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Prólogo (Jakob)
Prólogo (Jakob)
O
vento soprava gelado na floresta aos pés das Montanhas Urrantes. Eram os últimos
dias do outono, mas ali, no extremo norte de Alantor, o inverno parecia chegar mais
cenário ao mesmo tempo belo e fatal ― cheio de contrastes, como Jakob apreciava.
O céu estava límpido e sem nuvens. O sol se punha no horizonte, e do outro lado a lua cheia
já começava a brilhar. Os poetas muitas vezes diziam que, em dias de crepúsculo como esse, Beliandros
Mas Jakob sabia que aquilo era apenas licença poética. Beliandros e Ifine, como todos os
Aenares, viviam não nos céus do Plano Material, mas nos Planos Superiores, em um exílio auto-
imposto para preservar as forças necessárias para manter o Véu que mantinha os Devires rebeldes
presos nos Planos Inferiores ― e, o que quer que os dois fizessem por lá, em nada afetaria os
Além disso, Jakob sempre achou que o crepúsculo representava não um amálgama de
Beliandros ― o orgulhoso e altivo deus do sol ― e Ifine ― a delicada e bela deusa da lua ―, mas sim
o equilíbrio propugnado pelo Aenar ao qual ele escolhera se dedicar: Iteus, deus da temperança e
Jakob ― frei Jakob Weiss, para ser mais preciso ― era, aliás, um pouco de ambos. Órfão desde
muito jovem, ele havia sido criado por dois amigos de seus pais: Darthoridan, um elfo seguidor de
Immerhil, e Liiare, serva de uma misteriosa entidade a que ela se referia apenas como a Rainha dos
Corvos. Mas, embora os dois tenham lhe ensinado valiosas lições, e ele tenha sempre sido atraído pela
religião, Jakob nunca sentira uma verdadeira vocação para seguir os passos de qualquer um deles.
Apenas quando se tornou adulto Jakob finalmente descobriu o seu caminho. Precisamente ali,
em meio àquelas montanhas geladas, ele descobrira um monastério de Iteus, e nesse lugar ele
encontrara as respostas que sempre buscara: uma fé baseada no equilíbrio, na razão e na temperança.
Porém, mesmo a vida no monastério não lhe apetecia completamente: sim, ele gostava dos
estudos, das orações e dos treinamentos marciais. E as torres daquele templo encravado em meio à
alta cordilheira ofereciam vistas espetaculares para a contemplação. No entanto, por mais que os
monges de Iteus fossem conhecidos no mundo exterior por seu silêncio e discrição, a vida monástica
ainda era uma vida em sociedade ― e Jakob, se pudesse, viveria sozinho. Assim, como era comum em
sua vida, ele acabou achando um meio-termo aceitável: ele construíra sua cabana ali, nos pés da
montanha, frequentava o templo quando fazia sentido, e buscava refúgio em sua solidão quando
***
I
nfelizmente, a beleza do crepúsculo era sempre breve. Enquanto a luz do dia e a escuridão da
noite duravam várias horas, a transição entre elas era intensa, mas curta. Havia, porém, uma
vantagem nisso: os dias de Jakob certamente seriam muito menos produtivos caso o crepúsculo
― as misteriosas bênçãos que Iteus lhe concedera haviam há muito lhe permitido enxergar mesmo em
meio à escuridão. Ainda assim, era sempre agradável poder apreciar as cores.
Jakob voltou para sua cabana. Com o pôr-do-sol, as temperaturas caíam abruptamente naquela
região e, infelizmente, contra o frio as bênçãos de Iteus não ajudavam. Seria necessário acendar a boa
e velha lareira.
construção. O fogo era um amigo fiel: não apenas confortava com seu brilho e calor, mas também
com o agradável ruído da lenha sendo queimada, que por sua vez enchia o ar com um odor
reconfortante ― um deleite para quase todos os sentidos. Com um sorriso no rosto provocado por
aquela sensação de paz e solidão, ele retirou um livro da prateleira e sentou-se em sua confortável
O Cântico da Temperança. O livro sagrado da ordem de Iteus continha as bases dos ensinamentos
do Aenar, em versículos repletos de sabedoria. Assim como os outros nove Cânticos, suas origens
eram lendárias ― eles haviam sido trazidos pelos primeiros homens que chegaram no continente, após
o Cataclisma, fugindo da destruição de sua terra natal e atracando na baía ao redor da qual viria a se
formar a cidade de Arrivium. Ninguém podia dizer, atualmente, quem havia escrito originalmente
aqueles dez livros, mas a ortodoxia da Igreja ditava que suas palavras provinham diretamente dos
Aenares.
Fosse como fosse, Jakob não se cansava de as ler. Embora já tivesse devorado aquele tomo
diversas vezes, como atestavam suas páginas já amareladas, e pudesse até mesmo recitar de cor diversas
Naquela noite, porém, estava difícil manter a concentração. O olhar do clérigo era
constamentente atraído para as sombras no canto do aposento. Era difícil explicar, mas elas
pareciam… não se comportar de maneira natural. A cada vez que seus olhos se punham sobre as
páginas do livro, Jakob sentia que algo estranho acontecia com as sombras, e ficava inquieto.
O clérigo tentava se convencer de que aquilo era algo de sua cabeça. O dia, afinal, havia sido
exaustivo: ele havia ido na manhã para o monastério, e os treinamentos da tarde incluíram extenuantes
exercícios físicos ― que, no caso de Jakob, somavam-se à enorme escadaria que ele tivera que subir e
Mas, a cada minuto que se passava, ele se convencia mais de que não estava alucinando. As
colocou no chão, pegando a maça que repousava ao lado de sua poltrona. Então, procurando não
fazer barulho, ele se levantou e começou a caminhar lentamente em direção àquelas sombras.
Nesse momento, o movimento delas subitamente se tornou mais intenso. Elas pareciam ter
tomado substância e, como se fossem líquidas, começaram a girar tal qual um redemoinho. Então,
pedaços começaram a se desprender do corpo principal e a voar pela sala, assumindo aos poucos a
forma de aves negras que depois sumiam. E, em instantes, toda aquela substância havia desaparecido.
Em seu lugar, no centro do que havia sido o redemoinho, estavam dois elfos ― um homem e uma
mulher ― extremamente pálidos, vestidos com roupas escuras que contrastavam com sua pele quase
branca.
***
J
akob encarava os dois enquanto empunhava sua maça ostensivamente. Apesar da invasão de
sua casa e interrupção do seu descanso o desagradarem profundamente, ele não sentia
confortável,” disse a mulher em uma voz calma e com um sotaque que era difícil de discernir. “Nós
O clérigo relaxou um pouco e abaixou a maça, mas ainda a manteve firme na mão.
“Desculpe-nos pela nossa entrada um tanto… dramática,” respondeu a elfa. “Não era nossa
intenção aparecer dentro de sua casa, mas viemos… de longe. E nem sempre é fácil determinar com
A mulher gesticulou em direção ao elfo ao seu lado, que permanecia calado. Aquilo confirmava
as suspeitas de Jakob: em mais de uma ocasião, Liiare relatara como ocasionalmente recebia visitas de
uma elfa pálida chamada Golda, que se dizia emissária da Rainha dos Corvos e lhe trazia missões em
“Você já ouviu falar de nós,” ela continuou. “E você se lembra! Isso, Jakob Weiss, o torna uma
“Eu não sou um servo da Rainha dos Corvos,” respondeu o clérigo. “Minha fé está em outro
lugar.”
“Sabemos disso, e não esperamos que você a sirva. Mas a ajuda de que precisamos também é
“Continue.”
Cataclisma, os Devires se rebelaram contra a ordem do mundo e batalharam contra os Aenares e suas
forças. No fim, os Devires foram derrotados, mas a um grande custo. E os Aenares não conseguiram
destruí-los completamente, mas apenas bani-los para as profundezas dos Planos Inferiores, onde estão
presos até hoje pelo Véu, cuja manutenção consome quase todas as forças dos Aenares. No entanto,
os Devires nunca deixaram de tramar sua volta e sua vingança ― tanto nos planos que eles habitam
quanto aqui, por meio daqueles que continuam a servi-los. É desnecessário dizer que seria um…
“O que nem todos sabem é que o Véu não é inexpugnável. Longe disso, até mesmo mortais
podem adquirir meios para abri-lo temporariamente, e permitir a entrada de seres ínferos nestas terras.
Contudo, em geral esses eventos não trazem maiores consequências, pois em geral os furos no Véu
que eles conseguem fazer não permitem a passagem de mais do que poucos diabos ou demônios
inferiores. E o seu Cântico criou a Primaz Inquisição para lidar com essas ameaças.”
“Temos motivos para acreditar que os Devires, ou ao menos alguns deles, têm tramado há
séculos, quiçá milênios, planos para uma invasão em larga escala, e que esses planos estão prestes a
serem colocados em prática. Ainda sabemos muito pouco de concreto, e talvez estejamos sendo
paranoicos, mas… Diante da escala da ameaça, acreditamos que a prudência se faz necessária.”
Jakob olhava para os dois intrigado, tentando discernir alguma ironia naquelas palavras.
“Mas por que vocês vêm até mim com essa história? Vocês já não têm os seus agentes por
aqui?”
“Nossas opções são limitadas. A natureza da punição que foi imposta a nossa Senhora faz
com que a maioria dos mortais simplesmente se esqueça de qualquer alusão a ela segundos após ouvi-
la. Apenas algumas exceções são conhecidas; dizemos que essas pessoas são Tocadas pelas Sombras.
Quando Liiare nos contou que você nunca havia se esquecido da Rainha das Sombras, Jakob, nós
que ele tivera notícias de Liiare pela última vez. Será que…
“Nós perdemos contato com Liiare há alguns meses,” disse Golda, como que lendo seus
pensamentos. “Sim, ela estava em missão contra o inimigo, então tememos pelo pior. Mas não somos
“Mas não podemos esconder a realidade,” continuou Achanoch. “A ajuda que estamos
pedindo envolve enormes riscos. Eu era nosso ponto de contato com outro agente que se envolveu
com essa missão, um bom homem chamado Leon. Ele morreu há poucas semanas. No entanto, não
temos escolha: se os objetivos do Inimigo forem alcançados, nós tememos que morrer será um destino
até generoso.”
“Excelente pergunta,” respondeu a elfa. “Como eu disse, nós ainda não sabemos ao certo o
que os Devires estão tramando, se é que estão mesmo tramando algo. Porém, as movimentações que
temos identificado sugerem que eles estão reunindo meios de perfurar o Véu. Seja lá qual for a
estratégia por trás disso, o melhor que podemos fazer por enquanto é tentar estragar esses planos,
“A forma mais comum de atravessar o Véu envolve um mineral vermelho extremamente raro
conhecido como senkhemita,” disse o homem. “Para olhos destreinados, ela pode ser confundida com
um rubi de coloração particularmente intensa. E, de fato, em seu estado natural a senkhemita nada
mais é do que uma pedra preciosa, sem qualquer propriedade mágica intrínseca. Entretanto, um ritual
dominado por cultistas dos Devires permite transformá-la em um artefato chamado senkhmet, que
enfraquece o Véu ao seu redor e permite que criaturas sejam invocadas dos Planos Inferiores. Quanto
prosseguiu Golda. “Uma pedra que, curiosamente, foi por séculos considerada uma simples joia, o
Coração de Ard. Talvez por ter sempre pertencido a príncipes e imperadores, nunca foi tida como um
alvo viável pelos Devires… Mas agora ela foi colocada à venda por uma casa de leilões, e só podemos
imaginar o que pode acontecer. Talvez o Inimigo sequer precise roubá-la… Basta que leventem
dinheiro o bastante e poderão comprá-la legalmente! E temos motivos para acreditar que dinheiro não
“É imperativo que o Coração de Ard não caia em mãos erradas,” disse Achanoch. “Se ele for
transformado em um senkhmet, ele abrirá o caminho para a entrada de criaturas que não queremos
neste mundo.”
“Se isso tudo é verdade, como ninguém mais fez algo a respeito?”
“Tanto tempo se passou desde o Cataclisma que a maioria das pessoas se acomodou,”
respondeu o elfo. “Vocês homens, em especial, têm a memória curta. Assim, as instituições que foram
criadas para lidar com essa ameaça aos poucos voltaram seus olhos para assuntos mais mundanos.
“Mas, se tantos falharam, o que vocês esperam que eu possa fazer a respeito?”
“Se houver uma pessoa ciente do que está acontecendo e disposta a fazer algo para impedir
que o pior aconteça, já será lucro,” respondeu Golda. “Ademais, nós sabemos que a sua fé é forte, e
que Iteus foi generoso nas bênçãos que lhe concedeu. Vá até Radaburgo. O Coração de Ard será
leiloado por um estabelecimento chamado Bellegrin & Associados. Chegando lá, temos certeza de que
você saberá o que fazer. E nossos recursos são limitados, não conseguimos passar muito tempo neste
plano… Mas sempre que tivermos informações úteis procuraremos alguma forma de encontrá-lo.”
Mais uma vez, Jakob precisou respirar fundo. A ideia de ir a Radaburgo em nada o agradava,
fosse qual fosse o motivo. Milhares de pessoas comprimidas dentro das muralhas, luzes intensas
competindo com o brilho das estrelas… Definitivamente ele não havia sido feito para grandes cidades.
“Além disso, não esperamos que você aja sozinho,” continuou Achanoch. “O grupo que
acompanhava Leon ainda está, de certa forma, lutando contra o mesmo Inimigo, e aparentemente eles
estão se dirigindo para Radaburgo neste exato momento. Eles não são Tocados pelas Sombras, e não
sabem tudo o que estamos lhe contando. Mas podem vir a ser aliados valorosos. Se tiver alguma
chance, procure por eles. Aethelwine, Liarieth, Kyara e Tanner são seus nomes.”
“Mas lembre-se,” interrompeu Golda. “A maldição que nos aflige faz com que pessoas que
não sejam Tocadas pelas Sombras se esqueçam quase que instantaneamente de qualquer referência a
nós ou à nossa Senhora. Portanto, você não conseguirá convencer ninguém do que lhe contamos
simplesmente relatando o que acabou de acontecer. Pior, toda a realidade se reajustará para fazer com
que tais coisas sequer existam. Até mesmo magias de detecção da verdade indicarão que você está
mentindo se fizer referência a qualquer coisa relacionada a nós. Você precisará encontrar outro jeito.”
Durante alguns segundos que pareceram durar uma eternidade, Jakob encarou fixamente os
olhos dos dois elfos, talvez esperando que eles começassem a gargalhar e dissessem que tudo aquilo
não passava de um trote. No entanto, nada do tipo aconteceu, e de alguma forma o clérigo sabia que
“Nosso tempo aqui chegou ao fim, Jakob Weiss. Sei que jogamos uma bomba em seu colo e,
acredite, não o faríamos se tivéssemos uma alternativa. Não posso pedir que você abandone sua vida
e parta imediatamente para Radaburgo sem questionamentos. Entretanto, o tempo é curto. Nós
sombras.
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J
akob chegou em Radaburgo já tarde da noite. Não era a primeira vez que ele ia à cidade, mas
ele esperava sinceramente que fosse a última. Apesar da hora, as ruas ainda estavam cheias
demais para seu gosto. E os elementos que transitavam por ali naquele momento em geral não
Felizmente, não foi difícil encontrar a casa de leilões. Ficava em um bairro opulento, com
prédios repletos de ornamentações desnecessárias. No entanto, no local que abrigava a Bellegrin &
Associados faltava algo essencial: um teto. E Jakob tinha certeza de que essa não era meramente uma
opção arquitetônica.
Sua missão já não se resumia mais a impedir um roubo, mas recuperar um objeto roubado.