
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96
SPINK, Peter (Org.). Reforma do estado e administração
pública gerencial. 7ª ed. (4ª reimp.), Rio de Janeiro:
Fundação Getúlio Vargas, 2009.

CARVALHO, Elisabete R. Reforma administrativa sob o


mote do new public management: os casos de Portugal,
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<http://www.academia.edu/3648988/NPM_em_Portugal
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DI PIETRO, Maria S. Z. Direito Administrativo. 27ª ed.


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reimpressão), São Paulo: Brasiliense, 2004.

MARINHO, Alexandre; FAÇANHA, Luís O. de.


Programas sociais: efetividade, eficiência e eficácia
como dimensões operacionais da avaliação. Rio de
Janeiro: IPEA, 2001.

MEIRELLES, Hely L. Direito Administrativo Brasileiro.


31ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2005.

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constitucionais e a Lei 9.784/99. São Paulo: Malheiros
Editores, 2000.

97
NOHARA, Irene P. Reforma administrativa e burocracia:
impacto da eficiência na configuração do direito
administrativo brasileiro. São Paulo: Atlas, 2012.

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administração pública no Brasil. In: Revista Científica
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Ano 02, Vol. 01, p. 848-857, 2017.

SOUZA, Antônio F. de. Conceitos indeterminados no


direito administrativo. Coimbra: Almedina, 1994.

VAZ, J. C.; LOTTA, G. S. A contribuição da logística


integrada às decisões de gestão das políticas públicas no
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Janeiro, 2011, n. 1, jan-fev, p. 107-139. Disponível em:
<http://www.scielo.br/pdf/rap/v45n1/v45n1a06.pdf>.
Acesso em: 7 abr. 2020.

98
Missão constitucional
da Polícia Militar do Brasil

Sebastião Grangeiro Bisneto32

O trabalho tem por escopo analisar, sob o prisma do


neoconstitucionalismo, o significado da missão
constitucional assinalada às polícias militares. A problemática
motriz é investigar a profundidade axiológica dos termos que
integram suas atribuições, comumente enxergadas de maneira
simplificada. Para tanto, o panorama exposto percorre
conceitos, institutos e categorias jurídicas, ultrapassando as
definições isoladas em direção às correlações mútuas que se
estabelecem no seio do Estado Democrático de Direito.
Subjacente ao olhar superficial, percebe-se que segurança
pública (uma das muitas facetas do extenso direito à
segurança), isto é, a defesa da incolumidade das pessoas e de
seus patrimônios, desenvolve um íntimo liame com a
dignidade humana, na medida em que vida digna é a que
possibilita gozo pleno dos direitos garantidos. Em sequência,
foram examinados os postulados da preservação da ordem
pública e do policiamento ostensivo, elencados no art. 144,
§5º, da Constituição Federal de 1988. Ambos servem como
sustentáculo para a legalidade democrática, tamanha
importância na configuração da sociedade. A metodologia
focou na abordagem qualitativa, por considerar os aspectos
do objeto estudado como não quantificáveis. Bem assim,
usou-se o método dedutivo, partindo das premissas gerais em
busca de conclusões específicas. Por fim, calcou-se na
pesquisa bibliográfica de obras, artigos e periódicos

32Bacharel em Segurança Pública e em Direito pela Universidade


Federal de Alagoas. Atualmente é primeiro-tenente da Polícia Militar
de Alagoas.

99
especializados, assim como das disposições normativas que
disciplinam a matéria.

INTRODUÇÃO

As incumbências legais e constitucionais atribuídas às


polícias militares são pedras angulares do Estado
Democrático de Direito. Segurança pública, enquanto defesa
de perturbações na sociedade, integra a dimensão positiva da
dignidade da pessoa humana e, por isso, pertence à gama de
direitos fundamentais reconhecidos não apenas no
ordenamento jurídico brasileiro, mas em todo o mundo
globalizado. Isto porque, em caso de descumprimento dos
comandos normativos, que são decisões democráticas sobre
como as pessoas devem se portar no seio da comunidade, o
Estado encontra mecanismos de reafirmar sua ordem. E o
faz muitas vezes por meio do aparato de segurança pública.
Assim, para perquirir as missões assinaladas às corporações
castrenses estaduais, quadra analisar os pressupostos
normativos e axiológicos que embasam sua atividade para
compreender sua importância no contexto do
neoconstitucionalismo contemporâneo.

SEGURANÇA PÚBLICA E DIGNIDADE HUMANA

Estado e Constituição são conceitos umbilicalmente


ligados. Do ponto de vista estritamente jusfilosófico, norma
constitucional significa lei fundamental de estruturação do
arcabouço estatal. A organização dos mecanismos e
instituições que o compõem é disciplinada por meio da
Constituição e é nela que estão contidos os sustentáculos
político-jurídicos que o embasam.

100
Por isso, algumas correntes de pensamento mais
extremas, como o positivismo jurídico de Hans Kelsen,
definem o Estado como um mero feixe de normas. Não mais
que isso, uma vez que sua Teoria Pura do Direito almejou
expurgar a ciência de quaisquer elementos reputados como
extrajurídicos. E a Constituição, por sua vez, também é
enxergada como a mais importante das regras que
integralizam o ordenamento jurídico, e ainda assim, nada
mais que uma norma33 . Em última análise, segundo essa
concepção, não são apenas definições mutuamente
imbricadas, mas sinônimas. Nada obstante a presente
pesquisa adotar uma postura menos extremada, evidencia-se
a importância recíproca que estes termos exercem entre si.
O art. 1º da Constituição Federal de 1988,
paralelamente ao princípio republicano e ao federalismo,
declara que a República Federativa do Brasil se configura
como Estado Democrático de Direito. Esse conceito reúne
elementos de dois construtos políticos que o precederam: o
Estado de Direito e o ideal democrático.
O primeiro destes, em sua formulação clássica,
fundava-se tão somente na generalidade e amplitude das leis,
o que, por si só, já era uma conquista importante sobre o
Absolutismo e os privilégios e desigualdades abissais do qual
decorriam. Eventualmente, este modelo desembocou numa
concepção meramente formal, autorreferente, no sentido de
que apontava para a ordem jurídica que lhe conformava, e
esta não se dirigia a nenhum conteúdo material específico,
mas se limitava a embasar o Estado. Como apenas o direito
positivo, neutro, desvinculado de qualquer valor ético, era

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução: João Baptista


33

Machado. 7ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

101
considerado Direito, passou-se a albergar qualquer ordem
jurídica que se adequasse a seus moldes formais. Governos
totalitários e ditatoriais são considerados, de acordo com esse
modo de ver, Estados de Direito34 tão válidos quanto as
democracias contemporâneas.
Para se distanciar dessa pretensa neutralidade
valorativa e resgatar o conceito de Estado, que com sua
deformação acarretou (ou agravou) inúmeras injustiças, os
movimentos sociais, posteriormente acolhidos nos textos
constitucionais, passaram a enfatizar a justiça material, em
contraposição à isonomia puramente formal. Estruturouse o
Estado Social de Direito. O termo “social” significou uma
tentativa de correção da falta de conteúdo nas leis e do
individualismo característico do liberalismo clássico. O
enunciado legal deveria, portanto, apontar para os chamados
direitos positivos, isto é, que demandam uma ação direta dos
entes públicos, como instrumentos para a realização da
justiça social.
Entretanto, ainda que o Estado Social de Direito
tenha em sua essência a finalidade da realização do bem-estar
geral e da garantia dos direitos sociais, essa construção
apresenta ainda grande ambiguidade. “Social” é uma palavra
sujeita a muitas e muito variadas interpretações. Cada
ideologia traz consigo a sua própria visão do que infunde este
conceito. Conforme observa Paulo Bonavides, “o Estado
social se compadece com regimes políticos antagônicos,
como sejam a democracia, o fascismo e o nacional-
socialismo”35 .

34 AFONSO DA SILVA, José. Curso de Direito Constitucional


Positivo. 25ª ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros Editores, 2005.
35 BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. 7ª ed.,

2ª tir. São Paulo: Malheiros Editores, 2004, p. 205.

102
Por isso, tornou-se impositiva a esquematização do
Estado Democrático de Direito. A democracia, como fruto
da necessidade da realização de determinados valores
consagrados globalmente (igualdade, liberdade, dignidade da
pessoa humana e pluralismo político), é uma formulação bem
mais abrangente que Estado de Direito. Nessa esteira,
Afonso da Silva assevera:

A democracia que o Estado Democrático de Direito


realiza há de ser um processo de convivência social
numa sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I), em
que o poder emana do povo, e deve ser exercido em
proveito do povo36

É, em suma, a configuração de estado apta a sintetizar


as contradições inerentes ao mundo contemporâneo, não se
tratando, portanto, da simples justaposição dos elementos do
Estado de Direito e da democracia. Muito além, contém em
si os mecanismos de sua própria transformação e
aperfeiçoamento; é dinâmico, e quem dita os parâmetros
desse dinamismo é o povo.
A inovação deste aparato, muito mais do que nos
instrumentos utilizados (que em si não diferem muito dos
moldes anteriores), reside no sentido teleológico atribuído à
ordem jurídica que lhe integra37 . Essa orientação finalística
determina não apenas que a lei está acima de (e é para) todos
(isto é, Estado de Direito), mas também que essa lei deve ser
aplicada com o fito de realizar a justiça social por meio das

36AFONSO DA SILVA. Op. Cit., p. 119.


37 BOLZAN DE MORAIS, José Luis e STRECK, Lenio L.
Comentário ao artigo 1º, caput. In: CANOTILHO, J.J. Gomes;
MENDES, Gilmar F.; SARLET, Ingo W.; STRECK, Lenio L.
(Coords.). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo:
Saraiva/Almedina, 2013, p. 232.

103
ferramentas da democracia. Assim, seus traços marcantes são:
legalidade, princípio democrático e um sistema de direitos
fundamentais calcados na igualdade material.
A respeito desse sistema, o Estado Democrático de
Direito apresenta em seu bojo um núcleo normativo
irrestringível formado pelos direitos fundamentais. Inserto
neste rol, encontra-se a segurança. A Constituição de 1988
consagrou tal prerrogativa como um dos baldrames do
ordenamento jurídico brasileiro, uma vez que a inscreveu no
conjunto de direitos e garantias fundamentais. Desta feita,
sacramentou-se em cláusula pétrea, que não pode sofrer
reformas no sentido de restringir seu âmbito de aplicação.
Ademais, conforme aduz Souza Neto:

A segurança é ainda materialmente fundamental,


por se entrelaçar, correntemente, com a dignidade
da pessoa humana, provendo a tranquilidade e a
previsibilidade, sem as quais a vida se converte em
uma sucessão angustiante de sobressaltos.38

O direito à segurança se revela como um


macroprincípio: engendra uma gama de corolários jurídicos
que se espraiam por todo o texto constitucional. É, portanto,
uma norma de múltiplas consequências. Esses subprincípios
se subsumem a três categorias: estabilidade, previsibilidade e
ausência de perigos.
No que tange à primeira categoria, segurança assume
a feição de estabilidade das relações jurídicas, isto é, traduz-
se principalmente nos institutos do direito adquirido, do ato

38SOUZA NETO, Cláudio P. de. Comentário ao artigo 5º, caput. In:


CANOTILHO, J.J. Gomes; MENDES, Gilmar F.; SARLET, Ingo
W.; STRECK, Lenio L. (Coords.). Comentários à Constituição do
Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013, p. 487.

104
jurídico perfeito e da coisa julgada. Esses mecanismos
consistem no impedimento da desconstituição dos efeitos já
produzidos de forma válida e legal.
A previsibilidade, por sua vez, é garantida através da
legalidade. Assim, segurança enquanto previsibilidade da
atuação, quer seja estatal ou particular, consiste na
possibilidade de saber com antecedência as consequências de
seus atos, além de limitar as intervenções das entidades
públicas (sobre sua propriedade ou liberdade) às fronteiras
demarcadas na lei.
Quanto à ausência de perigos ou redução de riscos,
ponto que concerne ao aparelho de segurança pública por
excelência, este subprincípio determina que “o Estado tem o
dever de garantir a incolumidade das pessoas e do patrimônio
(art. 144) através da atividade de prevenção, vigilância e
repressão de condutas delituosas”39 . Obviamente, é este
terceiro aspecto que interessa aos objetivos deste artigo.
Com este dispositivo constitucional, as autoridades
administrativas se predispõem a preservar um ambiente de
tranquilidade que permita a todos os cidadãos o
desenvolvimento livre de suas potencialidades. Isto se perfaz
por meio das chamadas instituições de segurança pública,
destinadas a “empreender ações e oferecer estímulos
positivos para que os cidadãos possam conviver, trabalhar,
produzir e usufruir o lazer”40 .
As entidades incumbidas dessa função promovem
suas ações no sentido de inibir, prevenir ou reprimir os fatos
delituosos que transtornem a ordem coletiva ou atentem
contra a integridade das pessoas ou de seu patrimônio.

Ibidem, p. 488
39
40CÂMARA, Paulo S. Defesa social e segurança pública. 2000, p. 3.
Disponível em: . Acesso em: 3 jan. 2019.

105
“Segurança pública é manutenção da ordem pública
interna”41. O objetivo é evitar perturbações no tecido social;
em as havendo, os agentes estatais se prontificam a
restabelecer a normalidade.
Dessarte, este direito guarda íntima relação com
dignidade humana, que é um dos alicerces da República
Federativa do Brasil, ex vi do art. 1º, III, da Constituição
Cidadã, e, portanto, amolda-se ao cerne axiológico do
ordenamento jurídico. Como corolário, os entes públicos
existem em função das pessoas, que devem ser vistas sempre
como um fim em si mesmo.
Enquanto essencial ao desenvolvimento pleno das
potencialidades humanas, a segurança interfere diretamente
nas garantias que compõem a dignidade, visto que esta se
demonstra como postulado multidimensional,
compreendendo um sentido negativo e outro positivo.

Na face negativa, isto é, como limite, dela dimana


um plexo de direitos fundamentais contra atos que
violem ou ameacem a máxima de não tratar os seres
humanos como meros objetos. Como tarefa (face
positiva), a dignidade implica deveres que obrigam
o Estado a tutelar, por meio de prestações,
interesses indispensáveis ao desenvolvimento pleno
do cidadão.42

41 AFONSO DA SILVA, José. Curso de Direito Constitucional


Positivo. 25ª ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros Editores, 2005, p.
777.
42 GRANGEIRO BISNETO, Sebastião. O papel da Polícia Militar de

Alagoas na efetivação do direito fundamental ao meio ambiente


ecologicamente equilibrado. Maceió. Curso de Formação de Oficiais.
Polícia Militar de Alagoas, 2015, p. 17.

106
A Lei Fundamental dedica o Capítulo III do Título V
exclusivamente ao tema, definindo segurança pública como
dever do Estado, direito e responsabilidade de todos. E, no
inciso V do art. 144, estão enunciadas as polícias militares e a
elas é conferido o mister de polícia ostensiva e preservação
da ordem pública.

PRESERVAÇÃO DA ORDEM, POLICIAMENTO


OSTENSIVO E LEGALIDADE DEMOCRÁTICA

O Decreto nº 88.777 de 30 de setembro de 1983, que


prescreveu o regulamento para as polícias militares e corpos
de bombeiros militares (R-200), conceitua em seu art. 2º
ordem pública como:

21) Conjunto de regras formais, que emanam do


ordenamento jurídico da Nação, tendo por escopo
regular as relações sociais de todos os níveis, do
interesse público, estabelecendo um clima de
convivência harmoniosa e pacífica, fiscalizado pelo
poder de polícia, e constituindo uma situação ou
condição que conduza ao bem comum 43 .

Trata-se, portanto, de uma situação de tranquilidade,


de ausência de perturbação do tecido social, orientada pela
observância pacífica destas “regras formais”, isto é, pela
obediência ao mandamento constitucional da legalidade. Em
caso de descumprimento da norma, o Estado encontra
mecanismos de reafirmar sua ordem, e o faz por meio das
instituições que compõem a segurança pública. A
interdependência entre estes fatores é tão arraigada que

43BRASIL. Decreto nº 88.777, de 30 de setembro de 1983. Aprova o


regulamento para as polícias militares e corpos de bombeiros militares
(R-200). Disponível em: . Acesso em: 3 jan. 2019.

107
Filocre defende que “segurança pública é a ausência de
perturbação, garantia da ordem”44. O Manual Prático de
Abordagem, Imobilização e Uso de Arma de Fogo, elaborado
pela Polícia Militar de Alagoas no ano de 2004, define a
preservação desta ordem como:

Exercício dinâmico do poder de polícia, no campo


da segurança pública, manifestado por atuações
predominantemente ostensivas, visando prevenir
e/ou coibir eventos que alterem a Ordem Pública
(os delitos) e a dissuadir e/ou reprimir os eventos
que violem essa Ordem para garantir sua
normalidade45.

E no que se refere ao policiamento ostensivo, o


referido Manual o define como a: “aplicabilidade da
manutenção da Ordem Pública por parte da PM [Polícia
Militar], com observância das características, princípios e
variáveis próprias, objetivando o bem e a tranquilidade
pública”46. Este último significado encontra respaldo na Lei
Estadual nº 6.399 de 2003, que disciplina a organização básica
da Polícia Militar de Alagoas (PMAL), e conceitua no art. 2º,
§1º:

Policiamento Ostensivo é a ação policial militar,


exclusiva da Polícia Militar, cujo emprego do
Homem ou fração da tropa engajada, sejam
identificados de relance, quer pelo uniforme, quer
pelo equipamento ou viatura, ressalvadas as missões
de outros órgãos da Segurança Pública, conforme

44 FILOCRE, Lincoln D. Direito de Segurança Pública. Limites


jurídicos para políticas de Segurança Pública. Lisboa: Almedina, 2010,
p. 13.
45 ALAGOAS. Manual Prático de Abordagem, Imobilização e Uso de

Arma de Fogo. Polícia Militar de Alagoas, 2004, p. 11, MIMEO.


46 Ibidem, p. 11.

108
estabelece a Constituição da República Federativa
do Brasil47.

É através dessa modalidade de atuação que a Polícia


Militar cumpre sua função precípua de proteger a
incolumidade dos cidadãos e garantir a ordem. As funções
preventiva, repressiva e assistencial são realizadas com base
nela. Em suma, é primacialmente por meio desta estratégia
que as corporações desempenham o serviço de segurança
pública.
Conforme dito, o conteúdo da ordem pública é
preenchido pelas pautas de conduta estabelecidas através da
lei que, em sentido amplo, assume uma posição fulcral no
Estado Democrático de Direito. Este arcabouço se estrutura
dessa forma, a par de outros motivos, justamente pela
subordinação de todos, inclusive dos agentes públicos, ao
império dos preceitos legais. Faz parte de sua essência.
Evidentemente o uso prático destes regramentos deve
obedecer aos parâmetros da democracia e da justiça social.
Nisto consiste o que José Afonso da Silva denomina
legalidade democrática.

A lei é efetivamente o ato oficial de maior realce na


vida política. Ato de decisão política por
excelência, é por meio dela, enquanto emanada da
atuação da vontade popular, que o poder estatal
propicia ao viver social modos predeterminados de
conduta, de maneira que os membros da sociedade

47ALAGOAS. Lei nº 6.399, de 15 de agosto de 2003. Aprova a


organização básica da Polícia Militar do Estado de Alagoas e dá outras
providências. Disponível em: . Acesso em: 3 jan. 2019.

109
saibam, de antemão, como guiar-se na realização
de seus interesses48.

Não se pode entendê-la, no entanto, meramente


como um ato jurídico-político abstrato, de caráter geral;
muito mais, a lei é um instrumento modificador da realidade
social para a qual se destina. É a realização e a
operacionalização de um valor consagrado pelo povo que
influencia substancialmente na conduta dos cidadãos. A esse
respeito assevera Dirley da Cunha Júnior:

A lei deixa de ser entendida como mero enunciado


formal do legislador, desprovida de conteúdo
material ou substancial, para ser concebida e exigida
como um ato de concretização dos valores
humanos, morais e éticos fundamentais
consagrados na Constituição, numa perspectiva
democrática imposta pela soberania popular49.

O art. 5º do Texto Maior, em seu inciso II, enuncia


um dos principais pressupostos do ordenamento jurídico
pátrio. Ao determinar que “ninguém será obrigado a fazer ou
deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”, o
constituinte sustenta que é defeso ao Poder Público exigir do
particular qualquer ação ou abstenção, isto é, mandar ou
proibir alguma conduta sem estar calcado em uma lei. Trata-
se da formulação clássica do princípio da legalidade.

O princípio de legalidade nasceu do anseio de


estabelecer na sociedade humana regras
permanentes e válidas, que fossem obras da razão,

48 AFONSO DA SILVA, José. Curso de Direito Constitucional


Positivo. 25ª ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros Editores, 2005, p.
121.
49 CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de Direito Constitucional. 7ª

ed. rev. e ampl. Salvador: JusPodivm, 2009, p. 511.

110
e pudessem abrigar os indivíduos de uma conduta
arbitrária e imprevisível da parte dos governantes.
Tinha-se em vista alcançar um estado geral de
confiança e certeza na ação dos titulares do poder,
evitando-se assim a dúvida, a intranquilidade, a
desconfiança e a suspeição, tão usuais onde o poder
é absoluto, onde o governo se acha dotado de uma
vontade pessoal soberana ou se reputa legibus
solutus e onde, enfim, as regras de convivência não
foram previamente elaboradas nem reconhecidas 50.

No que tange ao particular, este mandamento


constitucional significa a autorização para fazer tudo o que a
lei não proíbe. Para ilustrar a situação, é corriqueiro afirmar
que a norma assume três posições em relação à conduta do
indivíduo: proibição, permissão ou faculdade. Estas posições
são o que Paulo de Barros Carvalho denomina modais
deônticos51. Em outros termos, a legalidade impõe que as
condutas que não sejam proibidas, ou seja, aquelas que sejam
permitidas, facultadas ou ainda, que não estejam previstas em
nenhuma lei, serão consideradas lícitas.
Por outro lado, no que se refere à Administração
Pública, este axioma implica um comando diametralmente
oposto: o administrador só pode fazer o que a lei determina
ou permite expressamente. Não há espaço para ações
baseadas na omissão do texto da lei. Ainda que se trate de ato
discricionário, esta margem de discricionariedade deve estar
prevista na norma.

Na Administração Pública não há liberdade nem


vontade pessoal. Enquanto na administração

50 BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. 10ª ed. rev. e atual., 9ª


tiragem. São Paulo: Malheiros Editores, 2000, p. 141.
51 CARVALHO, Paulo de B. Direito Tributário: Linguagem e Método.

4ª ed. São Paulo: Noeses, 2011, p. 37 et seq.

111
particular é lícito fazer tudo que a lei não proíbe, na
Administração Pública só é permitido fazer o que a
lei autoriza. A lei, para o particular, significa “pode
fazer assim”; para o administrador significa “deve
fazer assim”52.

Além de servir de limite à atuação do poder estatal e


de assinalar liberdades individuais ao cidadão, a legalidade,
assim como os macroprincípios já declinados, também se
espraia sobre toda a ordem normativa e é a reafirmação de
todos os direitos e garantias fundamentais alcançados
historicamente. É o ordenamento jurídico reforçando a si
mesmo e insculpindo-se numa cláusula pétrea. Porquanto
legalidade está intrinsecamente correlacionada a ordem
pública.
Evidencia-se, assim, que o princípio da legalidade,
dentre outros órgãos, também se perfaz por meio da Polícia
Militar, ao passo que esta, por integrar a Administração
Pública, se submete inteiramente ao império da lei. “Ela [a
Polícia] existe para garantir as liberdades e direitos,
consagrados nas leis, inscritas na Constituição democrática.
Ela só pode fazer cumprir as leis se as cumprir”53.

52 MEIRELLES, Hely L. Direito Administrativo Brasileiro. 31ª ed. São


Paulo: Malheiros Editores, 2005, p. 83.
53 BARROS, Marcelo. Políticas Públicas de Segurança no Brasil: Mito

ou Realidade? In: RATTON, José Luiz (Coord.); BARROS, Marcelo.


Polícia, Democracia e Sociedade. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p.
79.

112
CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Estado Democrático de Direito inaugurado pela


Constituição Federal de 1988 sedimentou o direito à
segurança como um feixe de normas interligado aos mais
caros fundamentos axiológicos. Na Carta, segurança assume
três principais acepções, conglobando: estabilidade das
relações jurídicas (direito adquirido, ato jurídico perfeito e
coisa julgada), previsibilidade (capacidade de antever as
consequências jurídicas dos atos particulares ou estatais e
limitação da intervenção pública sobre a esfera privada) e
redução de riscos (incolumidade das pessoas e do
patrimônio).
Foi sobre último aspecto que se debruçou o presente
artigo, uma vez que a garantia de um ambiente salutar que
possibilite o desenvolvimento pleno das potencialidades
humanas é a função precípua do aparato de segurança
pública. Prevenção e repressão de condutas delituosas, ambas
em sentido lato, são as principais estratégias desempenhadas
pelas polícias militares para proteger a sociedade e afiançar-
lhe segurança.
Neste diapasão, as instituições mencionadas
promovem diretamente a dignidade humana. Não existe vida
ou, no mínimo, vida digna sem segurança. Daí a relevância da
manutenção da ordem pública, ou seja, defesa de
perturbações no cotidiano coletivo, que, no tocante às
corporações estaduais, perfaz-se pelo policiamento
ostensivo. Ademais, estas missões também se correlacionam
com o princípio da legalidade.
O policial militar desenvolve um duplo
relacionamento para com a lei. Em primeiro lugar, a sua
atividade se cumpre, grosso modo, pela defesa da integridade

113
do ordenamento jurídico e consequentemente pela
reafirmação dos valores sagrados. Segundo, porque sua
conduta se baseia única e exclusivamente nestas mesmas
normas. Como detém o monopólio legítimo da violência (no
sentido weberiano54), suas ações não podem, em hipótese
alguma, se desviar das pautas legais, sob pena de elas mesmas,
constituírem atentado à ordem pública e ao Estado
Democrático de Direito.
O interesse público que a Polícia Militar se destina a
salvaguardar e, portanto, a diretriz finalística de todos os seus
atos é a realização da justiça social. Em última análise, é a
perpetuação da democracia. Nesse mister, por sua essência,
as instituições castrenses estão entre as mais democráticas
organizações existentes.

REFERÊNCIAS

AFONSO DA SILVA, José. Curso de Direito


Constitucional Positivo. 25ª ed. rev. e atual. São Paulo:
Malheiros Editores, 2005.

ALAGOAS. Lei nº 6.399, de 15 de agosto de 2003. Aprova


a organização básica da Polícia Militar do Estado de Alagoas
e dá outras providências. Disponível em: . Acesso em: 3 jan.
2019.

ALAGOAS. Manual Prático de Abordagem,


Imobilização e Uso de Arma de Fogo. Polícia Militar de
Alagoas, 2004, MIMEO.

54WEBER, Maximilian. A política como vocação. Tradução: Maurício


Tragtemberg. São Paulo: Saraiva, 2003, passim.

114
BARROS, Marcelo. Políticas Públicas de Segurança no Brasil:
Mito ou Realidade? In: RATTON, José Luiz (Coord.);
BARROS, Marcelo. Polícia, Democracia e Sociedade. Rio
de Janeiro: Lumen Juris, 2007.
BOLZAN DE MORAIS, José Luis e STRECK, Lenio L.
Comentário ao artigo 1º, caput. In: CANOTILHO, J.J.
Gomes; MENDES, Gilmar F.; SARLET, Ingo W.;
STRECK, Lenio L. (Coords.). Comentários à Constituição
do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013.

BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. 10ª ed. rev. e atual.,


9ª tiragem. São Paulo: Malheiros Editores, 2000.

BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado


Social. 7ª ed., 2ª tir. São Paulo: Malheiros Editores, 2004.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil


(1988). Disponível em: . Acesso em: 25 jan. 2019.

BRASIL. Decreto nº 88.777, de 30 de setembro de 1983.


Aprova o regulamento para as polícias militares e corpos de
bombeiros militares (R-200). Disponível em: . Acesso em: 3
jan. 2019.

CÂMARA, Paulo S. Defesa social e segurança pública.


2000. Disponível em: . Acesso em: 3 jan. 2019.

CARVALHO, Paulo de B. Direito Tributário: Linguagem


e Método. 4ª ed. São Paulo: Noeses, 2011.

CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de Direito


Constitucional. 7ª ed. rev. e ampl. Salvador: JusPodivm,
2009.

FILOCRE, Lincoln D. Direito de Segurança Pública.


Limites jurídicos para políticas de Segurança Pública.
Lisboa: Almedina, 2010.

115
GRANGEIRO BISNETO, Sebastião. O papel da Polícia
Militar de Alagoas na efetivação do direito fundamental
ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Maceió.
Curso de Formação de Oficiais. Polícia Militar de Alagoas,
2015.

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução: João


Baptista Machado. 7ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

MEIRELLES, Hely L. Direito Administrativo Brasileiro.


31ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2005.

SOUZA NETO, Cláudio P. de. Comentário ao artigo 5º,


caput. In: CANOTILHO, J.J. Gomes; MENDES, Gilmar F.;
SARLET, Ingo W.; STRECK, Lenio L. (Coords.).
Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo:
Saraiva/Almedina, 2013.

WEBER, Maximilian. A ética protestante e o espírito do


capitalismo. 4ª ed. São Paulo: Martin Claret, 2009.

116
Mulheres e vulnerabilidade:
encarceramento em massa nos Estados
Unidos e no Brasil

Maria Adriana Torres55


INTRODUÇÃO

Esta é uma aproximação ao conjunto de questões


sobre a problemática das mulheres infratoras no sistema de
justiça criminal mundial, marcadas, em sua grande maioria,
pela exclusão social e pela posição desigual enquanto mulher
na sociedade. Este estudo versa sobre as mulheres em
conflito com a lei, mediante o aporte teórico da criminologia
crítica, com vistas à análise sobre o encarceramento de
mulheres e as implicações no espaço da custódia e, ainda,
com o propósito de questionar a visão androcêntrica e
positivista dos estudos sobre os crimes e o encarceramento,
remetendo-o às particularidades femininas, a fim de desvelar
a visão individualista que culpabiliza o indivíduo por
situações particulares, retirando do âmbito do Estado e da
sociedade a responsabilidade pela questão social em que estão
imersas essas mulheres e suas famílias.
Para se contrapor a esse viés individualista, procura-
se fazer uma interpretação crítica da dinâmica social que leva
vasta camada da população feminina a padecer de condições
precárias de vida, que a fazem ser alvo de políticas de controle
penal. Essa condição de desigualdade social e de gênero em
relação ao homem se perpetua ao longo da história da
55Professora associada da Faculdade de Serviço Social (FSSO) da
Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Coordenadora do Programa
de Pós-Graduação em Serviço Social (PPGSS). Líder do Grupo de
pesquisa em Direito, Justiça e Sociedade (DJUSS)/CNPq. PhD em
Direitos Sociais pela Universidade de Salamanca (USAL)/Espanha.

117
humanidade como uma contundente contradição que se
reproduz também no cárcere.
Em relação à mulher, verifica-se inconformidade na
estrutura do cárcere, especialmente quando o direito à
maternidade não é preservado, transcendendo a pena para os
filhos, como se evidencia nos Estados Unidos e no Brasil.
Nesse contexto, há dados que revelam o
superencarceramento de mulheres nas prisões desses países,
em sua maioria em decorrência do tráfico de drogas, sendo
os delitos cometidos por elas geralmente praticados sem
violência física. Esse aumento no número de crimes
cometidos por mulheres pode estar ligado a fatores como o
aumento da desigualdade social e a fragilidade do Estado de
Direito ao fazer cumprir as leis, pela imperativa sociedade
patriarcal em funcionamento, reforçando o desejo de punição
com fins de repressão das condutas delitivas do sujeito
feminino.
É sabido que as mulheres infratoras são marcadas,
em sua maioria, pela exclusão social e pela opressão intra e
extramuros do cárcere, reforçando a seletividade penal, que
impacta grupos sociais mais vulneráveis e, portanto, mais
sujeitos à violência institucional. Essa exclusão tem como
base estruturante a posição que a mulher ocupa na divisão
social e sexual do trabalho no âmbito da sociedade patriarcal,
refletida nas práticas punitivas mais acentuadas para reprimi-
las.
Em síntese, este estudo visa promover reflexões
sobre o encarceramento em massa de mulheres, seus
conflitos e antagonismos, tecendo críticas sobre a
criminalização e o aprisionamento sem condenação à luz da
criminologia crítica, recuperando elementos do tempo
histórico para analisar o contexto contemporâneo do Brasil e
dos Estados Unidos, países que concentram um grande
encarceramento de mulheres.

118
A MULHER QUE DELINQUE NO TEMPO
HISTÓRICO: CRÍTICAS AO POSITIVISMO

É sabido que desde o século XVIII o entendimento


era o de que as mulheres capazes de cometer crime eram
semelhantes aos homens, ou mesmo, sua conduta poderia ser
comparada aos loucos ou menores. Segundo Graziosi (1999,
p. 60-61, tradução nossa), no século XIX, os paradigmas
jurídicos e científicos tiveram uma grande importância na
construção do modelo de mulher, considerando o normal e
o patológico. O modelo de feminilidade supunha ser o
“normal”, porque se aproximava das características da
maternidade; o contrário disso seria anormal. Por isso, as
mulheres que não fossem mães seriam consideradas
inferiores, ou, se não fossem capazes de reproduzir, teriam
uma capacidade de raciocínio pouco desenvolvida. Esse
pensamento encontra fundamento na teoria lombrosiana do
século XIX, baseada na análise das características biológicas
dos indivíduos.
Lombroso e Ferrero (2010) propunham que as
mulheres não fossem castigadas, pois, na maioria das vezes,
cometiam crimes movidas por paixões. Sugeriam castigos
ligados a penas leves em casos de pequenos furtos, como, por
exemplo, cortar-lhes os cabelos, privá-las dos adornos e
maquiagens etc. Caso fossem presas, deveriam trabalhar, ou
ficariam sem comida. Nos discursos dos magistrados da
época, esses tipos de castigos serviam como argumento para
atenuar a pena das mulheres delinquentes.
O sexo feminino, por ser mais débil e frágil, segundo
eles, se encaixaria no rol dos outros segmentos
vulnerabilizados, como os idosos, por exemplo. Dessa forma,
mediante critérios biológicos, considerou-se a mulher como

119
inferior ao homem, dada a sua falta de capacidade para
entender os perigos da vida em sociedade. Sendo incapazes
de avaliar suas próprias ações, representavam menor perigo à
sociedade, fato este notoriamente usado nos discursos dos
magistrados da época para atenuar as consequências da
delinquência feminina. Explicava-se a baixa criminalidade da
mulher pelos fatores biológicos ou pela associação entre
crime e loucura.
Por isso, o tratamento recomendado às mulheres
delinquentes poderia ser diferenciado, como serem
destinadas aos manicômios criminais. Havia uma
desproporção na aplicação das penas, já que o critério
norteador da defesa das mulheres nos tribunais era biológico,
não se levando em conta a condição de desigualdade social
em relação aos homens, a sociedade patriarcal e o sexismo, as
atitudes discriminatórias em função do sexo. É sabido que ao
interpretar os crimes cometidos pelas mulheres como fruto
da sua incapacidade mental, colocou-se a mulher durante
séculos como um ser secundário na história da sociedade,
portanto distante de uma percepção mais totalizante das
desigualdades sociais, culturais e econômicas construídas pela
sociedade entre os sexos. O tratamento dado à mulher era
piedoso ou cortês em razão de sua condição de inferioridade;
isso, por sua vez, contribuiu para a construção sócio-histórica
do sujeito masculino como dotado de razão, força e poder.
Conforme Lombroso e Ferrero (2010), as mulheres
que delinquem são degeneradas, pois violam as regras sociais
de sua condição feminina. Assim, são perigosas quando
comparadas aos homens e, por isso, devem ser consideradas
como “monstros”, uma vez que cometem duplamente a
infração das leis biológicas e morais. As mulheres
delinquentes teriam características da criminalidade

120
masculina e as piores características femininas: rancor,
falsidade e astúcia, sendo, portanto, distintas das mulheres
consideradas normais, que são reservadas, maternais e dóceis.
Ainda, segundo Lombroso e Ferrero (2010), as mulheres
delinquentes não são maternais, mas sexuais, porque a
maternidade e a sexualidade se excluem.
Apenas no século XX a criminologia avança na
compreensão dos crimes e dos sujeitos que os praticam,
porque estão imbricados com relações sociais complexas de
que fazem parte homens e mulheres. O jurista argentino Raúl
Zaffaroni (2017), no seu livro Em busca das penas perdidas,
desmistifica as relações construídas pela sociedade em torno
do poder punitivo que legitima a seletividade penal e aguça a
análise da crise do discurso jurídico-penal.
Sabe-se que há mudanças significativas na sociedade
e que ela não é a mesma desde sua gênese; os crimes também
não são mais os mesmos, e tampouco a criminalidade é a
mesma. Nesse contexto de mudanças produzidas no
processo histórico, La Torre (2017, p. 91) tece uma análise
criteriosa sobre o direito: “Es certo que la criminalidade tiene
hoy otras manifestaciones y outros contenidos, que nuestras
sociedades han cambiado y que en un futuro continuarán
haciéndolo y que sobre los futuros câmbios tendrá que
pronunciarse el ordenamiento penal”.
Por isso, a questão criminal e a questão de gênero
fazem parte do aprisionamento, do qual as mulheres se
acham em condição de aguçada vulnerabilidade no decorrer
do tempo histórico, ainda que um patamar de direitos
protetivos à pessoa humana faça parte do cenário nacional e
internacioal.

121
CRIME E ENCARCERAMENTO DE MULHE-
RES: ALGUMAS PECULIARIDADES

A punição aos crimes foi contextualizada por


Foucault na obra Vigiar e punir, onde descreve o poder de
disciplinar e de punir no mundo moderno, contrapondo-se à
ideia habitualmente aceita de que a prisão é uma instituição
humanizada para cumprir a pena, como, por exemplo, através
das penas de banimento ou suplício, esta última para castigar
o ser humano de qualquer gênero.
A penitenciária de mulheres existe desde o século
XVII, na Espanha, devido à necessidade de manter as
mulheres separadas dos homens, o que nem sempre era
possível. Há, portanto, três características históricas
predominantes nos centros prisionais femininos, são elas:

[...] a) la aplicación de um régimen de vida basado


em uma férrea disciplina; b) la voluntad de
“domesticar” nuevamente a aquellas mujeres que
havían transgredido al mismo tempo la ley penal y
las normas sociales inperantes em cada época acerca
de la condición feminina; y c) la moralización, que
asociaba delito y pecado. (VILLANUEVA, 2018, p.
14),

A condição da mulher no cárcere era regrada por


normas moralizadoras com a finalidade de remissão dos
pecados praticados em decorrência do crime. Na Espanha, as
primeiras prisões, chamadas de “galeras”, foram construídas
durante o reinado de Felipe III, no começo do século XVII,
em razão das condutas desviantes das mulheres da época e
possuíam orientação moralizante: castigavam-se as mulheres
que tinham um comportamento contrário ao cristianismo
como forma de se buscar a regeneração moral ao morrer. Na
fase judicial, separavam-se as mulheres condenadas pela

122
justiça daquelas cujos estilos de vida não estavam de acordo
com as regras morais da sociedade da época.
Desde o século XIX ocorre a luta pela reforma dos
presídios, no sentido da criação de uma equipe de
profissionais para atuar na prisão; da capacitação dos
funcionários para que se ocupassem em “corrigir” os
condenados, e em especial, as mulheres; de aumentar o
número de prisões e melhorar as condições no espaço da
custódia; de fornecer uma adequada assistência pós-cárcere e,
por fim, da criação de asilos provisórios para os condenados
que conseguiam a liberdade (idem).
Em relação aos crimes cometidos por mulheres, há
tipologias específicas em relação ao contexto fático e às
determinações sociais, históricas e econômicas: crimes
cometidos por paixões, pequenos furtos e maus-tratos a
idosos e crianças etc. A literatura traz muitos escritos sobre
essa temática, entre eles os escritos da socióloga Carol Smart
(1976), no final da década de 1970, com reflexões densas
sobre mulheres e criminalidade.
Contemporaneamente, Davis (2018), analisa a
criminalização e a violenta sexualização da vida nos sistemas
prisionais, tecendo críticas às punições públicas pela classe,
pelo gênero e pela raça. Essa autora, recuperou elementos
históricos da Europa e, especialmente, dos Estado Unidos
relacionado à ascensão do capitalismo ao surgimento da
prisão (DAVIS, 2018, p. 46). Continua a referida autora,
destacando que o gênero estrutura o sistema prisional e que
nele há um conjunto de violências que mantém as práticas
punitivas e patriarcais, portanto ultrapassadas e obsoletas,
porque se acredita que por meio das prisões femininas as
mulheres “criminosas” podem se regenerar.

123
As mulheres no cárcere também foram objeto de
estudo na obra pioneira, no Brasil, da socióloga Julita
Lemgruber (1999), escrita na década de 1970, que recuperou
a gênese da prisão de mulheres no Brasil e a relação das
primeiras penitenciárias com os ensinamentos religiosos
cristãos e morais, no contexto de ascensão do capitalismo
brasileiro.
Nessas obras, a narrativa das autoras se encontra
quando tecem críticas à sociedade patriarcal, à sociedade
capitalista e à condição de vulnerabilidade da mulher na
sociedade e no no cárcere, no tocante às desigualdades de
gênero, de classe e de raça que se perpetuam no tempo
histórico seja na Europa, nos Estados Unidos ou mesmo no
Brasil, como se verifica a seguir.

MULHERES ENCARCERADAS: UM PANORAMA


DO ENCARCERAMENTO CONTEMPORÂNEO

A décima segunda edição da Lista Mundial da


População Prisional, de 2018, traz detalhes sobre o número
de prisioneiros detidos em 223 sistemas prisionais em países
independentes e territórios dependentes. Os números
incluem presos provisórios/presos em prisão preventiva e
aqueles que foram condenados e sentenciados. Os dados são
atualizados pelo Instituto de Pesquisa em Políticas Criminais
(ICPR) em Birkbeck, Universidade de Londres, que hospeda
e mantém o banco de dados World Prison Brief e publica as
Listas de Prisão. Essa lista mostra que mais de 10,74 milhões
de pessoas são mantidas em instituições penais no mundo,
seja como presos provisórios, presos preventivos ou
condenados. Alguns países não disponibilizaram os dados,
entre eles Somália e Coreia do Norte. China e Guiné-Bissau

124
estão com os dados incompletos. Entre os países com maior
população carcerária estão os Estados Unidos, a China e o
Brasil. (WALMSLEY, 2018, tradução nossa).
A quarta edição da World Female Prisonment List, de
2017, expõe o número de mulheres e meninas mantidas em
instituições penais em 221 sistemas prisionais em países
independentes e territórios dependentes. Os números
incluem presos provisórios/detentos em prisão preventiva e
aqueles que foram condenados e sentenciados. A lista
também mostra a porcentagem de mulheres e meninas dentro
de cada população carcerária nacional e o número de
mulheres e meninas presas por 100 mil da população nacional
(a taxa de população carcerária feminina).
Há poucos países em que os números não estão
disponíveis (Cuba, Eritreia, Coreia do Norte, Somália e
Uzbequistão), e os da China estão incompletos. Essa lista
mostra que mais de 714 mil mulheres e meninas são mantidas
em instituições penais em todo o mundo, seja como
prisioneiras, presas provisórias ou condenadas e
sentenciadas. Os dados da população carcerária mundial
explicitam onde se acha a maior concentração dessa
população:

Mais de 200 mil prisioneiras do sexo feminino estão


nos Estados Unidos da América (cerca de 211.870).
Os países mais próximos com totais mais altos são
a China (107.131 mais um número desconhecido de
mulheres e meninas em detenção preventiva e
detenção administrativa), a Federação Russa
(48.478), o Brasil (cerca de 44.700) [...].
(WALMSLEY, 2017, p. 2, tradução nossa).

Os níveis de população carcerária feminina no Brasil,


Indonésia, Filipinas e Turquia aumentaram acentuadamente

125
nos dois anos e caíram substancialmente no México, na
Federação Russa, na Tailândia e no Vietnã, todavia ainda
revelam indicadores elevados. Ainda que o índice geal de
mulheres presas no mundo seja baixo em relação aos
homens, a quarta edição do World Female Imprisonment List
(WFIL), 2017, afirma que houve o crescimento de 53% da
população carcerária feminina em todos os continentes desde
2000. Nota-se ainda que o encarceramento de mulheres foi
três vezes maior no continente americano e, de forma geral,
tem aumentado significativamente quando comparado ao
encarceramento de homens, ainda que o encarceramento
masculino seja, em números absolutos, mais elevado.

O ENCARCERAMENTO EM MASSA NOS ESTADOS


UNIDOS E NO BRASIL: A VULNERABILIDADE
FEMININA

Para Alexander (2018), o encarceramento em massa,


principalmente nos Estados Unidos encontra lugar na
política criminal, com suas leis que punem com mais rigor
determinados crimes e grupos sociais segregados. Assim, há
também a discriminação da pobreza na seara de “guerra às
drogas”, sendo os negros e latino-americanos pobres os mais
afetados pela política criminal. Esse cenário, desafia o
patamar de direitos constitutivos de documentos protetivos
aos encarcerados, especialmente no que tange as
peculiaridades de gênero.56
Nesse quadro de acentuado de penalismo, há um
quadro excessivo de mulheres encaceradas, principalmente

56 As Regras Mínimas como também as Regras de Bangkok, ambas da


ONU, são documentos protetivos aos encarcerados que respaldam o
sistema de garantia de direitos dos países signatários.

126
nos EUA. Mais alarmante ainda é o fato de que muitas dessas
mulheres estão encarceradas sem condenação, porque
aproximadamente 60% das mulheres em prisão não foram
condenadas por crime e aguardam julgamento (KAJSTURA,
2019, tradução nossa).
Nos Estados Unidos, ficam detidas porque não
podem pagar a fiança. Outro aspecto preocupante nas
carceragens é o acesso restrito à família, ligações telefônicas
pagas por elas, sistema de cartas que muitas vezes não é
permitido, refletindo no afastamento da mãe do contato com
a família e com seus filhos, na maioria das vezes. As clamadas
telefônicas são caras e as comunicações de forma geral são
restritas, porque algumas prisões não permitem cartas,
somente cartões postais. Dessa forma, “Isso é especialmente
preocupante, dado que 80% das mulheres nas prisões são
mães, e a maioria delas é a cuidadora principal de seus filhos.
Assim, as crianças são particularmente suscetíveis ao efeito
dominó dos fardos colocados sobre as mulheres
encarceradas”. (KAJSTURA, 2017, tradução nossa).
Ainda que os determinantes ético-racial e sexual
sejam pouco analisados nos documentos sobre mulheres
encarceradas e que o maior percentual de mulheres presas
nos EUA seja de mulheres brancas, verifica-se que as
mulheres negras e lésbicas ou bissexuais estão mais
vulneráveis ao encarceramento pela sua condição social, além
de ter penas mais endurecidas. Verifica-se também que nem
sempre as mulheres encarceradas são condenadas pelas
infrações cometidas, porque aproximadamente um quarto
das mulheres encarceradas não são condenadas, quando são
julgadas. (KAJSTURA, 2019, tradução nossa).
É alarmante o crescimento do encarceramento nos
EUA, tanto de homens quanto de muheres tem uma relação

127
direta com o que o sociológo Wacquant, em Prisões da miséria,
denomina de “tolerância zero”. Segundo o autor, no pós-
guerra, os Estados Unidos e outros países como o Reino
Unido e a Nova Zelância reduziram seus gastos sociais e
estimularam o trabalho flexível e a instalação do programa de
trabalho forçado (workfare) para os beneficiários da ajuda
social. A derrocada do Estado-providência provocou o
dumping social, implicando maiores taxas de pobreza,
segregação societária e insegurança social, o que alimentou a
criminalidade. Sendo assim:

O assombroso crescimento do número de presos na


Califórnia, como no resto do país, explica-se, em
três quartos, pelo encarceramento dos pequenos
delinquentes e, particularmente, dos toxicômanos.
Pois, contrariamente ao discurso político e
midiático dominante, as prisões americanas estão
repletas não de criminosos perigosos e violentos,
mas de vulgares condenados pelo direito comum
por negócios com drogas, furto, roubo, ou simples
atentados à ordem pública, em geral oriundos das
parcelas precarizadas da classe trabalhadora e,
sobretudo, das famílias do subproletariado de cor
das cidades atingidas diretamente pela
transformação conjunta do trabalho assalariado e da
proteção social. (WACQUANT, 2014, p. 53).

Esse modelo de encarceramento nos Estados Unidos


é oferecido ao mundo como política criminal para conter as
parcelas principalmente de trabalhadores alijados do mundo
do trabalho. Essa “nova penalogia” criminaliza a miséria e o
subproletariado.
Esse penalismo acentuado atende à lógica do Estado
mais liberal, enfraquecendo as conquistas civilizatórias do
Estado Social e ofertando o Estado policial e repressor como

128
resposta ao tratamento da miséria. Esse mesmo Estado revela
uma assistência deficitária, muitas vezes realizada por firmas
contratadas, uma vez que o Estado neoliberal levou à
privatização dos presídios e da assistência aos encarcerados,
o que inclui a tutela sobre suas mulheres e filhos
(WACQUANT, 2014, p. 64).
O mercado do tráfico de drogas vem crescendo
demasiadamente e faz vítimas as mulheres e meninas, além
de homens e meninos que, pela falta de condições de trabalho
e políticas sociais protetivas de seguridade social, acabam à
mercê desse mercado em franca expansão em todo o mundo.
Há, portanto, traços de gênero, etnia e classe justificadores da
inserção forçada desses segmentos no mundo do tráfico de
drogas, no qual as mulheres e crianças são mais vulneráveis.
É, portanto, nesse contexto de elevada globalização
da economia, desemprego estrutural e criminalização da
pobreza, que as mulheres são encarceradas, partícipes de um
processo judicial que desde o começo é recortado pelo viés
de gênero, etnia e classe social. Da abordagem policial à
sentença e, posteriormente, à reclusão, as mulheres são
vítimas de discriminação e parte de um quantitativo que vem
crescendo, cujo perfil é o de mulheres jovens, em sua maioria
de 19 a 33 anos, em idade produtiva para o trabalho, com
baixa escolaridade, negras e mães solteiras, que respondem
pelo tráfico de drogas (pequena quantidade de drogas,
geralmente) (INFOPEN, 2018).
Há, portanto, causas estruturais que explicam o
porquê de tantas mulheres estarem aprisionadas em razão da
guerra ao tráfico de drogas. As mulheres são assistidas pelo
sistema de justiça, que carrega as marcas do patriarcado de
controle social dos corpos femininos, reiterando que o crime

129
é um fato social porque agrega concepções de hierarquia
entre homens e mulheres.
Há, no Brasil, 726.712 pessoas privadas de liberdade.
Aproximadamente 40% das pessoas presas no Brasil, em
julho de 2016, não haviam sido julgadas e condenadas. No
total, 38% da população condenada cumpre pena em regime
fechado; 32% das vagas existentes destinam-se aos presos
sem condenação; 55% da população prisional é composta por
jovens com menos de 29 anos, segundo o Estatuto da
Juventude; 64% da população prisional é composta por
pessoas negras; 17% da população prisional não teve acesso
ao ensino médio (INFOPEN, 2017).
A população carcerária feminina no Brasil
corresponde a 42.355 mulheres, em 2016. Há um déficit de
vagas: 15.326, isso porque, nos espaços com capacidade para
dez mulheres, encontram-se custodiadas 16. Entre 2000 e
2016, a taxa de aprisionamento de mulheres aumentou 455%;
45% das mulheres presas não haviam sido julgadas e
condenadas. Os dados revelam que 74% das unidades
prisionais destinam-se aos homens; a arquitetura prisional e
os serviços penais não foram planejados para o público
feminino, sendo posteriormente adaptados para a custódia de
mulheres. São, por isso, incapazes de observar as
especificidades das necessidades cotidianas dos espaços e
serviços destinados às mulheres (INFOPEN, 2018).
A população prisional feminina é composta por 55%
de jovens de 18 até 29 anos; 62% por mulheres negras; 66%
não acessaram o ensino médio, tendo concluído, no máximo,
o ensino fundamental; apenas 15% concluíram o ensino
médio; 62% cometeram crimes relacionados ao tráfico de
drogas (INFOPEN, 2018).

130
Essa concepção de mulher criminosa como mulher
desviada das suas funções sociais recupera elementos do
positivismo lombrosiano, de que ela se desvia dos padrões de
normalidade e que, por isso, pode suportar um sistema
criminal ostensivo. Por outro lado, desconstrói a tese de que
a maternidade estaria vinculada às características dóceis da
mulher e que, portanto, essa mulher não estaria apta para o
crime.
Verifica-se, dessa forma, que embora os homens
constituam a maioria dos prisioneiros no mundo, as mulheres
passaram a ocupar os estabelecimentos prisionais
especialmente na última década, punidas com penas mais
severas, muitas vezes antes do julgamento.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O cárcere, espaço de punição e confinamento de


corpos e almas, aparece contemporaneamente como um
mecanismo da “sociedade de controle”, numa relação de
tempo e espaço em que homens e mulheres são
estigmatizados e criminalizados pelos constrangimentos e
injunções institucionais.
A experiência brasileira revela-se análoga à dos
Estados Unidos. Na mesma medida, os complexos conflitos
sociais trazidos pelo cárcere mostram-se de forma muito
específica no decorrer da história das prisões brasileiras,
sendo possível perceber, em linhas gerais, que a prisão é um
espaço poroso, por isso a necessidade de ratificar o
entendimento da proteção aos direitos humanos, a fim de que
o cárcere não continue sendo uma verdadeira “fábrica de
criminalidades” e de reincidência da delinquência.

131
A omissão em prover condições mais adequadas à
mulher no cárcere revela os nexos com uma cultura patriarcal;
nesta, o lugar da mulher é de subalternidade. A partir disso,
se discriminam, penalizam e excluem as mulheres infratoras
antes mesmo da sentença; elas passam a ser esquecidas,
renegadas e odiadas por suas famílias e pela sociedade, numa
retórica histórica que se reproduz ao longo dos séculos
desafiando as conquistas civilizatórias.
Esse controle através do aprisionamento, não se faz
sem uso da violência para assegurar a reprodução do capital,
por isso o encarceramento em massa não acontece somente
nos países subdesenvolvidos, mas afeta principalmente a
população pelas questões de raça, gênero e classe social, a
exemplo dos Estados Unidos e do Brasil. O uso desse
controle pelo Estado, principalmente ligado à “tolerância
zero às drogas”, soma-se à violência institucionalizada nos
estabelecimentos penais como uma mediação no contexto do
desenvolvimento capitalista, que sempre recorreu ao uso da
força policial para conter os mais vulneráveis e nesse grupo
estão as mulheres.

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