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ENEIDA MARIA DE SOUZA MUIRAQUITA - A PEDRA MAGICA DO DISCURSO Gilda de Mello e Souza, no segundo capitulo de 0 tupée oatai de, discorda da leitura de Macunaima feita por Haroldo de Cam - pos’, que analisou a estrutura narrativa dessa obra utilizando-se a metodologia formalista de V. Propp.* Segundo Haroldo de cam - pos, o "grande sintagma" da narrativa seria a competigdo de Macu- naima com Piaima pela recuperagao do amuleto. A ensaista aponta a fragilidade desse enfoque argumentando que, em um livro dotado de conponentes anbiguos e ambivalentes, H. de Campos optou por uma leitura "univoca", esquecendo-se de outros episddios de igual ou maior importancia. Dentre eles, ressalta a disputa de Vei com Ma~ cunatma,, 34 considerada por Mario, no prefa@cio, como sendo uma das “alegorias centrais do livro".* outra passagem relevante se - riaa" arta pras Icamiabas", que H. de Campos interpretou como un "capitulo aut6nomo e ornamental, uma exibigdo de virtuosismo lingiistico".> Essas consideragées iniciais foram apresentadas com 0 objeti vo de situar nossa andlise de NacunaZma® dentro de uma nova postu ra quanto ao tema da pedra muiraquita. Inicialmente, gostariamos de salientar que concordamos com a proposta analitica de G. de Mello e Souza, sobretudo quanto 4 importancia dos dois episddios “esquecidos" por Haroldo de Campos (estudamos, em outra ocasiao , © papel desempenhado por Vei e a "Carta pras Icamiabas"), Em se - gundo lugar, procuramos desvincular-nos de uma preocupagaéo com a sintagmtica do enredo, centralizando nosso estudo na fungio da pedra muiraquita como instrumente catalizador do discurso de Macu naima. Nosso objetivo repousa, portanto, na articulagdo relacional do signo-pedra que, ao longo do texto, sofre transformagées con ~ forme a situag’io em que aparece. 0 jogo da escrita, instaurado pe la articulagdo vicdria dos signos, possibilita o exame do efeito de transmutagdo da pedra, participando, assim, de um comércio sig nificante. A partir do sintagma de base do enredo - a perda e a conquista da muiraquita - @ que esse caraéter episGdico se ir& con substancializar em um questionamento de linguagens. =B5= A perda do amuleto propicia o jogo de substituigdes e a pro- dugdo de varios discursos com registros diferentes conforme as si. tuagdes. O relato referente 4 perda da muiraquitd (a “Carta pras Icamiabas") se transforma em met&fora da conquista da pedra pre - eiosa do discurso retérico, artificio enunciativo que Macunaima utiliza para convencer as icamiabas e para que o “narrador ocul - to" desmitifique o aparato erudito da lingua escrita pelos “dou - tos". A colec&o de pedras do gigante Piaimi suscita em Macunaima a necessidade de adquirir uma colegio de palavrdes a fim de suplan- tar a falta de riquezas reais. Desprovido dessas riquezas, ele se contenta em apropriar-se da forga verbal como dispositivo de com bate, em que as pedras-palavras ficariam no lugar das pedras-coi- sas. A diferenga entre o discurso retérico e a disputa realizada pelas palavras reside na maneira pela qual os signos sao manusea- dos. Se na disputa do heréi com Chuvisco as palavras langadas con tra Piaimd funcionam como suplemento de pedras e a colecao de no- mes~feios & langada como se fossem pedras, estas se revelam impo- lidas e grosseiras; no discurso retérico, a pedra polida e burila da & empregada com o intuito de persuadir. Logo, um discurso “po- lido" se opde as palavras rudes, da mesma forma que o carter or- namental do signo-pedra se contrapée 4 sua fungdo pragmitica. No registro da lingua escrita, préprio da "Carta", o emissor manipu- la polidamente belas pedras, produzindo um efeito encantatério no destinatario; no combate oral, Macunaima atira impolidamente pe = dras “fortes para vencer Piaimd e ganhar sua aposta com Chuvis - co. © signo-pedra ira participar de outro tipo de linguagem, as inscrig6es lapidares, presentes nos dois epit&fios do livro, e as sumir outra fungdo, através da escrita, ou.seja, apetrificacdo de uma mensagem de morte. Neste ensaio examinaremos apenas duas manifestagdes referen- tes 4 transformagao da pedra em atos de linguagem: a disputa de Macunaima com Chuvisco (conseqténcia de seu aprendizado de signos- palavrées) e a inscrig&o dos dois epitafios. 1A PETRIFICACAO DOS SIGNOS A relagdo de Macunaima com as pedras remonta ao mito de ori- -86- gem, em que o “herdi civilizador” era dotado de propriedades magi cas de transformar tudo em pedras; o Macunaima de MArio possui tam bém tais propriedades e aprova mais evidente @ a metamorfose da cidade de Sio Paulo em bicho-preguiga de pedra. Contudo, o que nos interessa ressaltar sdo as transformagées efetuadas pelo herdi no dominio da linguagem, em que a petrificagao se processa em ou- tro nivel. Esse procedimento, resultado da releitura feita pelo autor do texto indIigena, & simétrico e inverso 4s realizagdes da persona - gem do mito: por um lado, a inversdo se opera pela transposi¢ao de pedras em palavras; por outro, a cole¢ao de nomes-feios visa a preencher a falta das coisas pela forga ficticia da linguagem. A “petrificagdo" se manifesta de maneira ambivalente: os palavrées assumem o estatuto de "signos vivos", logo, nao petrificados; em contrapartida, eles substituem as pedras e sao utilizados comodis positivos de combate. A passagem das coisas a palavras resulta do mecanismo ambivalente da “petrificagdo-animada” dos signos. A colegdo de pedras do gigante & descrita por meio de um en- cadeamento sintagmatico de vocabulos que saem uns dos outros e se guem 0 fio sonoro e contagiante da cadeia. A acumulagao dos ele - mentos &, contudo, descontinua, uma mistura heteréclita de varias espécies de pedras, de esculturas de origem grega, romana, asiati ca, entre outras. A decoragdo da casa de Venceslau Pietro Pietra constitui-se de um aglomerado heterdclito de objetos de arte, on- de cada pedra esculpida remete a uma histéria, uma civilizagao . Esse ambiente, de natureza "kitsch", reproduz a imagem de um fal- so museu arqueolégico em que o proprietario encarna a figura do novo rico, cuja maior ambigao é exibir cépias artisticas de prove niéncias diversas. 0 efeito produzido pela enumeragio dessas "riquezas" é reve- lador da gratuidade e do excesso, tanto dos objetos quanto = dos signos, na medida em que a riqueza do inventario exaustivo dos te souros reflete o gigantismo da linguagem e de uma conduta de vi - da. A fetichizagao dos objetos se relaciona coma fetichizagao das palavras, remetendo para a vacuidade de sua significagéo e valor: Tinha turquesas esmeraldas berilos seixos polidos, fer- ragem com forma de agulha, crisdlita pingo d'agua tini- deira esmeril lapinha ovo-de~pomba osso-de-cavalo macha dos facées flechas de pedra lascada, grigris rochedos elefantes petrificados, colunas gregas, deuses egipcios, =87- budas javaneses, obeliscos mesas mexicanas (...) (M, p . 47-48) Esse mecanismo de enumeragdo exaustivo é uma constante em Ma cunaima, em que as palavras puxam palavras, através do encadeamen to sonoro; a auséncia de pontuagao reforga a fungdo retérica, su- gerindo o processo mneménico, préprio das emboladas nordestinas . © emprego desse repertério discursivo comprova a apropriacdo das f6rmulas populares de improvisag&o, o que transforma o livro em uma verdadeira leitura do imaginario popular, aspecto este tao bem estudado por Gilda de M. e Souza, no livro anteriormente cita - do. Macunaima, travestido em francesa, vé-se finalmente frustra~ do na tentativa de recuperar a muiraquita, escondida entre os te- souros do gigante. A iinica safda encontrada para suprir o fracas- so € colecionar palavrées, pois, "pra que mais pedra que é tdo pe sado de carregar!..." A substituigdo se efetua segundo um mecanis mo de ordem metonimica: a aquisigiio lingiistica se compe de no - mes-feios em lingua latina, grega, italiana, assim como Venceslau coleciona pedras e esculturas de igual proveniancia. A petrificagao-imobilizacio das entidades arcaicas do gigan- te se consubstancializa em "signos grosseiros", os quais mantémum elo semantico com os objetos artisticos, constituindo, assim, atni ca arma capaz de colocar Macunaima em concorréncia com o adversa- rio. O mimetismo da colegdo de palavrdes culmina com a substitui- gdo da jSia da colegao de pedras, a muiraquit&, pela jéia verbal cunhada pelo herdi, uma "frase indiana que nem se fala". 0 tesou- ro adquirido por Piaima, a pedra da sorte, é suplantada, em Macu- naima, pelo poder ilusério dos nomes-feios: Matutou matutou e resolveu. Fazia uma colegao de pala - vras-feias de que gostava tanto. Se aplicou, Num 4timo reuniu milietas delas em todas as falas vivas e até nas linguas grega e latina que es- tava estudando um bocado. A colegao italina era comple- ta, com palavras pra todas as horas do dia, todos os dias do ano, todas as circunstancias da vida e_sentimen tos humanos. Cada bocagem! Mas a jéia da colecio era uma frase indiana que nem se fala. (M, p. 52-53) © encontro de Macunaima com Chuvisco (cf. cap. "A velha Ceiu ci")® § motivo de uma aposta para resolver qual dos dois espanta- ria e venceria Piaimé. 0 heréi langa nomes-feios que sao a "con - -88- cretizagao" das pedras, atualizando o processo de petrificagdo-mo bilizagdo das palavras, Macunaima, revelando-se sempre forte em palavras e fraco em agées, ataca o gigante com injirias, tomando as palavras ao pé da letra, como se essas fossem pedras. Se a co- legdo de nomes-feios resultava de um mecanismo de deslocamento (as pedras do gigante foram substituidas por palavrées), essa atitude prepara o gesto posterior de Macunaima de condensar as palavras e as coisas. A linguagem torna-se ag&o, as palavras sdo lidas ao pé da letra e a colegio de bocagens poderia cumprir a fungao na qual Macunaima acredita: o pragmatismo da linguagem. Lapidar o adversa rio por meio de signos-coisas conjuga a ago real com o.ato de lin guagem, atualizando-se a frase feita: atirar pedras em alguém. Reproduzimos a passagem referente 4 disputa verbal: Ento Macunaima pegou na primeira palavra-feia da cole- gao_e jogou na cara de Piaima. © palavrao bateu de rijo porém Venceslau Pietro Pietra nem se incomodou, direiti nho elefante. Macunaima chimpou outra bocagem mais feia na caapora. A ofensa bateu rijo porém se incomodar 6 que ninguém se incomodou, Entdo Macunaima jogou toda a cole go de bocagens e eram dez mil vezes dez mil bocagens « (M, p. 94) ‘A narragdo da disputa se caracteriza por um ritmo interno em que as frases reproduzem o efeito da acdo desprovida de eficdcia. © entrecruzamento do gesto real e ficticio consiste no jogo entre os verbos que designam aco (pegar, bater, jogar, chimpar) e as pa lavras feias que, consideradas como coisas materiais, funcionam co mo instrumento de luta. Macunaima, percebendo a ineficdcia dos pa lavrées atirados, emprega outras denominagdes mais fortes, culmi- nando em langar toda a colegao de bocagens. Se a acumulagdo das pedras da casa do gigante se configuraem um gigantismo da enumeragado, o gigantismo dos palavrées reflete o aumento dos vocdbulos e das expressdes. A disputa torna-se, por - tanto, ficticia, situando-se no nivel da linguagem, os palavrées substituindo a forga fisica. 0 narrador, jogando com as palavras da maneira pela qual Macunaima as manipula, produz a batalha no interior das frases. 0 caréter fragil dos signos e sua incapacida de de suplantar o real sao evidenciados, na disputa, quando Chu - visco, por um gesto real - uma “mijadinha no ar", principiando uma chuva-de-preguiga - provoca medo em Piaimi. A eficdcia desse ato suplanta os palavrées de Macunaima, considerados poderosos e ame~ -89- drontadores. © herGi, apds ter perdido a aposta com Chuvisco, escapa ha — bilmente da situag&o, utilizando nova astiicia de linguagem, ao se expressar no cédigo da linguagem infantil, a “lingua do p.” 0 aid logo inicia e se constréi de maneira estratégica: a pergunta codi ficada que Macunaima propée.a Chuvisco é seguida de uma réplica que; por sua vez, se atualiza no insulto. A mensagem fica circuns cerita ao jogo de significantes, instaurado no interior do didlo - go, onde as palavras se voltam para si préprias. Macunaima pergunta a Chuvisco, em cédigo cifrado, se ele co- nhece a lingua do p; a pergunta se reveste de uma artimanha de lin guagem, enganando, logo de inicio, o interlocutor: Macunaima ficou muito despeitado e perguntou pro rival: = Me diga uma coisa: vocé conhece a lingua do lim-pim- gua-pa? = Nunca vi mais gordo! ~ Pois entdo, rival: va-p& 3-p4 mer-per-da-pa! (M,p.95) A resposta @ dada por Chuvisco na forma de uma frase feita que manifesta o desconhecimento da questo: "Nunca vi mais gordo!". Apés a réplica, o insulto é pronunciado, disfar¢gado pelo cédigo in fantil, embora reproduzindo o mesmo registro. A uma férmula fei - ta, fundada na idéia de gordura (e significando a ignorancia do que foi perguntado), responde uma frase recheada de silabas suple mentares que vém “engordar" as palavras. Se a palavra "merda" re- mate para si prépria, ela perde seu poder e reitera a concretiza- g&o-verbal da resposta de Chuvisco. ("Nunca vi mais gordo!") Verifica-se, ent&o, um didlogo de surdos, significantes reme tendo a outros e permanecendo apenas o aspecto liidico e enganoso da linguagem. Esse discurso reforga a predileg&o de Macunaima pe-" las artimanhas verbais, a convicgdo de ser mais forte em palavras do que em atos. Contudo, o aspecto fugidio e deslizante da lingua gem aparece, mais uma vez, em filigrana. Macunaima convence-se, a todo momento, de que & o mestre de seu discurso, sem sé-lo, safan do-se habilmente das situagdes embaragosas. 2. A ESCRITA LAPIDAR Os dois epitafios presentes na obra se referem a Macunaima e 4 sua mie, embora o heréi inscreva seu epitéfio de maneira indire -90- ta, utilizando-se da fala e da imagem do jaboti, seu animal toté- mico. As duas escritas se situam em espagos estratégicos na obra: a primeira, no inicio (cap. "Maioridade"), inscrita na tumba da mae; a segunda, no capitulo final, "Ursa Maior", reproduzindo a altima mensagem do heréi antes de deixar a cena terrestre. 0 epi~ tfio gravado no timulo materno esquematiza uma relag&o de ordem familiar: o filho mata indiretamente a mae e um dos irmos escre- ve © epitafio; no segundo caso, a relagao & de ordem totémica: o filho abandona a terra e marca sobre o seu totem o signo que indi ca a incorporagdo ao "pai". A escrita mortuaria € gravada de ma - neira um pouco semelhante nos dois casos: a mae, enterrada sob uma pedra, tem seu epitafio escrito sobre essa pedra; o jaboti, trans formado em pedra, serve de suporte para a transcrigao de uma es- crita que, simbolicamente remete também para o epitdfio de Macu ~ naima. A diferenca entre as duas inscrigdes reside no fato de que a primeira 6 de natureza figurativa, traduzindo-se em uma mensa- gem que relata, ao mesmo tempo, 0 acontecimento (a morte) e repro duz a situagdo atual da familia, reduzida a trés membros. A segun da, marcada em escrita fonética - a frase do jaboti pronunciada em um dos contos em que @ personagem ("Nao vim ao mundo para ser pe~ dra") remete para a genealogia da raga de Macunaima tornando-se , assim, emblematica. Reproduzimos a inscri¢io feita na tumba materna: O O -91- Como se percebe, esse desenho lembra, de uma certa maneira , a escrita hieroglifica. Camara Cascudo, no Dicionario do folcore baasigeino®, assinala que, entre os indigenas brasileiros, era co mum a pratica das inscrigdes lapidares, utilizadas com fins diver sos. Esses desenhos rupestres, inicialmente interpretados como me ro divertimento dos nativos, foram, finalmente, reconhecidos como possuidores de uma fungdo utilitaria, indicando ora os lugares on de as pessoas eram enterradas, ora sinais que indicavam caminhos. Conhecidos pela designagao de “itacoatiaras", um termo de origem tupi (ita: pedra; cuatiana: pintada, escrita), esses desenhos se revestem de importAncia para o conhecimento do pensamento indige- na} © desenho comporta trés inscrigdes que traduzem a mensagem - a primeira, 4 esquerda, representa a mie, tal como foi morta por Macunaima, metamorfoseada em viada parida. As outras, gravadas em caracteres ideogramiticos, reproduzem, ora a cruz da vida ("croix ansée") egipcia, um dos simbolos que remete para a concepgdo de alma eterna’, ora um desenho que lembra, mais ou menos, o penta~ gono. No seu interior ha quatro linhas, associadas 4 linhagem fa- miliar, assinalando a presenga dos trés irmaos (Maanape, Macunai- ma e Jigué), e a Gltima, a direita, marcada por uma linha corta - da, indica a exclusdo da mie da cena familiar. A fungdo desse epitafio é de indicar o espago onde a mae foi enterrada, além de significar a permanéncia dos trés membros que restam. Seo desenho do animal retrata e encarna a imagem da mde, perpetuando a forma pela qual ela foi morta, este epitafio é des- provide do valor simbélico da inscrigdo sobre a pedra~jaboti. Tan to a representagdo da morta como da linhagem familiar, subtraida agora de um elemento, transforma a inscrigdo em escrita figurati- va, em que os simbolos serdo lidos como o resultado da conjungdo entre © acontecimento e o desenho. © segundo epitafio, inscrito'na pedra-jaboti, simboliza tan- to a linhagem de Macunaima como sua incorporagado ao totem, em que @ mensagem transmite a transformagao do animal em. emblema-signo terrestre. Nao se verifica uma analogia figurativa entre a pedra @ a imagem do jaboti nem entre Macunaima.e seu totem. O valor sim bélico da pedra consiste em ser 0 duplo do morto e de quem grava a inscrigao. Considerando que Macunaima, ao longo do texto, preenche a fun ¢ao prépria do jaboti nos contos em que é personagem, a saber, a -92- astiicia suplantando a forga fisica, assim, a alianga entre eles torna-se mais evidente no capitulo final. 0 mimetismo e a astiicia de linguagem caracterizam o discurso do heréi, na medida em que re produz e reduplica a imagem do jaboti (e do papagaio), tornando - se, assim, aquele que repete, sem cessar, falas que pertencem ao registro do discurso de outras personagens do imaginario popular. Neste capitulo, a primeira identificagao entre o jabotie o heréi & mediatizada pela pedra, na qual ele buscar4 apoio para se reconstituir apés ter sido mutilado pelas piranhas ("Macunaima sen- tou numa lapa que j4 fora jaboti nos tempos de dantes e andou con tando os tesouros perdidos em baixo d'agua" M, p. 143). Esse ges- to antecipa o seguinte, se considerarmos que a pedra-jaboti sera nio apenas um meio, embora simbdlico, de suportar um corpo mutila do, mas também um espago escolhido para se cristalizar uma fala que ter&, também, o sentido de uma falta. A maneira pela qual o heréi testemunha sua frustragdo, o de- sejo de abandonar a terra, nao é expressa por uma fala mas trans~ cerita através da escrita lapidar, gravada na pedra e reproduzida no espago textual em letras maifisculas. A maxima assume uma forma Acénica pela transcrigio-inscrigdo da fala do jaboti em um espago que lhe é préprio: Plantou uma semente do cipd matamaté, filho-da-luna, e enquanto o cipé crescia agarrou numa it& pontuda, escre veu na laje que j4 fora jaboti num tempo de dantes: NAO VIM AO MUNDO PARA SER PEDRA (M, p. 144) A passagem do registro oral ( a fala do jaboti) ao da escri~ ta tende a petrificar a mensagem em inscrig&o mortuaria: o signo se fixa na pedra e no espaco terrestre. Essa operagao traduz = um triplo procedimento de reduplicagao: 1) a fala do jaboti torna-se escrita gravada; 2) a frase é inscrita na pedra, signo da morte do ser, logo, representagio; 3) a maxima reduplica e recobre o senti do referente 4 pedra. Antoine Compagnon em La seconde maint ou fe tnavaig de ta citation! afirma que o estatuto da citagéo é comparavel aodo sig no, da mesma forma que seu trabalho @ a “construgao de um monumen to funerério".!3 a citagao-signo representaria, assim, a confirma gao da morte, considerando que, tanto a citagdo-repeti¢gado da voz do outro-quanto o signo-ruptura com a coisa - se localizam em’ um espago de representa¢ao. ~93- Se a pedra constitui o signo-morte do animal eainscrigao fu neréria repete.a voz do jaboti pela escrita que petrifica essa voz, a citagdo reitera a morte e a faz circular, dando-lhe vida. uma voz se cristaliza e o epitdfio, ao representar a morte, resgata a imagem do morto através do seu simulacro, a escrita. © epitafio se reveste de um carater emblemtico, consideran- do-se © emblema como um"signo transitério, mével e suscetivel de apropriagao".24 Nesse sentido, o epitafio pode ser lido em duas perspectivas: primeiro, se levarmos em conta o lugar ocupado pelo sujeito no seu discurso; segundo, pela associagao nao figurativa entre a imagem (pedra) e a inscrigdo. No primeiro caso, Macunaima se apropria da frase do jaboti como se fosse sua. Essa fala o ul- trapassa, apagando-se assim o sujeito da cena da enunciagao. Repe tir o enunciado de seu animal totémico permite ac heréi legiti - mar, pela incorporagéo, sua genealogia. No segundo caso, a pedra nao reproduz a figura do jaboti mas a simboliza, pois trata-se de uma representagao totémica, em que © objeto significa o duplo do animal. 0 corpo petrificado recebe a inscrigio por meio de um instrumento, a it& pontuda, destinada a gravar; a frase, associando-se 4 “alma” do animal, transforma- se em um signo-emblema gravado no corpo-pedra do jaboti. Seria ainda pertinente aproximar o valor emblematico da pe - ara enquanto duplo do animal, das formulagdes de P. vernant?> a Propdsito do "colosso" que, na simbologia religiosa dos gregos, constitui um dos modos de representagao dos monumentos funerarios. So estas suas palavras: Podemos representa-lo_ (o kolossés) sob duas formas: es- tatua-pilastra ou estatua-menhir, feita de uma pedra er guida, de uma laje plantada no chdo, as vezes mesmo en- terrada. (..,) Substituido ao cadaver no fundo da tum - ba, 0 kolossés nado visa reproduzir os tragos do defun- to, dar a ilusdo da sua aparéncia fisica. (...) 0 ko - lossds_ndo é uma imagem: ¢,um “duplo", como 0 préprio morto @ um duplo do vivo. © epit&fio simboliza, finalmente, a marca do destino do ani- mal, um signo petrificado e um trago visivel na terra. Como se tra ta de uma escrita emblemitica, esse epitafio & também o de Macu - naima que sera o avatar celeste do jaboti: um signo cdsmico, um trago visivel, brilhante da Ursa Maior. Macunaima, ao deixar a inscri¢gio sobre a pedra a polariza co -94- mo personagem terrestre, reiterando-a como emblema do totem; trans formando-se em constelagdo, o herdi se polariza como personagem celeste, ou seja, 0 duplo do jaboti. Realiza-se, assim, uma trans posigao metonimica pelo elo de contigiidade entre a pedra e acons telagdo, dois epitafios inscritos na terra e no espago celeste. 0 trago de presenga-auséncia traduz a incorporagao do sujeito ao to tem pela ligag&o patronimica verificada entre o animal e o filtimo representante do "cli do jaboti A anAlise das inscrigdes lapidares, sugerida pelos dois epi- t&fios presentes em Macunaima, vem completar a relagdo entre a pe dra e 0 signo examinada no item 1. Ao considerarmos 0 epitafio co mo inscrig&o de uma escrita que perpetua a imagem do morto na pe- dra, ele tende a resgatar uma imagem de vida através de seu simu~ lacro, a escrita. Dessa maneira, a pedra assume uma nova fungao no livro, distinguindo-se daquela verificada na disputa de Macunaima com Chuvisco. A mudanga de registro consiste na passagem de um discurso pragmatico - a batalha das palavras -, em inscrigao mortuaria, des tinada a preservar a imagem do morto. Na disputa, os signos-pala~ vrdes substituem as pedras, assumindo um cardter precdrio, tempo- ral e circulando no espago da oralidade. No epitafio, os signos so gravados para sempre na pedra, tornando-se esta o lugar apro- priado para se perpetuar a escrita. Quanto 4 associagao entre palavra e coisa, verificamos que , na disputa, as palavras séo tomadas ao pé da letra, funcionando co mo instrumentos vivos de luta; no epitdfio, a palavra (ou imagem) se confunde com a pedra, reiterando, assim,a estreita ligagdo en- tre a escrita e a morte. NOTAS Obs. Este trabalho é parte de um capitulo da tese de Doutorado , Des mots, des Langages et des jeux: une Lecture de Macunaima, defendida na Université de Paris VII, em dezembro de 1982. -95- lo. il. SOUZA, Gilda de Mello e, 0 tupé e o afaiide: uma interpretacdo de Macunaima. Sio Paulo, Duas Cidades, 1979. CAMPOS, Haroldo de. NorgofLogia do Macunaima. So Paulo, Pers- pectiva, 1973. PROPP, Vladimir. Moaphofogie du conte, Paris, Editions du Seuil, 1970. SOUZA, Gilda de Mello e. Op. cit., p. 52. idem, ibidem, ANDRADE, Mario dé. Nacunazma: o herdé sem nenhum canater. Ed. critica de Telé P. A. Lopez. Rio de Janeiro, Livros Técni - cos e Cientificos; Sio Paulo, Secretaria da Cultura, Cién ~ cia e Tecnologia, 1978. As indicagdes das paginas feitasno ensaio referem-se a essa edigéo, que sera indicada pela ini cial M. SOUZA, Gilda de Mello e. Op. cit., p. 24. Macunaima substitui o papel da onga - os rugidos pelos pala - vrdes - assim como Chuvisco representa a chuva - provocar me- do na familia de Piaim&. Cf. KOCH-GRUNBERG, T. Lenda 44, Kaikuse @ Konog (A onga e a chuva). In: _. Nitos e tendas dos indios Tautipang e Arckuni, Trad. brasileira de H. Roenick, rev. de M. C. Proenga. Revista do Museu Paulista, Biblioteca do Museu Paulista, 1953, p. 133-134. CAMARA CASCUDO, Luis da. Diciordrio do folckone brasizeiro. 2 v. Rio de Janeiro, Ed. de Ouro, 1969. idem, p. 404. “Ankh, croix ansée: croix ou noeud magique appelé le vivant , trés fréquemment employée dans 1'iconographie égyptienne, (...) la croix figure l'état de transe dans lequel se débattait -96- 12. 13. 1a. 15. 16. l'initié, plus exactementelle représente l'état de mort, la crucifixion de 1'6lu (...)." CHEVALIER, J., GHEERBRANT, A. Dictionnaire des symboles. Paris, Seghers, 1969. p. 76. COMPAGNON, Antoine. L'écriture brouillée. In: _- La seconde main: ou fe travade de fa citation. Paris, Editions du Seuil, 1979, idem, p. 395. idem, p. 273. VERNANT, Jean-Pierre. Hito ¢ pensamento entre os gnegos. Trad. de Haiganuch Sarian. Sao Paulo, Difuso Européia do Livro , Ed. da Universidade de S30 Paulo, 1973. idem, p. 264-265. -97-

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