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Cap 4 Anexo 4
Cap 4 Anexo 4
1. INTRODUÇÃO
As tradições orais e escritas das religiões são um desafio à compreensão antropológica,
sociológica, linguística e histórica. A partir de dentro das tradições religiosas há também um
olhar significativa, uma hermenêutica que conta com a contribuição das ciências todas e sente-
-se livre para ir mais além.
A palavra, oral ou escrita, que brota em cada tradição religiosa, torna-se sagrada, é capta
como revelação e move as pessoas em direção ao mistério divino. O que foi, por muito tempo,
exclusividade de cada tradição religiosa, começa a ser acolhido num perspectiva inter-religiosa.
A palavra de cada religião pode se encontrar com a palavra das outras religiões, pois é palavra
dialogal, é sabedoria relacional. Muitas designações de Deus, muitas compreensões do mistério,
muitos campos de significação se abrem com o encontro das Religiões.
A palavra não pode ser exclusiva pois, com ela, a humanidade vai em busca do mesmo
mistério, do qual só podemos tocar a orla. Não podemos pegá-lo. Se abandonarmos a violên-
cia que nos habita, reconheceremos o Mistério Divino, tão plenamente humano. E as palavras
apontarão para a ternura, para o encontro, para a mútua fecundação, para a solidária defesa de
todas as vidas a começar pelas mais frágeis. A Palavra Divina promoverá a gratuidade, o face-a-
-face com o outro, a grande convivialidade com a natureza, a grande fraternura humana.
Percorrendo as expressões do divino nos povos, encontramos atributos de Deus que se
referem a grandezas majestosas, a sabedoria total, a juiz supremo, a rei todo-poderoso. Encon-
tramos também imagens de Deus na fragilidade, a graça sem medidas, como outras formas de
expressar parcialmente a realidade inexprimível que vai além de toda a formulação, de todo o
nome.
56 © Textos Sagrados
A nominação de Deus nas expressões originárias da fé não é simples, mas múltipla. Ou antes, ela não é
monocórdia, mas polifônica. As expressões originárias da fé são formas complexas de discurso, são tão
diversas quanto narrações, profecias, legislações, provérbios, preces, hinos, fórmulas litúrgicas, escritos
sapienciais. Essas formas de discurso nomeiam Deus todas juntas. Mas elas o nomeiam diversamente
(RICOEUR 1995, p. 190).
É no encontro entre as várias moradas de Deus que se pode fazer uma leitura dialogal
dos textos sagrados. A convicção de que o coração de Deus está aberto para a acolhida ampla
das palavras e vivências espirituais diferentes e de que o coração das pessoas profundamente
religiosas se tornam imagem e semelhança desta abertura divina, torna-se sempre mais uma
urgente convocatória.
Com a Palavra-Fogo nas mãos, no pensamento, no coração e nas mãos, abrem-se os espa-
ços para que o Mistério se faça presença no mundo em toda a sua pluralidade.
Embora o trabalho de compreensão entrecruzada dos textos orais ou escritos mereça um
trabalho mais cuidadoso, colocamos à disposição textos que transitam por alguns temas atuais
na intenção de suscitar interesse para aprofundamento.
Na tradição Judaico-Cristã
Na tradição judaica, a criação do mundo pela Palavra é momento decisivo para interpretar
a natureza na sua integridade.
No princípio, Deus criou o céu e a terra. A terra estava deserta e vazia, e as trevas cobriam o abismo, e
um vento impetuoso pairava sobre as águas. E Deus disse: ‘Haja luz’ e houve luz. Deus viu que a luz era
boa e Deus separou a luz e as trevas. Deus chamou à luz ‘dia’ e às trevas ‘noite’. Houve uma tarde e uma
manhã: primeiro dia (Gênesis, 1:1-5).
Todo o desequilíbrio, sinalizado nas figuras do deserto, das trevas e das inundações, é
vencida pela palavra que cria e harmoniza. A palavra, ao nomear, cria. Assim, todo universo
torna-se existente. No segundo capítulo o Gênesis traz a entrega da palavra ao ser humano que,
conduzido pelo paraíso, é convocado a tomar a palavra e nomear todas as criaturas vivas: "cada
qual devia levar o nome que o ser humano lhe desse" (Gênesis, 2:18)
Só o nome do Eterno mantém-se reservado. O tetragrama ( הוהYHWH), para referir-se
a Deus, aparece 4681 vezes nas Escrituras Judaicas. Não é o nome verdadeiro, porque não se
pode reduzir Deus a uma realidade sob controle do ser humano. (II Cr 6,18). O Deus dos ante-
passados: "YHWH, o Deus de vossos pais, o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacó
me enviou até vós; este é o meu ome para sempre, e esta será a minha lembrança de geração
em geração" (Ex 3,15). El Shadai, Eloim, são formas de atribuir a Deus uma perfeição: Deus todo
poderoso, eterno, Deus vivo.
A Sabedoria, palavra divina, encontra-se na natureza e no ser humano. Feito à imagem e
semelhança de Deus, sempre criatura frágil e inacabada, o ser humano realiza o mesmo movi-
mento do Criador, construindo uma associação entre a palavra divina que inaugura o universo e
a palavra humana que instaura no cotidiano o mundo de sentidos para a natureza.
No Livro dos Provérbios, a Sabedoria que está por trás das palavras, é também anterior à
Criação:
Deus me criou, primícias de sua obra, de seus feitos mais antigos; desde a eternidade fui estabelecida,
desde o princípio, antes da origem da terra.
Quando os abismos não existiam, eu fui gerada, quando não existiam os mananciais de água (Provér-
bios, 8: 22-23).
Na tradição da Cabala, corrente mística judaica que parte da Torah e do Talmud, a presen-
ça divina, Shekiná, é compreendia em sua morada na interioridade de toda a criação. Todas as
coisas são sagradas, pois, possuem ‘centelhas’ divinas. Todas as coisas são santas porque nelas
corre a ‘seiva’ divina.
Quando Deus criou o mundo, ele pôs as águas do oceano ao redor da terra. E, no coração do mundo
habitado, Deus pôs Jerusalém. E no coração de Jerusalém, a montanha santa de Sion. A montanha santa
abriga o Sanedrin (conselho supremo), no coração do qual está o Templo. E no coração do Templo está
o Santo dos Santos, onde repousa a Shekiná. E ela é o coração do mundo (apud BENSION, 2006, p.107).
A Sabedoria, a Palavra, a Presença Divina são o Coração da Terra e Coração do Céu. É por
isso que se indicará o profundo respeito pela criação e as prescrições do cuidado. O Shabat será
o coroamento da criação, pois ali se santifica toda obra. O próprio tempo é santificado, pois a
atividade criadora de Deus, dinamizada pela palavra, feita na completude e inteireza dos sete
dias, termina com o descanso de Deus, do ser humano e de toda a obra criada. O repouso tem
influxos eco-cuidadores, pois garante o restabelecimento das interelações como critério primor-
dial para a santificação do presente e para o futuro pleno do mundo em Deus.
Na tradição do Hinduismo
A religião hindu tem uma complexa compreensão do cosmos e de sua constituição. Os Ve-
das são os textos fundadores dessa tradição e são considerados os ‘livros do conhecimento’: O
Rig Veda é o mais antigo, datado por volta de 1.500 aC, depois o Atharva, o Sama e o Ayur. Eles
são entendidos como a palavra, como a essência de Brahman, que une as diferentes dimensões
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do universo. São o princípio criador e fonte de todo o cosmos, também denominados shabda-
-brahman, "palavra-brahman". A palavra é tomada no seu poder criador. "[...] todos os seres
foram criados" (AITAREYA BRAHMANA II.33).
Eu sou o Pai deste Universo, a mãe, o sustentáculo e o avô. [...]. Eu sou a meta, o sustentador, a teste-
munha, a morada, o refúgio e o amigo mais querido. Sou a criação e a aniquilação, a base de tudo, o
lugar onde se descansa e a semente eterna. [...]. Eu forneço calor e retenho e enviou a chuva. Eu sou
a imortalidade sou também a morte personificada. Tanto o espírito quanto a matéria estão em Mim
(Bhagavad-Gita 9,17-19).
Na tradição do Islã
Na tradição do Islã, encontramos a Palavra divina que opera imediatamente: "Deus cria o
que quer. Quando decreta alguma coisa, diz apenas seja, e ela é" (Alcorão: Sura 3,47). Ao mes-
mo tempo em que a diversidade se apresenta, o Criador produz a unidade. Deus é Sabedoria
(hikma) e unidade (tawhid). Ao mesmo tempo em que é reconhecido na sua absoluta transcen-
dência, é também captado na sua mais radical aproximação. Com sabedoria, Allah estabeleceu
a ordem cósmica e terrenal, e o lugar de cada criatura.
Foi Allah quem criou sete firmamentos e outro tanto de terras; e seus desígnios se cumprem, entre eles,
para que saibais que Deus é onipotente, Aquele que tudo abrange com sua onisciência (SURA 65,12).
E entre os seus sinais está o fato de os céus e a terra se manterem sob seu divino comando, e quando
vos chamar, uma só vez, eis que saireis ressuscitados da terra. E seus são todos os que estão nos céus e
na terra; tudo lhe obedece. Ele é quem origina a criação [...] (SURA 30, 24).
Ele conhece tanto o que penetra na terra, como o que dela sai; o que desce do céu e o que a ele ascen-
de, porque é infinitamente Misericordioso e Indulgente (SURA 34,2).
Allah cria e sustenta a criação, cuidando constantemente com sua presença: "Acima de
vós criamos sete céus e estratos, e não descuramos de nossa criação (Sura 23,17)". "A Allah
pertence o reino dos céus e da terra e a Ele será o retorno" (SURA 24,42). "Allah cria o que lhe
apraz, porque Ele é onipotente". (Sura 24,45).
Foi Allah quem criou sete firmamentos e outro tanto de terras: E seus desígnios se cumprem, nos céus
e na terra. Para que saibas que Deus é onipotente: Ele tudo abrange com sua onisciência (ALCORÃO:
SURA 65,12).
Tudo é obra de Deus que cria com soberania e a partir do nada. Esta é a experiência semita
da qual faz parte tanto o judaísmo como o islamismo. Nada escapa aos desígnios de Deus que
tudo ouve e que tudo vê.
Na tradição Africana
Na tradição Nagô, com Origem na Nigéria e Daomé, presente no Brasil, Olodumaré é a
dimensão criadora de Olorum que, dando a palavra a um dos orixás, lhe entrega os elementos
necessários à criação. O saco da criação simboliza a plenitude das bênçãos, o axé. Depois de per-
calços por descuido com as oferendas necessárias a Olorum, Oxalá-Obatalá acorda de um sono
e vê o mundo já criado. Volta a Olorum-Olodumaré e pede desculpas pelo ocorrido.
Olodumaré deu outra dádiva a Obatalá: a criação de todos os seres vivos que habitariam a Terra. E assim
Obatalá criou todos os seres vivos e criou o homem e criou a mulher. Obatalá modelou em barro os
seres humanos e o sopro de Olodumaré os animou. O mundo agora se completara. E todos louvavam
Obatalá (PRANDI, 2001, p.505).
Olodumaré irradia a energia criadora, o axé, que sustenta a existência em plenitude de vi-
brações. O axé irradiado traz também o obá, isto é, a direção da energia vital. Este sentido, esta
direção, este propósito direciona a força vital. Toda a existência se sustenta pelo axé e tudo se
move conforme o obá. Assim se garante que toda a criação, o cosmos inteiro, seja penetrado de
força divina e direcionado para o infinito da plenitude e da harmonia. Assim assinala Elbein Santos:
Vivemos num Universo vivo, onde a vida pulsa incessantemente. Este Universo foi criado por Oluduma-
ré, o Espírito único que rege a criação. A vida latente nas rochas, a vida que flui nas plantas, a vida que
pulsa no ser humano e nos outros seres vivos, ou seja, toda forma de vida, provém de uma única fonte
[...]. Se a base que sustenta todas as existências reais não fosse uma só, nós, seres vivos, teríamos de
viver num mundo caótico, onde agiriam separadamente e a esmo diversas forças contraditórias. E se os
seres vivos tivessem surgido de origens completamente diferentes, senão de Oludumaré [...] teriam de
viver em eterna desarmonia, pois não haveria como transformá-la, modificando o caos em harmonia.
A força vital que constitui a base do Universo e de toda a natureza é uma só (apud CINTRA, 1985, p.32).
A sabedoria que tudo sustenta não é uma idéia. A palavra que tudo cria e harmoniza não
é de um arrazoado argumentativo. O axé é dinamismo criador vital divino que ativa, sustenta e
direciona as forças de toda a natureza, de todo o cosmos.
A essência de nossa religião é o axé – a magia que acontece -, transmitido em práticas secretas por quem o
receberá. Quem não recebeu o axé não pode passá-lo, por mais conhecimento prático e teórico que pos-
sua. No candomblé não se queimam etapas. Tudo deve acontecer no tempo certo (SANTOS, 1993, p. 104)
Na tradição Cristã
Na tradição cristã, o Verbo de Deus reside na intimidade de todas as coisas, como palavra
que cria e sustenta o universo.
No princípio era o Verbo e o Verbo estava em Deus e o Verbo era Deus.
No princípio, ele estava com Deus.
Tudo foi feito por meio dele e sem ele nada foi feito (Jo 1,1-3).
O Verbo de Deus é a Palavra eficaz. Proferida sobre o mundo ela a Palavra criadora se
realiza com a força do Sopro divino (Ruah). No Cristianismo, o Verbo de Deus dialoga com a
Sabedoria de Deus. A Ruah divina "enche o universo e mantém coesas todas as coisas; nenhum
murmúrio lhe escapa" (Sb 1,7). O Verbo se apresenta como aquele em que "foram criadas todas
as coisas, nos céus e na terra, as visíveis e as invisíveis"( Cl 1,16), e como aquele que "é antes de
tudo e tudo nele subsiste" (Cl 1,17).
E o Verbo de Deus revela o Pai santo e amoroso. "Quem me vê, vê o Pai" (Jo 14,9). Para
Jesus, em sintonia com a tradição judaica, o nome de Deus é Santo em sua natureza (Is 6,3; Sl
99,3-8; Lv 19,2; Pr. 9,10, Jó 6,10), "o único que possui a imortalidade, que habita uma luz inaces-
sível" (1Tim 6,16; também Ex.15,11; 1Sm 2,2), livre de toda a manipulação interessada, inefável,
o totalmente Outro cujo nome não se deve pronunciar sem uma imensa reverência. Ao mesmo
tempo o Abba, paizinho, é o nome com que Jesus trata Deus na mais terna proximidade.
Deus, ontologicamente distante (santo), torna-se eticamente próximo (santo), socorrendo o
fraco, identificando-se com os pequenos, libertando os cativos, promovendo o tempo da graça para
os pobres. O Abba de Jesus chama o ser humano para romper também a distância e tornar-se santo:
"sede perfeitos como vosso Pai celeste é perfeito" (Mt 5,48) e "sede misericordiosos como vosso Pai é
misericordioso" (Lc 6,36). Ao levantar os caídos, o ser humano se eleva em direção à santidade divina.
Assim a Palavra de Deus se faz ação e o nome de Deus é manifestado (Jo 17,6). É assim que, ao pedido
dos discípulos, Jesus convida a orar: "Pai, santificado seja o teu Nome; venha o teu Reino" (Lc 11,2).
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A Palavra desperta o amor solidário e criativo que vai sempre inaugurando a criação em
direção a Deus. Como diz Teilhard de Chardin:
Aquele que amar apaixonadamente Jesus escondido nas forças que fazem a Terra crescer, a Terra, ma-
ternalmente, o levantar e o fará contemplar a face de Deus. (Apud OLIVEIRA, 2009, p.211).
Aqui podemos contemplar também o final do Cântico de São Francisco. Em meio a sofri-
mentos e nas vésperas de se despedir desta primeira experiência vital, Francisco acrescenta a
seu ‘Cântico das Criaturas’ o louvor à irmã morte. Se toda a natureza foi cantada por sua comu-
nhão com Deus, a existência mortal também é acolhida como benfazeja. Francisco dá as boas
vindas à irmã morte: "Louvado sejas meu Senhor, pela nossa irmã a morte corporal, da qual
homem algum pode escapar." (apud CNBB, 2011, p.95)
Na tradição do Taoismo
No Taoismo, a sacralidade não está na separação, mas na integridade, na unidade que
tudo congrega. O Taoismo é uma tradição religiosa das mais abertas à integridade da natureza,
à experiência sagrada na unidade do cosmos, à sintonia com o equilíbrio fundante da realidade.
Não se pode conhecer o Tao somente falando Dele.
Não se pode denominar com um nome humano esta
Origem do céu e da terra Ele que é a Mãe de tudo.
Só aquele que é livre das paixões "terrenas", pode vê-Lo.
Mas aquele que tem estas paixões, pode ver só Sua Criação.
Por outra parte, ainda que chamados por diferentes nomes,
Tao e Sua Criação em essência são Um. Ambos são sagrados. (...)
Tao tem aparência como à vacuidade. Mas é imponente!
Está na Profundidade. É a Origem de tudo.
Controla tudo. Satura tudo.
É a Luz Brilhante. É o Sutilíssimo!
É a essência de tudo!
Não se pode descrever Sua origem, pois Ele Mesmo é
Primordial (Tao 1 e 4).
Disponível em <http://swami-center.org/pt/text/tao-te-ching.html>.
Acesso em 09 maio 2011.
As buscas superficiais, que produzem ansiedade, são frutos da ruptura do equilíbrio ori-
ginal, são provocadas pela desarmonia instituída como bem estar, pela arrogância dominadora,
pela guerra contra a natureza, pelo afã de explorar tudo, pelo retardamento a todo custo da
morte. O Tao é a sintonia profunda, é a não dominação que deixa cada ser viver o curso de sua
realização plena. A contemplação dessa essência inominável possibilita ao ser humano encon-
trar um fundamento que o ultrapassa e o mergulha na vida plena.
Leonardo Boff aponta a simplicidade e grandeza desta perspectiva da sabedoria oriental que
permeia todas as realidades, inclusive as de mais difícil compreensão, como é o caso da morte:
O Feng Shui, a Filosofia ecológica chinesa, apresenta um grandioso sentido da morte como união ao Tao
que se manifesta nas energias da natureza. Durante a vida, podemos sintonizar-nos de tal forma com
o Tao e com os ritmos da natureza que, na verdade, escapamos da morte; mudamos de estado para
voltar a viver o mistério profundo da natureza, de onde todos os seres vêm e para onde todos voltam.
Conservar a natureza é condição de nossa imortalidade e condição também para que possam nascer
novos seres humanos e fazer seu percurso no tempo (BOFF, 2003, p.57).
O Tao está num horizonte inabarcável, fonte de todos os significados, dentro e para além
de tudo que se possa observar, sentir, ouvir, desejar.
O que é olhado, mas não pode ser visto,
Isto chama-se o Invisível.
O que é escutado, mas não pode ser ouvido,
Isto chama-se o Inaudível.
O que se pega, mas não pode ser tocado,
Isto chama-se o Intangível.
Estes três escapam a todas as nossas indagações,
Confluem e tornam-se Uno.
Não é por sua ascensão que dá a luz,
Não é por seu pôr que dá escuridão.
Incessante, constante, não pode ser determinado
E volta para o reino do Nada.
Eis porque se chama a forma do amorfo,
A imagem do Nada.
Eis porque se chama o que escorrega;
Encontra-o e não verás o seu rosto,
Segue-lhe e não verás suas costas.
Quem se prende ao Tao do passado,
Para fazer as coisas de hoje,
Será capaz de reconhecer aquele primeiro Começo
Que é a continuidade do Tao. Disponível em <http://www.sintoniasaintgermain.com.br/tao3.html>.
Acesso: 26 maio 2011.
3. REENCANTAMENTO DA CRIAÇÃO
As tradições religiosas lidaram sempre com experiências originárias, guardadas na me-
mória, no corpo e na cultura, das múltiplas expressões do cosmos: o voo do beijaflor e o raio
do sol, a imensidão do mar e a simplicidade da gota d’água, a magnitude da montanha e o
pequeno igarapé, o fugidio do fogo e a permanência da rocha. E os povos se encantaram com
o arco-íris, com a lua, com as chuvas, a neve, o granizo e os ventos, com os pássaros e gafa-
nhotos, com os peixes pequenos e grandes, com a água, as florestas e as areias do deserto (Cf.
Eclo. 43). Em tudo, há vivências simbólicas inoculadas nos povos. Um novo modo de habitar
o mundo com olhar poético, estético, com escuta atenta, com o pacto de aliança com o Todo,
será, como diz Faustino Teixeira, "uma nova forma de instalação no mundo, marcada pela ‘de-
licadeza espiritual’, pela simpatia, cortesia e retomada do senso da maravilha" (In OLIVEIRA,
2009, p.212).
O maravilhamento e o reencantamento do mundo brotam de experiências do cotidiano,
mas ganham nas religiões densidade simbólica, conforme afirma Maçaneiro:
Infinitude, devir, renovação, potência, encanto e transcendência serão impressos na psique profunda,
desenhando arquétipos universais. Os objetos e lugares em que tais experiências foram vividas são de-
marcados como "espaço sagrado" (locus sacer). Fontes, rochedos, montanhas, arco-íris, constelações e
subterrâneos se transformam em acesso para o Divino, trazendo a eternidade para dentro do tempo e
o infinito para dentro do finito. São janelas de transcendência que se abrem, nos céus e na terra. Esses
lugares irradiam poder e inspiram reverência, porque são "casa da divindade e portal celeste" (Gn28,17)
(MAÇANEIRO, 2011, p.128).
No âmbito das tradições religiosas, a natureza não é vista apenas na sua utilidade mer-
cantil que hoje ganha ares de supremacia. É na criação que se reconhece a manifestação do
Sagrado. Isso acontece, por exemplo, na tradição de muitos povos indígenas: o encontro com
Deus inclui necessariamente a relação com toda a criação, como captou Dom Pedro Casaldáliga
na Missa da Terra sem Males:
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Eu adorava Deus,
Maíra em toda coisa [...]
A vida era meu culto,
a dança era meu culto,
a terra era meu culto,
a morte era meu culto,
eu era um culto vivo!
Eu tinha uma cultura de milênios
antiga como o sol,
como os montes e rios
da grande Llakta Mama.
Eu plantava os filhos e as palavras.
Eu plantava o milho e a mandioca.
Eu cantava com a língua das flautas.
Eu dançava, vestido de luar,
enfeitado de pássaros e palmas.
Eu era a cultura em harmonia
com a Mãe Natureza.
Eu era a Paz comigo e com a Terra.
Eu conhecia o ouro, o diamante, a prata,
a nobre madeira das matas,
mas eram para mim os enfeites sagrados
do corpo da Terra Mãe.
Eu respeitava a Natureza
como se respeita a própria esposa
(CASALDALIGA, 2000, p.19-21).
A visão religiosa não despreza a natureza para, assim, se aproximar do Absoluto. Ao con-
trário, é em plena presença da natureza que se contempla a dimensão espiritual.
O encantamento com a criação e um re-encantamento da percepção e ação da humanida-
de estão esboçados nos textos da sabedoria dos povos. É o que afirma Faustino Teixeira:
Nada mais urgente no tempo atual que a afirmação de uma nova aliança em favor do resgate da Terra
e da salvaguarda da criação. (
) Este cuidado planetário essencial tem viva fundamentação na mística
inter-religiosa. O respeito à natureza é um desdobramento evidente de toda perspectiva mística, pois
ela mesma, em sua beleza, reflete os rastros de Deus, ou do Mistério maior, sem nome. Os místicos
falam do mistério inacessível de Deus, da impossibilidade de sua compreensão no tempo. Apontam,
porém a possibilidade de captar sua fragrância nesse espaço da contingencia. Toda mística autêntica
busca revelar um novo olhar sobre o mundo, ou melhor ainda, captar o outro mundo que habita esse
mundo. Abre-se com ela a possibilidade de ver o mundo transfigurado, de ver "a chama das coisas", e
resgatar o "corpo energético da terra". Daí a importância fundamental de reafirmar o sentido místico
da consciência planetária (OLIVEIRA, 2009, p.221).
A experiência mística, que colhe e medita os textos e a vida com generosidade espiritual,
tem sido capaz de superar a tendência a confrontos superficiais entre as religiões e conclamar
todos e todas para a espiritualidade do encontro com o outro, com o cosmos e com Deus, sem
fronteiras.
Na tradição judaica
Os salmos são um documento bastante extenso da expressão de encanto diante das ma-
ravilhas da criação. Grande parte dessa poesia religiosa traz o cosmos todo em sintonia com a
história humana na presença de Deus. A atitude de admiração está bem expressa no salmo 8:
Iahweh, Senhor nosso,
quão poderoso é teu nome em toda a terra!
Ele divulga tua majestade sobre o céu.
Pela boca das crianças e bebês. [...]
Quando vejo o céu, obra dos teus dedos,
a lua e as estrelas que fixaste, [...]
ovelhas e bois, todos eles, e as feras do campo também;
a ave do céu e os peixes do oceano
que percorrem as sendas dos mares.
Iahweh, Senhor nosso,
quão poderoso é teu nome em toda a terra (Sl 8).
Junto com a admiração, a oração judaica dos salmos traz o louvor, como nos hinos do final
do saltério:
Louvai a Iahweh no céu,
Louvai-o nas alturas [...]
Louvai-o, sol e lua,
Louvai-o, astros todos de luz,
Louvai-o, céus dos céus
e águas acima dos céus!
Louvem o nome de Iahweh
pois ele mandou e foram criados;
fixou-os eternamente, para sempre,
deu-lhes uma lei que jamais passará.
Louvai a Iahweh na terra,
monstros marinhos e abismos todos
raio e granizo, neve e bruma,
e furacão cumpridor de sua palavra;
montes e todas as colinas,
árvore frutífera e todos os cedros,
fera selvagem e o gado todo,
réptil e pássaro que voa [...] (Sl 148).
Na tradição Cristã
Há um encantamento diante da beleza criativa de Deus, que tudo sustenta (Cf. Cl 1,17),
tudo realiza: "Tudo foi feito por meio dele e sem ele nada foi feito" (Jo 1,3), e tudo transforma,
fazendo novas todas as coisas, criando novos céus e nova terra (Cf. Ap 21,3-5).
Nos ensinamentos de Jesus, o ambiente metafórico é todo permeado da natureza. As
parábolas refletem uma intimidade com a natureza habitada pelo encontro encantando do ser
humano com a criação:
Olhai as aves do céu: não semeiam, nem colhem, nem ajuntam em celeiros.
E, no entanto, vosso Pai celeste as alimenta. [...]
Aprendei dos lírios do campo, como crescem, e não trabalham nem fiam.
E, no entanto, eu vos asseguro que nem Salomão, em todo o seu esplendor,
se vestiu como um deles.
Ora, se Deus veste assim a erva do campo,
que existe hoje e amanhã será lançada ao forno,
não fará ele muito mais por vós, homens fracos na fé? [...] (Mt 6, 25-34).
A Carta aos Romanos traz o anseio de toda a criação pela retomada do valor divino que
lhe foi subtraído pelas relações de voracidade e dominação que desvirtuam a obra de Deus.
Esta visão ganha tons escatológicos e apocalípticos anunciando "novos céus e nova terra, onde
habitará a justiça" (2Pd 3,10-13).
Existe aqui uma sintonia radical e uma responsabilidade encantada com a natureza que se
unem a um anseio de reconciliação universal, a uma sacramentalidade fundamental.
Na tradição do Islã
O texto sagrado da comunidade islâmica traz a poesia de quem olha com encantamento
para a beleza e diversidade da criação.
Um sinal para eles é a terra árida que vivificamos
e da qual fazermos surgir os grãos que nos alimentam.
Nela produzimos jardins de tamareiras e videiras;
E dela fazemos brotar fontes, para que possais comer dos seus frutos;
E do quanto vossas mãos produzem. Acaso reconhecem?
Glória Àquele que criou os pares tudo o que a terra produz. (Sura, 36,33-36)
Há sempre algo a mais que está presente no cotidiano e para além dele. O encantamento
diante do mistério que se esconde em cada manifestação da natureza suscita a reverência reli-
giosa.
O que poderia ser lido apenas na chave da atenção à natureza, na verdade capta a integri-
dade da criação. Assim, podemos e devemos nos debruçar sobre os referenciais religiosos que,
com o mesmo encantamento, inspiram as relações sociais, política, econômicas e culturais dos
povos.
4. A DÁDIVA E A GRAÇA
A racionalidade ocidental recusou a gratuidade do compartilhamento de dons que per-
meiam todos os seres do universo. Desde os primeiros filósofos da modernidade até a acolhida
eufórica e paradigmática da metáfora da seleção competitiva das espécies, a ruptura entre o ser
humano e a natureza possibilitou autorização para explorar ilimitada e predatoriamente tudo o
que seu braço tecnológico alcançasse. A realidade se reduziu ao processo de reificação da natu-
reza: existe o que pode virar utilidade.
Começamos a perceber que destruímos a nós mesmos com essa intemperança. Começamos a entender
que o mundo é nossa morada, na qual nascemos e estamos vivendo, e que merece proteção. Melhor:
essa natureza merece respeito e escuta, ´escuta poética`, pois ela tem valor em si mesma. E uma ´nova
aliança` entre ela e nós deve ser estabelecida (Prigonine e Stengers), além daquela em que ´o homem é
senhor e possuidor do mundo (Descartes) (GESCHÉ. 2004, p. 5).
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Reconhecer os bens naturais como dádivas do Criador, retoma e promove uma relação de
sacralidade com a natureza, e isto está no patrimônio das religiões. Isto está nos ritos, nos mitos
e nos escritos de muitos povos que se voltam para os benefícios da natureza como dons de Deus.
Uma leitura inter-religiosa dos textos sagrados oferece a possibilidade de superar as acusa-
ção de politeísmo ou panteísmo, e de acolher a diversidade das manifestações religiosas como
gestos sagrados da grande liturgia multicultural ao Deus da Vida. O ser humano que, em vários
povos, dirige sua oração em direção ao sol, à lua, ou à estrela da manhã, não faz uma idolatria
aos astros, mas uma humilde reverência de filhos e filhas de Deus em busca da plenitude da
vida, em vista das bênçãos para a terra, dos bons caminhos para o povo.
Na tradição Maia-Quichê
Assim nos conta Rigoberta Menchu, do povo Quichê-Maia da Guatemala, prêmio Nobel da Paz:
Antes de plantar a semente, se escolhe, se faz uma cerimônia, onde a semente estará num só lugar no meio
das velas, da terra, da água, do sol, dos bichos e do universo, ou seja, do ser humano. Em nossa cultura indí-
gena, considera-se que o universo é o ser humano. Em primeiro lugar, respeita-se a semente porque tem que
ser enterrada em alguma coisa sagrada, que é a terra, e tem que multiplicar-se para dar de comer outras vez
no ano seguinte. É sobretudo um costume que a semente é alguma coisa pura, alguma coisa sagrada. (...) A
terra é a mãe do ser humano, porque é quem dá de comer ao ser humano. (...) Então se considera que a terra
é a mãe do ser humano. E de fato nossos pais nos ensinam a respeitar a terra. (...) Fala-se de nomes da terra,
o Deus da terra. Fala-se do Deus da água. E, depois, o coração do céu, que é o sol. Dizem os avós que se peça
ao sol que ilumine a todos os seus filhos que são as árvores, os bichos, a água, o ser humano. E depois, que
ilumine seus inimigos. (...) Temos que respeitar a vida, a pureza, o sagrado que é a água. Temos que respeitar
o único Deus, o coração do céu. (BURGOS, 1993, p. 97, 102, 103, 105).
Na tradição Guarani
Os Guarani prezam viver dignamente para poder praticar a reciprocidade e não para acumu-
lar. A vida em abundância não é pensada na base da poupança e ganância pessoal, mas como re-
sultado da partilha mútua. A palavra Tekoha, que pode ser traduzida como aldeia, é muito mais do
que um espaço com as casas de moradia; é o modo autêntico de estar num lugar propício vivendo
o tempo da dedicação pelo bem dos outros. Assim podem se revelar as Palavras-Alma que Ñande-
ru (nosso Pai Primeiro-Último) enviou para a vida da comunidade humana e da natureza. O Tekoha
para se viver o Teko katu (ser autenticamente guarani) estão sob ameaça há muitos séculos.
Para muitos povos indígenas é a festa que garante o equilíbrio comunitário com a redis-
tribuição dos bens. Estes modos de ser, correm riscos diante de uma sociedade marcada pelo
acelerado ritmo do trabalho, pelas exigências do dinheiro, pela supremacia da propriedade em
ordem ao lucro. A terra como dom, a vida como dom, o projeto comunitário, produzem um
modo de fazer teologia que começa a se explicitar, não sem conflitos.
Na tradição Quéchua
A comunidade Quéchua, presente especialmente no Peru, vive intensamente a experiên-
cia de Deus no encontro com a Mãe-Terra, que é expressão mais próxima e generosa da Pacha-
mama porque alimenta de vida e de sentido a existência humana. Este é um traço de muitos
outros povos do continente latinoamericano.
O Deus vivo, para o indígena, é aquele revelado aos seus antepassados, que lhes oferece
tudo na natureza. È a Pachamama que dá a vida, o milho, a bebida, os pássaros, as águas, a sa-
bedoria, a harmonia, os sonhos.
O cronista Juan Santa Cruz Pachocuti Yamki recolheu em 1613 esta oração, anterior à cris-
tianização, que revela o modo de ser quéchua, sua autocompreensão, sua visão da natureza e
sua profunda adoração ao Verdadeiro de cima e de baixo:
Vem então, Verdadeiro de cima, Verdadeiro de baixo,
Senhor do universo e modelador.
Poder de todo o existente; único criador do ser humano;
dez vezes hei de adorar-te com meus olhos marejados.
Que resplendor!, dizendo me prostrarei diante de ti;olha-me Senhor, adverte-me.
E vocês, rios e cataratas, e vocês pássaros,
dêem-me suas forças, tudo o que possam dar-me;
ajudem-me a gritar com suas gargantas também com seus desejos,
e recordando tudo, regozigemo-nos, tenhamos alegria;
e assim, deste modo, plenificados, saindo, caminharemos [...]
(IRARRAZAVAL, 2000,p.288).
No Hinduísmo
No Cosmos está a busca daquela realidade que excede tudo, que não pode ser tomada de
assalto porque escapa às pretensões humanas de já ter alcançado o infinito.
Aquele que dá o sopro e o vigor, a cujas instruções todos se conformam, inclusive os deuses; aquele de
quem morte e não morte são apenas uma sombra: qual é esse deus para que o sirvamos com nossa
oblação?
Aquele que firmou o céu robusto e a terra, que fixou o sol e a abóbada celeste, que mede o espaço na
atmosfera: qual é esse deus para que o sirvamos com nossa oblação?
Aquele que por seu poder abrangeu com o olhar as águas, portadoras de energia, geradoras do sa-
crifício; aquele que foi deus único entre os deuses: qual é esse deus para que o sirvamos com nossa
oblação? (RIGVEDA X,121).
Aquilo que tudo supera recebe a oblação e também se lhe agradece tudo o quanto gratui-
tamente também ele oferece: "Aquele que é conhecimento e consciência e vontade, luz imortal
nas criaturas, sem o qual nenhum trabalho se realiza, o Pensamento: seja-me propício o que ele
concebe!" (Yajurveda).
Na tradição do Islã
A generosidade de Deus surpreende a todos pela abundância e pela grandiosidade do
cenário cósmico onde se desenvolve a vida humana.
Acaso não dispusemos a Terra como um leito e as montanhas, como estacas de uma tenda?
E vos criamos todos em casais. E fizemos do vosso sono um repouso.
Criamos a noite como um manto; e o dia, como tempo propício para a vida.
E estabelecemos, por cima de vós, os sete firmamentos;
e neles pusemos uma luz resplandecente.
Enviamos das nuvens a chuva copiosa, para produzir, por meio dela, os cereais, as plantas e frondosos
jardins (ALCORÃO: SURA 78,1-16).
Na tradição Judaico-cristã
No princípio era o Amor, o ágape compartilhante. E depois o desafio de amar, superando
toda a condenação e toda a violência. Eis a fraqueza mais fecunda que a humanidade conhece,
dispensada e desprezada pelos critérios da eficiência momentânea e infecunda das armas, dos
interesses exploratórios e da arrogância dominadora. O frágil poder do amor desencadeia a
possível ruptura do poder das relações mercantis.
Em lugar de atribuir a fecundidade da terra à arrogância conquistadora dos poderes hu-
manos, a tradição bíblica traz o reconhecimento dos dons de Deus: A terra produziu o seu fruto:
Deus, o nosso Deus, nos abençoa! Que Deus nos abençoe e todos os confins da terra o temerão! (Salmo
67,7-8).
A memória celebrativa recua diante do dia-a-dia marcado pelo interesse e até mesmo pela
necessidade, para dar lugar à sacralidade da natureza e do alimento.
Bendito sejas tu, Senhor nosso Deus, rei do universo,
Criador do fruto da vinha.
Bendito sejas tu, Senhor nosso Deus, rei do universo,
Criador dos frutos da terra (Hagadá de Pêssah).
Natureza, alimento e trabalho humano são acolhidos numa oferta gratuita entre a huma-
nidade radicada na terra e a gratuidade de Deus presente no cosmos:
Bendito sejais, Senhor, Deus do Universo, pelo pão que recebemos da Vossa bondade,fruto da terra e
do trabalho humano (…) Bendito sejais, Senhor, Deus do universo, pelo vinho que recebemos da Vossa
bondade, fruto da videira e do trabalho humano [...] (LITURGIA EUCARÍSTICA CRISTÃ).
Há que criar novos tempos e novas relações, para que no princípio, no meio e no fim esteja
a Gratuidade a como dinâmica das relações, e seja a Dádiva o dinamismo das sociedades em
liberdade solidária.
Deus nos criou por amor, como ato livre de Sua vontade. Toda Criação é sinal do amor que Ele tem por
nós. Essa gratuidade divina deve se refletir no agir humano [...]. Vivemos a vida como uma dádiva, que
devemos estender a todos de forma incondicional (CONIC, 2010: 19).
O Filho de Deus que se torna humano é visto, na teologia de João, como fundamento de
tudo o que existe, expressão radical do amor do Pai, pois por ele "tudo foi feito" (Jo 1,2). Desde
a criação (Gênesis) até a nova criação (Apocalipse) a centralidade é da vida em todas as dimen-
sões, plenificada em Deus que assume a carne da vida: "Eu vim para que todos tenham vida, e a
tenham em abundância" (Jo 10,10). Desde a criação estava a gratuidade como expressão plena
do amor de Deus que escolheu a humanidade na sua fragilidade para a destinação de serem fi-
lhas e filhos do Abba de Jesus (Cf.Ef 1,4-5). A filiação é um dom, uma graça estendida a todos os
humanos desde os primórdios. No sopro vital do Espírito e na irmandade e sororidade do Filho
plenifica-se a vida, sempre com uma tonalidade de infância, com uma inocência criativa, com
um desabrochar inaugural, com nova luz para tudo penetrar.
Pode-se dizer que surge um olhar para os textos sagrados sob a sombra luminosa da fragili-
dade. A luz é pequena, como insignificante é Belém, mas ilumina os povos, desde os trabalhadores
de vizinhas pastagens até os visitantes de estrangeiras paragens: todos os povos acudirão a esta
luz (cf. Mt 2,3). "O povo que andava nas trevas viu uma grande luz" (Is 9,1). A vida em toda sua
plenitude e santidade é "luz dos humanos" (Jo 1,4), luz que afasta as trevas originais (Gn 1,1-2).
Há sempre um mistério, há sempre uma surpresa. O mistério mora na infinita reserva de
possibilidades que está em cada ser humano, que está em cada povo, em cada cultura, em cada
momento novo da história.
Trata-se do dogma de um Deus oculto, envolvido de luz como um manto (Sl 104, 1-2), descrito pelo
movimento cotidiano da humanidade e da criação; que caminha nas asas do vento (S. 104,3); que se
manifesta na chama ardente do agricultor que cuida do seu campo e do pastor que guia o seu rebanho
(Ez 3,1-3). Um Deus que se veste com as cores dos aguayos bolivianos que envolvem os filhos desta ter-
ra crucificada às costas das mães que caminham no ritmo da libertação (...) Recolhemos tal silêncio de
palavras, essa lenta geração de gestos, juntamente com o segredo que transparece no rosto de grandes
e pequenos. (POTENTE, 1996, p.39)
Estes segredos guardados como reserva infinita da revelação de Deus apontam mundos no-
vos. A luz benfazeja incomoda os que confiam em seus próprios brilhos e andam nas trevas es-
palhando-as. Estes assustam-se com a pequena e nova estrela, amedrontam-se e não suportam a
irrupção da vida desaprisionada dos poderes instituídos. A luz espalha-se com cheiro de estábulo e
chega aos palácios tornando insustentável o luxo e a ganância diante da nudez e do despojamento.
Ele, Nhanderu - Nosso Pai Primeiro-Último - era o Coração Grande. Tomou, por isso, uma porção de sua
Palavra, uma porção de seu Amor e uma Canção, todas coisas que ele mesmo tinha dentro de si.(...)
Nós os chamamos excelsos verdadeiros pais das palavras-alma, excelsas verdadeiras mães das palavras-
-alma. Porque também nós somos palavras-alma (apud ASSMANN, 63-64).
Cada criança que vem ao mundo é uma expressão da Palavra original. Ele é esperado
como um acontecimento divino, como palavra-alma, que, vindo ao mundo, crescerá desenro-
lando sua Palavra até a plenitude da humanidade que será a melhor expressão da Palavra Pri-
meira. Este canto, recolhido por Cadogan, dos guarani M’bya dá a dimensão desta consciência
cósmica original.
O verdadeiro Pai Ñamandú, o primeiro,
de uma parte de seu ser celeste
da sabedoria contida em seu ser celeste
com seu saber que se vai abrindo,
fez que se reproduzissem as chamas e a neblina. (...)
Tendo já feito abrir-se em flor para si o fundamento da palavra futura,
tendo já feito abrir-se em flor para si uma parte do amor ,
tendo já feito abrir-se em flor para si um esforçado canto, considerou detidamente
a quem fazer participar do fundamento da palavra,
a quem fazer participar desse único amor,
a quem fazer participar da série de palavras que compunham o canto.
(...)
Da sabedoria contida em seu ser celeste (...)
fez que fossem conhecidos como divinamente celestes.
Aos verdadeiros pais de seus muitos próprios filhos,
aos verdadeiros pais das palavras de seus muitos próprios filhos,
fez que fossem conhecidos como divinamente celestes.
Depois de tudo isto,
o verdadeiro pai Ñamandú,
àquela que estará diante de seu próprio coração,
à futura verdadeira mãe dos Ñamandú,
fez que se conhecesse como (divinamente) celeste (...)
Por terem eles assimilado já a sabedoria celeste de seu próprio Primeiro Pai,
por terem eles assimilado já o fundamento da palavra,
por terem eles assimilado já o fundamento do amor ,
por terem eles assimilado já as séries de palavras do canto esforçado,
por terem eles assimilado já a sabedoria que se abre em flor,
a eles, por isso mesmo, chamamos:
excelsos verdadeiros pais das palavras,
excelsas verdadeiras mães das palavras (apud MARZAL,1989, p.306-308)
Todo o sentido do universo, da pessoa e da comunidade está na Palavra que habita entre
nós. Cada criança que nasce é manifestação da Palavra primeira, é Palavra de Deus entre nós.
A teologia cristã que dialoga com a tradição Guarani poderá acentuar a vida, com toda a
sua expressividade, como acontecimento da Palavra fundamental que se fez carne e habitou
entre nós. Em toda a criança, pode-se encontrar um menino e menina Jesus.
72 © Textos Sagrados
Para a comunidade Guarani a Palavra não é expressão de uma ideia, de uma doutrina, mas
da vida divina presente na humanidade. E aqui há muito diálogo a fazer.
O dinamismo salvífico de Deus com sua presença na terra pela Palavra revelada perpassa
as diversas experiências religiosas. Num horizonte histórico muito restrito, podemos inadequa-
damente nos entrincheirar em discursos defensivos e exclusivistas, mas no horizonte escatológi-
co, todos os povos serão vistos nos caminhos que traçaram em direção ao mistério que excede
tudo, nos caminhos salvíficos em que viveram. Na revelação definitiva o Verbo que se fez carne
e habitou a morada da humanidade, será o Verbo de todas as línguas, de todas as religiões. O
cristianismo vai assim reconhecendo no mistério do Verbo Encarnado os anseios, as buscas, as
presenças, as palavras de sabedoria das religiões dos outros.
Moisés-criança escapa, no Egito, das ordens de morte aos primogênitos; Jesus escapa en-
quanto o medo assassino de Herodes ceifa injusta e prematuramente a vida dos recém-nasci-
dos; o filho da mulher do Apocalipse é protegido pela terra e escapa da grande devastação da
Besta e do Dragão; as crianças do século 21, com toda a natureza, esperam a revelação dos filhos
e filhas de Deus que, com sua espiritualidade natalina, tragam novos perfumes e espalhem a luz
do menino da manjedoura.
À teologia da Encarnação une-se o reclamo de Raquel que chora por seus filhos (Mt 2,18)
e teima insistente até que seja ouvido seu grito de dor por seus filhos que não deviam morrer
antes do tempo.
A Palavra que se faz gente, na tradição cristã, dialoga com muitas elaborações teológicas
de outros povos e torna-se o coração de uma mensagem sagrada de solidariedade com todos e
em particular com os ameaçados desde a infância. A insignificância da criança perante os pode-
res não engana, pois aponta, com clareza, o lugar de Deus. Deus não está na violência. Deus está
nas crianças que foram pisoteadas por Herodes – "foi a mim que o fizeram" (Mt 25,40) - e está
na reserva de solidariedade e coragem que mobiliza os gestos que salvam e possibilitam que a
criança-viva seja "uma alegria para todo o povo" (Lc 2,10). Aqui se pode vencer a raiz das trevas
que é o esquecimento da sagrada dignidade humana revestida de fragilidade. Deus-conosco,
Príncipe da Paz (Is 9,5-6), na fragilidade do amor, ilumina o caminho para o direito e a justiça.
A teologia da Palavra que se faz gente está, no início do Evangelho de João, num dinamis-
mo de luz-trevas, de morte-vida, de verdade-mentira, de graça-pecado, de liberdade-escravi-
dão. A Palavra que se faz gente não foi criada, mas é criadora: "Tudo foi feito por meio dela, e,
de tudo o que existe, nada foi feito sem ela" (Jo 1,3). Na Palavra estava o amor, estava a vida e
"a vida era a luz dos humanos... e as trevas não conseguiram apagá-la" (Jo 1,4). Foi assim que a
Palavra habitou entre nós" (Jo 1, 14).
O evento histórico de Deus que se faz carne marca o mais profundo e decisivo envolvimento do próprio
Deus nos destinos da humanidade; esse evento estabelece com a humanidade uma união que nunca
poderá ser desatada. Tal evento, contudo, é marcado, necessária e irremediavelmente, pela particulari-
dade de cada acontecimento histórico. Apesar do caráter "trans-histórico" da humanidade ressuscitada
de Jesus, o evento está limitado pela sua inserção na história, sem a qual se veria desaparecer o seu
significado peculiar e sua densidade. Portanto, ele é particular no tempo e também universal no signifi-
cado; e, como tal, "singularmente único" e, entretanto, em relação com todas as outras manifestações
divinas à humanidade numa única história de salvação; ou seja: relacional. (DUPUIS, 1999, p.531).
Este mistério já originou inúmeros textos teológicos no campo cristão. Ao transitar pelas
diversas tradições religiosas, poderemos captar pontos de encontro com esta dimensão tão cara
ao cristianismo. Aqui há que aprimorar um ouvido atento ao recado das diversas tradições sobre
a Palavra, a criança, a fragilidade, a revelação de Deus na história.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Chegamos ao final da unidade 4. Aqui você entrou em contato com elementos da sabe-
doria de várias tradições religiosas, e deu-se conta de que estamos diante de um amplo campo
de semeaduras, ou uma vasta floresta desconhecida, ou um mar imenso de profundidades e
expressões do mistério.
Embora tenhamos entrado em contato com apenas alguns fragmentos dos saberes de
algumas religiões, nos colocamos em plena caminhada dialogal. O que é profundamente rela-
cional na visão Cosmoteândrica, é também Bio-Teocêntrica, respondendo à dimensão ecológica
que provoca a teologia contemporânea.
A teologia que se apresenta não separa o pensamento sobre Deus da condição humana e
da dignidade de toda a criação. Este futuro está anunciado e refletido em parte aqui.
Como os desafios são muitos e as trajetórias tão plurais, que o Divino relacional acompa-
nhe os caminhantes.
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