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Autismo Um Mundo Obscuro e Conturbado
Autismo Um Mundo Obscuro e Conturbado
Soraya Fleischer
Departamento de Antropologia, Universidade
de Brasília
casos para 10.000 crianças. É com este resultado de uma relação entre fatores
dado estatístico que Roy Richard Grinker, biológicos – genéticos – e fatores ambien-
antropólogo da George Washington tais. ‘A predisposição – ele escreveu – não
University, inicia seu livro, Autismo: um é um destino, mas um destino possível’”
mundo obscuro e conturbado,traduzido (:68). O primeiro “foi o pai do autismo
e lançado no Brasil em 2010. O aumento como distúrbio diagnosticável”, enquanto
surpreendeu o público americano, segun- o segundo, “o pai do autismo como espec-
do o autor, a ponto de o Congresso Ameri- tro de diferentes estados” (:70). Mas, na
cano, à época, anunciar que se tratava de opinião de Grinker, a grande contribuição
uma “epidemia” de autismo que “estava não foi terem descoberto, mas sim descri-
devastando as famílias” (:11). to o autismo, pois afinal este “não era um
Grinker nos pergunta: Por que esse distúrbio novo” (:76).
“diagnóstico” é maior na Europa e nos Já em meados do século XX, “pais au-
EUA? Estamos diante de novas fórmulas sentes e mães más” passam a ser razões
para definir as estatísticas? As estatísti- para o autismo, segundo a psicanálise de
cas do início dos anos 1990 eram pouco Bruno Bettelheim. Embora, como Kanner
realistas? Ou estamos lidando, agora, e Asperger, psiquiatras e psicanalistas da
com diagnósticos mais precisos e atua- segunda metade do século XX tenham
lizados? Por que chamar de “epidemia” chegado a um razoável consenso de
uma doença que não é contagiosa? que o autismo é tanto biológico como
O autor aceita o desafio de pensar esses ambiental, as mães frias demais (“a hi-
“crescentes” números e, com o apoio da pótese da mãe geladeira”) ou apegadas
pesquisa antropológica e comparativa, demais ainda reforçam, no final do século
chega à importante conclusão de que XX, “a crença de que as experiências da
“não podemos afirmar que houve um primeira infância dominam a vida adulta
aumento da incidência do autismo” (:15), do indivíduo” (:98), especialmente em
e sugere que esses novos números “refli- países como a França e a Argentina, em
tam uma mudança na forma como nossa que a psicanálise teve papel importante
cultura percebe uma condição específica na sociedade.
de saúde e doença” (:13). De um subtipo de esquizofrenia, o
Grinker analisa as ferramentas diag- autismo transformou-se em um produto
nósticas da psiquiatria ao longo de sua de pais negligentes e, depois, em uma
história. Volta ao século XIX, com o anomalia neural. Contribuíram para
médico austríaco Leo Kanner (1894- essa transição o surgimento de trata-
1981), que começou trabalhando com mentos biológicos (como lobotomias,
psiquiatria em asilos nos EUA (:47) e eletrochoques, medicamentos etc.) para
logo se tornou expoente crítico do confi- doenças psiquiátricas nos anos 1940 e
namento, da imprecisão dos diagnósticos a padronização diagnóstica através dos
e dos rótulos desumanizadores (:51). Foi sucessivos DSMs (Manual Diagnóstico
ele quem descreveu o autismo e mudou e Estatístico de Transtornos Mentais).
o quadro de “sintoma” para “síndrome”. Embora este compêndio enciclopédico
Depois, outro austríaco, Hans Asperger de diagnósticos pareça definir melhor as
(1906-1980), passou a usar o termo autis- especificidades de distúrbios psíquicos, o
mo para um “espectro de distúrbios”, no autor nos lembra como ainda há falta de
qual também estaria incluído o “distúrbio método, imprecisão e sensacionalismo,
de Asperger”. “Desde o início, Asperger inclusive no caso do autismo. Pior, o
estava convencido de que o autismo era DSM tornou-se uma “bíblia”, deixando
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