Você está na página 1de 31

Vanilda P.

Paiva

Educação Permanente:
I - Ideologia Educativa ou
Necessidade Econômico-Social?

I. A IDEOLOGIA CONSUMIDA PELOS EDUCADORES *

Devemos sem dúvida à UNESCO a difiisão da educação permanente


como tema pedagógico contemporâneo. No Brasil, basta tomar a
Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos (RBEP) n.° 113, dedicada
especialmente ao tema, para verificar que a maior parte da documen-
tação e dos artigos selecionados e publicados são traduções de textos
produzidos por peritos da UNESCO e cedidos à RBEP;' além do mais
é preciso não esquecer que a difusão do tema no Brasil a devemos
a Pierre Fiuter, quando perito da UNESCO entre nós. Foi desde a pu-
blicação de seus livros EducaçÕLO e Vida e Educação e Reflexão^
em 1966 que a educação permanente entrou definitivamente no voca-
bulário pedagógico nacional e nas preocupações de algtms profissio-
nais da educação brasileiros dedicados ao problema da educação dos
adultos e/ou influídos diretamente por Furter.
Se seguimos o nosso passeio pelo citado número da RBEP e consul-
tamos a bibliografia por ela publicada, verificamos que ela nos ofe-
rece também grande quantidade de indicações de autores da UNESCO

67
ou a ela de algum modo ligados;' verificamos também que grande
parte dessa bibliografia foi escrita em francês. A temática que
está por detrás da "educação permanente" foi desenvolvida em in-
glês e alemão, por exemplo, sob a prudente e despretensiosa desig-
nação de "continuing education" ou de "Weiterbildung" ou mesmo
de "zweiter" ou "dritter Bildungsweg"; entre nós, no entanto, ela
surgiu j á sob a denominação de educação permanente, caracteri-
zando-se como uma temática "de língua francesa", em cuja tradi-
ção um certo espírito "literário-pedagógico", habilmente instruído
nos malabarismos semânticos e conceituais, tem permitido — atra-
vés da produção de textos que facilmente admitem diferentes leitu-
ras — evitar com elegância problemas incômodos colocados pela
realidade concreta. Assim, não é de surpreender que a intelectua-
lidade pedagógica nacional, ainda bastante ligada a certa tradição
francesa, se veja atraída pelo tema; não surpreende tampouco que
tal atração se exerça sobre gregos e troianos, constituindo a
educação permanente vtm campo de interesse e discussão no qual
se encontram profissionais da educação filiados a correntes teóri-
cas e metodológicas dificilmente conciliáveis.
O interesse nacional pelo tema não se traduziu, porém, em produ-
ção autóctone significativa: a produção nacional é pobre, resiunin-
do-se a pouco mais que os textos de Dumerval Trigueiro e de Arlin-
do Lopes Correia.* E m compensação, tratamos de criar rapida-

• Este é o primeiro de uma série de artigos sobre o tema, a serem


publicados por esta revista. Pelas sugestões e críticas recebidas quan-
do da elaboração do texto ora publicado queremos agradecer aos pa-
dres Henrique Lima Vaz e João Batista Libânio bem como aos nossos
colegas Luis Antônio Cimha e Pedro Benjamln Garcia.
1. Na Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Rio de Janeiro,
MEC/INEP, n.» 113, vol. 51, jan.-março 1969, foram publicados 4 artigos,
sendo um deles o texto apresentado por Dumerval Trigueiro no Semi-
nário sobre Educação e Desenvolvimento promovido pela SUDENE em
Recife no início de 1967. Dois deles são autores da UNESCO, B. Schwartz
e Archer Deléon, este então diretor do departamento de educação de
adultos na UNESCO. O quarto texto era do sociólogo francês Alain Tou-
raine. No mesmo número, a parte de documentação era dedicada a
vim extenso texto de Pierre Furter e Aníbal Bultrón e um certo numero
de páginas foram aplicadas na publicação de um texto ("Perspectivas
da educação permanente") traduzido da Crônica de Ia UNESCO de feve-
reiro de 1969.
2. FURTER, Pierre. Educação e Vida. Petrópolis, Vozes, 1966 e
Educação e Reflexão. Petrópolis, Vozes, 1966. Para se avaliar a influên-
cia lograda pelo autor e a penetração do tema basta indicar que seus
livros se encontram hoje na 7.* edição.
3. Consideramos que este tipo de produção não é privativa daqueles
que já são ou foram funcionários da UNESCO. Há muitos profissionais
cuja visão do problema educacional foi formada pelo "espirito" da
UNESCO, o que os toma — naturalmente — peritos potenciais do orga-
nismo.
4. TRIGUEraO, Dumerval. Um novo mundo, uma nova educação.
Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Rio de Janeiro, MEC/INEP,

68
mente cadeiras para o estudo do tema nas Faculdades de Educação,
gerando condições para que as Idéias que nos chegam através das
traduções ou dos textos especialmente para nós produzidos» possam
penetrar fundo entre os estudantes de pedagogia. Parece-nos, por
isso, oportuno analisar a bibliografia nacionalmente utilizada no
estudo do tema e colocar algumas questões sobre o assunto.

1. O ouro metropolitano

A falta de concretude que caracteriza boa parte dos textos publi-


cados no Brasil sobre a educação permanente, filha dileta do idea-
lismo que freqüentemente os informa, não pode deixar de ser co-
mentada. Tomemos, no entanto, um exemplo extremo: o artigo
de Malcolm S. Adiseshiah, traduzido da Crônica de Ia Unesco.^
Afirmações como "a educação permanente transforma de maneira
radical a organização do ensino" ou "todo o ensino, toda formação
profissional e toda aquisição de conhecimentos ficariam centrali-
zados no h o m e m " s ã o feitas de maneira mais ou menos arbitrá-
ria, na medida em que n ã o se visliunbra no texto qualquer preo-
cupação com a análise das situações concretas que exijam ou pos-
sibilitam as transformações indicadas como necessárias, sendo bem
provável que — realizando-a — o autor se visse diante da contin-
gência de ter que admitir a inviabilidade daquilo que ele apresenta
como necessário e inevitável. O humanismo abstrato que permeia
o artigo faz com que o autor fuja inteiramente à realidade concre-
ta, fazendo suas afirmações beirarem o grotesco: a educação per-
manente seria necessária porque na sociedade do futiuro, entre
outras maravilhas, "o homem será dono do seu destino". * Longe
de m i m não querer que o homem seja dono do seu destino, por
mais pantanoso que seja o terreno de tal afirmação. Mas entre
ela e a realidade concreta o fosso é tal que a antecipação de t ã o
luminoso futuro para a humanidade só pode ser aceita sem crítica
por aqueles que — permanecendo ao nível da reflexão sobre a
maneira de transmitir, ou seja, ao nível propriamente didático-

n.° 113, vol. 51, jan.-mar. 1969, pp. 9-18. Correia, Arllndo Lopes. Educa-
tion permanente et education d'adultes au Brésil. Mobral, 1973.
5' Os livros de Furter resultaram da sua atividade como professor
no CEEAL (Curso de Especialistas em Educação para a América Latina)
realizado em São Paulo em 1964/65 e organizado pela UNESCO/INEP como
parte do Projeto Principal da UNESCO para a América Latina. A partir
de então Furter tem produzido textos que são quase sempre traduzidos
para o português e publicados no Brasil, onde ele conta com um público
certo e atento entre os pedagogos.
6. ADISESHIAH, Malcolm. Perspectivas da educação permanente.
Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Rio de Janeiro, MEC/INEP,
n.» 113, vol. 51, jan.-mar. 1969, pp. 149-153.
7. Ibidem, p. 150.
8. Ibidem, p. 151.

69
-pedagógico — carecem de interesse ou de instrumentos para anali-
sar a realidade concreta e por isso não logram deparar-se com os
dilemas da sua evolução. Claro está que semelhante idealismo e
semelhante carência terão que se espelhar nas afirmações especí-
ficas sobre a sociedade. Para o autor, na sociedade futura, a
educação e a ciütura de massas — e não o capital e o trabalho —
serão os fatores-chaves do desenvolvimento econômico;» em tal
sociedade, as dificuldades que a educação permanente encontraria
para instalar-se e dar setis frutos seriam decorrentes da "inércia
social" ou da força da tradição cultural, dependendo o seu êxito
— em última instância — do "poder de invenção do homem e da
sua vontade de salvar e de servir a humanidade", Ao nível atual
de desenvolvimento das ciências sociais, surpreende-nos semelhan-
te ingenuidade.

Deixemos, porém, de lado os casos em que o excesso de idealismo


prejudica a contribuição substantiva do artigo para a discussão;
analisemos o texto de u m conhecido sociólogo francês. Alain
Touraine pensa na educação permanente a partir de uma análise
da sociedade: para ele j á n ã o existiria (supõe-se que, ao menos,
nos países desenvolvidos), uma classe econômica dominante e
outra dominada compondo o quadro dentro do qual se colocam os
problemas sociais fundamentais; existiria, em seu lugar, "um mo-
vimento de racionalização da sociedade" e defesas contra a mu-
dança, n ou seja, grupos de pessoas racionais, capazes de aceitar
a mudança, e os tradicionalistas irracionais (tal como na anáUse
mannheimíana). Na sociedade contemporânea, para Touraine, a
análise social n ã o deveria calcar-sé sobre as classes sociais nem
sobre o econômico mas sobre o cultural: se conflitos há, não são
conflitos entre classes sociais economicamente antagônicas (porque
lunas se apropriam do resultado do trabalho das outras) mas entre
"classes culturais", porque algumas delas (menos favorecidas) rei-
vindicam o seu acesso à cultura. No terreno da educação, por isso
mesmo, é que se localizariam os maiores problemas sociais. Como
"a produção se tomou cultural, deixando de ser propriamente eco-
nômica, sua garantia não é (mais) o dinheiro mas o conhecimen-
to... O que interessa, pois, é saber quem se beneficia com a
instrução". 12 É possível que Touraine pense no fato incontestável
de que a ciência nos dias de hoje está posta a serviço da produ-
ção. Mas isto certamente n ã o significa que a produção deixou de
ser econômica e passou a ser cultural. Não parece tratar-se de

9. Ibidem, p. 151.
10. Ibidem, p. 151.
11. TOURAINE, Alain. Educação permanente e sociedade industrial.
Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Rio de Janeiro, MEC/INEP,
n.o 113, vol. 51, jan.-março 1969, p. 35.
12. Ibidem, pp. 35-36.

70
mera imprecisão terminológica. Ela certamente existe porque ou
bem a produção é cultural (aquilo que se produz no plano da
cultura e que pode ou n ã o se converter, como técnica, em instru-
mento da produção) ou bem é material, ou seja, produção de
mercadorias, no caso do modo de produção capitalista. Mas o que
a determina é o que está por detrás daquilo em que se apoia a aná-
lise de Touraine: a aceitação básica da idéia de que a sociedade alta-
mente industrializada — que Touraine e outros insistem em cha-
mar de "pós-industrial" — apresentaria problemas específicos que
transcendem as diferenças entre os modos de produção; ele supõe
a existência de um "modo de produção industrial" que se define
ao nível das forças produtivas empregadas e que esquece as rela-
ções sociais de produção bem como a correspondente apropriação
relativa do produto social pelas diferentes classes sociais no capi-
talismo. Uma vez abandonado o plano da discussão calcado sobre
a diversidade dos modos de produção em nome da "produção
industrial" toma-se luna conseqüência necessária a abstração das
relações sócias de produção; a partir daí, nada mais natural que
a enfatização do cultural e do educacional como planos essenciais
dos conflitos sociais e da própria determinação dos caminhos pos-
síveis de evolução social. Assim, a reflexão sobre-as sociedades
tomarse com facilidade uma tarefa quase que exclusiva da antropo-
logia cultural: a questão central seria a "criação de modelos sócio-
-culturais de transformação social". A imaginação de tais mo-
delos responderia ao exercício intelectual que — coerente com o
seu ponto de partida — o autor propõe desde o início: "por que
não tentar um pouco de pós-socialismo utópico?", Por que não
tentar qualquer coisa, perguntamos nós.

O artigo de Touraine aqui criticado, aliás, enquadra-se perfeita-


mente dentro daquilo que ele publicou nos anos 60. Na sua Socio-
logia de VAction" Touraine raciocina sempre em termos de uma
sociedade industrial, na qual n ã o caberia a noção de classe: "Na
medida em que ela está plenamente formada — diz ele — é im-
possível falar de classes; poder-se-ia falar de situação de classe.

13. Ibiãem, p. 40.


14. Ibiãem, p. 37.
15. A volumosa obra de Alain Touraine merece, certamente, uma
atenção que não cabe no âmbito restrito deste trabalho, cuja crítica
está centrada sobre o artigo traduzido no n.° 68 de Peuple et Culture.
Faremos referência às pesquisas de Touraine na segunda parte deste
estudo, devido o fato de que o autor sobressai como sociólogo ligado à
sociologia do trabalho nos anos 50. Buscaremos, no entanto, mostrar a
seguir, que esse artigo exprime posições bastante típicas dentro da
obra de Touraine.
16. TOURAINE, Alain. Sociologie de 1'Action. Paris, Ed. du SeuU,
1965. Deixamos de lado nestes comentários o livro publicado em 1966,
La conscience ouvrière (Paris, Ed. du Seuil).

71
sob a condição de precisar que um indivíduo pode se encontrar
numa pluralidade de situações de classe ( . . . ) seria mais justo
falar aqui de grupos de interesse". Este estranho falar de luna
situação de algo que não existe aparece no livro de Touraine como
resultado de uma reinterpretação do conceito weberiano de "situa-
ção de classe". ^8 No mesmo hvro Touraine defende a idéia de
que uma civilização industrial só se constitui verdadeiramente
pela cultura de massa, quando a criatividade e a inovação cultural
deixam de ser privilégio dos estratos mais elevados: ela implicaria,
portanto, na democratização da cultura e da educação; poderia
implicar, assim, numa educação permanente que veiculasse um
"modelo cultural" adequado a tal civilização. A idéia de que o
"modelo cultural" é um dos fatores essenciais da transformação
das sociedades vai, aliás, ganhando cada vez mais ênfase na obra
de Touraine e ele a desenvolve amplamente no seu livro Proãuction
de Ia société.^^ Mas ela j á ganha importância na obra publicada
em 1969, La société post-industrielle,^" na qual ele se dedica mais
extensamente a questões que poderiam inspirar luna reflexão sobre
a educação permanente: o tempo livre, a participação social e a
inovação cultural. Na sociedade pós-industrial, na qual não se
poderia falar de classes sociais, as origens tradicionais, profissio-
nais e sociais da cultura teriam sido destruídas, definindo-se a
atividade cultural pelo nível de participação em valores elabora-
dos centralmente: viveriam, pois, tais sociedades, no mundo de
uma cultura luüficada, no qual se tem como ideal a difusão de
um modelo cultural baseado no conhecimento científico e técnico

• 17. TOURAINE, Alain. Sociologie de 1'Action. op. cit., p. 151.


18. "A palavra 'classe' — diz Max Weber — refere-se a qualquer
grupo de pessoas que se encontrem na mesma situação de classe", de-
finida esta pela posse de bens e oportimidades de renda, pelas oportu-
nidades e experiências pessoais de vida. Uma "classe" é sempre capaz
de utilizar, em proveito próprio, bens e serviços do mercado sendo a
"situação de classe", determinada pela situação de mercado. Ver WEBER,
Max. Ensaios de Sociologia, 3.* ed. Rio de Janeiro, Ed. Zahar, 1974, pp.
212-214.
19. TOURAINE, Alain. Proãuction de Ia société. Paris, Ed. du Seuil,
1973. Este é, sem dúvida, o livro mais sofisticado de Touraine, sendo
seu tema a produção da sociedade por ela mesma através da aprendi-
zagem (da política) e da historicidade. Esta se comporia fimdamental-
mente pelos sistemas de conhecimento, pelo trabalho que supõe a acumu-
lação e o investimento produtivo e pelo modelo cultural. Embora mui-
tas das idéias defendidas nos livros anteriores de Touraine encontrem
continuidade em Proãuction de Ia société, o autor introduz aqui modifi-
cações e diferenciações no seu esquema de interpretação da realidade
(ex. no que concerne às estruturas de dominação) que fazem com que
diversas afirmações feitas no artigo por nós criticado não encontrem
respaldo na sua produção intelectual mais recente.
20. Utilizamos aqui a tradução espanhola publicada em Barcelona,
Ed. Ariel 1969, sob o título de La sociedad post-inãustrial.
21. Ibidem, p. 207.

72
que se conectaria com a afirmação da existência pessoal. Na medi-
da em que este "modelo cultural" se situasse "no centro da socie-
dade" e n ã o na sua cúpula (uma das condições para a elaboração
central dos valores culturais), caberia à educação as tarefas de
"transmitir uma atitude crítica que ajude a liberar a inovação
cultural do controle social" e de "axunentar a participação da maio-
ria em modelos culturais novos", combatendo os modelos tradi-
cionais que dificultam a mudança. 22
A ênfase dada por Touraine aos aspectos cultm-ais na transformar
ção da sociedade faz com que uma grande parte da sua sociologia
se apoie sobre a antropologia cultural. Por outro lado, a sua socio-
logia da ação inspira-se fortemente no fimcíonalismo, pretendendo
ser um avanço em relação a este; o que ele traz de novo, no entan-
to, parece ser a substituição de conceitos fimcionalistas por outros
que encontram sua inspiração — em liltima instância — na filoso-
fia da existência: o ator social transforma-se no sujeito histórico,
a "historicidade" e a "temporalidade" surgem como conceitos fim-
damentais para a compreensão da sociedade e sua reprodução.
Compreende-se, então, a proximidade teórica entre Touraine e os
autores que, entre nós, como veremos mais adiante, escreveram
sobre o tema da educação permanente.

Noutra direção desenvolvem-se os artigos de Archer Deléon e de


B. Schwartz, ambos da UNESCO. Deléon, como muitos outros que
tratam do tema, preocupa-se com o mundo moderno enquanto
mundo em mudança: lun tal mimdo exigiria luna educação dinâ-
mica, permanente. Sua reflexão, no entanto, é sóbria e apoiada
sobre dados relativos aos sistemas educacionais dos países mem-
bros. Ele constata uma grande e rápida expansão da educação no
mxmdo como u m todo, expansão que seria proporcionalmente maior
que as taxas de crescimento econômico. Os diferentes países esta-
riam tomando consciência do fato de que a educação é uma das
condições motoras do desenvolvimento econômico-social; no en-
tanto, as aplicações em educação nos países desenvolvidos vão
muito além daquilo que seria necessário para assegurar o cresci-
mento da economia. Chega finalmente a levantar a hipótese de
que algumas economias talvez não suportem uma expansão muito
ampla da educação através das vias tradicionais; a resposta a
este problema seria a educação permanente enquanto nova maneira
de enfocar a educação ("aprender a aprender", criar disposição
para aprender durante toda a vida) que enfatiza o extra-escolar;
ela deveria orientar a redefinição da política da educação e ser
integrada ao planejamento educacional. Em que pese a sobriedade
do artigo, a verdade é que em última instância a educação permar

22. Ibidem, pp. 229-230.

73
nente é apresentada pelo autor como uma resposta para problemas
criados para os sistemas educacionais por fatores que vão desde
"o desenvolvimento da ciência moderna" ou o "prolongamento do
tempo de lazer" à "luta de classes" e às "guerras de libertação",
Uma proposta cujo nível de generalidade faz com que ela sirva de
resposta a todo tipo de problema.
B. Schvyartz reduz ainda mais o nível da reflexão, pensando a
educação permanente em seus aspectos propriamente pedagógicos.
Ele considera que a educação de adultos está ainda no seu começo,
oscilando entre "a reciclagem universitária e a chamada educação
'cultural'", 24 e faz propostas concretas para a organização de pro-
gramas de educação de adultos, com base em pesquisas anteriores.
Ele não propõe uma análise da sociedade nem modelos de trans-
formação social nem tampouco uma utopia social. A educação
permanente é para ele apenas luna maneira de enfocar a educação
dos adultos, luna direção de trabalho pedagógico com públicos
adultos em função de objetivos concretos. Sua reflexão se dá,
assim, em torno do problema da transformação dos métodos e dos
conteúdos da educação, a partir daquilo que ele vê ocorrendo con-
cretamente nos programas de educação de adultos existentes. No
artigo de Schwartz aquilo que a educação permanente ganha em
concretude ela perde em relevância social. J á n ã o se trata de uma
resposta pedagógica à multiplicidade de problemas contemporâ-
neos mas simplesmente uma maneira de reorganizar os programas
de educação de adultos, de modo a servir à sociedade existente e
em função dos problemas surgidos a micro-nível social, ou seja,
concretamente, dentro dos programas ou dos sistemas educacionais.

2. A prata da casa

As contribiiições significativas em matéria de educação permanen-


te entre nós são as duas j á anteriormente citadas. A análise dos
dois textos pode ser interessante porque eles refletem i)osíções
básicas radicalmente contrárias, devendo ser consideradas como
representativas dos grupos que hoje detêm quase que o monopólio
da ideologia educacional difimdida pelos nossos cursos de peda-
gogia e de pós-graduação em educação e pelas nossas publicações
pedagógicas.
O texto de Dumerval Trigueiro, sem dúvida um de nossos mais
eminentes e produtivos profissionais da educação, parte de uma

23. DELÉON, Archer. Conceito atual de educação permanente e seu


planejamento. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos. Rio de Janei-
ro, MEC/INEP, n.» 113, vol. 51, jan.-março 1969, p. 26.
24. SCHWARTZ, B. Reflexões sobre o desenvolvimento da educa-
ção permanente. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos. Rio de Ja-
neiro, MEC/INEP, n.» 113, vol. 51, jan.-março 1969, pp. 41-60.

74
perspectiva política basicamente democrático-liberal, sendo muitas
das suas posições bem próximas daquelas defendidas por peritos
da UNESCO. Entre elas a vigorosa defesa da educação para todos,
a apresentação da educação permanente como alternativa para a
extensão da escolarização. A sua posição coincide também com
aquela de Alain Toiu-aine no que concerne à sociedade industrial,
merecendo — por isso — as mesmas críticas que formulamos ao
citado autor. 25 Consideramos, porém, que a nossa atenção deve
deslocar-se destes aspectos — deixando de lado também as erudi-
tas considerações filosóficas de Trigueiro relativas ao homem e
sua práxis social — para concentrar-se em questões que nos pare-
cem centrais não somente para entender mais profundamente a
interpretação que o autor d á à educação permanente como para
a melhor compreensão de grande e significativa parcela do pensa-
mento pedagógico nacional dos últimos 20 anos.

Dumerval Trigueiro analisa o problema da educação (permanente)


em conexão com o problema da construção de uma nação moderna,
sendo esta definida fimdamentalmente em termos educacionais:
"Que é uma nação moderna, senão a que deixou de viver de u m
mandarinato — de sábios na cúpula — e passou ã depender da
eficiência solidária da comunidade que a forma?". 2' A nação mo-
derna, seria aquela em que a educação se democratiza, tomando
mais fácil o dinamismo da sua evolução. Se a nação moderna se
define em primeiro lugar educacionalmente, nada mais adequado
que propor o educativo como solução social. Assim, a educação
permanente aparece como o "atalho" que nos permitiria chegar
mais depressa ao futuro, alcançar o status de nação moderna; esta
seria imia sociedade industrializada, democrática, em que a ascen-
são das massas se processa sem achatar as elites, em que a "massa

25. A adoção da "sociedade industrial" como categoria de análise


é o que o permite afirmar, por exemplo, que "o" futuro provavelmente
voltará a ter uma só educação: unificada para todas as classes sociais".
Trigueiro, Dumerval. Um novo Mundo, uma nova educação. Revista Bra-
sileira de Estudos Pedagógicos. Bio de Janeiro, MEC/INEP, n.° 113, vol.
vol. 51, jan.-mar. 1969, p. 12.
26. Buscaremos mostrar que muitos aspectos do nacionalismo-de-
senvolvlmentista encontraram abrigo na obra de Dumerval Trigueiro;
aliás, a influência da ideologia isebiana sobre Paulo Freire é maior e
mais explícita que sobre Trigueiro e este tema é objeto de um traba-
lho mais amplo em fase de conclusão. Não queremos aqui, no entanto,
apresentar Trigueiro como um "isebiano" mas destacar os aspectos do
seu pensamento que se aproximam da ideologia do ISEB, considerando
que a formação de Trigueiro ocorreu exatamente na fase em que esta
era imia formulação da ideologia burguesa das mais consistentes no qua-
dro daquelas disponíveis entre liós e com grande influência sobre a in-
telectualidade nacional.
27. TRIGUEIRO, Dumerval. Um novo mundo, uma nova educação.
Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Rio de Janeiro, MEC/INEP,
n.° 113, vol. 51, jan.-mar. 1969, p. 11.

75
se manifesta como sujeito e objeto de seu projeto". 2» A educação
seria o instrumento de tal transformação, uma transformação que
— deduz-se do texto — era exigida pela própria sociedade brasilei-
ra, pois diz o autor: "Estaremos em atraso irreparável com o
nosso próprio tempo e com a nossa própria sociedade se não
partirmos rapidamente para a educação permanente". 2» Esta seria
uma educação para a eficiência (devido ao caráter industrial da
sociedade moderna) e uma educação que, destinada às massas,
reduz ou elimina a marginalidade social, porque a nação moder-
na "aproveita todos os indivíduos no projeto comirni". 3«
Trigueiro opõe, na verdade, a sociedade moderna à sociedade arcai-
ca, uma civilização de massa, dinâmica, a uma civilização estática
e elitista; * i a primeira deveria ser o nosso objetivo. Mas a sua
construção se confunde com a própria construção da Nação, na
qual ele reserva à educação lun papel central: "dentro do contexto
a que nos estamos referindo, cada um se torna solidário, socius,
do grande empreendimento que é a Nação. Onde não haja esse
sentimento — da Nação como empreendimento — não pode haver
a percepção da necessidade da educação para todos". ^2 só pode-
mos perceber a importância da educação na medida em que o
nosso projeto é a democracia e o desenvolvimento. Mas tal projeto
— e com ele a educação permanente — esbarraria nos obstáculos
criados pelo fato de que as elites dirigentes, "emperradas no pas-
sado" recusavam os recursos necessários à difusão dessa educação
moderna não elitista, voltada para a participação e para a solida-
riedade. O projeto nacional se veria também, prejudicado porque
os "Estados modernos padecem de uma tremenda imaturidade (!)
quando se recusam a fazer a opção educacional como opção polí-
tica", colocando a educação no cerne do processo nacional. Tri-
gueiro revela, assim, uma perspectiva multo comum entre educa-
dores: um idealismo que se manifesta no julgamento moral das
instituições (sem se perguntar acerca do seu significado social
nem vislumbrar qualquer problema ao nível da teoria do Estado)
e que inverte os termos do problema ao colocar a educação como
motor das transformações sociais.

A crítica a Trigueiro deve ser realizada como crítica da ideologia


que Informa o seu trabalho: o nacionalismo-desenvolvimentista,
a ideologia isebiana dos anos 50. Hoje em dia, falar do ISEB
pode parecer uma acusação de subversão; na verdade, porém, o
ISEB subversivo foi exatamente o ISEB que — se não superou —

28. Ibidem, p. 13.


29. Ibidem, p. 10.
30. Ibidem, p. 9.
31. Ibidem, p. 15.
32. Ibidem, p. 18.
33. Ibidem, p. 15.

76
ao menos abandonou a ideologia que informa o trabalho de Tri-
gueiro. O ISEB dos anos 50, no qual se teorizou a ascensão da
biu-guesia industrial nacional ao poder político, através de uma
aliança eleitoral com as classes médias e o proletariado (numa
estratégia que exigia a educação ou pelo menos a alfabetização das
massas, na medida em que existia a proibição do voto do analfa-
beto), dificilmente poderia ser caracterizado como subversivo, mes-
mo nos dias de hoje. O conflito entre a sociedade moderna, indus-
trializada, democrática, e a sociedade estática e tradicional, agrária
e autoritária, indicado por Trigueiro, corresponde claramente ao
núcleo da interpretação isebiana que afirmava a existência de uma
oposição entre uma burguesia Industrial-urbana, interessada no
progresso, e uma burguesia agrário-comercial, j á que seus inte-
resses básicos eram supostamente conflitantes. Elas representa-
riam respectivamente a nação e a anti-nação: a burguesia indus-
trial autóctone se interessaria pela construção da Nação enquanto
nação moderna, com amplo mercado interno e democracia-parla-
mentar, enquanto que a burguesia agrário-comercial aliada dos
interesses estrangeiros, combateria o "projeto nacional" e, em con-
seqüência, a democracia burguesa e a educação anti-elitista que ela
suporia.
Não resta dúvida dé que Trigueiro é tributário da ideologia isebia-
na, ao menos no momento em que escreveu o texto em questão.
Mas ele não é u m isebiano: ele recolhe da ideologia isebiana
alguns aspectos e em especial aqueles que — dentro de um todo
vasado de contradições e ambigüidades como o nacionalismo-de-
senvolvimentista — se prestam a uma leitura idealista ou supõem
luna tomada de posição metodológica ligada à sociologia tradicional.
Assim, ele n ã o se atém à s análises isebianas calcadas sobre as
classes sociais mas prefere a distinção parenteana entre massas e
elites; refere-se diversas vezes a realização de u m "projeto" comum,
nacional; utiliza-se mesmo da expressão de Hélio Jaguaribe (Esta-
do-Cartorial) ao criticar a expansão escolar como instrumento de
uma "solução cartorial"; ^* o próprio linguajar filosófico hegeliano
não era estranho ao ISEB, onde Vieira Pinto e Roland Corbisier
o aplicaram amplamente ao buscar justificar filosoficamente o
nacionalismo-desenvolvimentista. Finalmente, a perspectiva desen-
volvlmentista do texto é bastante clara: a educação, em última
Instância, deveria ser i m i instnunento do desenvolvimento nacional,
colocando-se este e não a exploração do trabaUio como ponto
crucial das atenções.

O fato de que Trigueiro recolhe somente aspectos do nacionalis-


mo-desenvolvimentista e n ã o todo ele parece desempenhar algum
papel no fato de que ele defende as posições "isebianas" no início

34. Ibidem, p. 15.

77
de 1967,3» quando a ideologia isebiana j á havia sido abandonada
pela maioria dos seus adeptos. O ISEB tomara-se mais radical a
partir de 1960, mas Trigueiro certamente n ã o era um simpatizante
dos isebianos "jacobinos"; sua perspectiva política manteve-se está-
vel, democrático-burguesa, fato que também o impediu de assimi-
lar o lado autoritário do pensamento do ISEB. Com ela podiam
sobreviver em sua obra diversos traços que caracterizaram o isebia-
nismo dos anos 50, enquanto expressão da ideologia burguesa,
apesar não apenas do declínio da influência do nacionalismo-desen-
volvimentista sobre a intelectualidade brasileira como também da
constatação de que a interpretação da realidade proposta pelos
isebianos não encontrava sustentação na reahdade empírica,

Apesar das críticas que formulamos ao texto de Trigueiro, é neces-


sário ressaltar que o seu liberahsmo o leva também a defender
posições político-educacionais generosas, que estão permeadas pelo
existencialismo' em geral, sendo o existencialista cristão Paul
Ricoeur^*^ citado nominalmente em seu artigo.
O texto de Arlindo Lopes Correia sobre educação permanente
apareceu sete anos após a apresentação do de Trigueiro e sua
perspectiva difere profundamente da deste último. A. L. Correia
aborda o tema quando j á era presidente do Mobral e o faz dentro
do quadro das discussões na área da economia da Educação. Cor-
reia parte dos postulados clássicos da economia da educação: a
educação é tun fator de crescimento econômico e o Estado deve
atender às exigências de força de trabalho qualificada colocada
pela economia, promovendo programas e reformas educacionais.
Sua argumentação é semelhante àquela utilizada pelos economistas

35. Restos da ideologia isebiana parecem poder ser identificados


em muitos escritos ao longo dos anos 60 e até mesmo dos anos 70.
No entanto, não se pode dizer que após a publicação de Consciência
e Realidade Nacional de Álvaro Vieira Pinto em 1960 as publicações do
ISEB se caracterizem como nacionalismo-desenvolvimentistas. Os prin-
cipais teóricos isebianos (à exceção de Hélio Jaguaribe, talvez) evoluíram
para posições muitas vezes bem distantes do isebianismo dos anos 50.
Mas o setor educacional parece ter sido privilegiado com os "restos"
daquela ideologia.
36. Ver, por exemplo, CARDOSO, P. Henrique. Empresário industrial
e desenvolvimento econômico TIO Brasil. 2.a ed. São Paulo, 1972. Ver tam-
bém Santos, Teotônio dos. Las inversiones estranjeras y Ia grande em-
presa en América Latina: el caso brasilefio. I n : PETRAS, James e
Zeitlin, Maurice (ed.). América Latina, reforma o revolución? Buenos
Aires, 1970.
37. TRIGUEIRO, Dumerval. Um mundo novo, uma nova educação.
Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos. Rio de Janeiro, MEC/INEP,
n.° 113, vol. 51, jan.-mar. 1969, p. 14. O assunto, naturalmente, merece
uma consideração especial pois a influência indireta de Ricoeur sobre
a intelectualidade pedagógica brasileira parece ser bem grande; isto su-
poria, porém, uma pesquisa mais ampla.

78
dos países desenvolvidos em suas hipóteses fundamentais, siias
categorias, seu vocabulário. Assim, o autor defende a educação
permanente em função da "melhoria da qualidade de vida da popu-
lação", u m lugar comum internacional nos dias de hoje mas que
dificilmente pode servir de argumento num país onde o salário
real dos trabalhadores baixou progressivamente nos últimos 10
anos. Ele se refere também à necessidade de "modificar o sistema
educativo em função da evolução científica e tecnológica, que obri-
ga a uma sobre-qualificação contínua", de "responder aos proble-
mas do lazer", de "facilitar a adaptação a novas experiências no
mundo do trabalho, do consumo, das relações entre gerações"
etc. 38 Reproduz, portanto, literalmente, os argumentos que os
intelectuais das sociedades desenvolvidas encontraram na sua reali-
dade — profundamente diferente da nossa — para forjar o con-
ceito de educação permanente.

Encontramos nas proposições do autor, entre outros mitos, aquele


que indica a difusão da idéia de poupança, de limitação voluntária
do consumo como meio de capitalização, s» Ora, a acumulação de
capital em quantidades suficientes para a industrialização n ã o se
fez historicamente -apenas (e nem principalmente) pela poupança
individual resultante da limitação do constuno, mas pela punção
fiscal e pela ação do Estado, pela conquista e saque de outros
povos, pelo estabelecimento de relações de dominação econômica
sobre outros países — especialmente através da exportação de
capitais desde o final do século X I X e suas conseqüências não só
econômicas mas também político-sociais e culturais — e sobretudo
pela exploração do proletariado nacional. Se nos lembramos, en-
tão, que tal proposição deveria constituir parte do conteúdo de
uma educação permanente a ser realizada pelo Mobral, devemos
nos perguntar se acaso as pessoas às quais o programa está dirigido
estão em condições de poupar ou mesmo de "transformar signifi-
cativamente seus hábitos de consumo e de investimento", como
pretende Correia. Esta é uma idéia que poderia, até certo ponto,
sensibilizar o trabalhador do país desenvolvido, penetrado pelas
ilusões criadas e alimentadas pela ideologia burguesa — sendo
assim mesmo de se colocar em dúvida até que ponto a difusão de
tais idéias interessa aos capitalistas desses países, onde os salários
cresceram de modo a poder ftuicionar como renda criadora de

38. CORREIA, Arlindo Lopes. Education permanente... op. cit.


39. Ibidem, p. 13. Cabe aqui certamente o comentário de Marx:
"Afirmar, de modo genérico, que a acumulação se efetua às custas do
consumo, é sustentar um princípio ilusório que contradiz a essência da
produção capitalista, pois se estará supondo que o fim e a causa pro-
pulsora dessa produção é o consumo, e não . . . a acumulação". MARX,
Karl. O Capital. Rio de Janeiro, Ed. Civilização Brasileira, 1970, livro 2,
volume 3, p. 535.

79
demanda que assegura o retomo constante do capital variável aos
bolsos do capitalista de modo tão mais rápido quanto mais rapida-
mente circulem as mercadorias. Mas que futiiro pode encontrar
tal idéia num país onde o salário dos operários atinge, em geral,
somente cerca de 1/10 do salário médio de um trabalhador alemão
ou norte-americano e onde o custo de vida é tão elevado quanto na
Alemanha Federal ou nos Estados Unidos?
Escrito em plena época do "milagre brasileiro" o artigo exprime
o estado de espírito da burocracia estatal na época: o país crescia
rapidamente, logo o seu setor produtivo se modificava e diversifi-
cava, diversificando-se ao mesmo tempo a estmtura ocupacional.
Correia concluía, então, que n ã o era possível ao sistema educativo
acompanhar tal evolução, fornecendo a força de trabalho exigida
pelo "milagre brasileiro": a solução estava, então, na educação
permanente, apresentada como uma transformação do ensino suple-
tivo para adultos. Sua proposta é bastante concreta: tratava-se
da integração das redes escolar e profissional através de dois me-
canismos: o da escolha da profissão e o do ensino supletivo, de
tal modo que o seu fimcionamento conjimto permitisse, a todo
instante, a promoção educativa e ocupacional do indivíduo, seja
preparando-o para o trabalho eficaz, seja permitindo-lhe retomar
ao sistema escolar.« Ele acentua, pois, o aspecto de formação
de força de trabalho necessária à indústria de capital intensivo, a
única que tem necessidade de reciclagem dos seus trabalhadores.
A reciclagem é — no final das contas — o fundamento da sua
proposta, fato que pode ser apreendido quando o autor caracteriza
o futuro sistema de educação permanente como aquele em que,
sendo a educação geral oferecida nas escolas, conjuga os esforços
dos organismos de educação profissional com as empresas privadas
e se apoia sobre os princípios do "Training within Industry"
(TWI).«
De fato. Correia propõe o modelo norte-americano de transferência
da formação profissional às empresas e às associações privadas,
em função de seus interesses imediatos; deixando, naturalmente,
ao Estado a responsabilidade pela educação geral. Esta solução
permitiria ao Estado enfrentar a falta de recursos para a educação
e, ao mesmo tempo, sub-tratar com aqueles que estão diretamente
ligados ao capital privado a formtição dos recursos humanos para
o crescimento econômico. E m última instância, ele propõe uma
subsunção mais direta da educação aos interesses do capital. A
utilização ou não do conceito de "educação permanente" tomarse,
então, uma questão de moda. Ou talvez — reconhecendo que há
toda mna tendência entre os grandes nomes da economia da edu-

40. Ibidem, p. 9.
41. Ibidem, p. 9.

80
cação, como por exemplo Friedrich Edding, de se ocuparem com
o tema da educação permanente — possamos levantar a hipótese
de que o deslocamento da ênfase do planejamento educacional
para a educação permanente represente luna tentativa de camuflar
o fracasso dos métodos de planejamento educacional através de
sua substituição por mna nova ideologia. Mas se Correia reduz
a educação permanente à sua dimensão propriamente econômica,
ele n ã o esquece — porém — de completá-la com a "promoção
cultural", "desenvolvimento comunitário" etc. Quais seriam os
objetivos de tal acréscimo? Segundo o autor, o objetivo principal
seria "tomar as comunidades conscientes do seu papel no domí-
nio educativo", limitando assim a sua consciência social aos "inte-
resses superiores da nação e da segurança nacional". ge ele
repete o objetivo idealista da "sociedade educativa" ele esclarece
o que de fato quer dizer quando define o Mobral como "o instru-
mento de renovação que agirá sobre os demais componentes do
sistema social brasileiro que se aperfeiçoou rapidamente sob a
égide da revolução de 1964": ao Mobral caberia pois, realizar a
tal "sociedade educativa" através da educação permanente. Esta
aparece finalmente na sua dimensão política como parte de imia
tecnologia social que permite a mobilização e a manipulação polí-
tica das classes a que se destina.

Retomaremos alguns aspectos da análise de Correia noutra parte


deste trabalho. Queremos, aqui, somente chamar a atenção para
o fato de que os dois autores nacionais escolhidos atestam simples-
mente que na educação permanente cabem coisas tão díspares que
o conceito termina esvaziado.

3. O intermediário

Entre as traduções e a escassa produção local colocam-se os livros


de um personagem central na história da difusão do conceito de
educação permanente no Brasil: Pierre Furter, van filósofo e peda-
gogo suíço que viveu no Brasil na primeira metade dos anos 60.
Graças a ele o Brasil certamente pode se colocar, hoje, entre os

42. Comparem-se, por exemplo, as posições de Friedrich Edding —


sem dúvida o mais famoso dos economistas da educação alemães — ex-
pressas no seu livro de 1963 (.Okononúe ães Bilãungswesens, Freiburg)
com aquelas das suas "Ansãtze zum bildungspolitischen Umdenken" in:
EDDING, Friedrich e BRtíCHER, Hamm. Reform der Reform, Kõln, 1973.
43. CORREIA, Arlindo Lopes. Education permanente... op. cit., p.
49-51.
44. Ibidem, p. 52. Na verdade desde o início do texto tais intensões
se explicitam quando ele reconhece na educação um fator importante
na manutenção "de níveis convenientes de segurança individual e co-
letiva" (pp. 5-6).

81
países do mundo (especialmente do mundo subdesenvolvido) onde
mais se fala de educação permanente. E isto n ã o é produto apenas
da penetração dos seus livros, que alcançaram sucessivas edições,
mas também da sua influência pessoal, mantida mesmo depois
do seu retomo à Europa através da atuação de um gmpo dinâmico
de pessoas que, conquistadas por suas idéias, dispõem de conside-
rável peso na orientação dos cursos destinados â formação de
profissionais da educação a todos os níveis, especialmente no Rio
de Janeiro.

Os fatores que facilitaram a influência de Furter sobre os peda-


gogos nacionais na segimda metade dos anos 60 merecem algumas
considerações. O momento em que Furter lançou seus dois pri-
meiros livros (final de 1966) apresentava características bem espe-
cíficas. Constatava-se, por um lado, certo vazio na literatura
pedagógica nacional em face de cada vez mais escassa produção'
dos educadores ligados ao movimento renovador, e da incapacidade
dos novos elementos interessados no tema de teorizarem sobre ele;
por outro lado, o fechamento dos movimentos de educação popular
surgidos a partir de 1960 em todo o país privou toda uma nova
geração de pessoas voltadas para questões educacionais de vani
práxis educativa t ã o desordenada quanto gratificante. A angústia
e a impotência resultante da nova situação colocou esses elementos
diante da necessidade de refletir sobre a sua prática educativa
anterior (ou intensificou tal preocupação entre aqueles que j á a
sentiam antes) e sobre os acontecimentos políticos que impediam
a sua continuação. Criou-se, assim, certa disponibilidade para a
•leitura de quantos propusessem .uma reflexão sobre problemas
educacionais ou apresentassem uma crítica sistemática ou coerente
da educação existente. Dentro desse quadro surgiram os 3 autores
mais populares nos círculos pedagógicos brasileiros nos últimos
anos: Lauro de Oliveira Lima (com a crítica do sistema educado-'
nal existente a partir de uma perspectiva liberal), Paulo Freire
(com a apresentação das bases teóricas do seu método em Educa-
ção como prática da Liberdade) e Pierre Furter, pedagogo de for-
mação marcada pelo existencialismo e que participou dos movi-
mentos de educação e cultura popular nordestinos no período
imediatamente anterior a março de 1967.

Furter introduz em 1966 o tema da educação permanente quando


j á se instalara no Rio de Janeiro como irerito da UNESCO, e prepara
os seus dois primeiros livros a partir do curso de filosofia da edu-
cação que ministrou em 1964/65 em São Paulo, dentro da progra-
mação do Projeto Principal da UNESCO para a América Latina.
Ele insere a discussão do tema niun contexto de reflexão amplo
— que inclui a abordagem da temática como humanismo, a ideo-
logia, a utopia, a crise, o planejamento e também a cultura popular

82
e o desenvolvimento cultural — obtendo o sucesso que se poderia
prever: em meio ao generalizado despreparo dos meios pedagó-
gicos nacionais, surgia finalmente alguém que — embora (ou além
de?) estrangeiro — tomara parte da nossa experiência pedagógica
dos últimos anos e tocava em problemas que eram percebidos
pelos educadores nativos apenas de modo confuso. Escrevendo
em bom estilo e num discurso coerente, ele deu forma verbal a
uma série de questões que muitos apenas vislumbravam: ler os
seus livros, por mais sintéticos que eles fossem, era mna desco-
berta; significava verificar que a pedagogia tinha a ver com tudo,
que não era possível encontrar respostas ao nível pedagógico sem
as encontrar antes a outros níveis, que a discussão pedagógica
implicava na discussão do todo social. No entanto, ao formalizar
as questões ele impôs a sua maneira de perceber a realidade e seus
problemas a grupos que — com um pouco mais de preparo teórico
— talvez pudessem captá-los de outra maneira. Nesse sentido, ele
forjou parte da "mentalidade pedagógica" dos nossos dias no Brasil.

A análise sistemática dos livros de Furter exigiria um trabalho


mais amplo. No entanto, sendo o seu papel tão importante entre
nós, no que concerne à educação permanente, e sendo o assimto
tratado dentro de um contexto temático amplo na sua obra, ten-
taremos — ao menos — chamar a atenção para os aspectos que
nos parecem mais relevantes no seu trabalho.

O que Furter propõe no seu primeiro livro, ou seja, a reflexão


sobre a ação pedagógica, coincidia — como j á indicamos — com
a necessidade sentida de muitos interessados na educação. A prá-
tica pedagógica do período anterior, especialmente aquela concer-
nente à educação dos adultos, precisava ser repensada; alguns, que-
rendo adaptar-se às novas condições, buscavam neste repensar
elementos teóricos que servissem à reorientação da sua prática
educativa; outros viam a experiência educativa anterior como fonte
de grandes ensinamentos que n ã o foram suficientemente digeridos
por falta de uma reflexão que se processasse aos mesmo tempo
que a prática educativa nos diversos movimentos. Havia, pois,
que realizá-la ex-post como preparação para uma futura retomada
político-pedagógica, quando mudassem as condições políticas (algo
que, na época, se acreditava que ocorreria breve). Furter parece
ter assmnído, em 1966, a posição de muitos daqueles para os quais
escrevia, justificando-os: a reflexão, o repensar, deve v i r realmente
depois da ação pedagógica, como distanciamento crítico da ação
que permite reformulá-la. Ele não afirma que a ação n ã o está
informada por uma teoria (mesmo que implícita) nem que a re-
flexão simultânea é impossível, mas defende a idéia de que esta
reflexão ocorre principalmente depois de e não junto com. Talvez

83
a segunda hipótese fosse mais justa, mas certamente a primeira
confortava melhor a consciência dos interessados.*"
A reflexão e a utopia são os dois temas centrais do trabalho, vasa-
do no mais pelas preocupações existencialistas clássicas: o homem
como ser temporal, a comunicação, a intersubjetividade, o diálogo,
o encontro com o outro, a liberdade htunana (e os problemas
colocados a ela pela planificação). Digamos de passagem que o
existencialismo se constituirá não apenas numa das mais signifi-
cativas correntes filosóficas defendidas no Brasil*" como, naquele
período específico, transformara-se numa "das maiores tentações
da juventude" entre nós, *^ o que assegurava grande êxito a uma
discussão da educação que o tivesse como quadro de referência.

Trataremos, porém, da questão da utopia. Furter adota em relação


à utopia a posição de um dos autores mais influentes no Brasil
desde os anos 50: Karl Mannheim. "Um estado de espírito é
utópico, diz Mannheim, quando está em incongruência com o estado
de realidade dentro da qual ocorre"; *» é uma orientação que
transcende a realidade, que "rompe as amarras da ordem existente",
que orienta a contra-atividade de maneira a transformar a reali-
dade histórica existente em outra realidade. *» A utopia exprimiria,
assim, o desejo de mudança. Tais definições poderiam se prestar
a uma interpretação radical por leitores que desconhecessem o
contexto teórico e as posições políticas em função das quais o
autor húngaro desenvolve suas idéias sobre a importância social da
utopia; mas o próprio Furter — embora deixe em aberto tal pos-
sibilidade quando trata da utopia em geral — se encarrega de a
eliminar quando ele traz a reflexão para o plano propriamente
pedagógico. "Cada vez que o educador reflete sobre a sua ação e,
portanto, pondera as repercussões de mna mudança na educação,
afirma Furter, realiza de fato uma utopia. É por isso mesmo
que o pensamento utópico é t ã o ligado à reflexão pedagógica. Com
o aparecimento das técnicas de planejamento, o que ainda era
proximativo e subjetivo tomou-se, hoje, um instrmnento eficaz de

45. FURTER, Pierre. Educação e Reflexão, op. cit., p. 26. A neces-


sidade de refletir sobre a prática educativa já era sentida e discutida
especialmente a partir de 1962 por setores católicos de esquerda mode-
rada e outros, em conexão com a idéia do que seria o verdadeiro ra-
dical. Paulo Freire exprime tal preocupação em Educação como prática
da liberdade, definindo o radical, em 1965, como aquele que "rejeita o
ativismo e submete sua ação à reflexão" (p. 51).
46. Ver a esse respeito, JAGUARIBE, Hélio. A filosofia no Brasil.
Rio de Janeiro, MEC/ISEB, 1957.
47. DETREZ, Conrado. Existencialismo e juventude brasileira. Paz
e Terra. Rio de Janeiro, ano I , n.» 3, 1967, p. 111.
48. MANNHEIM, Karl. Ideologia e Utopia. Rio de Janeiro, Zahar,
1968. p. 216.
49. Ibidem, p. 219.

84
t r a n s f o r m a ç ã o " . A utopia não ganhou concretude e o instru-
mento da sua realização (o planejamento) bem como a sua finali-
dade última (a mudança) podiam servir a todos: todos estão
interessados na mudança, desde que não se cometa a imprudência
de perguntar qual mudança; nos anos 60 já se esgotara a discussão
sobre o intervencionalismo estatal restrito, de tal modo que todos
estavam já interessados nalguma forma de planejamento. A evo-
lução dos fatos mostrou também que, ao contrário do que muitos
esperavam, também o governo militar estava interessado na mu-
dança — na medida em que ela significava a definitiva consolida-
ção do capitaUsmo no país; estava também interessado em certas
formas de planificação, como é do conhecimento público. A mu-
dança se processaria por canais determinados pela tecnocracia en-
carregada de planejar, como se o planejamento fosse neutro, eva-
dindo-se o problema do poder e da confrontação entre classes
sociais com interesses conflitantes. Bastaria planejar uma educa-
ção para a mudança, de acordo com um estado de espírito utópico,
para estar na direção certa.

Nesse quadro é que surge a educação permanente na obra de


Furter: ela responderia, para ele, ao fato de que o homem é
um ser inacabado, que tende à perfeição; em conseqüência a edu-
cação se toma um processo contínuo que só termina com a morte."
A prática desta educação contínua deve ser objeto da nossa refle-
xão e a utopia a orienta — supõe-se — já que para o autor "a
educação, fundamentalmente, não é conservadora, porque — assim
— seria imaginar que o ideal é a situação atual". A educação,
em qualquer caso, traria o gérmen da mudança, tomando-se por
isso instrumento de realização de utopia. A conseqüência de pen-
sar na educação permanente a partir de uma antropologia filosófica
impregnada de existencialismo, como o faz o autor, é subsxmair as
funções sócias da educação ao caráter contínuo da maturação
humana. Ao invés de pensar a educação (permanente ou não)
enquanto processo determinado pelas necessidades de reprodu-
ção global da sociedade, ele a pensa como processo cujas instân-
cias decisivas se encontram na biologia e na psicologia.

E m Educação e Vida persiste a orientação dominante em Educa-


ção e Reflexão, o existencialismo aparece em novas roupagens
como na valorização da crise como momento fmtífero ou na
idéia de "projeto"; por outro lado, a reflexão adquire tonalida-
des mais ligadas à UNESCO (mundo planetário, explosão demográr

50. FURTER, Pierre. Edtuiação e Reflexão, op. cit., p. 42.


51. Ibidem, p. 67.
52. Ibidem, p. 74.
53. Idéia, aliás, muito popular entre os isebianos, quase todos am-
plamente influídos pelo existencialismo.

85
fica, explosão escolar, diálogo entre civilizações etc). Neste livro,
porém, Furter esclarece melhor a sua perspectiva política. Por van
lado ele apela para o marxista Ernst Bloch de maneira a funda-
mentar a sua atitude otimista, esperançosa frente à realidade; por
outro, ele se coloca contra as mudanças radicais, afirmando que
a educação não deve ser uma "aventura sonhada por irresponsá-
veis" que pretendem "uma liquidação seguida de luna nova cons-
trução" mas deve ser tarefa de homens que olham criticamente
sobre o passado e a tradição. ^* A ambigüidade do texto não per-
mite descobrir concretamente quem seriam tais vândalos. Mas a
alternativa para t ã o abstratos inimigos seria uma reforma que
teria por objetivo último "formar um mundo à imagem da moder-
nidade". =5 Furter critica a "mera modernização", mas o "ser
moderno" por ele definido permanece tão impreciso que, não colo-
cando o autor em questão o modo de produção vigente, a moder-
nidade termina se confundindo com a modernização capitalista.

Mas a esperança que deve informar a construção de um mxmdo


moderno é, como dissemos, apoiada na obra de Bloch. O compli-
cado estilo literário de Bloch certamente contribui para tomar
confusas ou vagas muitas de suas frases. Apesar disso, sua pers-
pectiva marxista é clara. A esperança blochiana é esperança de
viver sem senhores e sem exploração; nesse sentido ele pretende
uma "antecipação exata, utopia concreta" que se vincula ao realis-
mo frio. 58 A análise da realidade que o exprime é aquela feita
por Marx e Lenin, ambos amplamente citados por Bloch: "Só com
±al análise, afirma ele em Das Prinzip Hoffnung, só a partir de
tal perspectiva dá-se a consoladora compreensão do mundo que é
o marxismo e que não é por isso mesmo algo contemplativo mas

54. FURTER, Pierre. Educação e Vida. op. cit., pp. 62-63.


55. Ibidem, p. 59. Como na época em que Furter escreveu Educa-
ção e Vida bem como no período imediatamente anterior a 1964 os anar-
quistas não constituíam um agrupamento político significativo na vida
brasileira nem consta que os demais grupos revolucionários presentes
na luta política do período tivessem adotado uma perspectiva "terro-
rista e desesperada", consideramos que a indicação feita pelo autor na
mais consistente das suas obras (Dialética da Esperança, Rio de Janeiro,
Ed. Paz e Terra, 1974) — escrita algtms anos depois dos 2 livros que
ora criticamos — não esclarece muito sobre a referência de 1966. Diz
ele em 1974: "Não é verdade que a Revolução abole para melhor inaugu-
rar um outro tempo. Esta é uma concepção anarquista da Revolução,
isto é: terrorista e desesperada" (p. 55). Certamente que os grupos
brasileiros acima referidos não estavam à espera de esgotar todas as
possibilidades (de reforma?) para então "reconsiderar radical e glo-
balmente a situação inteira" e propor novas perspectivas, simplesmente
porque eles viam o problema da revolução — certamente — de forma
diferente da do filósofo e pedagogo suíço.
56. BLOCH, Emst. Das Prinzip Hoffnung. Frankfurt/M, Suhrkamp
Verlag, 3 vol., p. 1619.

86
uma orientação para a ação. Esta análise "do mais frio detetive
(mas) que leva a sério os s o n h o s " é o ftmdamento da esperança
em Bloch; o marxismo é também para Bloch a "utopia social con-
creta, a união teoria-práxis capaz de transformar dialético-econo-
micamente o m u n d o " . A referência a Bloch na defesa que Furter
faz da esperança, por isso mesmo, parece contribuir mais para con-
fundir do que para esclarecer a posição e mesmo as idéias do
autor, na medida em que Bloch se vê inserido num contexto que
nada tem em comum com o marxismo. As conseqüências que
Furter tira da reflexão blochiana pouco tem a ver com o próprio
Bloch, pois não apontam para imia transformação mais profunda
da realidade, como — aliás — seria impossível meramente através
dos canais educativos. Na verdade a esperança apoiada em Bloch
se conecta com a preocupação com a temporalidade: o tempo
existe, podemos ter esperanças, devemos ser otimistas porque o
futuro está por vir. Embora Bloch apareça explicitamente citado
9 vezes no capítulo 4 de Educação e Vida, parece ser a obra do
pensador protestante Paul Ricoeur — bem mais que a de Bloch —
a principal fonte ém que se inspira a esperança de-Furter. Em
seu livro de 1969, Les conflits des interpretations, afirma Ricoeur
que o essencial do presente seria "o diálogo entre uma teologia
da esperança e imia filosofia da razão"; <"> mas esta idéia j á está
presente, de certo modo, em História e Verdade (publicação fran-
cesa de 1955), em cujo prefácio ele enfatiza a importância do
"ainda n ã o " e afirma que "o impacto filosófico da esperança é
o próprio comportamento da reflexão", « i Não teria merecido a
obra de Ricoeur, com toda a sua riqueza, receber — neste caso
— maior referência explícita?

O todo dos livros de Furter, certamente se coloca multo mais


próximo de Ricoeur que de Bloch. Este tem como objetivo a
revolução social, enquanto o outro proclama a necessidade de uma
reforma, a importância da vontade e o papel do homem não vio-
lento. P£ira Furter, se a revolução social n ã o é possível, é possível
oferecer à juventude a oportunidade de se preparar para "enfren-

57. Ibidem, p. 1621.


58. Ibidem, p. 1621.
59. Ibidem, p. 1621. Ver também as páginas 1627-1628. Que Furter
conheça suficientemente bem a obra de Bloch ele o demonstrou no
citado livro Dialética da Esperança. O que contestamos aqui é que a
sua perspectiva política e teórica seja próxima da de Bloch, o que toma
no mínimo estranho a utilização de "pinçamentos" da obra do filósofo
alemão para servir de fundamento de uma parte da sua reflexão sobre
a educação.
60. RICOEUR, Paul. Les conflits de interpretations, essais dTierme-
neutique. Paris, Ed. du Seuil, 1969, p. 404.
61. RICOEUR, Paul. História e Verdade. Rio de Janeiro, Ed. Foren-
se, 1968, p. 16.

87
tar as perspectivas infinitas do mundo atual".-»^ Uma educação
que realizasse semelhante preparação j á seria para Furter uma
educação democrática e libertadora. A educação seria libertadora,
afirma ele, porque é a sua função "difundir, esclarecer e contribuir
para a ordem que pretendemos dar em nosso tempo ao mundo":
que ordem é essa o autor n ã o esclarece mas nas suas cogitações
não entram temas como a sociedade de classes, o Estado como
instrumento da classe dominante, a educação como meio de repro-
dução social etc. As questões ficam em aberto e as suas respostas
deveriam ser buscadas na antropologia filosófica como interpreta-
ção do destino humano que tem, hoje, a temporalidade como cate-
goria central da reflexão.

O que era nebuloso nesta reflexão geral torna-se, porém, mais


concreto porque o objetivo final é a reflexão sobre a educação.
Verifica-se, então, que não vamos pensar o projeto social (do qual
dependeria o projeto educacional) mas diretamente o projeto
educativo: ele se exprimiria por um "espirito de planificação".
"Planificar — diz Furter — é recusarmos ser os objetos do pro-
gresso para organizarmos o nosso presente de tal modo que permi-
ta o surgimento de u m futuro conforme as nossas esperanças"."*
Bastaria planificar (trata-se aqui do "planejamento democrático"
mannheimiano, pois o autor esclarece que ele não se refere à "pla-
nificação socialista, totalitária") para ter a solução dos problemas;
não é a luta, mas a planificação que se configura como instru-
mento de transformação das sociedades: os tecnocratas tomam o
lugar dos revolucionários. Trata-se, além do mais, da planificação
da educação, supondo-se que esta seja fundamentalmente voa ins-
trumento de mudança.

Chegamos, então, à educação permanente. Ao mundo da planifi-


cação, planetário, em que assistimos à explosão demográfica e
escolar, a educação que lhe corresponde é uma educação perma-
nente. Ela responderia às exigências da antropologia — que re-
conhece o homem como ser inacabado, no plano filosófico, e que
verifica que, nos nossos dias, ele vive mais e está em processo
permanente de maturação — e ao conceito sócio-econômico de de-
senvolvimento rápido. E m síntese, devemos ter esperança de cons-
truir o futuro como desejamos através do planejamento de uma
educação permanente que contribua para o desenvolvimento sócio-
-econômico e para a democratização.
Antes de partir para a sugestão de medidas concretas que propi-
ciariam uma educação permanente — e que são bastante próximas

62. FURTER, Pierre. Educação e Vida. op. cit., p. 29.


63. Ibidem, p. 31.
64. Ibidem, p. 60.

88
daquelas propostas pelos demais autores da UNESCO (como Deléon
ou Schwartz), sendo realizáveis em qualquer tipo de sociedade de-
senvolvida ou subdesenvolvida — Furter busca definir a educação
permanente e indicar a sua importância a vários níveis. Assim,
ela seria "uma concepção dialética da educação, nimi duplo pro-
cesso de aprofundamento tanto da experiência pessoal quanto da
vida social global, que se traduz pela participação efetiva, ativa e
responsável de cada sujeito envolvido, qualquer que seja a etapa
da existência que ele esteja v i v e n d o " . T a l definição — que se
apoia firmemente sobre a sociologia da educação e propostas edu-
cacionais de Karl M a n n h e i m — transforma a educação perma-
nente num instrumento de democratização, implicando, pois, nimia
educação política cujos postulados e objetivos Furter não explicita.
Por outro lado, a educação permanente —como fonte e fundamento
de uma transformação profunda do sistema de ensino — deveria
constituir-se num fator que impulsiona o desenvolvimento sócio-
-econômico: ela estaria ligada ao take-off dos países subdesenvolvi-
dos, na medida em que atenderia à necessidade de elevação do
nível científico e tecnológico da nação, em que prepararia o homem
como produtor, como consumidor e como criador e em que res-
ponderia à necessidade social da reconversão e formação poliva-
lente, criadas pela automação. Deixaremos para depois a discussão
da relação entre educação permanente e o take-off; vale a pena,
porém, destacar desde logo que o autor coloca juntas necessidades
do take-off e da automação, devendo a educação permanente aten-
der a ambas. Ora, em nenhum momento Furter analisa ou fornece
indicações sobre as características ou exigências da estrutura pro-
dutiva dos países subdesenvolvidos que a educação permanente
deve atender; tampouco levanta a idéia de coexistência, nesses paí-
ses, de idades econômicas diversas dentro de irnia mesma estru-
tura produtiva. Desta forma, a mistura tofce-o///autom£ição (e suas
respectivas exigências ao nível da educação) aparece como algo
bastante contraditório: em última instância a educação permanente
serve a qualquer sociedade, a qualquer economia, a qualquer forma
de vida política.

Furter, porém, continuou a se preocupar com o tema da educação


permanente nos anos seguintes, resultando de tal preocupação o
seu livro Educação Permanente e desenvolvimento cultural, publi-

65. Ibidem, pp. 136-137.


66. Especialmente com aquelas idéias expostas em Freedom, power
and democratic planning. London. 1951. A educação em pequenos gru-
pos dentro dos quais se realizaria a sistematização da experiência
social dos participantes como preparação para a democracia, conectan-
do-se com a idéia de mundo em transição e de planejamento democrático.
67. FURTER, Pierre. Educação e Vida, op. cit., p. 136.

89
cado quase uma década depois dos dois livros aqui referidos.'*
Neste livro, no entanto, a sua reflexão se afasta em muitos aspec-
tos daquela por nós aqui criticada; ele deixa quase que inteira-
mente de lado as suas preocupações na área da antropologia filosó-
fica — que constituía anteriormente a base sobre a qual era pen-
sada a educação permanente — e restringe as suas considerações
propriamente filosóficas; a nova base da sua reflexão sobre a
educação permanente é a antropologia cultural. Neste livro, Furter
pretende pensar especificamente o significado da educação perma-
nente nos países subdesenvolvidos, apoiado sobre a sua vivência
da realidade latino-americana em geral e brasileira e venezuelana
em particular. E m conexão com tal pretensão é que o seu livro
permeia-se de formulações positivas que merecem ser ressaltadas:
entre elas, o violento ataque ao preconceito contra o analfabeto,
a denúncia do trabalho realizado pelos peritos internacionais que
— com freqüência — atuam, de forma consciente ou não, como
agentes de uma política neo-colonialista, a defesa da democratiza-
ção da vida cultural etc. Sua perspectiva política não se modifi-
cou; cresceu, no entanto, a sua crença no poder da planificação.
Liga-se a estas características o fato de que o seu pensar a educa-
ção permanente adquire maior concretude (especialmente no capí-
tulo 4): ele pensa concretamente na organização da educação per-
manente, lembrando bastante o tipo de trabalho desenvolvido por
Archer Deléon ou por B. Schwartz. Neste sentido, seu novo livro
revela mais claramente que os outros a sua vinculação com a
UNESCO.
A. preocupação básica que orienta o desdobramento de Educação
•permanente e desenvolvimento cultural n ã o se refere à contínua
maturação humana mas ao desenvolvimento sócio-econômico e cultu-
ral. O objetivo seria a construção de uma sociedade industrial,
moderna; contribuiria a alfabetização generalizada para tal objetivo?
Ela só teria sentido — diz Furter — "se se deseja que o conjunto
da população participe do desenvolvimento de u m país em direção
a uma sociedade industrial"."" O problema fundamental seria
tornar alfabetização mn instrumento de mudança social provocada
— o que só poderia ocorrer se ela respondesse às aspirações e
expectativas dos analfabetos, de modo a torná-los agentes de trans-
formação social. Tal evolução suponha o rompimento dos laços
de dependência pessoal dos analfabetos, a sua afirmação como
pessoas autônomas e conscientes que contribuem para o desenvol-
vimento. Aqui Furter pretende pensar o problema do desenvolvi-
mento a dois níveis (o pessoal e o da sociedade nacional) conec-

68. FURTER, Pierre. Educação permanente e desenvolvimento cul-


tural, 2.* ed., Petrópolis, Ed. Vozes, 1975.
69. Ibidem, p. 66.

90
tando os dois ao pensar a dependência. Mas n ã o se trata aqui de
utilizar a chamada "teoria da dependência" para entender a reali-
dade do subdesenvolvimento; trata-se de pensar a dependência a
nível psicológico (da criança ou adolescente em relação ao adulto,
do aluno em relação ao professor) e como vencê-la através da
intervenção educativa: a perspectiva da andragogia seria exatamen-
te a de promover a auto-educação de cada indivíduo, sendo a edu-
cação "um processo em que cada um aprende a se formar e a se
informar a fim de transformar-se e transformar o mundo".''» A
dimensão política deste pensar a dependência restringe-se à indica-
ção de que o mesmo processo ocorreria na relação elites/massa
ou povoai e de que o conceito se aplica também à s relações entre
as nações. O desenvolvimento cultural aparece como um instru-
mento para romper a dependência existente nas relações elites/
massa, na medida em que integra esta última na vida nacional
com o objetivo de acelerar o desenvolvimento sócio-econômico.
Mas também as relações tradicionais de dependência entre as na-
ções deveriam ser abaladas, transformando-se "o caráter atual de
domínio em nova relação de reciprocidade": a dependência tornar-
-se-ia interdependência, algo que supõe a transformação recíproca. ''^
Certamente, admite ele, tal processo traria consigo conflitos; mas
eles seriam necessários à "institucionalização do desenvolvimento".
E m síntese: estamos diante de uma posição anti-colonialista que
considera necessário para o desenvolvimento dos países subdesen-
volvidos a sua afirmação como nação; somente ela possibilitaria a
instituição de mecanismos de planejamento necessários ao desen-
volvimento nacional. Estamos também diante de uma crítica da
dominação e do colonialismo inspirada no existencialismo, tal como
se desenvolvera na França no final dos anos 50 e início dos anos
60 e que entre nós encontra em Vieira Pinto uma expressão das
mais conseqüentes e sistemáticas: o processo de crescimento pes-
soal é transposto para o plano da n a ç ã o . "

70. Ibidem, p. 69. A questão da superação da dependência psico-


lógica e moral constitui, aliás, um dos temas centrais do trabalho de
Furter, cuja tese aborda, de uma perspectiva existencialista, a proble-
mática da adolescência como fase de transição entre a heronomia moral
da infância e a autonomia moral do adulto. Ver Furter, Pierre. Juven-
tude e Tempo presente. Rio de Janeiro, Ed. Paz e Terra, 1967.
71. Também em Furter a distinção entre massa e elites entra no
lugar das classes sociais.
72. FURTER, Pierre. Educação permanente... op. cit., p. 86. Lê-se
mais adiante: "O domínio... pode ser definido como uma relação de não
reciprocidade em que lun agente está em condições de influenciar, con-
trolar, manipular e explorar o procedimento do outro... A não-recipro-
cidade do domínio nega o próprio valor da formação humana, porque
ignora até mesmo o interesse de ma. esforço de transformação recí-
proca", p. 87.
73. Esta "redução" do existencialismo ao plano da nação como
instrumento do nacionalismo no terceiro mundo foi realizada de forma

91
A análise e as proposições de Furter não implicara necessaria-
mente em colocar em questão o modo de produção capitalista,
apesar da citação de Marx na abertura da 2.' parte do livro. Ele
se mostra fimdamentalmente a favor da democratização e da pla-
nificação; mas se ele tem algo contra as estruturas de produção
e de poder vigentes nos países latino-americanos, ele não toma
isto explícito e sua análise não conduz necessariamente a uma
conclusão anticapitalista, por exemplo, na medida em que se man-
tém num plano nebuloso e ambíguo. Ele defende basicamente o
desenvolvimento nacional dos países do terceiro mundo e a utiliza-
ção da planificação; ora, pensar a planificação do desenvolvimento
cultural e da educação permanente implica na aprovação da polí-
tica global das forças que controlam o aparelho do Estado e, como
não é explícita a sua contestação do capitalismo (mas somente doá
aspectos dependentes de tal modo de produção), a sua reflexão
termina por poder ser assimilada por setores da burocracia esta-
tal com pretensões nacionalistas também países como o nosso,
servindo de apoio ao autoritarismo. Diz ele: "O desenvolvimento
cultural é lun conjimto de intervenções culturais, sucessivas e
contínuas que provocarão uma modificação — considerada positiva
e valorizada pelos responsáveis da vida nacional (grifo nosso) —
do universo simbólico que abrange tanto os interesses, as repre-
sentações quanto os valores das diversas populações da nação, a

sistemática e radical por Vieira Pinto em Consciência e Realidade Na-


cional, op. cit. Furter deixa claro que ele segue também por este
caminho ao afirmar: "Ocorre, no plano das nações, aquilo que é ver-
dadeiro no destino individual: a esperança, força motriz essencial a
qualquer desenvolvimento humano, nasce da tomada de consciência da
carência, da raridade, e da imperfeição conjugada à vontade de en-
frentá-las a fim de transformar a realidade, para que o desenvolvi-
mento de cada homem seja possível de maneira contínua e perma-
nente". FURTER, Pierre. Educação permanente... op. cit., p. 84. No
plano das nações seria a formação de uma consciência nacional, en-
quanto consciência de suas características próprias, de suas carências,
e a vontade de vencê-las reafirmando as peculiaridades nacionais que
permitiria superar o subdesenvolvimento, isto suporia um "projeto na-
cional" para cuja realização seria necessária a participação consciente
de toda a população — tal como imaginavam os teóricos isebianos. Diz
Furter que no plano do desenvolvimento político é "onde se elabora a
consciência nacional que exprime a unidade ou pelo menos a conver-
gência de um projeto de que devem participar todos os membros de
uma nação". Ibidem, p. 74. Num contexto que não coloca em questão
o modo de produção capitalista devemos concluir que a proposta do
autor é a do capitalismo autônomo, da modernização e do progresso
nacionais que unifica e reconcilia todas as classes num ünico "projeto"
que se coloca acima deles. Aüás, que o seu "projeto" é modemizador
torna-se mais claro quando ele define as diretrizes básicas da educação
permanente colocando entre elas a preparação do homem como criador
e inovador, "permitindo-lhe a auto-expressão no processo de moderni-
zação". Ibidem, p. 114.

92
fim de transformar em riqueza os recursos mentais e físicos dos
homens disponíveis. Será planificado em fimção de certos critérios
definidos segundo objetivos do desenvolvimento".''* O desenvol-
vimento cultural passa a poder ser manipulado de cima para baixo
em fimção de um objetivo maior que é o desenvolvimento nacio-
nal, sem que se coloque em questão o problema da exploração do
trabalho nem a estrutura de classes.
O possível apoio ao autoritarismo encontrado pelos burocratas no
livro de Furter vê-se minimizado pela sua defesa simultânea da
participação popular no desenvolvimento da democratização polí-
tica e cultural. A vida cultural deveria ser planificada mas os
mecanismos desta planiticação deveriam prever o diálogo do públi-
co com os organizadores da vida cultural, de maneira a combater
as resistências à mudança. A educação permanente est£iria intima-
mente Ugada à aceitação da mudança acarretada pelo desenvolvi-
mento como mn dado essencial da realidade: "A educação perma-
nente é a aprendizagem contínua de um estilo de vida adequado a
iuna sociedade que se considera, ela também, em permanente trans-
formação e em constante d e s e n v o l v i m e n t o " . A questão fimda-
mental é, portanto, a mudança — necessária para atingir o objetivo
de construção de uma sociedade industrial: para pensar em como
promovê-la jimto à população através de uma educação permanen-
te é preciso, efetivamente, apoiar-se amplamente sobre os conheci-
mentos acumulados pela antropologia cultural no que concerne à
análise da resistência à mudança. Tal temática, diga-se de passa-
gem, era muito popular entre pedagogos e assistentes sociais na
segunda metade da década dos 60 no Brasil, servindo de base para
o trabalho de desenvolvimento comunitário especialmente no nor-
deste.

Por outro lado, Furter penetra na discussão sobre o que seria a


ser difundida pelos programas de desenvolvimento cultural, como
o faz Touraine. Tal como este, Furter valoriza as modernas técni-

74. Ibidem, p. 96. A oscilação entre uma posição autoritária e uma


posição favorável à expressão e participação populares a nível político
e cultural, a ambigüidade a que tal oscilação conduz, era notória entre
algims teóricos do nacionalismo-desenvolvimentista, especialmente em
Vieira Pinto. Em Furter isto se manifesta em meio a um tipo de for-
mulação nacionalista (anti-colonialista) e desenvolvimentista; pergunta ele,
por exemplo: "como se poderá criar o consenso indispensável a um pro-
jeto nacional tomando ao mesmo tempo possível uma cultura popular?"
Ibidem, p. 103. Se tem razão Maria Sylvia de Carvalho Franco (O Tempo
das ilusões. CEDEC, São Paulo, 1976) sobre o visceral mas disfarçado
autoritarismo isebiano, (que falava em consenso para um projeto na-
cional), talvez devamos interpretar a pergunta de Furter como a ex-
pressão de um dilema básico na sua obra: como ser autoritário sem
impedir a expressão do "povo" no plano da cultura?
75. Ibidem, p. 100.

93
cas de comunicação como instrumentos do desenvolvimento cultu-
r a l : a radiodifusão, a televisão, a instrução programada, os com-
putadores etc. Mas, ao contrário de Touraine que pretende a difu-
são de uma cultura centralmente produzida (vendo todo o resto
como folclore), Furter vê a necessidade de se estabelecer "um
novo modo de comimicação entre a cultura mais elaborada da
sociedade nacional e internacional e a cultura tal como é viven-
ciada pelas diferentes populações",'" a "cultura popular", as expres-
sões populares da cultura nacional. Em tal reflexão reflete-se
certamente a experiência do autor como observador participante
dos movimentos de cultura popular brasileiros da primeira metade
dos anos 60: sem apresentar propriamente uma solução para o
problema de tal comunicação, ele indica a necessidade de se encon-
trar lun ponto de equilíbrio entre as posições extremas que se
debatereim naquele período. Por u m lado, colocavam-se aqueles
que (como os elementos do Centro Popular de Cultura da União
Nacional dos Estudantes) viam a educação popular como instru-
mento para a transmissão de uma teoria possuída por uma van-
guarda revolucionária; por outro, aqueles que pretendiam extrair
tal teoria do povo, o detentor da verdade cultural e política. Mas
tais grupos, j á no final de 1963, haviam caminhado para certa
convergência: os primeiros admitindo a necessidade de aproximar-
-se da cultura do povo para exprimir na sua linguagem a teoria
revolucionária; os segundos, ao admitir a necessidade de uma teo-
ria que permitisse a análise científica da realidade porque aquela
que se lograva extrair do povo vinha impregnada pela ideologia
burguesa. Se tais grupos caminharam em tal direção, esse ca-
minhar limitou-se a círculos restritos sem que seus participantes
escrevessem sobre o assimto ou propusessem explicitamente uma
pedagogia da aproximação inter-classes. Furter traz a questão para
os meios pedagógicos social e politicamente "legítimos", inserida
j á num contexto cujas referências básicas não se encontram na
transformação revolucionária da sociedade brasileira mas na mu-
dança sócio-cultural que facilita o desenvolvimento. Que espere-
mos pela produção estrangeira para que tais questões sejam colo-
cadas patenteia dois dos problemas com que se debate a pedagogia
nacional: a precariedade da formação recebida pelos profissionais
da educação e o explícito e implícito cerceamento da "legitimidade"
de temas (ou de modo de desenvolvê-los) pedagógicos que desde
h á quase 2 décadas fazem parte das preocupações de grupos "mar-
ginais" em relação aos quadros pedagógicos considerados profis-
sionalmente legítimos entre n ó s . B u s c a m o s mostrar até aqui —

76. Ibidem, p. 99.


77. A formulação dos problemas pedagógicos por Furter ocorre no
nível daquilo que pode ser considerado legitimo. Senão, como entender
uma afirmação como "pode parecer profundamente chocante o fato de

94
através da análise de textos — as implicações e debilidades da re-
flexão disponível entre nós sobre a educação permanente. No en-
tanto, lima idéia com j á tão extensa carreira não pode ter surgido
por acaso. Tentemos, pois, responder ao menos parcialmente a
por que educação permanente (tanto do ponto de vista sócio-
-econômico como ideológico) e indicar algumas direções de pes-
quisa sobre o assimto que possam ser mais fecimdas ou mais
realistas do que as anteriormente criticadas.

4. Uma nova ideologia educativa?

Antes de considerarmos as condições sócio-econômicas que deram


origem à reflexão sobre a educação permanente, bem como a ade-
quação da idéia à s condições latino-americanas, atenhamo-nos à
questão no que concerne à UNESCO, o órgão propagador do tema.

É possível distinguir pelo menos 5 significativas propostas pedagó-


gicas formuladas pelo organismo internacional desde a sua fxmda-
ção e que atingem o campo da educação dos adultos. A primeira
delas corresponde ao momento de euforia democrática no pós-
-guerra, em que se ressaltou a importância do processo eleitoral
na construção de sociedades políticas livres do totalitarismo: a
educação política dos adultos contribuiria nesse processo e tanto
mais quanto maior fosse a democratização do ensino. Nos países
subdesenvolvidos tal opção se traduziu na promoção de grandes
campanhas de alfabetização de adultos que deveriam permitir às
grandes massas analfabetas a aquisição dos direitos políticos. As
campanhas efetivamente realizadas em diversos países, no entanto,
deixaram saldos insatisfatórios: seus efeitos eram superficiais, re-
gredindo freqüentemente os atingidos ao analfabetismo, depois de
algum tempo; os padrões de dominação e manipulação política
vigentes no interior n ã o foram em geral abalados pela alfabetização
da população, ocorrendo mesmo — muitas vezes — certo aumento
de poder eleitoral das oligarquias locais em conseqüência do aumen-
to do número de eleitores nos seus "currais". A perda de entu-
siasmo pelas campanhas, cresceu, além disso, à medida em que
instalava a guerra fria, trazendo novo tom às relações internacio-
nais e agravando tensões internas nos diversos países, com conse-
qüente limitação da vigência das regras democráticas.

se considerar a escola um instnunento de domínio"? (Ibidem, p. 91).


Deixando-se de lado alguns inocentes sem qualquer formação, haveria
quem não a considerasse como tal? Certamente este livro de Furter
mereceria uma análise mais ampla; restringimo-nos aqui porém, aos
aspectos que nos pareceram mais importantes, já que não se trata de
lun artigo dedicado especialmente a este autor.

95
A resposta ao fracasso das campanhas foi a restrição do âmbito
dos programas através de imia nova estratégia: o desenvolvimento
de comimidades. Se a democratização das sociedades era não
apenas diversamente definida, de acordo com os interesses das
clases dominantes nos diversos países, e n ã o parecia estar neces-
sariamente ligada à ampliação maciça do eleitorado, se a alfabeti-
zação em si n ã o condtizia necessariamente à formação do cidadão
politicamente consciente e responsável, impimha-se u m tipo de
programação que implicasse num aprofundamento do "engajamento
educativo" e social da clientela dos programas. Utilizando o mo-
delo organizacional norte-americano, os programas de desenvolvi-
mento comunitário serviriam à "democratização fimdamental" da
sociedade na medida em que deveriam estimular a participação da
população ao nível da comunidade local. Peritos da UNESCO bus-
caram mesmo desenvolver uma metodologia de trabalho que fosse
adequada aos países subdesenvolvidos e centros úitemacionais fo-
ram criados para a preparação de pessoal que levasse adiante tais
programas nos diversos países. O fracasso destes, no entanto, evi-
denciou-se de forma pelo menos tão rápida quanto aquele das cam-
panhas: a mudança social imposta de fora em comunidades cujo
dinamismo interno era escasso mostrou ser mn objeto inatingí-
vel através de uma ação fimdamentalmente pedagógica. Iniciaram-
-se, então, as tentativas de inserir tais programas em projetos de
desenvolvimento econômico.

Na mesma linha de evolução vamos ver, j á nos anos 60, o surgi-


mento de uma terceira proposta: a alfabetização funcional, uma
forma de radical restrição do âmbito dos programas e de sua
subsunção a necessidades econômicas definidas a micro-nível, ou
seja, nas unidades produtivas. A alfabetização funcional parece
ser o resultado final de uma evolução que se caracteriza pelo des-
gaste da ilusão de que a democratização da sociedade resultará
fundamentalmente da democratização da educação. Mas ela espe-
lha, por outro lado, a grande influência da economia da educação
nas duas últimas décadas e a exigência de racionalização na apli-
cação dos recursos destinados aos programas educacionais. Pren-
de-se, portanto, de alguma maneira a uma outra proposta pedagó-
gica da UNESCO: o planejamento educacional. Teria, porém, a
alfabetização funcional obtido o êxito n ã o alcançado pelas estraté-
gias anteriores? Esta pergunta parece ser de difícil resposta por-
que as ambições de promoção da "mudança" e a extensão dos
programas restringlram-se de tal modo que os programas de alfa-
betização funcional, bem como seu êxito ou fracasso, tomaram-se
socialmente irrelevantes.

O planejamento educacional, produto da economia da educação,


passou — por seu lado — a ser recomendado a todos os países
desde os anos 50. Inicialmente ligado a uma perspectiva liberal

96
(o "social demand approach") ele se torna cada vez mais irnia ma-
neira de abordar de forma tecnocrática os problemas educacionais,
especialmente quando se pretende utilizar o "man power approach"
nos países capitalistas. A discussão sobre o relativo fracasso dos
planos educacionais e do fôlego de sobrevivência do "planejamento"
como proposta orientadora na formulação e reformulação dos
programas e dos sistemas educacionais excede os Umites deste
trabalho. Ele continua a ser, porém, uma das propostas mais
atuais do organismo internacional, ao lado da educação permanente.
Esta parece, por seu lado, ser o seu complemento. Enquanto o
planejamento educacional pretende obedecer a tuna estrita raciona-
lidade econômica e funciona como uma tecnologia social, não colo-
cando em questão os modelos sociais, políticos ou econômicos a
que servem e apresentando-se como uma tarefa de tecnocratas, a
educação permanente parece pretender também recuperar a tra-
dição das propostas pedagógicas voltadas para objetivos político-
-sociais. Ela responde a exigências colocadas pela economia e seus
teóricos estão penetrados pela. preocupação de planificá-la, torná-la
economicamente adequada; mas na sua apresentação e na sua
discussão se incorporam os ideais de democratização da cultura
que tanto marcaram a história do organismo internacional que a
promove. A educação permanente, aparece, assim, como uma ideo-
logia pedagógica que sintetiza exigências aparentemente contradi-
tórias: ela recupera certas preocupações democráticas ao mesmo
tempo que preserva aquelas típicas da tecnocracia.

Gostaríamos, no entanto, de buscar estabelecer um outro nível de


discussão do problema da educação permanente que não aquele
característico da literatura que abordamos e que é enfatizado nos
trabalhos difundidos pela UNESCO. Nosso objetivo é sair do nível
da ideologia pedagógica para colocar o problema de uma educação
permanente ou contínua ou meramente a questão da reciclagem a
partir da análise das estruturas econômico-sociais vigentes. Na
medida em que vivemos a realidade do capitalismo periférico deve-
mos nos perguntar: 1. a que exigências do capitalismo tardio atende
a educação permanente nos países centrais; 2. a que exigências
desse mesmo capitaUsmo pode atender a educação permanente na
periferia.

78. Aliás, as diferentes propostas não somente sobreviveram den-


tro da UNESCO, convivendo as velhas com as novas, como elas foram
freqüentemente combinadas por alguns autores. O já citado Malcolm
S. Adiseshiah, por exemplo, pretende combiná-la com o planejamento
educacional, com a alfabetização funcional e com o "enfoque de massa".
Veja-se na Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Rio de Janeiro,
MEC/INEP, n.o 113, vol. 51, jan.-mar. 1969, pp. 149-153.

97

Você também pode gostar