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ARQUIVO O Lugar Social Donativo Jessica Santos Anais Anpuhba
ARQUIVO O Lugar Social Donativo Jessica Santos Anais Anpuhba
A cidade do Huambo colonial surgiu como nada mais que uma invenção dos
administradores portugueses sob o mapa do planalto central. Norton de Matos, governador-
geral de Angola, sem nunca ter nem mesmo pisado em terras huambenses5, admitiu a
instauração da cidade como produto do projeto português6 e não de um suposto
desenvolvimento urbano, da transformação repentina “de mata em povoação”7. De acordo
com a narrativa colonialista, a cidade do Huambo nasceu como por um “milagre”8. Para a
administração colonial, o novo domínio precisava ser construído sob bases genuinamente
portuguesas, condição essencial para o progresso da região. Em pouco tempo, foram erguidos
edifícios públicos, pontes definitivas, estradas e uma nova escola. O governador incentivou a
vinda de portugueses para povoar a região, principalmente de mulheres jovens, que, de acordo
com o administrador, deviam casar-se com os colonos brancos para “evitar a miscigenação”9.
No interior do planalto foi criada uma zona de influência da CFB21, na qual foi
limitada uma área de colonização onde se pretendia criar a Nova Lusitânia. De acordo com
Fernando Tavares Pimenta (2011), os colonos estabelecidos em Angola esperavam construir
uma espécie de “novo Brasil”, a Nova Lusitânia. Segundo Emmanuel Esteves (2000, p. 53),
na zona de influência da CFB se evidenciava o maior impacto do caminho de ferro. Os
acordos de 1908 delinearam, em definitivo, o desenho dessa zona de influência, ao abandonar
o antigo traçado de Kakonda que previa atingir o Katanga por Kansanshi22. Para Maria da
Conceição Neto (2012, p. 126), a nova direção do caminho de ferro tornou viável a
construção da cidade do Huambo, próxima ao ponto, no qual, após a última parada para seguir
para o planalto, o trem rumava para regiões mais altas, a caminho de um forte centro de
recente desenvolvimento de mineração, o Katanga. O caminho de ferro funcionava, nesse
sentido, como uma via de penetração colonial, que permitiu que Portugal realizasse a
“ocupação efetiva” do Centro e do Sul de Angola, ao mesmo tempo em que era uma
importante fonte de receita, porque a administração colonial se beneficiava de “dez por cento
das ações da CFB e cinco por cento das receitas líquidas de exploração” (NETO, 2012, p. 57).
De acordo com Jeremy Ball (2006, p. 3), trabalhadores em várias vilas reclamavam da
mesma questão: eles haviam recebido comida, um recibo pelo imposto indígena, mas nenhum
pagamento. A lei colonial previa ao menos três-quartos do pagamento dos proventos para o
trabalhador, que devia ser recebido com o chefe de posto ao final do contrato de trabalho,
porém isso raramente acontecia36.
O indígena em Angola estava no centro das preocupações do sistema colonial, pois a sua
exploração se apresentava como uma das bases da reprodução do colonialismo português em
Angola na primeira metade do século XX. No entanto, era necessário, segundo o discurso
colonial, manter certa distância, traçar distinções entre os brancos (civilizados) e os negros
(não-civilizados). As doutrinas coloniais do período viam na assimilação e na mestiçagem
mais perigos à soberania portuguesa do que vantagens reais. O próprio administrador Norton
de Matos via a mestiçagem como “uma mancha na sua política de desenvolvimento” e
promovera, durante seu governo, incentivos e medidas que visariam evitar “a mistura entre
brancos e negros”38. A “tolerância e consideração pelos mestiços”, a “brandura” do
“colonialismo e o caráter não racista dos portugueses”, qualidades descritas por Gilberto
Freyre (1971) em seu “Novo Mundo nos Trópicos” não coincidiam com a postura colonial
portuguesa do período.
O discurso colonial buscava forjar esse dualismo entre nativo e europeu, que muito serviu
para prover mão-de-obra e coletar impostos, sob princípios aparentemente científicos, que
apontavam as supostas “pobrezas de sangue”39 dos habitantes da terra africana. A
hierarquização social partiria da premissa de “superioridade entre as raças” devido à
presumida “mancha invisível” no sangue. Benedict Anderson observa que essa perspectiva,
que movia grande parte do mundo imperial, tendia a abraçar um caminho narrativo que
pretende seguir por fora da história, ao “sonhar com contaminações eternas, transmitidas
desde as origens dos tempos por uma sequência interminável de cópulas abomináveis”
(ANDERSON, 2008, p. 208).
No entanto, o ideal europeu de Norton de Matos que encontrou eco no projeto urbanístico
do engenheiro Carlos Roma Machado não se concretizou como o planejado42. Os fracassos
dos planos ‘civilizatórios’ de ocupação colonial de Norton de Matos para o sertão angolano
lhe custaram o cargo de Alto Comissário, perdido em 192443. Sua aspiração de tornar a cidade
inventada a prova real da capacidade portuguesa de construir um modelo ideal de
modernidade na sua colônia mais rentável esbarrou em problemas como a falta de recursos
humanos e financeiros, a resistência das antigas práticas de comércio, as questões nativas de
mão-de-obra e de oposição ao sistema colonial, além da crise econômica que atingiu Angola
na década de 1920.
Considerações Finais
Ainda que de modo frágil, a cidade do Huambo espelhava em seus primeiros anos de
existência um modelo que se compunha de dois mundos segregados: o mundo do nativo,
“selvagem”, e o do colono português, “civilizado”. A organização urbana, o sistema de leis, a
educação e os serviços de saúde foram pensados pela administração portuguesa de modo a
seguir esse ideal, muito alinhado com as doutrinas e ideologias coloniais que negavam
totalmente a miscigenação e a viam como algo profundamente perigoso e prejudicial.
Referências Bibliográficas
BALL, Jeremy. «I escaped in a coffin». Remembering Angolan Forced Labor from the 1940s.
Cadernos de estudos Africanos, n. 9/10, p. 61-75, 2006.
FREYRE, Gilberto. Novo mundo nos Trópicos. São Paulo: Editora Brasiliana, 1971.
NETO, Maria da Conceição. In Town and Out of Town: A Social History of Huambo
(Angola), 1902-1961. PhD Thesis. SOAS, University of London, 2012.
1
Mestranda em História Social pelo Programa de Pós-Graduação de História da Universidade Federal de
Alagoas. Bolsista Fapeal.
2
MONCADA, Cabral de. A Campanha de Bailundo de 1902. Lisboa: Typ. da Livraria Ferin, 1903.
3
NOGUEIRA, Jofre Amaral. Assim Nasceu Nova Lisboa. Boletim Cultural do Huambo, 003. Serviços
Culturais do município de Nova Lisboa, 3, 1950. p.16. Arquivo da Biblioteca Digital Memória África.
4
Discurso do governador Norton de Matos, 1948. In: DÁSKALOS, Sócrates. Do Huambo ao Huambo. Um
testemunho para a história de Angola. Lisboa: Editora Vega, 2000. p. 35.
5
DÁSKALOS, Sócrates. Op. Cit. p. 35.
6
Discurso do governador Norton de Matos, 1948. In: DÁSKALOS, Sócrates. Op. Cit. p. 35.
7
NOGUEIRA, Jofre Amaral. Assim Nasceu Nova Lisboa. Boletim Cultural do Huambo, 003. Serviços
Culturais do município de Nova Lisboa, 3, 1950. Arquivo da Biblioteca Digital Memória África. p. 21.
8
“E o milagre fez-se e, transpondo futuro, a cidade apareceu desde esta data”. Norton de Matos. In: MATOS,
Norton de. Memórias e Trabalhos da Minha Vida, vol. I, Lisboa, 1944, p. 123.
9
DÁSKALOS, Sócrates. Op. Cit. p. 34.
10
NOGUEIRA, Jofre Amaral. Op. Cit.; ALEXANDRINO, José Melo. No centenário da fundação da cidade
do Huambo: a institucionalização do poder local de Angola. Texto da conferência proferida no Huambo, em 3
de maio de 2012, inserida no âmbito do Mestrado em Ciências Jurídico-Políticas da Faculdade de Direito da
Universidade José Eduardo dos Santos.
11
Ibid.
12
CORREIA, António Mendes. Nossa terra é o Huambo. Boletim Cultural do Huambo, 002. Serviços
Culturais do município de Nova Lisboa, 2, 1949. p. 42. Arquivo da Biblioteca Digital Memória África.
13
MONCADA, Cabral de. Op. Cit. p. 28. / LOPES, José Martins. Com Mulheres como Tu. Boletim Cultural
do Huambo. 002 Serviços Culturais do Município de Nova Lisboa, 2, 1949, 82 pp.
14
MACHADO, Carlos Roma. Início e Fundação da cidade do Huambo. Boletim Geral das Colónias, Vol. II-
7, 1926. pp. 38, 46.
15
MACHADO, Carlos Roma. Op. Cit. p. 56. NOGUEIRA, Jofre Amaral. Op. Cit. p. 21.
16
MACHADO, Carlos Roma de. Op. Cit. p. 50. FONTE, Manuela. Urbanismo e arquitetura em Angola: De
Norton de Matos à revolução. (Tese de Doutorado em Planejamento Urbanístico). Universidade Técnica de
Lisboa, 2007. pp. 74-76.
17
MACHADO, Carlos Roma. Op. Cit. / MACHADO, Carlos Roma. A cidade do Huambo. Gazeta dos
Caminhos de Ferro. Lisboa, 16 de maio de 1944. Arquivo da Hemeroteca Digital de Lisboa. / NOGUEIRA,
Jofre Amaral Op. Cit.
18
MACHADO, Carlos Roma. Op. Cit.
19
Ibid. p. 56.
20
ESTEVES, Emmanuel. O caminho-de-ferro de Bengela e o impacto económico, social e cultural na sua zona
de influência (1902-1952). Africana Studia, n° 3, 2000. p. 55.
21
ESTEVES, Emmanuel. Op.Cit.
22
Convenção assinada em Bruxelas, entre a Companhia do Caminho de Ferro de Benguela, a Companhia do
Caminho de Ferro do Baixo Congo ao Katanga e a Companhia de Ferro do Katanga, relativa à construção e
ligação férrea entre a Rodésia e Angola. 31 de Março de 1908. Fundo Documental DBG – Documentos
Bernardino Machado. Acervo Casa Comum.
23
ESTEVES, Emmanuel. Op.Cit. p. 61.
24
ALEXANDRE, Valentim. O Império Africano (séculos XIX-XX) – As Linhas Gerais. In: ALEXANDRE,
Valentim. In: ALEXANDRE, VALENTIM (Coord.). O império africano: séculos XIX e XX. Lisboa: Edições
Colibri, 2013. p. 17.
25
SARMENTO, Adolpho. Sanatórios em África. Portugal em África, 82. (1900, 317-9).
26
Soma (pl. olosoma) é o termo em Umbundu que designa a figura máxima de autoridade nos territórios
Ovimbundu. Aparece também como ossoma (pl. olossoma). É uma aproximação equivalente para a denominação
de “soba” em Kimbundu. Pode ser grafado também como sova, mas preferimos manter a grafia em Umbundu
para manter as especificidades do termo.
27
MONCADA, Cabral de. Op. Cit. p. 287.
28
MATOS, Norton de. A Província. Portugal em África, 104-5. p. 262.
29
Ovimbundo (ou Vimbundo) é a designação na língua portuguesa para Ovimbundu (pl./ sing: Ocimbundu), que
em Umbundu, corresponde a um agrupamento étnico bantu que ocupa majoritariamente o planalto central de
Angola.
30
Os contratos de serviçais em Angola. Ao País e à Sociedade de Geografia. Manifesto da Grande Comissão de
Luanda. DCD - Documentos Carvalhão Duarte/Simões Raposo. Arquivo da Casa Comum; Escravatura em
Angola com destino a S. Tomé e Príncipe. DCD - Documentos Carvalhão Duarte/Simões Raposo. Arquivo da
Casa Comum; ROSS, Edward Alsworth. Report on employment of native labor in Portuguese Africa.
Edward Alsworth Ross, 1925.
31
Gazeta das Colônias, Lisboa, nº 1, 19 de Junho de 1924. p. 14. Arquivo da Hemeroteca Digital de Lisboa.
32
DINIZ, F. Protecção e assistência às populações indígenas da província de Angola. Boletim da Sociedade
de Geografia de Lisboa. v.33. Lisboa: 1916. p. 295.
33
Na Angola colonial, “contratado” era uma denominação comum para os trabalhadores nativos recrutados pela
administração colonial para trabalhar em outros locais, a serviço de empresas, de outros colonos ou do próprio
governo.
34
BALL, Jeremy. Colonial Labor in Twentieth Century Angola. History Compass, 3, AF, 168. p. 4.
35
Jornal de Benguela, 23 de Abril de 1920, p. 4.
36
ROSS, Edward Alsworth. Op. Cit. p. 8.
37
Cipaio (“Osipaio” em Umbundu) é um termo para os policiais africanos que trabalhavam para a administração
colonial na vigilância da população nativa.
38
DÁSKALOS, Sócrates. Op. Cit. p. 34.
39
MONCADA, Cabral de. Op. Cit. p. 28.
40
MACHADO, Carlos Roma Op. Cit. p. 50.
41
Portaria 1, 086, 21 de Agosto de 1912. NETO, Maria da Conceição. In Town and Out of Town: A Social
History of Huambo (Angola), 1902-1961. PhD Thesis, SOAS, University of London, 2012. p. 135
42
Gazeta das Colônias. Lisboa, nº 2, 10 de Julho de 1924. pp. 11, 12.
43
Ibid.
44
Estatuto Político, Civil e Criminal dos Indígenas de Angola e Moçambique. Decreto nº 12.533, de 23 de
outubro de 1926.