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CINEMA E EDUCAÇÃO: DIFERENTES CONTEXTOS E OUTRAS APROPRIAÇÕES

Andreza Oliveira Berti (Doutoranda / PPGE-UFRJ )


Fernanda Omelczuk Walter (Doutoranda / PPGE-UFRJ)
Glauber Resende Domingues (Doutorando / PPGE-UFRJ)

RESUMO
Este pôster busca articular as reflexões e as interlocuções problematizadas pelo Grupo de
Pesquisa Currículo e Linguagem Cinematográfica na Educação Básica a partir da
apresentação de três pesquisas de doutorado desenvolvidas no Grupo. Na primeira parte
são definidos os conceitos de cinema e educação trabalhados. Em seguida cada pesquisa é
apresentada: O cinema e a produção de diferença e de alteridade dos jovens do Ensino
Médio; O Cinema e as relações de diferentes espectadores com o som; e Cinema no
Hospital. Nas considerações finais, apresenta-se, de forma contingencial, o que as
pesquisas já possuem em comum: o cinema e a educação da diferença; a aposta em outros
modos de percepção do cinema como arte; construção de novas subjetividades, novas
relações com o cinema, consigo mesmo, com o outro e o mundo.

Palavras-chave: Cinema; Educação; Subjetividade; Alteridade.


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INTRODUÇÃO
Ao pensar nas possibilidades cinematográficas nos diferentes contextos, o presente
trabalho busca articular as reflexões e as interlocuções problematizadas pelo Grupo de
Pesquisa Currículo e Linguagem Cinematográfica na Educação Básica a partir da breve
apresentação de três das diversas pesquisas desenvolvidas no Grupo. O Grupo de
Pesquisa tem como objetivo “pesquisar experiências de introdução ao cinema com
professores e estudantes de Educação Básica, dentro e fora da escola”, fundamentando-se
em pesquisas produzidas tanto no campo do cinema quanto no campo da educação.
Essas aproximações entre esses dois campos são percebidas nas atividades
desenvolvidas no programa de extensão do CINEAD – Cinema para aprender e
desaprender – que congrega múltiplas ações entre a Educação Básica e o Ensino Superior:
Curso de Extensão Universitária Cinema para Aprender e Desaprender; Curso de
Aperfeiçoamento de Cinema para professores de Educação Básica; A Escola vai à
Cinemateca do MAM; Escola de Cinema do CAp UFRJ; Cinema no hospital?
(IPPMG/UFRJ); Escolas de Cinema na rede pública de Ensino Fundamental; Atendimento
interno (construção da memória dos eventos da FE/UFRJ) e consultorias (rede pública) no
Laboratório de Educação, cinema e audiovisual; Cineclube Educação em Tela; Escola de
cinema no Instituto Nacional de Educação de Surdos; Escola de cinema no Instituto
Benjamin Constant; Cinema com as “Mulheres Cuidadoras das Creches” no Centro de
Referência de Mulheres da Maré; Cinema e velhice: a imaginação atravessando a memória.
(FRESQUET, 2013). Estes são os diferentes braços de pesquisa e extensão desenvolvidos
pelo Grupo, que acabam se tornando locus da realização das pesquisas dos graduandos e
pós-graduandos.
Em comum, as ações do Grupo de Pesquisa Currículo e Linguagem Cinematográfica
na Educação Básica tomam o cinema enquanto produção cultural e artística, compartilhando
com Bergala (2011, p.46) que “o que a escola pode fazer de melhor, hoje, é falar dos filmes
em primeiro lugar como obras de arte e de cultura”. O que significa conhecer e recolher
informações sobre ele, seu contexto de criação e seu realizador. De fato, o cinema pode ser
tomado como um excelente parceiro para a percepção de si e do mundo (MIGLIORIN,
2013). Tomar o cinema como arte, implica não separar as dimensões do fazer e ver,
somadas ao compartir, já que a arte só adquire sentido quando compartilhada. Para
Rancière (2011, p.104):
cada um de nós é artista, na medida em que adota dois
procedimentos: não se contentar em ser homem de um ofício, mas
pretender fazer de todo trabalho um meio de expressão; não se
contentar em sentir, mas buscar compartilhá-lo.
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Assim, para além do que se ensina e se aprende com o cinema, as ações do Grupo
de Pesquisa apostam no que se aprende quando se aprende a fazer cinema. Atitude que
influencia diretamente o modo como vemos os filmes, como interagimos com eles, como
somos afetados e como afetamos os outros, o mundo.
Nesse movimento, as pesquisas (em andamento) evidenciadas nesse trabalho são
frutos das investigações de três doutorandos do Programa de Pós-Graduação em Educação
da Universidade Federal do Rio de Janeiro, sob a orientação da professora doutora Adriana
Fresquet.

CINEMA: OUTRAS APROPRIAÇÕES


Compartilhamos da hipótese de alteridade de Jaques Lang (BERGALA, 2008), que
defende a entrada do cinema no espaço escolar1 - e não só neste espaço - como um “outro”,
como algo diferente, um estrangeiro que vem quebrar e enriquecer as rotinas e estruturas
escolares ao “fazer arte”. Acreditamos que o cinema ocupa nas instituições que penetra -
uma escola, um orfanato, um asilo, ou um hospital - o lugar de um estrangeiro, que provoca
e desestabiliza a verdade com a invenção, a emoção, o irracional e o sonho, dimensões
humanas preteridas pelo processo educativo.
Sob o ponto de vista estético, narrativo e linguístico, procuramos o encontro com um
cinema que cause uma espécie de falta de ar, uma apneia de compreensão racional do que
se vê para que se experimente um vazio, uma incompletude, uma rejeição e se aceite ver as
coisas com sua parte de enigma, antes de sobrepor-lhes palavras e sentidos. Pensamos em
filmes que desafiem o excesso de estímulos, a velocidade e a lógica previsível e
condicionante do olhar nas narrativas clássicas e televisivas, acessíveis no circuito
comercial. Temos também uma atenção especial com o potencial poético das obras e em
compartilhar com crianças e jovens as produções do cinema brasileiro, que impulsiona
nossa investigação e familiarização com a produção nacional, ajudando a romper com sua
naturalizada desvalorização.
A experiência de outros ritmos, a presença mais efetiva do silêncio, planos longos
que seduzem o espectador a esperar as imagens surgirem na tela se chocam com o
imediatismo cinematográfico e pedagógico ao qual estamos acostumados. O olhar
automatizado e utilitário do mundo - e muitas vezes das aprendizagens formais - é

1
No final do ano de 2000, Alain Bergala foi convidado pelo Ministério da Educação da França – no
nome de Jacques Lang- para liderar um projeto de iniciação à arte na escola e organiza então a
introdução da arte cinematográfica nas escolas públicas francesas. Essa experiência e a
fundamentação do trabalho realizado está relatada no livro A Hipótese- Cinema: pequeno tratado de
transmissão do cinema dentro e fora da escola (2008).
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provocado pela sensibilidade de pequenos gestos que desfamiliarizam nossa percepção do


cotidiano.
O cinema enquanto arte restitui à educação o que Larrosa (2006) chama de
linguagem indireta, aquela que se utiliza como máscara e sabendo-se que é uma máscara,
é a linguagem do “como se”, diferente da linguagem direta, séria, austera: a linguagem
professoral ou médica, plenamente identificada com sua posição, seu poder e sua categoria.
O cinema compartilha da função do riso, como aquele que mostra a realidade a partir de
outro ponto de vista (Op. Cit.). Ou dito de outra forma, como a arte da representação e da
criação de realidades outras: “o cinema não é apenas e singelamente, um processo de
captação e fixação da realidade, de uma realidade. (...) O cinema é um processo de
representação” (FERREIRA, 2011, p. 13). O cinema pode ser compreendido como arte à
medida que é encarado como um ambiente de representações. Ao fazer uma incursão
histórica para explicar o que é cinema, Bernadet (1981) vai ao encontro desta acepção,
dizendo que o cinema é a arte da ilusão da verdade. Ou seja, o que vemos na tela é
verdade enquanto aquela verdade dura na tela.
Cremos ser este o principal potencial do cinema para a educação: criar outros
espaços de representação, de ilusão, onde a imaginação ganhe mais espaço nos momentos
de fruição artística e os estudantes possam exercer um protagonismo de expor suas
representações de mundo e possam expressá-las em suas criações cinematográficas. Outra
forma de se apropriar do cinema é sair de uma concepção unívoca de que só se é possível
apropriar do cinema a partir do que a imagem (exclusivamente) nos provoca.
Atualmente o cinema é imagem e também som, o que convoca o espectador a ter
uma escuta atenta, fazendo desta um importante canal de apropriação cinematográfica
(RESENDE, 2013). Assistirmos filmes em 3D, por exemplo, também nos dá outro modo de
apropriação: insere-nos na história, faz-nos sentir parte do que vemos. Talvez, quem sabe,
num futuro não tão distante possamos sentir os cheiros e as temperaturas dos filmes que
assistirmos?

EDUCAÇÃO: OUTRAS APROPRIAÇÕES


Sodré (2012), avaliando a produção de conhecimentos do campo pedagógico,
postula a necessidade de se reinventar a educação como um todo, já que este [o campo
pedagógico] esteve centrado na prática escolar, mas encontramo-nos hoje em contexto
histórico social propício para questionar o escopo amplo da educação. Diz ele que (2012,
p.138);
a transformação educacional deveria, assim, ser isomórfica
com a transformação social, uma vez que nenhuma
pedagogia conseguiria por si só retroagir sobre a lógica
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autoritária do capital espelhada na homogeneidade dos


dispositivos formais de educação.

Por isso trabalhamos com uma concepção de educação que extravasa a escola.
Uma educação em movimento ativo de aprender e desaprender sobre si mesmo e o mundo,
que é ao mesmo tempo inventar a si e ao mundo. Uma educação criadora, presente em
todos os processos da vida cotidiana (FRESQUET, 2009; KASTRUP, 2007).
Brandão (2007) ao afirmar que “não há uma forma única nem um único modelo de
educação; a escola não é o único lugar onde ela acontece e talvez não seja o melhor; o
ensino escolar não é a sua única prática e o professor profissional não é o seu único
participante” (op. cit, p. 9), traz uma importante contribuição para reforçar a concepção de
educação com a qual operamos. Educar, no nosso ponto de vista, não é inculcar um dado
conhecimento sobre cinema. Educar é propiciar tempos e espaços para diferentes modos de
ser e estar no mundo. É atravessar a zona fronteiriça entre quem ensina e quem aprende,
pois todos nós aprendemos enquanto ensinamos e ensinamos enquanto aprendemos
(FREIRE, 2009). Logo, pensamos que a experiência educativa se faz de uma comunidade
de aprendentes, onde se faz presente a capacidade de aprender por relações, sem a
necessidade exacerbada da lógica explicadora (RANCIÈRE, 2010), que acaba reforçando
um poder que o mestre possui por, de certo modo, dominar os conteúdos em questão.
A introdução do cinema como arte na escola tem se mostrado uma experiência de
iniciação para todos – alunos, professores, pesquisadores. Acreditamos que este modo de
pensar a educação e a relação com o conhecimento cinematográfico revela uma postura
curiosa de todos os sujeitos. Cremos que as apropriações que o cinema proporciona quando
se tem esta relação de curiosidade, de imaginação para com ele torna a aprendizagem
potente, pois não postula modos de pensar o aprender cinematográfico de forma hermética.
Deste modo, não acreditamos em receitas, em um modelo para se aprender cinema
na escola. Estamos, a partir das experiências de pesquisa e de extensão, aprendendo e
desaprendendo diferentes modos. Na apresentação de nossas pesquisas, em específico,
tentaremos mostrar como estamos atentos a como estes modos se revelam em diferentes
contextos e como levamos em conta as diferentes apropriações dos sujeitos.

DIFERENTES CONTEXTOS
O cinema e a produção de diferença e de alteridade dos jovens do Ensino Médio
Dentro desse contexto de investigação é que se insere o projeto de pesquisa “A
experiência com o cinema na escola: potencializando a educação da diferença”, cujo
objetivo central é investigar se (e de que maneira) o cinema problematiza a diferença e a
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alteridade dos jovens que cursam o Ensino Médio nas escolas públicas do estado do Rio de
Janeiro.
A inserção no coletivo de pesquisa Currículo e Linguagem Cinematográfica na
Educação Básica tem ajudado a problematizar os padrões socioculturais presentes na
sociedade e, consequentemente, nas escolas; na medida em que oferece indícios para a
construção de currículos e linguagens, marcados pela heterogeneidade. Acentuados pela
diferença.
Com esta pesquisa, objetivamos investigar a percepção que os alunos apresentam
sobre o(s) outro(s), a partir da experiência com o cinema na escola e, identificar, por meio
de experiências com o cinema, se ele produz a diferença e/ou ressignifica as
subjetividades/corporeidades dos estudantes de Ensino Médio em três escolas da Rede
Estadual de Ensino do Rio de Janeiro.
Buscamos, a partir das provocações cinematográficas direcionadas aos educandos,
contribuir para que possam desaprender os (pre)conceitos fabricados pela sociedade,
aprendendo outras possibilidades explicativas para a vida.
Nesse exercício de deslocamento do sentirpensar2 a vida (sobre o que somos e o
que podemos ser), afetados pela arte cinematográfica, descobrimos a potência criadora do
“outro”. Do “outro” como potente em si mesmo, o “outro como diferença” (GALLO, 2008,
p.2), para além da sua representação.
Assim, se o outro não se reduz apenas a reprodução da imagem que faço dele, logo,
podemos perceber as múltiplas diferenças desse outro. “Tomando o outro em si mesmo, o
outro enquanto outro, produz-se então uma política da diferença que pensa o coletivo como
conjunto de diferenças” (GALLO, 2008, p.13). Reconhecer a diferença do outro, portanto, é
um importante passo para assegurarmos a sua potência e fortalecermos no cotidiano
escolar uma política da diferença em que o outro “pode” se afirmar, se “expor”.
Na procura dessa afirmação da alteridade nos diversos espaços educativos,
aproximamo-nos da obra de Bergala (2008) “Hipótese-cinema: pequeno tratado de
transmissão do cinema dentro e fora da escola”, que é potencializada por Fresquet (2013)
em seu mais recente livro “Cinema e Educação: reflexões e experiências com professores e
estudantes de educação básica, dentro e ‘fora’ da escola”, onde percebemos o entusiasmo
com o “outro-cinema” no ambiente escolar, visto que “nada mais estrangeiro do que a arte
no contexto escolar. A arte não obedece, não repete, não aceita sem questionar. Arte
reclama, desconstrói, resiste com certa irreverência” (FRESQUET, 2013, p. 40).

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Neologismo criado por Eduardo Galeano.
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Nesse sentido, ao reconhecermos o cinema como alteridade e como produção de


diferença poderemos colocar em diálogo a diferença do outro (cinema) com a diferença do
outro (aluno); como “este outro que nos apavora e que pode ser qualquer um a nossa volta”
(GALLO, 2008, p. 11).

O Cinema e as relações de diferentes espectadores com o som


No contexto do grupo de pesquisa também se insere a investigação “O ponto de
escuta no cinema: experimentações em diferentes configurações e contextos de educação
básica”. Nesta pesquisa a principal questão gira em torno de perceber e analisar como se
constituem as escutas de estudantes com diferentes experiências de vida, ou seja, de
diferentes origens socioeconômicas e de diferentes condições de ser e viver neste mundo:
estudantes cegos e surdos, especificamente. Procuramos entender como uma possível
escuta pode ser evidenciada, no caso dos estudantes surdos e se a escuta é potencializada,
no caso dos estudantes cegos.
Numa pesquisa de mestrado desenvolvida no grupo de pesquisa (RESENDE, 2013)
se percebeu que aprender a construir o ponto de escuta está intimamente associado às
escutas anteriores do espectador. Atrevemo-nos a afirmar que nenhum ponto de escuta
pode estar desatrelado do modo como o indivíduo vê, escuta e sente o mundo que o rodeia.
A escuta é manifestação da memória e também da imaginação. A construção da escuta é a
intervenção da alteridade com o intuito de produzir memória (RESENDE, 2013). É na escuta
que se manifesta a possibilidade de reconhecer sons, ou seja, é nela que se possibilita o
reconhecimento de elementos sonoros que fazem parte da história auditiva do indivíduo. A
imagem se enriquece quando um ouvido interpreta os sons que ela produz ou mesmo que
venha sem sons, pois esta ativa a imaginação do espectador no sentido de produzir
imagens sonoras para o que é visto.
Com estas conclusões provisórias de que a escuta é condicionada, de algum modo,
pela memória e pelas diferentes experiências de escuta do espectador, temos nos
perguntado se essas experiências de escuta se repetem em determinados contextos e se
sim, como estas escutas se dão. É subjacente a esta questão o fato de haver na escola
atores sociais de diferentes contextos econômicos e culturais, bem como sujeitos com
diferentes condições de ser e estar neste mundo, como estudantes cegos, surdos. A
intenção é perceber como os diferentes estudantes trazem suas experiências de vida e
escuta no contato com os sons do cinema, seja escutando-os, experimentando-os, no caso
dos estudantes surdos, discutindo sobre eles ou executando exercícios cinematográficos.
Como objetivos desta pesquisa, em específico, procuramos compreender e analisar
os modos de escuta dos sons cinematográficos de alunos das Escolas de Cinema do
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Programa de Extensão do CINEAD, observar as escutas cinematográficas dos estudantes


de ensino regular de diferentes escolas de cinema do CINEAD, propor atividades de
exibição e produção de filmes com vistas a perceber o desenvolvimento da escuta dos
estudantes no decorrer do processo da pesquisa, analisar a posteriori – a partir de filmagens
– as atividades de exibição e produção feitas pelos alunos com a intenção de perceber os
processos de escuta dos sons do cinema.
Temos nos ancorado em pesquisadores que pensam a questão do som no cinema e
a escuta destes sons (RODRÍGUEZ, 2006; CHION, 2011). Como possíveis espaços
empíricos da pesquisa, temos as quatro escolas de educação básica que fazem parte da
extensão do CINEAD, além de duas escolas especiais, que também estão associadas ao
programa: Instituto Benjamim Constant e Instituto Nacional de Educação de Surdos.

O Cinema no Hospital
O projeto de pesquisa e extensão Cinema no Hospital? visa aproximar crianças e
adolescentes do cinema como arte; ver filmes e fazer atividades de criação cinematográfica
com inspiração na fotografia, nas artes visuais, em trechos de filmes, em elementos da
linguagem cinematográfica, em fatos da história do cinema, na ambiência do contexto
hospitalar.
Assim, para muitas crianças e famílias, não é na escola, mas na enfermaria do
hospital que experimentam pela primeira vez outro cinema, outro tempo, outra estética,
outra possibilidade de ver o mundo. Oriundas em sua maioria de bairros periféricos do
grande centro artístico e cultural da cidade, pode ser também que seja na enfermaria do
hospital que participam pela primeira vez desse encontro que nos fala Migliorin (2011,
p.135):
Encontro em que um indivíduo qualquer, vindo de qualquer lugar,
pode sentir e fruir com o outro na imagem, com o outro da sala
[enfermaria] e com os múltiplos outros que o habitam, em uma
experiência na qual sua própria fruição já é um tipo de criação.

Para Migliorin, o cinema e todo o seu entorno é um espaço privilegiado para a


experiência da coletividade, que por sua vez é um problema de participação estética e
discursiva para a democracia. Ele acredita que a escola é um espaço possível e desejável
para o risco que as invenções de mundo pelo cinema provocam e que as crianças tem muito
a criar ao ver e fazer cinema. A interseção cinema, escola e infância são para Migliorin
necessidades da arte e urgências da democracia. Quando estamos no espaço hospitalar
sentimos que essa interseção extrapola a escola porque ver e fazer cinema (ainda que com
seus primeiros gestos) nas enfermarias socializa antes de tudo a própria aprendizagem.
Socializa o lugar reservado para aprender, o “conteúdo” a se aprender, o tempo
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(psicológico, afetivo e físico) para aprender, quem deve aprender, as “condições ideias” para
aprender...
Arte e criação, nos dizem Aidelman & Collell (2010), são incontroláveis. É preciso
valentia para se expor ao desconhecido, ao que tenha que vir do processo de invenção. Nas
enfermarias, as vidas interrompidas por um acontecimento inesperado, indesejado, muitas
vezes incompreensível e sem respostas, incontrolável como é o adoecer, compartilham com
a arte essas marcas. Se o cinema usa da matéria realidade para acontecer, como nos diz
Bergala (2008), a experiência da realidade nesse espaço é ainda mais favorável para a
aventura do fazer artístico.

CONSIDERAÇÕES PROVISÓRIAS
Partilhamos, como cúmplices, de um cinema que age pela surdina, silenciosamente,
provocando emoções, povoando a educação de sensibilizações, haja vista que as
experiências de aprendizagem são atravessadas por intelecção. Cremos que uma pequena
iniciativa de uma exibição de um curta-metragem ou de uma exibição de um trecho de um
longa-metragem por um professor apaixonado por esta arte pode fazer uma enorme
diferença na vida dos alunos e acender neles uma centelha de paixão pela sétima arte.
Nas escolas, pensamos que o cinema pode privilegiar uma educação da e para a
diferença: da diferença que se relaciona com a própria subjetividade, fazendo-a presente
nas tramas discursivas; e para a diferença que se relaciona com a subjetividade do outro, ou
seja, um convite ao exercício da alteridade. A relação com o cinema também propicia outros
tipos de alteridade quanto à percepção desta arte. Percebemos que, ao assistir filmes, a
escuta dos estudantes é acionada de modo a ampliar a relação deles com os filmes e a
observar o quanto a escuta dos sons dos filmes é motivada por uma relação íntima com
suas escutas anteriores.
Nas enfermarias hospitalares, ao montarmos a tela e pedirmos a todos que
desliguem suas televisões observamos que produzimos uma relação diferenciada na
recepção do filme, que se aproxima do cinema e permite uma imersão maior na magia do
filme e na construção de uma relação única entre aquilo que lá se passa e aquele que vê.
Na maioria dos casos este público desconhece a experiência do “ritual” da sala escura e a
“experiência do silêncio” que o cinema propicia, de um estado interno de atenção, recepção
e mesmo de contemplação – um outro modo de ver, ouvir e se relacionar com o mundo e as
imagens pode ser aprendido.
Levando em conta um tipo de sujeito (educadores e educandos) que queremos,
pensamos ser interessante desenvolver pessoas sensíveis, que inventem mundos, para que
este se torne mais habitável, e que, na tentativa de invenção, incorporem modos de lidar
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com o outro, respeitando-o em suas particularidades. Por isso, nossas pesquisas buscam
articular experiências e investigações provenientes tanto do campo cinematográfico quanto
do campo educativo, nos mais variados contextos.

REFERÊNCIAS
AILDMAN, Nuria & COLLEL, Laia. De las potencias pedagógicas de la creación
Cinematográfica. Revista Contemporânea de Educação, vol 5, n. 10, jul/dez, 2010.
BERGALA, Alain. A hipótese-cinema: pequeno tratado de transmissão do cinema dentro e
fora da escola. Rio de Janeiro: Booklink; CINEAD-LISE -FE/UFRJ, 2008.

BERNADET, Jean Claude. O que é cinema. 3ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1981.

BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é educação. 49ª reimp. São Paulo: Brasiliense, 2007.

CHION, Michel. A audiovisão: som e imagem no cinema. Trad. Pedro Elói Duarte. Lisboa:
Edições Texto & Grafia, 2011.

FERREIRA, Carlos Melo. Cinema – uma arte impura. Porto: Afrontamento, 2011.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 39ª ed.
São Paulo: Paz e Terra, 2009.

FRESQUET, Adriana. Cinema e educação: reflexões e experiências com professores e


estudantes de educação básica, dentro e “fora” da escola. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.

GALLO, Sílvio. Eu, o outro e tantos outros: educação, alteridade e filosofia da diferença. In:
Anais do II Congresso Internacional Cotidiano: Diálogos sobre Diálogos. Universidade
Federal Fluminense, Rio de Janeiro, 2008.

KASTRUP, Virgínia. A Invenção de si e do Mundo: uma introdução do tempo e do coletivo


no estudo da cognição. Belo Horizonte: Autêntica, 2007.
LARROSA, Jorge; LOPES, José Miguel; TEIXEIRA, Inês de Castro. (Org.) A infância vai ao
cinema. Belo Horizonte: Autêntica, 2006.

MIGLIORIN, Cézar. Prefácio. Em: Cinema e Educação: reflexões e experiências com


estudantes de educação básica, dentro e “fora” da escola. 1˚ edição, Rio de Janeiro:
Autêntica, 2013.
RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. São Paulo. Ed. 34, 2 edição,
2009.

______. O mestre ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. 3ª ed. Belo
Horizonte: 2010.

RESENDE, G. Cinema na escola: aprender a construir o ponto de escuta. Dissertação


(Mestrado em Educação) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2013.

RODRÍGUEZ, Ángel. A dimensão sonora da linguagem audiovisual. Trad. Rosângela


Dantas. São Paulo: SENAC, 2006.

SODRÉ, Muniz. Reinventando a Educação: Diversidade, descolonização e Redes. 2˚


edição, Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.

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