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‘WR COSTA Lh “FRESTAS:A TEORIZAGAO EM UM PAs PERFERICO to literdrio. Chamava-se Mimesis e modernidade. Mas jé haver pasado tantos anos nao significa que seja grande o numero de ideias desenvolvidas. Ao contrario, fandamentalmente, redu- zem-se a trés: (a) a tentativa de repensar em que consiste.a mi: esis, (b) em paralelo & primeira, o que tenho chamado de con- trole do imagindrio, (c) a questao da ficgao. Elas formam nticleos, que se acham tao entrelacados que 0 controle é um corolério do requestionamento da mimesis e a reflexao sobre a ficgao decor- rente dos dois primeiros. (Neste capitulo, nao levaremos em conta o desdobramento que, ao lado da ficgdo interna, a ficcio- nalidade comega a apresentar um outro lado, que esté fora do chamado texto literdrio e sera objeto do capitulo seguinte.) 2.Repensar a mimesis,a partir dos gregos E cabivel reiterar que a mimesis foi o instrumento central: da primeira grande teoria sobre as artes, na Grécia antiga. E verda- de que o que os gregos chamavam de tekhné nao se conformava com nossa compreensio da arte, pois no distinguiam entre objetos técnicos, reprodutiveis, e artisticos, irrepetiveis. Antes, contudo, da consideragio filoséfica a duas palavras sobre seu uso primitivo. + Segundo as pesquisas filologicas de Herbert Koller, 0 termo deriva da teoria musical do século V a.C., havendo sido trans- Posto por Platdo, nos livros II e II da Repuiblica, que trata dos cuidados com a educagio dos guardiaes das poleis. Original- mente, o verbo mimeisthai significava, na linguagem cotidiana, “fazer-se semelhante a”, a0 passo que, na teoria musical, a esse sentido se acrescentava o de peca dramatica, dancada, com acompanhamento musical. Assim seriam os mimoi de S6fron, esbosos em linguagem direta, ser comentarios, representacdes curtas de contetido mitolégico ou cotidiano. © mimos supunha, portanto, uma cena realista, coordenada a danga e ao cant Ainda segundo Koller, tais peas tinham um carter festivo e concedida & mimesis, 102 ‘cAotroto -ROTERO OE UN TRALETO eram dedicadas aos deuses. Como cada deus tinha uma danga ¢ tum canto a ele adequados, as formas expressives da mimesis variavam “da tranquila solenidade em louvor de Apolo ao de- lirio extético do culto dionisiaco” (Koller, H., 1980, 5: 1.397). ‘A teoria musical, que servira & transposicao plathnica, jé teria reprimido as formas orgiisticas da mimesis a servico da edu- Pinture assume sua plena qutonomia ao recusar a seme- Ihanga com 0 antecipadamente dado, Nao é que essa sea im OSS, S6 que seria semelhanga tio $6 com o que, a posteriori, 140 ‘caPMULO N+ ROTERO OE UM TRALETO concebesse a fantasia do receptor. Em lugar desse plural arbitra- rio, a exclusividade do’ branco ¢ do negro, a disposigdo quase circular das linhas que se reproduzem tornam a figuracio de mat ¢ cais dependente de uma atengio aguda, que se estenda além da estesia da experiéncia estética. A dificuldade de reco- mhecimento do que € figurado resulta de que esse 56 se cumpre durante 0 processo de penetragao no que a tela expde. B esse processo que transforma o antes néo visto no agora visivel: mar €-cais se articulam ao concretizar-se algo que, & primeira vista, se confunde com uma composicio que parecia concentrar-se na repeticio dos mesmos tracos. Assim, a multiplicagao da mesma figura simples, mediante pequenas variagoes — uma barra ver- tical unida a uma ou duas barras horizontais, seja em uma de suas extremidades, seja em ambas —, condensa a pluralidade de cais dentro do oceano. Se da atengao economia dos meios expressivos resultasse um s6 cais em uma das extremidades do oceano, poder-se-ia contestar que 0 pintor atuou como quem fizesse um quebra-cabera. ‘Ao multiplicar a mesma figura mediante variagées, a quali- dade sélida da construcao e a superficie Liquida se condensam. ‘Aquilo que nao se poderia reconhecer porque, de fato, nao hi via figuras objetuais converte-se, ali e somente ali, em algo visu- almente apreensivel. Em suma, a0 ver uma pintura desta fa ou ler um texto de fico que enfatize o mesmo processo, ofere ce-se-ao receptor a oportunidade de experimentar um process de viagem mental, que termina ao cumprit esperada concregio.® Com isso, Mondrian penetra em um meio inter~ CBO conhecedor da literatura brasileira ter em “Mei tio o lauarete, de Gul A ume os, parte ds mde de produc Assim como no caso de ‘ipnitia abvanos Se coanecnen em mals No can de Ros, a Haroldo de Campos (cf. Campos, H, de, 1982 [1967]: 57-63). Q processo do-cagador de oncas ¢ a respectiva tupinizacao de. sua fala, edge ta 2 IF Dp We COSTA LMA FRESTAS: A TEORIZAGAO EM UM PAIS PERFERICO subjetivo e supera a auséncia de uma linguagem plena, de que muitas vezes € acusado, auséncia agora superada pelo estabe- Iecimento de uma camada semantica, que se impde e nao se confunde com a fantasia arbitréria de um espectador. Ao que foi dito sobre a segunda espécie de mimesis acrescen- : (a) a passagem sobre a tela de Mon- drian faz parte de uma primeira abordagem (cf. Costa Lima, L, 2006b: 53-70) em que pretendia iniciar abordar a relacao e/ou 6 limites entre mimesis e arte abstrata. Partia do suposto de que 0 mimema nao 36 € 0 oposto do retrato — no sentido estrito do termo —, pois sempre, antes mesmo da propagacdo do abstra- cionismo, a pintura conteve tragos ou aspectos abstratos. Goya tem, no Maseu do Prado, uma tela, de tamanho regular, quase toda formada por tons mais claros ou mais escuiros de uma su- perficie amarela, que chega a0 marrom. em sua borda infe- rior, sobre um contraforte mais escuro, aparece discretamente uum trago figural: o focinho de um cio. Ao contrario do usual, o figurativo € 0 traco minoritatio. Seis anos jé se passaram desde a publicagao do fragmento sobre Mondrian e até agora nio levei o projeto adiante. pe nas dizer que a mfmesis convive com 0 abstracionismo enquan- to este conten uni ica Be Haba core np 6 it Gao de linhas ¢ cores nao $6 sintiti. ca mas também semantica. Suspeito que a semantica de muito guadro abstrato nao foi além de uma pretensao_de sentido, guardada pelo artista em sua intimidade, que nao foi transposta ‘para o meio expressivo, Se estiver certo, tal abstrato é uma espé- ie de idioleto — linguagem que s6 seu emissor reconhece. Se {sso for verdade, a pergunta seria: como tal pintura se distingue da ornamentagao? (b) A segunda observacao parece mais importante. Em estu- do recente sobre a poesia de Paul Celan, cheguei a uma formu- lagéo que concretiza melhor a mimesis da produgio. Sua for- 142 Ccarytoit- ROTERO DE UMTRAIETO de que o enunciado ficcional traz, em sua raiz a clausula “como se’. Ao ie foi o primero a assim mulagao é simples, Parto explicitg.o dizé-Lo, por certo remeto a Vaihins definir 0 ficcional, embora seu “idealismo positivista” tenba prejudicado bastante sua intuicio. Se, enido, a ficcionalidade que tenho chamado de interna, ou seis, fscio-vetbal an las: ticamente realizada, encontra seu to no “como se’ ela tem come oposto o conjunto de epunciados que se relacionam a0 que chamamos “realidade’, Por simplificagio, tome-se © fato como o oposto do “como se” Diz#-lo, contudo, nao significa que 6 nido fato remeta de volta ao “como se”. Aproveito parcialmente a reflexso que 0 filésofo politico Hans Lindahl faz.do Erfahrung, und Urteil (1938) de Husserl. Considerando o entendimento que a modernidade tem do nada (nihil), escreve Lindabl: io? o “alheio” ou “estranho” condensam a interpre- ‘a ode ‘do nihil, pois esse termo vem denotar a ex- perigncia em que a incursdo do alienigena torna contingente @ ‘unidade familiar do que o sujeito chama seu proprio mundo. (..) (© poder primordial do sujeito consiste em sua capacidade de superar 0 nihil por integrar 0 estranho, sem resto algum, na tinidade de seu proprio mundo. (Lindahl, H., 2008: 333, erifo do autor) ‘A transformacéo consistente em converter o estranho em familian superando o desconforto do nada, ¢ chamada de au- tolegislagzo do sujeito moderno. Do poato de vista da consti- tuigdo desse sujeito moderno, tal transformagio € por certo sitiva. m ‘hmvtaaieda produgao opera no sentido contrario. O_ nada, centendido literalmente como incapaz de tornar-se fato, portan ‘fo impossibilitado de integrar-se na realidads ‘espécie de mimesis, a metamorfose inversa: quer Da pintura, (quer na Tieratua, « combinagio de linhas-c cores.ou de pale ‘Vras sai do familiar e alarga o campo do cognoscivel, (Nao € 13 WZ-COSTA LIMA.» FRESTAS:A TEORZAGAO EM UM PALS PEAFERICO ocasional que o primeiro grande movimento de teorizagdo da literatura no século XX, 0 formalismo russo, chamasse de ostra- rnenie [estranhamento] a consequéncia priméria do tratamento literdrio da palavra.) Isso posto, estabelece-se a dupla relacdo seguinte: assim como 0 “fato” & o oposto do “como se”, assim © “nao fato” (equivalente ao nada) transforma-se, pela mimesis da produgio, em algo que se vé ou se lé enquanto passivel de assumir um sentido. Ou, tomando a conhecida interrogacdo filosofica, “por que existe algo e nao o nada?” diria que a mime- sisda producao tem a peculiaridade de converter a questa filo- sofica em um trivial nonsense, porquanto converte 0 nada em algo. Por ela, questiona-se a estabilidade da linguagem. Nao s6 a passagem do tempo modifica o corpus da linguagem. A mime- sis da produgéo modifica a sua anatomia, 3.0 controle do imagindrio O melhor modo de introduzir o tema do controle do imagind- rio consiste em ressaltar que o controle encontra suas raizes no. mesmo lugar que levou a reducao da mimesis a im seja, embora os latinos nao tivessem consciéncia de a belecerem um ato de controle ¢ ain que ndo houvesse um termo em latim que melhor se adequasse a raiz grega, o fato é que a traducao adotada favoreceu o controle que se estabeleceu, A historia do controle é, por conseguinte, um corolirio da his- t6ria daquela redugao. Por isso o item anterior sobredetermina e deverd ser de ajuda para a exposigio que ora se inicia. Talvez seja imprudente iniciar o tratamento de um tépico, até hoje pouco claborado, pelo destaque de um caso que antes parece por em diivida o mecanismo do controle. E nao se cogi- ta.em um caso qualquer; penso no teatro grego. Qual a explica- 0 para que a Atenas do século V a.C. nao s6 mostrasse igno- rar 0 controle do teatro como reservasse a encenacao das pecas Maa CcPFTULO I+ ROTEIRO DE UM TRAIETO para o momento de uma festividade religiosa relevante, ademais, coincidente com a afirmagao maxima do poderio politico da polis: aquele em que as cidades vencidas ou “aliadas” vinham excelente Die politische a tragédia é um pagar seus tributos? Christian Meier, no Kunst der griechischen Tragodie, ressalta qu instrumento de que se serve a prépria reflexdo politica da trans- formacao que se opera. E. assim se dava porque a democracia ateniense se caracterizara pelo transtomno do exercfcio do po: der: a destituigao da nobreza pela inte-venga0 do cidadao co- mum, a dissolucao do Areépago e 0 governo pela Assembleia do Povo e pelo Conselho dos Quinhentos, a derrocada das normas religiosas, morais, familiares e costumeiras provocavam um es- tado de incerteza que era a ambiéncia motivadora para os dile- ‘mas explorados pela tragédia. O teatro oferecia o palco motiva- dor para que o cidadao tomasse pé no caos entre 0 estabelecido € 0 que o punha em questdo. O favorecimento do teatro era um instrumento da propria democracia. Como sua matéria-prima era 0 acervo dos mitos, a compreensio das pegas exigia de seu espectador o reconhecimento da discrepancia entre 0 filao initico e 0 cotidiano resultante da instalagio do Estado demo- crético, Por isso Meier acrescentava que a encenagao das pecas tragicas funcionava como uma educagio de adultos. Logo, en- tretanto, acrescentava com Jean-Pierre Vernant que “a tragédia nao refletia a realidade senao que a problematizava” (Meier, C. 1993 [1986]: 42). Antes de atualizar-se no paleo, a fabulagao trdgica estabelecia o choque do tradicional estabelecido, manti- do no relato mitico, com 0 novo que surgia com as mudangas operadas pela democracia ateniense. Nada disso contudo impede que o historiador, embora cons- ciente da novidade de sua reflexdo, reconhega néo ser ela ine- quivoca. O tom dubitativo de passagens mostra que a quem conhega a historia posterior do Ocidente a excepcionalidade que cercava 0 teatro em Atenas é uma raridade surpreendente: us

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