Você está na página 1de 10

Prólogo: A Luz e a Sombra

O
vento soprava gelado na floresta aos pés das Montanhas Urrantes. Eram os últimos

dias do outono, mas ali, no extremo norte de Alantor, o inverno parecia chegar mais

cedo. Em algumas semanas, a neve cobriria de branco a copa daquelas árvores. Um

cenário ao mesmo tempo belo e fatal ― cheio de contrastes, como Jakob apreciava.

O céu estava límpido e sem nuvens. O sol se punha no horizonte, e do outro lado a lua cheia

já começava a brilhar. Os poetas muitas vezes diziam que, em dias de crepúsculo como esse, Beliandros

e Ifine se encontravam no firmamento ― e, a depender da preferência do autor, jantavam, dançavam

ou tinham uma noite de amor.

Mas Jakob sabia que aquilo era apenas licença poética. Beliandros e Ifine, como todos os

Aenares, viviam não nos céus do Plano Material, mas nos Planos Superiores, em um exílio auto-

imposto para preservar as forças necessárias para manter o Véu que mantinha os Devires rebeldes

presos nos Planos Inferiores ― e, o que quer que os dois fizessem por lá, em nada afetaria os

movimentos do sol e da lua por ali.

Além disso, Jakob sempre achou que o crepúsculo representava não um amálgama de

Beliandros ― o orgulhoso e altivo deus do sol ― e Ifine ― a delicada e bela deusa da lua ―, mas sim

o equilíbrio propugnado pelo Aenar ao qual ele escolhera se dedicar: Iteus, deus da temperança e

protetor dos monges e eremitas.

Jakob ― frei Jakob Weiss, para ser mais preciso ― era, aliás, um pouco de ambos. Órfão desde

muito jovem, ele havia sido criado por dois amigos de seus pais: Darthoridan, um elfo seguidor de

Immerhil, e Liiare, serva de uma misteriosa entidade a que ela se referia apenas como a Rainha dos
Corvos. Mas, embora os dois tenham lhe ensinado valiosas lições, e ele tenha sempre sido atraído pela

religião, Jakob nunca sentira uma verdadeira vocação para seguir os passos de qualquer um deles.

Acahava ambas as doutrinas, a um só tempo, radicais e fracas.

Apenas quando se tornou adulto Jakob finalmente descobriu o seu caminho. Precisamente ali,

em meio àquelas montanhas geladas, ele descobrira um monastério de Iteus, e nesse lugar ele

encontrara as respostas que sempre buscara: uma fé baseada no equilíbrio, na razão e na temperança.

Porém, mesmo a vida no monastério não lhe apetecia completamente: sim, ele gostava dos

estudos, das orações e dos treinamentos marciais. E as torres daquele templo encravado em meio à

alta cordilheira ofereciam vistas espetaculares para a contemplação. No entanto, por mais que os

monges de Iteus fossem conhecidos no mundo exterior por seu silêncio e discrição, a vida monástica

ainda era uma vida em sociedade ― e Jakob, se pudesse, viveria sozinho. Assim, como era comum em

sua vida, ele acabou achando um meio-termo aceitável: ele construíra sua cabana ali, nos pés da

montanha, frequentava o templo quando fazia sentido, e buscava refúgio em sua solidão quando

parecia o melhor caminho.

***

I
nfelizmente, a beleza do crepúsculo era sempre breve. Enquanto a luz do dia e a escuridão da

noite duravam várias horas, a transição entre elas era intensa, mas curta. Havia, porém, uma

vantagem nisso: os dias de Jakob certamente seriam muito menos produtivos caso o crepúsculo

se estendesse por mais tempo.


A lua cheia tornava a noite relativamente clara. Não que isso fosse um problema para Jakob

― as misteriosas bênçãos que Iteus lhe concedera haviam há muito lhe permitido enxergar mesmo em

meio à escuridão. Ainda assim, era sempre agradável poder apreciar as cores.

Jakob voltou para sua cabana. Com o pôr-do-sol, as temperaturas caíam abruptamente naquela

região e, infelizmente, contra o frio as bênçãos de Iteus não ajudavam. Seria necessário acendar a boa

e velha lareira.

As chamas começaram a crepitar, aquecendo e enchendo de luz o único cômodo da

construção. O fogo era um amigo fiel: não apenas confortava com seu brilho e calor, mas também

com o agradável ruído da lenha sendo queimada, que por sua vez enchia o ar com um odor

reconfortante ― um deleite para quase todos os sentidos. Com um sorriso no rosto provocado por

aquela sensação de paz e solidão, ele retirou um livro da prateleira e sentou-se em sua confortável

poltrona no centro da sala.

O Cântico da Temperança. O livro sagrado da ordem de Iteus continha as bases dos ensinamentos

do Aenar, em versículos repletos de sabedoria. Assim como os outros nove Cânticos, suas origens

eram lendárias ― eles haviam sido trazidos pelos primeiros homens que chegaram no continente, após

o Cataclisma, fugindo da destruição de sua terra natal e atracando na baía ao redor da qual viria a se

formar a cidade de Arrivium. Ninguém podia dizer, atualmente, quem havia escrito originalmente

aqueles dez livros, mas a ortodoxia da Igreja ditava que suas palavras provinham diretamente dos

Aenares.

Fosse como fosse, Jakob não se cansava de as ler. Embora já tivesse devorado aquele tomo

diversas vezes, como atestavam suas páginas já amareladas, e pudesse até mesmo recitar de cor diversas

estrofes, ele sempre aprendia novas lições a cada leitura.

Naquela noite, porém, estava difícil manter a concentração. O olhar do clérigo era

constamentente atraído para as sombras no canto do aposento. Era difícil explicar, mas elas
pareciam… não se comportar de maneira natural. A cada vez que seus olhos se punham sobre as

páginas do livro, Jakob sentia que algo estranho acontecia com as sombras, e ficava inquieto.

O clérigo tentava se convencer de que aquilo era algo de sua cabeça. O dia, afinal, havia sido

exaustivo: ele havia ido na manhã para o monastério, e os treinamentos da tarde incluíram extenuantes

exercícios físicos ― que, no caso de Jakob, somavam-se à enorme escadaria que ele tivera que subir e

descer para chegar e sair do templo.

Mas, a cada minuto que se passava, ele se convencia mais de que não estava alucinando. As

sombras estavam, de fato, se mexendo. Discretamente, o clérigo fechou O Cântico da Temperança e o

colocou no chão, pegando a maça que repousava ao lado de sua poltrona. Então, procurando não

fazer barulho, ele se levantou e começou a caminhar lentamente em direção àquelas sombras.

Nesse momento, o movimento delas subitamente se tornou mais intenso. Elas pareciam ter

tomado substância e, como se fossem líquidas, começaram a girar tal qual um redemoinho. Então,

pedaços começaram a se desprender do corpo principal e a voar pela sala, assumindo aos poucos a

forma de aves negras que depois sumiam. E, em instantes, toda aquela substância havia desaparecido.

Em seu lugar, no centro do que havia sido o redemoinho, estavam dois elfos ― um homem e uma

mulher ― extremamente pálidos, vestidos com roupas escuras que contrastavam com sua pele quase

branca.

***

J
akob encarava os dois enquanto empunhava sua maça ostensivamente. Apesar da invasão de

sua casa e interrupção do seu descanso o desagradarem profundamente, ele não sentia

propriamente medo. Na realidade, ele já suspeitava quem eram aqueles dois.


“Guarde sua arma, Jakob Weiss, ou a mantenha em suas mãos, se isso o deixar mais

confortável,” disse a mulher em uma voz calma e com um sotaque que era difícil de discernir. “Nós

viemos em paz e em busca de ajuda.”

O clérigo relaxou um pouco e abaixou a maça, mas ainda a manteve firme na mão.

“Ajudaria se vocês se apresentassem,” disse ele. “E batessem na porta antes de entrar.”

“Desculpe-nos pela nossa entrada um tanto… dramática,” respondeu a elfa. “Não era nossa

intenção aparecer dentro de sua casa, mas viemos… de longe. E nem sempre é fácil determinar com

precisão onde vamos aparecer. Meu nome é Golda, e este é Achanoch.”

A mulher gesticulou em direção ao elfo ao seu lado, que permanecia calado. Aquilo confirmava

as suspeitas de Jakob: em mais de uma ocasião, Liiare relatara como ocasionalmente recebia visitas de

uma elfa pálida chamada Golda, que se dizia emissária da Rainha dos Corvos e lhe trazia missões em

nome da entidade. Em nenhum momento ela mencionara um Achanoch, porém.

“Você já ouviu falar de nós,” ela continuou. “E você se lembra! Isso, Jakob Weiss, o torna uma

pessoa muito especial, e por isso precisamos de sua ajuda.”

“Eu não sou um servo da Rainha dos Corvos,” respondeu o clérigo. “Minha fé está em outro

lugar.”

“Sabemos disso, e não esperamos que você a sirva. Mas a ajuda de que precisamos também é

do seu interesse, do de Iteus, e na realidade do de todos os povos livres de Ard.”

“Continue.”

“Você é um clérigo do Cântico. Certamente conhece as histórias de como, durante o

Cataclisma, os Devires se rebelaram contra a ordem do mundo e batalharam contra os Aenares e suas

forças. No fim, os Devires foram derrotados, mas a um grande custo. E os Aenares não conseguiram

destruí-los completamente, mas apenas bani-los para as profundezas dos Planos Inferiores, onde estão

presos até hoje pelo Véu, cuja manutenção consome quase todas as forças dos Aenares. No entanto,
os Devires nunca deixaram de tramar sua volta e sua vingança ― tanto nos planos que eles habitam

quanto aqui, por meio daqueles que continuam a servi-los. É desnecessário dizer que seria um…

infortúnio se eles fossem bem-sucedidos.”

“Nada disso é novidade.”

“O que nem todos sabem é que o Véu não é inexpugnável. Longe disso, até mesmo mortais

podem adquirir meios para abri-lo temporariamente, e permitir a entrada de seres ínferos nestas terras.

Contudo, em geral esses eventos não trazem maiores consequências, pois em geral os furos no Véu

que eles conseguem fazer não permitem a passagem de mais do que poucos diabos ou demônios

inferiores. E o seu Cântico criou a Primaz Inquisição para lidar com essas ameaças.”

“Ainda não entendi aonde você quer chegar.”

“Temos motivos para acreditar que os Devires, ou ao menos alguns deles, têm tramado há

séculos, quiçá milênios, planos para uma invasão em larga escala, e que esses planos estão prestes a

serem colocados em prática. Ainda sabemos muito pouco de concreto, e talvez estejamos sendo

paranoicos, mas… Diante da escala da ameaça, acreditamos que a prudência se faz necessária.”

Jakob olhava para os dois intrigado, tentando discernir alguma ironia naquelas palavras.

“Mas por que vocês vêm até mim com essa história? Vocês já não têm os seus agentes por

aqui?”

Pela primeira vez, o homem chamado Achanoch falou:

“Nossas opções são limitadas. A natureza da punição que foi imposta a nossa Senhora faz

com que a maioria dos mortais simplesmente se esqueça de qualquer alusão a ela segundos após ouvi-

la. Apenas algumas exceções são conhecidas; dizemos que essas pessoas são Tocadas pelas Sombras.

Quando Liiare nos contou que você nunca havia se esquecido da Rainha das Sombras, Jakob, nós

descobrimos que você era uma delas.”


Nesse momento, o clérigo sentiu um frio percorrer a sua espinha. Já fazia quase um ano desde

que ele tivera notícias de Liiare pela última vez. Será que…

“Nós perdemos contato com Liiare há alguns meses,” disse Golda, como que lendo seus

pensamentos. “Sim, ela estava em missão contra o inimigo, então tememos pelo pior. Mas não somos

oniscientes e não sabemos o que aconteceu. Então, ainda há esperanças.”

“Mas não podemos esconder a realidade,” continuou Achanoch. “A ajuda que estamos

pedindo envolve enormes riscos. Eu era nosso ponto de contato com outro agente que se envolveu

com essa missão, um bom homem chamado Leon. Ele morreu há poucas semanas. No entanto, não

temos escolha: se os objetivos do Inimigo forem alcançados, nós tememos que morrer será um destino

até generoso.”

“Supondo que eu concorde em ajudá-los,” interrompeu Jakob. “O que exatamente vocês

esperam que eu faça?”

“Excelente pergunta,” respondeu a elfa. “Como eu disse, nós ainda não sabemos ao certo o

que os Devires estão tramando, se é que estão mesmo tramando algo. Porém, as movimentações que

temos identificado sugerem que eles estão reunindo meios de perfurar o Véu. Seja lá qual for a

estratégia por trás disso, o melhor que podemos fazer por enquanto é tentar estragar esses planos,

para ganhar tempo e descobrir o que eles realmente querem.”

“A forma mais comum de atravessar o Véu envolve um mineral vermelho extremamente raro

conhecido como senkhemita,” disse o homem. “Para olhos destreinados, ela pode ser confundida com

um rubi de coloração particularmente intensa. E, de fato, em seu estado natural a senkhemita nada

mais é do que uma pedra preciosa, sem qualquer propriedade mágica intrínseca. Entretanto, um ritual

dominado por cultistas dos Devires permite transformá-la em um artefato chamado senkhmet, que

enfraquece o Véu ao seu redor e permite que criaturas sejam invocadas dos Planos Inferiores. Quanto

maior for o senkhmet, maior o dano que ele causa ao Véu.”


“Recentemente, veio à tona uma das maiores senkhemitas de que eu já tive notícias,”

prosseguiu Golda. “Uma pedra que, curiosamente, foi por séculos considerada uma simples joia, o

Coração de Ard. Talvez por ter sempre pertencido a príncipes e imperadores, nunca foi tida como um

alvo viável pelos Devires… Mas agora ela foi colocada à venda por uma casa de leilões, e só podemos

imaginar o que pode acontecer. Talvez o Inimigo sequer precise roubá-la… Basta que leventem

dinheiro o bastante e poderão comprá-la legalmente! E temos motivos para acreditar que dinheiro não

será um problema neste caso.”

“É imperativo que o Coração de Ard não caia em mãos erradas,” disse Achanoch. “Se ele for

transformado em um senkhmet, ele abrirá o caminho para a entrada de criaturas que não queremos

neste mundo.”

Jakob tentava digerir tudo aquilo que lhe era dito.

“Se isso tudo é verdade, como ninguém mais fez algo a respeito?”

“Tanto tempo se passou desde o Cataclisma que a maioria das pessoas se acomodou,”

respondeu o elfo. “Vocês homens, em especial, têm a memória curta. Assim, as instituições que foram

criadas para lidar com essa ameaça aos poucos voltaram seus olhos para assuntos mais mundanos.

Enquanto isso, os Deveres esperavam e se preparavam.”

“Mas, se tantos falharam, o que vocês esperam que eu possa fazer a respeito?”

“Se houver uma pessoa ciente do que está acontecendo e disposta a fazer algo para impedir

que o pior aconteça, já será lucro,” respondeu Golda. “Ademais, nós sabemos que a sua fé é forte, e

que Iteus foi generoso nas bênçãos que lhe concedeu. Vá até Radaburgo. O Coração de Ard será

leiloado por um estabelecimento chamado Bellegrin & Associados. Chegando lá, temos certeza de que

você saberá o que fazer. E nossos recursos são limitados, não conseguimos passar muito tempo neste

plano… Mas sempre que tivermos informações úteis procuraremos alguma forma de encontrá-lo.”
Mais uma vez, Jakob precisou respirar fundo. A ideia de ir a Radaburgo em nada o agradava,

fosse qual fosse o motivo. Milhares de pessoas comprimidas dentro das muralhas, luzes intensas

competindo com o brilho das estrelas… Definitivamente ele não havia sido feito para grandes cidades.

“Além disso, não esperamos que você aja sozinho,” continuou Achanoch. “O grupo que

acompanhava Leon ainda está, de certa forma, lutando contra o mesmo Inimigo, e aparentemente eles

estão se dirigindo para Radaburgo neste exato momento. Eles não são Tocados pelas Sombras, e não

sabem tudo o que estamos lhe contando. Mas podem vir a ser aliados valorosos. Se tiver alguma

chance, procure por eles. Aethelwine, Liarieth, Kyara e Tanner são seus nomes.”

“Mas lembre-se,” interrompeu Golda. “A maldição que nos aflige faz com que pessoas que

não sejam Tocadas pelas Sombras se esqueçam quase que instantaneamente de qualquer referência a

nós ou à nossa Senhora. Portanto, você não conseguirá convencer ninguém do que lhe contamos

simplesmente relatando o que acabou de acontecer. Pior, toda a realidade se reajustará para fazer com

que tais coisas sequer existam. Até mesmo magias de detecção da verdade indicarão que você está

mentindo se fizer referência a qualquer coisa relacionada a nós. Você precisará encontrar outro jeito.”

Durante alguns segundos que pareceram durar uma eternidade, Jakob encarou fixamente os

olhos dos dois elfos, talvez esperando que eles começassem a gargalhar e dissessem que tudo aquilo

não passava de um trote. No entanto, nada do tipo aconteceu, e de alguma forma o clérigo sabia que

eles falavam a verdade. Por fim, Golda voltou a se dirigir a ele:

“Nosso tempo aqui chegou ao fim, Jakob Weiss. Sei que jogamos uma bomba em seu colo e,

acredite, não o faríamos se tivéssemos uma alternativa. Não posso pedir que você abandone sua vida

e parta imediatamente para Radaburgo sem questionamentos. Entretanto, o tempo é curto. Nós

confiamos que você tomará a decisão correta.”

E assim, da mesma forma que entraram, os dois elfos desapareceram em um turbilhão de

sombras.
***

J
akob chegou em Radaburgo já tarde da noite. Não era a primeira vez que ele ia à cidade, mas

ele esperava sinceramente que fosse a última. Apesar da hora, as ruas ainda estavam cheias

demais para seu gosto. E os elementos que transitavam por ali naquele momento em geral não

eram os mais agradáveis…

Felizmente, não foi difícil encontrar a casa de leilões. Ficava em um bairro opulento, com

prédios repletos de ornamentações desnecessárias. No entanto, no local que abrigava a Bellegrin &

Associados faltava algo essencial: um teto. E Jakob tinha certeza de que essa não era meramente uma

opção arquitetônica.

Céus, cheguei tarde demais. O local já foi atacado. E agora?

Sua missão já não se resumia mais a impedir um roubo, mas recuperar um objeto roubado.

Você também pode gostar