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29/05/2023, 11:20 O papel do trabalho de campo na geografia, das epistemologias da curiosidade às do desejo

Confins
Revue franco-brésilienne de géographie / Revista franco-brasilera de geografia

17 | 2013
Número 17

O papel do trabalho de campo na


geografia, das epistemologias da
curiosidade às do desejo
Le rôle du terrain en géographie. Des épistémologies de la curiosité à celles du désir
The role of fieldwork in geography, from epistemology of curiosity to epistemology of desire

Paul Claval
Traduction de Giovanna Thomaz; revisão de Patrícia Reuillard (UFRGS)
https://doi.org/10.4000/confins.12414

Cet article est une traduction de :


Le rôle du terrain en géographie [fr]

Texte intégral
1 A ideia de que a geografia deve fundamentar-se na prática do trabalho de campo se
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estabelece apenas tardiamente: o geógrafo não é um explorador ou um viajante; seu
trabalho não consiste em relatar o que se observa em cada lugar, mas em transformar a
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daqueles et estão em contato com a realidade em uma visão de
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conjunto, na qual limites se distinguem, linhas se desenham e convergências aparecem.
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A concepção souhaitez
moderna da profissão de geógrafo se define do final do século XVIII ao
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início do XIX.
2 Para que serve o trabalho de campo? Para garantir a autenticidade das observações
coletadas e proporcionar a descoberta de realidades que escapam às outras estratégias
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de investigação. Ademais, também se faz útil para a formação do cidadão. É à gênese e
ao desenvolvimento desses aspectos que se dedica este pequeno ensaio.
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POR QUE O TRABALHO DE CAMPO?
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O trabalho de campo como prova da verdade


3 A importância dada a essa prática nasce de uma das correntes da filosofia medieval: o
nominalismo (Vignaux, 1985). Um conceito não existe por si só, não tem realidade
imanente; vale apenas na medida em que a experiência daquele que o define ou o utiliza
garante sua autenticidade. É devido a essa exigência, constantemente revisitada, da
verdade como algo embasado na experiência pessoal que o conhecimento moderno
deve se voltar continuamente ao real, moldar-se às suas asperezas e mergulhar cada vez
mais profundamente nos processos que nele se desenvolvem. A verdade não está
contida no conceito; este precisa ser sempre validado, o que pressupõe uma encenação,
um dispositivo, um experimentador e um público ao qual os resultados são destinados.
4 Garantida, dessa forma, pela experiência direta do pesquisador, a oposição
permanente do ideal e do real torna-se uma característica basilar do pensamento
ocidental no momento em que a abordagem científica moderna se estabelece no fim do
século XVI e no começo do XVII.
5 A experiência pessoal que funda o saber científico nem sempre assume a mesma
forma. Nas ciências exatas ou nas biológicas, ela se dá em laboratório. Graças aos
processos que mobiliza e aos instrumentos que elabora ou utiliza, o pesquisador
evidencia uma manifestação observável do processo que estuda. Mas jamais está
sozinho atrás de seu microscópio, telescópio ou tela: ele trabalha para refutar outras
interpretações e para forçar seus pares a admitirem os resultados de um experimento
que é reproduzível e, portanto, legitimamente universal. Já faz 30 anos que Bruno
Latour revolucionou a epistemologia das ciências experimentais ao analisar as práticas
laboratoriais e as comparações que surgem a partir disso. (Latour, 1988/1979;
2006/2005).

O papel do trabalho de campo nas ciências de


observação
6 Existem disciplinas que não se desenvolvem através da experimentação, como as
ciências humanas e, de certa forma, as ciências naturais; são as ciências baseadas na
observação. Essas não se constroem dentro do laboratório; o observador se move, faz
pesquisa em campo, compara lugares ou regiões.
7 Em Botânica ou Zoologia, o essencial da pesquisa acontece (1) ao se percorrer as
localidades onde crescem as plantas e onde vivem os animais que são observados,
descritos e inventariados, (2) em jardins botânicos ou zoológicos, que mantêm vivos
espécimes de espécies já identificadas, e (3) em coleções que conservam os primeiros
exemplares repertoriados, o que permite manter um registro da primeira observação.

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Em mineralogia ou geologia, o trabalho começa pela observação de rochas ou minerais
no lugar onde surgem. Os espécimes são em seguida estudados e conservados nos
museus de história natural — outros são analisados em laboratório.
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8
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novasleciências
contrôlequesur nascem copiam os saberes naturalistas: é no terreno,
percorrendo
ceux que vous cidades e campos, imergindo nas sociedades autóctonas ou instalando-se
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nas vilasactiver
industriais que o geógrafo, o etnólogo e o sociólogo exploram o mundo e
procuram explicá-lo.
9 Antes de os dados coletados pelos serviços especializados, públicos ou privados,
(estatísticas, pesquisas), estarem disponíveis, quase todas as ciências humanas
voltavam-se para o trabalho de campo: elas passam por uma fase em que essa prática é
primordial para suas formações. No fim do século XVIII e início do XIX, a geografia
aparece assim como a matriz comum de um certo número de disciplinas, especialmente
da economia e etnografia (Claval, 1072).
10 O trabalho de campo garante a autenticidade das observações, mas ele leva tempo e
limita as possibilidades de trabalho do indivíduo. Muitos procuram evitar essas
restrições e preferem explorar os testemunhos recolhidos por outros. É isso que passa a

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fazer a geografia do século XVII e da primeira parte do XVIII, o que dá às suas


descrições um tom frio e impessoal. Entretanto, Rousseau a reconduz à prática em
campo.

A influência de Rousseau e da pedagogia


pestalozziana
11 Para demonstrar que o pensamento de Rousseau tem uma dimensão geográfica, nada
melhor do que a sua concepção filosófica de viagem: a geografia é indispensável àqueles
que querem reconstituir o trajeto que levou do estado natural ao civil — à civilização.
Mas o papel de Rousseau vai bem além disso: o aumento da atenção prestada ao
trabalho de campo é prova da sua influência.
12 Rousseau toma para si o tema fundamental de todo nominalismo: o discurso não
comporta em si mesmo a verdade (Claval, 1995). É preciso procurá-la no mundo, nas
coisas, na sociedade, e não nas palavras. Ele extrai disso uma nova concepção
pedagógica: opondo-se às práticas então dominantes, exige que o saber seja transmitido
às crianças não apenas verbalmente. Sem o confronto com o mundo real, somente o
ensino em sala de aula não permitirá que os jovens formulem julgamentos satisfatórios.
Para Rousseau, os alunos devem sair da sala e de sua atmosfera confinada; eles
aprenderão mais ao se movimentar, ao trabalhar com botânica (sabe-se como Rousseau
é competente nessa área) e ao observar a natureza e a atividade dos homens.
13 No que tange à pedagogia, o sucesso das ideias de Rousseau é assegurado pelo suíço
Henri Pestalozzi (Claval, 1995). Este enfatiza o que podemos apreender a partir da
observação: a “lição das coisas” tem um papel central na escola que ele cria. A
concepção rousseana de aprendizado tem um impacto evidente na disciplina: afinal,
dois dos geógrafos mais ilustres do século XIX, Ritter e Reclus, não se formaram em
escolas pestalozzianas?
14 É preciso quase um século para que os temas da pedagogia pestalozziana sejam
incorporados nas abordagens dominantes. Quando o ensino primário se torna
obrigatório na França, no início dos anos 1880, a transformação se efetiva: a “lição das
coisas” passa a ocupar um lugar de destaque. A escola passa a tratar da geografia de
duas maneiras: ensinando-a objetivamente, com um espírito republicano e nacional; e
mostrando, graças à lição das coisas e às saídas de campo, o que o contato direto com o
mundo pode ensinar à criança.
15 O impacto das ideias de Rousseau é tão profundo que a nova geografia que se
configura no fim do século XIX não pode se conceber sem tratar do mundo tal como ele
é, sem ser uma disciplina prática. Mas essa condição vem acompanhada de algo mais.

☝ 🍪 de campo e a descoberta de aspectos


O trabalho
Ceque escapam
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16 Alexander
ceux que vousvon Humboldt representa a evolução da disciplina na virada do século
souhaitez
activer
XVIII para o XIX. Físico, naturalista e explorador, levou de sua viagem pela América
Latina tantos materiais que foram necessários 25 anos para prepará-los e entendê-los —
particularmente os de natureza geográfica. Um de seus objetivos era reunir os lugares
que apresentam traços similares e mostrar o que as unidades territoriais (regiões,
estágios de vegetação), assim definidas, têm de diferente. O viajante torna-se geógrafo
quanto enfatiza a especificidade das paisagens descobertas e sua distribuição no espaço.
Dessa forma, o volume Vues des Cordillères et monuments des peuples indigènes de
l'Amérique et Voyage aux régions équinoxiales du Nouveau Continent (1810-1989)
assume um papel central na obra de Humboldt: as imagens apresentadas permitem
entrever a originalidade das regiões por onde ele passou.

Figura 1: Antonio Teixeira Guerra em campo


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Fonte:« Antonio Teixeira Guerra », Confins 16, 2012, http://confins.revues.org/7912


17 Humboldt ensina-nos que o trabalho de campo não vale somente pela coleta de
informações. A realidade não resulta da justaposição aleatória de dados. Ela se
apresenta sob a forma de paisagens; tem uma fisionomia de conjunto que nos convém
apreender: afinal, não é através dela que a harmonia dos fatos terrestres se revela? A
saída de campo não serve apenas para recolher dados e assegurar a autenticidade
factual dos ensinamentos da disciplina; ela é também o vetor de um entendimento
global que não pode ser alcançado de outra forma, o mundo é feito de individualidades
que precisamos perceber. É crucial possibilitar ao público a oportunidade de captar
essas especificidades. O texto não é suficiente para isso — a vista é indispensável para
que o cenário esteja completo; aqueles que não se deslocam precisam de um substituto
dela para compreender o mundo: a imagem.
18 Há muito tempo aprendeu-se a usar essa imagem, o mapa – no entanto, é uma
imagem muito restritiva por ser feita na vertical, onde os fatos observados são
representados por símbolos. Para Humboldt, é necessária uma apreensão mais direta e
mais concreta do mundo. É por isso que ele decide registrar os desenhos e as aquarelas
que acumulou em suas viagens, reunindo-os em uma obra. (Claval, 2012).
19 A realidade geográfica não é igual à soma do que pode ser observado em um ponto ou
uma região; ela revela, através da paisagem, uma ordem que é importante evidenciar.
Sem a experiência prática, o geógrafo deixa escapar uma parte essencial das realidades
que ele tem a intenção de dar conta: aquelas que não são fruto da inteligência, mas da
intuição, da sensibilidade, do gosto, da estética: aquelas que revelam a diferenciação
qualitativa do mundo.
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CeOsitetrabalho de campo
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20 ceuxUmaqueterceira
vous souhaitez
razão para praticar a saída de campo desponta no decorrer do século
XIX: seu activer
valor cívico. Para além das questões acadêmicas, das ideias de Rousseau e de
Pestalozzi, a prática de campo não serve somente para a formação do espírito, mas
também é indispensável para a criança e o adolescente que pretende tornar-se um
adulto completo, uma vez que ela assegura o desenvolvimento harmonioso de seu
corpo, como enfatiza Elisée Reclus (1866). Ela o leva a conhecer o mundo assim como
ele é e ensina-o a se movimentar dentro dele, a tirar partido da organização particular
de cada espaço.
21 Na França, é principalmente através das novas orientações do ensino que a prática do
trabalho de campo se propaga. Ela progride mais rapidamente na Alemanha e na
Áustria, onde inspira o sociólogo Riehl, que lança a juventude na estrada em busca do
país e das pessoas — Land und Leute (1862). Os Vogelwanderer que começam a

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percorrer as estradas do mundo germânico por volta dos anos 1860 não procuram
somente compreender melhor o mundo que os cerca, mas também fortalecem o corpo e
o desejo ao percorrer esse árduo caminho.
22 A corrente que impulsiona o interesse dos jovens pelo contato com o ar livre, o
esporte e a viagem, não se consolida na França antes dos últimos anos do século XIX.
Mas o valor cidadão do trabalho de campo é reconhecido mais cedo: para alguns, os
oficiais franceses foram em parte responsáveis pela derrota na Guerra Franco-
Prussiana em 1870 – por não terem formação, eles eram incapazes de ler e utilizar os
mapas para organizar as manobras das tropas,. Para Loudovic Drapeyron ( Broc, 1974),
era necessário, então, ensinar os jovens franceses a ler as paisagens e o mapa por meio
de repetidas saídas de campo — uma das características importantes da renovação da
geografia que se manifesta nos anos 1870.
23 A escolha feita por Vidal de la Blache de dedicar suas férias para percorrer — de trem
ou a pé — a França e os países vizinhos se deve, em parte, a essa vontade de formar
melhor os franceses, levando-os a compreender o mundo através da prática da saída de
campo e do conhecimento geográfico (Sanguin, 1993). Esse envolvimento ajuda na
construção tanto do cidadão quanto do geógrafo.

A GEOGRAFIA E O TRABALHO DE
CAMPO NO SÉCULO XIX
24 A tarefa do geógrafo, até a criação do primeiro relógio marítimo de alta precisão de
John Harrison, na metade do século XVIII, é estimar as distâncias percorridas pelos
marinheiros ou exploradores a fim de determinar longitudes que não podem ser
medidas diretamente. A disciplina se baseia na análise dos relatos de viagem e dos
diários de bordo: ela se pratica em gabinete. Mas as novas possibilidades de
determinação das coordenadas obrigam os geógrafos a reinventarem seus métodos.
25 A questão do trabalho de campo, que se impõe no fim do século XIX, em uma
geografia finalmente modernizada, têm diversas fontes: a questão pestalozziana da
lição das coisas, a vontade de consertar as falhas do sistema educacional francês,
reveladas pela derrota de 1870, e a admiração pelas ciências naturais.

Um modelo: as práticas dos botânicos, dos


geólogos e dos engenheiros florestais
26 O lugar que o trabalho de campo ocupa na formação dos geógrafos a partir do fim do
século XIX resulta, em parte, da influência que exercem sobre essa disciplina em vias de
☝🍪
construção os saberes naturalistas já consolidados. Não é suficiente ter um herbário
para aprender a reconhecer as plantas; é preciso identificá-las, colhê-las e demarcá-las
Ceenquanto
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se caminha pelos campos, prados e bosques. O mestre avança em um passo
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vívido, curva-se, pega uma flor, descreve-a, diz seu nome em latim. Os discípulos se
ceux que vous souhaitez
precipitam em colher outros exemplares; eles os colocam entre folhas de papel para
activer
depois criarem seus próprios herbários.
27 Para se tornar mineralogista, é preciso multiplicar as saídas de campo a fim de
aprender sobre a diversidade das rochas e adquirir um rápido olhar observador que
permita reconhecê-las. Para aquelas que não são reconhecíveis logo à primeira vista,
coleta-se um fragmento com um martelo para observar sua composição ou seus cristais.
Derrama-se uma gota de ácido para observar se é um calcário.
28 O geólogo é igualmente um viajante incansável, que também trabalha com um
martelo. Ele o utiliza para investigar fósseis, indispensáveis para a datação dos
depósitos sedimentares. Ele analisa os cortes nas pedreiras para neles ler as camadas de
imersão, a existência de discordâncias ou a presença de falhas.

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29 Desde o início, a École des Eaux et Forets de Nancy, (Escola de Àguas e Florestas de
Nancy) introduz estágios em trabalho de campo em seu currículo: os estudantes
aprendem a trabalhar com plantas, a analisar a composição das florestas e a diferenciar
as florestas altas, as baixas e as mistasGiovanna P.2017-08-20T15:41:00. Uma vez
formados, alguns engenheiros florestais se beneficiam de sua prática com o trabalho de
campo para analisar a resistência das comunidades camponesas frente à política
implementada por sua instituição. Inspirados por Le Play, realizam uma entrevista
sociológica em campo. Os geógrafos se inspiram de bom grado em suas práticas
(Kalahora e Savoye, 1986)

A prática do trabalho de campo no início e no fim


do século XIX
30 No início do século XIX, à época de Humboldt, fazer o trabalho de campo é quase tão
difícil na Europa Ocidental quanto nos países novos. As diligências são lentas e
dificilmente permitem apreciar a paisagem, a condição das estradas geralmente é
deplorável, e os albergues são poucos. Ir ao campo é penoso e requer muito tempo.
31 Além disso, o pesquisador se vê sozinho, pois os serviços oficiais mal estão
começando — ou nem começaram ainda — a fazer levantamentos sistemáticos da
pesquisa em campo. Na França, tem-se um primeiro mapa, de Cassini, mas lhe falta
precisão e clareza. O levantamento para o mapa de Estado Maior (carte d’État Major),
bem mais completo, recém está começando. A decisão de estabelecer o mapa cadastral
de todas os municípios franceses data da época de Napoleão I, e os levantamentos
avançam lentamente. A ideia de preparar mapas geológicos está desabrochando, mas a
pesquisa para tanto ainda não começou (Winchester, 2001).
32 No fim do século XIX, o trabalho de campo se dá em condições bem melhores: a rede
ferroviária é densa; os vagões dos trens são feitos para oferecer uma visão larga da
paisagem circundante; as estradas se multiplicaram, a maioria das estradas vicinais
foram pavimentadas, as instalações hoteleiras progrediram, e material para acampar,
na primavera e verão, começa a aparecer.
33 A partir do sexto ano do ensino fundamental, têm início as aulas de desenho. Em
algumas instituições, também se faz uso da aquarela, que permite criar uma paisagem
ou uma flor. A fotografia progride; as máquinas são cada vez menos volumosas. Começa
a ser possível, graças ao autocromo dos irmãos Lumière, tirar fotos coloridas. A prática
da botânica já é habitual.
34 Enfrentar a saída de campo ficou mais fácil para o geógrafo. Ele não precisa mais
limitar-se aos seus recursos; pode imitar os naturalistas. O mapa topográfico prepara o
trabalho que ele realiza ao ar livre, ao lhe dar uma amostra da paisagem, mesmo que

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mais simplificada, por reduzi-la à sua forma em relevo e a alguns elementos humanos –
como a presença de madeira, pomares, vinhas, canais de comunicação e habitat. O
mapa fornece-lhe pontos de referência.
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mapa topográfico soma-se o geológico: ele revela aquilo que a observação direta
35
le contrôle sur
ceux que vousem
só demonstra alguns pontos (pedreiraGiovanna P.2017-08-20T15:41:00s, poços de
souhaitez
minas) nas regiões cobertas por um manto contínuo de solo e vegetação — assim, o
activer
geógrafo se beneficia dos dados coletados pelos geólogos que o precederam em campo,
bem como se beneficia do trabalho dos oficiais topográficos que aumentaram a escala
do mapa para 1/180000. É assim que, já no fim do século XIX, a saída de campo do
geógrafo difere daquela de pioneiros como Humboldt: graças aos mapas topográficos e
geológicos, graças também aos mapas temáticos que tornam mais compreensíveis os
dados estatísticos e que são fáceis de transportar (Palsky, 1996), ele pode aproveitar
aquilo que os serviços oficiais já coletaram a partir de análises sistemáticas com o
trabalho de campo.

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A geografia como ciência prática


36 A jovem geografia francesa abre um espaço particular à geografia física e se serve dos
procedimentos das ciências naturais vizinhas. Praticada primeiramente pelos geólogos
ou oficiais topográficos, seu aprendizado ocorre majoritariamente ao ar livre; assim,
descobre-se o conjunto de traços de um espaço — suas paisagens. Aprende-se a analisá-
las.
37 O mapa topográfico permite nomear os lugares e as formas descobertas. O geológico
mostra como a natureza do subsolo e, no caso dos depósitos sedimentares, a disposição
e o mergulho das camadas, resultam na paisagem: o geógrafo pode compreender o
trabalho erosivo que esculpe as formas originadas pelas forças tectônicas. A monotonia
de certos horizontes é prova de fases antigas de erosão. Os depósitos superficiais que os
cobrem revelam as forças e processos responsáveis pelos nivelamentos; a presença de
camadas discordantes evidenciam as fases seguintes da orogenia.
38 O documento topográfico ajuda o morfólogo a formular hipóteses. A ida de William
Morris Davis a Paris demonstra isso (Davis, 1895): a rota do Val de l’Asne, que ele
descobre no mapa 1/80000 de Toul, sugere a possibilidade da captura fluvial do rio
Moselle pelo Meurthe. A Sociedade de Geografia de Paris organiza uma excursão,
dirigida por Davis, para verificar a validade dessa hipótese, que provém da consulta ao
mapa (que, por sua vez, se origina em uma experiência original e em um levantamento
padronizado em campo), mas a saída de campo é indispensável para confirmar, através
da presença de seixos e cascalhos, a origem fluvial desse vale seco.

Figura n° 2: Grupo de estudantes de Rennes 2 e da l’USP em campo durante “O ano da


França no Brasil”, iniciativa dos ministérios da Cultura de ambos países.

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Foto Hervé activer
Théry

39 A geografia humana é igualmente importante. Assim como a geografia física, é uma


disciplina prática: os grandes campos abertos e os agrupamentos de vilarejos
demonstram sistemas agrícolas solidamente estruturados pela coletividade; enquanto a
dispersão espacial e as sebes separando Giovanna P.2017-08-20T15:42:00áreas são
evidências de práticas mais individualistas, onde a pecuária muitas vezes é mais
relevante.
40 O trabalho de campo possibilita a descoberta da geografia regional. As análises que
Vidal de la Blache realiza em suas viagens se enriquecem com seus achados geológicos.
Ele descobre a região natural ao se apoiar no livro La Géologie en chemin de fer (A
Geologia na ferrovia), de Albert Lapparent (1888). A geografia modernizada, que se

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estabelece no meio dos estudantes de Vidal na Escola Normal Superior, nos anos 1880 e
1890, é uma disciplina de trabalho de campo. É ela que lhe permite observar
particularmente dois tipos de estruturas, até então ignoradas, mas percebidas nas
paisagens: os sistemas agrários e as divisões regionais.
41 Primeiro discípulo de Vidal a ocupar uma cátedra de geografia, Lucien Gallois
percorre a região de Lyon, onde ele leciona, e mostra como ela é feita de um mosaico de
pequenas unidades: Dombes, Mâconnais, Beaujolais, Charolais, Lyonnais — a geografia
se torna regional e não pode mais passar sem a experiência em campo (Gallois,
1891/1892; 1895).
42 É por intermédio da geologia que a experiência fundadora de Humboldt — a da
descoberta de estruturas paisagísticas que passariam despercebidas sem isso — é
assimilada pela geografia francesa. O trabalho de campo não serve somente para
autenticar as informações coletadas pelos geógrafos, ele permite também a apreensão
de elementos que escapam ao viajante comum. Graças às competências de análise
visual adquiridas, o geógrafo é capaz de enxergar realidades invisíveis a outros.
43 A institucionalização desse procedimento acontece com Emmanuel de Martonne:
inventa, em 1905, a excursão interuniversitária (Baudelle et al., 2001). Para ele, o que
resulta do contato com a paisagem, pedreiras e recortes sem dúvida diz mais respeito à
geomorfologia do que à geografia humana; no entanto, ele percorreu bastante a
Romênia para saber como a observação direta é necessária para esclarecer as realidades
humanas de um país.

Uma virada: a defesa de tese de Augustin Bernard


44 Augustin Bernard defende, em 1895, uma tese sobre a Nova Caledônia, lugar onde
jamais pôs os pés (Bernard, 1985). A banca foi presidida por Auguste Himly,
predecessor de Vidal de la Blache na cátedra de geografia na Sorbonne e especialista em
geografia histórica, que sempre trabalhou a partir de mapas e arquivos. Para ele, o
contato com o campo não parece indispensável.
45 Bernard recolheu toda a documentação possível referente à Nova Caledônia
publicada na França, Inglaterra e Austrália. Ele analisa essas fontes e a partir delas
escreve sua tese. Uma vez praticamente terminada, ele pede auxílio ao Ministério de
Instrução Pública para uma viagem que visava confirmar a veracidade daquilo que ele
compreendeu dos textos. O auxílio é negado, mas ainda assim o pesquisador defende
sua tese.
46 O que ele esperava da saída de campo não era, de fato, a revelação de aspectos do real
que não tivessem aparecido nos mapas, relatos de viagem e trabalhos de síntese que
consultara. Mas uma simples verificação, posterior, para validar os dados coletados por
outros. Bastava que os informantes fossem sérios para pular essa fase.
47 ☝🍪
Bernard se torna doutor, mas as discussões que ocorrem na defesa da tese, ou sobre
ela, impossibilitam, daquele momento em diante, defender uma tese de geografia que
Cenão
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baseiedes
emcookies et de campo: ela arriscaria deixar passar estruturas que
um trabalho
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somente a observação desvenda, e cuja apresentação constitui-se como a contribuição
ceux que vous souhaitez
essencial da disciplina.
activer
48 Dessa forma, Augustin Bernard é o último representante de uma tradição anterior ao
século XVIII, a da geografia de gabinete, antes das grandes viagens de Cook, de
Bougainville e de La Pérousse, antes da insistência de Rousseau sobre a lição que as
coisas propõem, e que Kant e Humboldt aprendam a diferenciar as paisagens, o próprio
objeto da geografia. Bernard obtém seu título de doutor, mas mais ninguém, depois
dele, ousará defender uma tese que não parta de um contato direto com o campo.

O TRABALHO DE CAMPO NA
GEOGRAFIA CLÁSSICA
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A aplicação das práticas do trabalho de campo na


geografia clássica
49 O lugar que o trabalho de campo passa a ocupar na geografia moderna, que se
constitui entre 1870 e a Primeira Guerra Mundial, é considerável, mesmo que nunca
seja exclusivo. Ele define um novo estilo de proceder e impõe certos vieses à disciplina
— particularmente na França.
50 1- Um contato direto, quase físico: andar a pé ou de bicicleta
51 A prática da saída de campo agora é obrigatória. Mas como praticá-la? Nas
proximidades, a pé, demoradamente? Foi isso que fez, dizem, Albert Demangeon, que
conhecia — por tê-los percorrido — todos os caminhos da planície da Picardia. Entre as
duas guerras mundiais, Paul Marre faz o mesmo no planalto Grands Causses — que as
estradas de ferro contornam, mas não acessam. A geração dos anos 1920 e 1930 utiliza
muito a bicicleta, como apontam as entrevistas dos geógrafos que Anne Buttimer
realiza no início dos anos 1980 (Buttimer, 1983).
52 Uma das críticas feitas a René Clozier quanto à sua tese sobre as Causses du Quercy
diz respeito ao fato de tê-las percorrido de carro. É uma questão de geração e de
evolução dos meios de transporte — mas que é transformada em um problema
epistemológico.

A progressão do trabalho realizado em campo.


53 Praticar a saída de campo é antes de tudo ter uma visão global daquilo que se estuda:
o geógrafo vai de ponto de vista em ponto de vista (Claval, 2012). Durante as saídas, ele
consulta os mapas que leva consigo e pode, dessa forma, encontrar os nomes dos
acidentes geográficos, aldeias ou fazendas que descobre. Os mapas geológicos revelam a
influência do substrato rochoso na topografia. A regularidade dos horizontes demonstra
o nivelamento das formas pela erosão de superfícies; a presença de várzeas que seguem
acima dos vales sinaliza a largura dos antigos corredores de erosão. No domínio
humano, é a presença de grandes massas florestais, a predominância de horizontes
vazios dos campos abertos e a compartimentação dos campos e prados que são
observados.
54 Para descobrir uma região, parte-se de largos panoramas. Mas como proceder em
seguida? Multiplicando os transects (Platt, 1959), que permitem analisar
detalhadamente as grandes unidades observadas, seguir os movimentos das camadas,
identificar lacunas, descobrir os depósitos superficiais que informam sobre a história
passada das formas topográficas; no campo humano, esses percursos possibilitam a
observação das práticas culturais, as rotações, os sistemas agrários, o habitat etc.

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CeGeografia humana:
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integração
vous dossursaberes vernaculares à geografia
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ceux que vous souhaitez
científica activer
55 O geógrafo que se interessa pela ocupação humana não pode se contentar com esses
procedimentos. Eles o ajudam a compreender a articulação das paisagens rurais, a
penetração das formas suburbanas do habitat em torno das cidades, ou a morfologia
dos lugares habitados. Mas, para ir além, a observação não basta: o pesquisador precisa
entrevistar as pessoas, visitar as propriedades agrícolas, inventariar os instrumentos
agrícolas e seus usos, ouvir sobre os trabalhos e seus ritmos, questionar-se sobre o uso
das instalações do campo. Ele precisa se interessar pelas pequenas empresas industriais
que impulsionam certas regiões do campo. Nas grandes concentrações industriais, é o
complexo tecido dos edifícios industriais, canais, vias férreas, estradas e moradias de
operários que ele deve esclarecer.
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29/05/2023, 11:20 O papel do trabalho de campo na geografia, das epistemologias da curiosidade às do desejo

56 Portanto, na geografia humana, o trabalho de campo não se limita somente à análise


de paisagens; ele implica visitas, entrevistas (Claval, 2007). Como escolher seus
interlocutores? Como conversar com eles? Deve-se deixá-los falar livremente? Ou é
melhor orientá-los de vez em quando com uma pergunta, uma observação? É preciso
preparar questionários?
57 E quanto aos informantes locais, que conhecem muito bem o local ou a região e
podem explicar do que vivem as pessoas, a sucessão dos trabalhos do campo, os
problemas do mercado e as questões sociais? E as figuras ilustres, que são referência na
sociedade e também fazem parte das células locais, são informantes privilegiados:
pode-se recorrer ao padre, ao professor, ao prefeito, ao administrador da região.
Ganha-se, assim, um tempo precioso, mas até que ponto pode-se confiar nesses
intermediários?
58 Para aqueles que acreditam realmente no trabalho de campo, é preciso evitar atalhos
que encurtam o tempo, mas afastam do contato direto. Raoul Blanchard, geógrafo
experiente, retira o essencial da sua documentação dessas figuras proeminentes com as
quais ele nutre uma relação. Mas será que o jovem pesquisador saberá, assim como ele,
interpretar de maneira crítica as respostas dadas por seus interlocutores?

Trabalho de campo: parte aprendizado e parte


aventura solitária
59 Ensina-se o trabalho de campo por meio das excursões: é então que o estudante
descobre a mistura de panoramas, de pontos de vista, a análise direta das formas e as
entrevistas que ele deverá implementar durante a preparação de suas notas de
pesquisa. Os professores fazem uma ou duas saídas com seus alunos de mestrado ou
doutorado para aconselhá-los, medir o avanço de seus trabalhos e ajudá-los a superar
as dificuldades que sempre aparecem.
60 A saída de campo permanece, no entanto, uma experiência muito solitária: os jovens
pesquisadores partem sem ter uma ideia clara do que devem observar nem do que
precisam encontrar. Eles tateiam e hesitam bastante. Alguns falham e desistem – mas
não se fala disso nunca. Outros acabam construindo para si uma experiência,
conquistando um trabalho. Eles aproveitam todas as ocasiões para confrontar seus
conhecimentos e os de seus colegas. Eles os seguem em suas saídas de campo,
observam seus métodos e os discutem nos seminários da universidade. A transmissão
das práticas em campo resultam bem mais da informação passada de boca em boca,
entre estudantes, que do ensino sistemático — prática que ocorre em outros países,
como nos Estados Unidos, por exemplo, (Platt, 1959), mas que é ainda incipiente na
França.

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A metodologia nebulosa de ensino da prática em campo e o valor que ao mesmo
61

tempo lhe é dado faz com que muitos jovens pesquisadores fantasiem sobre esse
domínio. Eles têm suas receitas, seus hábitos, seus medos, seus prazeres.
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A sacralização
activer das práticas em campo
62 Enquanto espera pela defesa de sua dissertação, o pesquisador já tem um status,
graças ao trabalho de campo: aos olhos da comunidade científica, ele é reconhecido,
mesmo que ainda não tenha publicações, por ser o homem do Maciço do Vercors, do
planalto dos Grands Causses, das montanhas pré-Pyrénées ou da costa da Bretanha. A
regra que desaconselha fazer pesquisas em um terreno que já fora destinado a outro dá
àquele que o analisa o sentimento de ser, de certa forma, seu proprietário. Uma
estranha dialética do estatuto reconhecido e da propriedade reivindicada se estabelece.
63 O trabalho de campo ocupa um papel central na mitologia do geógrafo. Para o jovem
pesquisador, essa prática se mostra como uma prova, um rito de iniciação, às vezes,
podendo mesmo levar a um tipo de comunhão, de identificação com a região e as
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29/05/2023, 11:20 O papel do trabalho de campo na geografia, das epistemologias da curiosidade às do desejo

populações estudadas: para ele, é uma fonte de profundo prazer. Dessa forma, a
experiência com o trabalho de campo pode levar a uma interpretação quase
psicanalítica. No fim do século XIX e no início do XX, a geografia “sacraliza” e
“dramatiza” as práticas das saídas de campo (Calbérac, 2010).
64 É neste momento que a análise regional se torna uma peça central da pesquisa. O
trabalho em campo fornece ao geógrafo uma garantia da autenticidade dos dados com
os quais trabalha; permite-lhe apreender as estruturas do espaço estudado e as divisões
que o caracterizam. Um sentimento de culpa se instala naqueles que não conseguem
recolher do terreno o que é normalmente esperado.

Figura n° 3: Entrevista em campo com um fazendeiro de Goiás

Foto Hervé Théry

65 Uma segunda transformação completa a institucionalização das práticas em campo: a


inclusão de excursões na formação dos jovens geógrafos. A análise das paisagens a
partir de um ponto de vista, a interpretação dos recortes oferecidos pelas pedreiras e a
visita às fazendas fazem agora parte da pedagogia da disciplina em nível universitário:
as práticas que o pesquisador deve utilizar em campo se tornam objeto de ensino — ou,
na França, um esboço de ensino.

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O que geografia deve ao trabalho de campo
66Ce site utilise des
A geografia dá cookies et a essa prática do que as outras disciplinas. E por quais
mais espaço
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67 ceux que vous“moderna”
A geografia souhaitezdo fim do século XIX se define por oposição a uma geografia
activer
mais antiga, que era uma ciência de gabinete e se apoiava essencialmente nos arquivos
de viagens e documentos provenientes delas, mais especificamente, os mapas.
68 A geografia moderna dá muita importância à natureza e aos aspectos físicos, analisa
as formas do relevo e especialmente as formações vegetais: é nesses domínios que a
observação direta e o trabalho de campo são indispensáveis.
69 Como a etnografia, a geografia humana se interessa por todas as sociedades, tanto as
que têm escrita como as orais. Existem arquivos que permitem a reconstituição da
origem e o funcionamento das sociedades históricas, mas a saída de campo constitui-se
como elemento essencial na análise de seus componentes paisagísticos, por muito
tempo pouco estudados e sobre os quais a documentação escrita é bastante pobre. É

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29/05/2023, 11:20 O papel do trabalho de campo na geografia, das epistemologias da curiosidade às do desejo

possível entendê-los apenas ao observá-los diretamente e ao conduzir entrevistas


nesses lugares — algo que, há muito, os geógrafos são os únicos a fazer.
70 O procedimento geográfico não se contenta em estabelecer o inventário do que
acontece em cada lugar: ele mostra como, a partir deles, formam-se áreas. Os arquivos
e a documentação publicada nem sempre apontam para a existência de regiões, de
conjuntos paisagísticos e de estruturas agrárias — é o contato com o país que os revela.
71 Uma parte essencial do que se configura como geografia clássica (que resulta do
processo de modernização ocorrido no fim do século XIX e início do XX) provém da
apreensão direta do mundo — do território.

O imperativo do terreno: um viés que paira sobre


toda a disciplina
72 O saldo da geografia feita em terreno tem também seu lado negativo. Ela privilegia
realidades de escala local ou regional, por ser a escala em que se pratica a saída de
campo. É assim que a geografia "clássica", como a que se pratica entre 1900 e 1960,
negligencia um certo número de ensinamentos de Vidal de la Blache. Em seu livro
Tableau de la géographie de la France (O Quadro da Geografia da França), de 1903, ele
descreve a França por meio das paisagens e pequenas regiões naturais que ele
caracteriza, mas essa é apenas a primeira parte de seu trabalho: ele se dedica a diversas
escalas e mostra como as unidades elementares se combinam (Claval, 1979). As grandes
áreas se distinguem: o norte e o leste, o oeste, o sul, e entre essas três regiões uma zona
intermediária que corre da Aquitânia aos Alpes e ao Jura. O procedimento visa, em
seguida, a compreender a França como um todo e definir sua personalidade geográfica.
Para dar conta de um território tão vasto, apenas o trabalho de campo não é suficiente:
a interpretação proposta por Vidal se utiliza de documentos históricos, de séries
estatísticas e da leitura de mapas topográficos, geológicos e temáticos, que ajudam a
compreender os traços gerais do país.
73 O lugar de destaque concedido ao trabalho de campo resulta então no
negligenciamento de certos componentes essenciais da geografia de Vidal de la Blache,
aqueles ligados às formas que a Revolução Industrial cria a partir do século XIX, cujo
extraordinário impacto ele avaliou ao visitar a América do Norte (Claval, 2011). O que
se exige do pesquisador, no momento em que é mais produtivo, enquanto prepara sua
tese, é escolher um tema que ele possa apreender através da prática pessoal com o
terreno: é o tema “regional” que mais corresponde a essa definição — embora Vidal não
tenha jamais dito que ele é o único admissível, como demonstra sua correspondência
com Jean Brushes (Jean Brushes-Dellamarre, 1975).
74 Além das primeiras teses defendidas, particularmente as de Demangeon, Vacher ou

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Sion, a maioria dos trabalhos se preocupa muito pouco com a organização territorial.
Contentam-se em mostrar o que o trabalho de campo traz para a compreensão de um
espaço cujos limites são geralmente arbitrários. Não são propriamente teses, pois os
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dados que apresentam não servem para demonstrar a validade de uma hipótese.
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75 Emque
ceux suavous
carreira, um geógrafo só aborda as realidades da escala menor, as da nação
souhaitez
em particular, mais tarde, no momento de redigir um volume da Geografia Universal,
activer
por exemplo. O único pesquisador que defendeu uma tese sobre a organização regional
de um país inteiro, a Argentina, foi Pierre Denis — no entanto, ele abandonou a
disciplina depois da defesa de sua tese.

O TRABALHO DE CAMPO: PRÁTICA


DIRETA OU EXPLORAÇÃO INDIRETA

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29/05/2023, 11:20 O papel do trabalho de campo na geografia, das epistemologias da curiosidade às do desejo

O trabalho de campo: uma fonte entre tantas


76 Mesmo na época da geografia clássica, o fazer do geógrafo não se baseia somente na
prática da saída de campo. Ele deve muito ao mapa topográfico e ao mapa geológico,
que informam sobre o terreno, mesmo que este tenha sido mapeado por outros,
segundo procedimentos normalizados e controlados pelos serviços públicos
responsáveis pela elaboração desses documentos.
77 Assim como o economista, o sociólogo ou o cientista político, o geógrafo baseia seus
trabalhos em dados estatísticos ou sondagens que registram milhares ou centenas de
milhares de observações: a autenticidade daquilo que analisa não vem de sua
experiência pessoal, mas dos agentes anônimos que colacionaram os fatos ou
elaboraram os questionários. O rigor utilizado para coletar os dados — e a seriedade dos
setores públicos encarregados disso — garante os resultados. Os pesquisadores delegam
a responsabilidade da experiência em campo àqueles que levantaram os dados que eles
utilizam.
78 Na medida em que se consagra às diversas realidades que ninguém pode apreender
diretamente, o geógrafo se torna assim um pesquisador de gabinete, cujo crédito
repousa na autenticidade do material ao qual ele tem acesso e nos meios de que dispõe
— entrevista, sondagem — para verificar sua qualidade.
79 Aliás, nem todas as ciências sociais se baseiam no trabalho de campo. A história não
atua pela observação direta. Ela se beneficia dos testemunhos deixados por
memorialistas, políticos e por todos aqueles cujas atividades estão registradas, quer
sejam atos notariais, minutas de processos, documentos diplomáticos etc. O historiador
deve encontrar nos arquivos, que guardam os registros das experiências do passado, o
que outros procuram ao analisar a realidade atual. É ao sondar a autenticidade dos
testemunhos coletados — ao realizar um exame crítico das fontes, dizem — que o
pesquisador garante os resultados apresentados.
80 Analogamente à distinção feita em história, entre relato de primeira mão ou segunda
mão, poder-se-ia opor, em geografia, uma pesquisa em primeira mão (a que nasce com
a prática direta em campo) e uma feita em segunda mão (quando os dados do terreno
foram coletados por terceiros, a quem a responsabilidade foi delegada — sob reserva de
criticar essas fontes para garantir sua autenticidade): pode-se dizer que um trabalho de
geografia se baseia sempre em uma experiência de campo, mas que esta pode ser feita
em primeira ou segunda mão.
81 O interesse que a geografia clássica tem pelos arquivos, o que a tese complementar de
Albert Demangeon atesta, mostra que a prática da disciplina nunca se limitou ao
terreno diretamente observado (Demangeon, 1905).
82 A Geografia recorre muito a todas as fontes de observação indireta constituídas pelos
textos, entrevistas, exames, sondagens, estatísticas, mas o espaço que ela dá ao trabalho
de campo permanece maior do que na Sociologia, por exemplo.
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Das
vous observações
donne le contrôle sur in situ à apreensão dos
conjuntossouhaitez
ceux que vous
activer
83 Na época clássica da disciplina, o geógrafo procura, além das observações in situ,
captar os conjuntos. Isso determina em boa parte as estratégias escolhidas para o
trabalho de campo: a busca dos pontos altos que leva à descoberta de largos
panoramas, o percurso de transects que leva da descrição pontual à análise linear
(Platt, 1959). Combinando as perspectivas descobertas a partir dos cumes e percursos, o
pesquisador pode evidenciar as zonas homogêneas e as descontinuidades, que são
nítidas, lineares ou se apresentam sob a forma de áreas de transição.
84 Como indicar essa mudança de escala, essa passagem pontual do local aos conjuntos?
Apoiando-se em outras ferramentas. O mapa topográfico, que resume a paisagem ao
simplificá-la, destaca a existência de limites homogêneos, de fronteiras ou zonas onde

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29/05/2023, 11:20 O papel do trabalho de campo na geografia, das epistemologias da curiosidade às do desejo

as características se misturam. A mudança de escala que a geografia implica se apoia


então amplamente nos mapas regulares — essa quintessência de observações de campo
feitas por outros. Os mapas geológicos e os mapas de vegetação complementam o mapa
topográfico.

Figura n° 4: Observação do terreno em São João da Balisa

Foto Hervé Théry

85 Os meios da teledetecção dão aos documentos de média ou pequena escala um


conteúdo mais concreto: leem-se diretamente neles as massas florestais e culturas. O
ritmo das estações aparece quando se dispõe de passagens sucessivas.
86 Para muitos traços demográficos, econômicos ou sociais, o mapa temático leva aos
mesmos resultados. Nele, o espaço aparece como feito de limites justapostos, ou como
que estruturado por campos, percorridos por fluxos que gravitam para os polos — as
cidades.
87 Na época clássica, o trabalho do geógrafo dá, necessariamente, um lugar de destaque
à pesquisa de campo “de segunda” mão, constituida pelos mapas, fotos, vistas aéreas. É
através dos mapas temáticos que ele elabora, a partir de suas observações diretas e de

☝🍪
toda a documentação de “segunda” mão de que dispõe, que as conclusões de sua análise
geográfica se formulam, primeiramente como um esboço ou mapa. Mas o mapa não
Cefala:
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88 vous A donne
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sur dos resultados constitui, portanto, uma parte importante
ceux que vous souhaitez
do trabalho, como enfatiza Vincent Berdoulay (1988) ou Isabelle Lefort (1992). Passar
da imagem activer
cartográfica ao texto nunca é uma tradução automática: a linguagem tem
sua própria lógica, sugere aproximações, favorece comparações. A metáfora muitas
vezes substitui a explicação, ou a sugere.
89 A geografia clássica se extingue nos anos 1960. Para compreender o papel assumido
pelo trabalho de campo na disciplina, é preciso entender o lugar que ele ocupa na Nova
Geografia da década 1960 e nas formas sucessivas que a virada cultural da disciplina
reveste.

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29/05/2023, 11:20 O papel do trabalho de campo na geografia, das epistemologias da curiosidade às do desejo

O TRABALHO DE CAMPO NA
GEOGRAFIA CONTEMPORÂNEA
90 O que a pesquisa atual sobre as práticas em campo não aborda diretamente diz
respeito ao que acontece com o trabalho de campo quando os pressupostos sobre os
quais se baseava o procedimento geográfico saem de moda. Quando se deixa de
acreditar que um contato direto com as paisagens e os homens é indispensável para
explicá-los, ou quando se admite que o papel da geografia é se interrogar sobre as
distribuições observadas por outros mais do que explicar sua origem ou função.

A Nova Geografia, processos econômicos e


trabalho de campo
91 Os geógrafos formados na metade do século XX se inserem em uma tradição que se
transmitia oralmente entre os professores e alunos de geografia. Ela estabelece o
trabalho de campo como a base de toda pesquisa e como condição necessária para a
elaboração de uma tese. Para aqueles que têm “o olho do geógrafo”, a verdade vem da
observação direta, como uma espécie de iluminação
92 Na época em que a economia disputa com a geografia o campo em que esta havia se
afirmado — o dos estudos regionais —, essa concepção do fazer geográfico não satisfaz
mais aos jovens pesquisadores, porque não consegue dar conta das evoluções
contemporâneas, da urbanização cada vez mais completa das sociedades, assim como
do desenvolvimento desigual das nações em escala internacional.
93 Como resolver esse impasse? Fazendo um desvio, por vezes longo, em direção às
ciências vizinhas, a economia particularmente, que é então a disciplina principal. Ela
tem um ramo, a economia espacial, ligado às dimensões geográficas dos processos em
andamento na produção, distribuição e consumo de bens econômicos. A Nova
Geografia, que nasce dessa aproximação, baseia-se na elaboração de teorias e modelos
hipotético-dedutivos. Para verificar a validade de suas hipóteses, a maior parte dos
pesquisadores que desenvolvem esse novo campo se utilizam de procedimentos
estatísticos (Berry e Marble, 1968). O procedimento não garante que as construções
teóricas sejam verdadeiras, mas, ao não demonstrar que são falsas, mostra que são
condizentes com aquilo que é observado e que se constituem como ferramentas de
investigação válidas.
94 Nesse novo contexto, o “olho do geógrafo” não é mais suficiente para penetrar na
realidade geográfica. O trabalho de campo perde seus privilégios: por que dedicar uma
quantidade imensa de energia para percorrê-lo pessoalmente, se isso não acrescentará

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nada de novo ao que já foi levantado por outros? O apelo ao estudo direto do terreno é
substituído por procedimentos que já não têm mais nada de intuitivo. Eles confiam —
uma confiança crítica, evidentemente — nos dados coletados por outros.
Ce site utilise des cookies et
95
vousOdonne
confronto direto com
le contrôle suro campo perde todo seu sentido? Não: acontece de nenhuma
ceux que vous souhaitez nenhum dos modelos imaginados para dar conta da
das interpretações teóricas,
distribuição dos fatos de produção, distribuição e consumo, ser operacional —
activer
estatisticamente, eles somente “explicam” uma pequena parte do que se conhece. O
procedimento não resulta em uma leitura satisfatória do real. Os processos que o
estruturam não são aqueles sob os quais se baseia a interpretação teórica. O que fazer
então?
96 Voltar ao mapa e, se este se mostrar insuficiente, ao trabalho de campo. A hipótese
testada não explica as distribuições observadas, mas há lugares em que ela parece
relativamente satisfatória, e em outros não. Por que não se voltar, então, para a
cartografia dos “resíduos” da análise, para a parte do real que ela não foi capaz de
esclarecer? A imagem obtida é suficiente, muitas vezes, para apontar as forças e os
processos que não foram levados em conta – a existência, por exemplo, de um forte

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gradiente espacial ligado à atração de uma metrópole vizinha, ao passo que se


consideravam apenas as forças locais.
97 Se a cartografia dos resíduos não indica o caminho para um interpretação mais
satisfatória, não há outra solução a não ser recomeçar do zero, desta vez, retornando ao
campo.
98 Na metade dos anos 1960, eu trabalhava com a geografia econômica da região da
Franche Comté, na França. No âmbito industrial, o esquema de Weber se revelava
pertinente para explicar a antiga distribuição de certos ramos da indústria – a
siderurgia até a metade do século XIX, por exemplo. Mas não funcionava para as
localizações industriais da metade do século XX. Que forças condicionavam essas
distribuições? Para reconstituir as evoluções de que resultavam, era preciso investigar
os arquivos para compreender os mecanismos ou sociais ou políticos que interferiam
nos fatores propriamente econômicos; era preciso investigar.
99 O procedimento, que partia de uma recusa da prática de campo tradicional, não o
eliminava, mas o situava em outro momento da pesquisa, com uma finalidade
diferente.

O desenvolvimento de trabalhos sobre a história


da Geografia
100 Os geógrafos da primeira metade do século XX tinham uma ideia simples sobre a
evolução de sua disciplina. Ela passou por uma grande pré-história, dos gregos ao
século XIX, quando se preocupava principalmente em ampliar o mundo conhecido e
em propor representações cartográficas precisas sobre ele. Essa longa fase preliminar
terminou no terceiro terço do século XVIII, no momento em que a disciplina havia
enfim resolvido o problema da determinação de longitudes e se tornado de fato uma
disciplina científica. Depois disso, desenvolveu-se de súbito: não é preciso elaborar uma
história sofisticada dessa ciência para compreender sua evolução.
101 A situação muda a partir do momento em que os objetivos da pesquisa se
transformam e se diversificam — no momento em que a Nova Geografia surge, nos anos
1960. A história moderna da geografia, que traça a origem desses fundamentos
epistemológicos, afirma-se paralelamente – antes, dificilmente se poderia citar algo
além do trabalho pioneiro de Richard Hartshorne (1939). Recuperar as etapas do
desenvolvimento da disciplina deixa de ser o passatempo de professores em fim de
carreira. Essa área agora atrai jovens pesquisadores.
102 Em que bases se apoia o especialista em história das ideias geográficas ao efetuar
suas análises? Seu procedimento é o de um historiador: ele analisa as publicações do
autor ou da época que estuda; ele os situa em um contexto revelado pelos documentos

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relativos às instituições em que trabalhavam esses pesquisadores; ele tenta enxergar o
lugar reservado a eles na sociedade em geral e nos meios intelectuais. Assim, ele pode
comparar a dinâmica das ideias, o ambiente onde elas surgem e a demanda social a que
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vous donne le contrôle sur
103
ceuxAs que
questões
vous metodológicas?
souhaitez São as mesmas que se mostram para o historiador:
avaliar a activer
sinceridade dos autores analisados, compreender suas motivações, levar em
conta os vieses que estruturavam ou deformavam suas representações.
104 O trabalho de campo? Assim como para qualquer outro historiador, ele não existe
para o historiador da geografia. No entanto, existem momentos em que o pesquisador
tem realmente a sensação de penetrar na lógica daqueles que estuda, de colar-se aos
seus pensamentos, de compartilhar suas preocupações. A emoção que experimenta em
tais momentos acaba por evocar aquelas sentidas pelo pesquisador de campo, para
quem o entorno se estrutura de repente e faz sentido. Ele consegue distinguir aquilo
que constitui a experiência autenticamente pessoal daqueles que ele estuda do que
revela a predominância dos estereótipos e das imagens que os cercavam.

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105 A partir da década de 1960, os trabalhos dos historiadores da geografia param de


tratar apenas das ideias. Passam a se interessar também pelo conjunto de modalidades
que reveste o trabalho do geógrafo, pelas suas práticas. Novos campos se abrem assim
para a pesquisa: o papel do contexto (Berdoulay, 1981); a função do trabalho de campo
(Robic, 200; Baudella et al., 2001); o papel da escrita (Berdoulay, 1988); o do mapa, da
teledetecção e da cartografia temática (Palsky, 1996).
106 Como o pesquisador pratica a saída de campo? Quais dados coleta dele? O que se
pode aprender a partir de seus cadernos de anotações e esboços? Como se ordena sua
narração? A quais procedimentos literários ela recorre? Que documentos precisam ser
elaborados para que esses dados "falem"?
107 Talvez esses estudos saiam perdendo se forem muito analíticos. Seria bom se
pudéssemos medir a participação de cada um desses aspectos do trabalho do geógrafo
— o jogo das ideias, o confronto com o mundo real, o processamento dos dados, a
escritura.

Figura n° 5: Observação em campo e no mapa em Presidente Prudente

Foto Hervé Théry

A virada cultural e o trabalho de campo


108
☝🍪
A Nova Geografia responde apenas brevemente às inquietudes e interrogações dos
Cegeógrafo. Osdes
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cookies et se multiplicam a partir dos anos 1970. Eles são tão
numerosos que é
vous donne le contrôle cansativo
sur enumerá-los. Vale mais destacar o que têm em comum: a
crítica
ceux às vous
que concepções positivistas e neopositivistas da ciência, a desconfiança cada vez
souhaitez
activer
mais sistemática do racionalismo e do pensamento ocidental e o novo interesse pelas
dimensões subjetivas da geografia — a experiência dos lugares e do território, a
construção das identidades, as dimensões simbólicas da paisagem são agora centrais
para a pesquisa. Quando se fala da virada cultural da disciplina, é a esse conjunto de
mudanças que se faz referência.
109 Aos dados objetivos de que os geógrafos necessitam sempre para destacar a
distribuição dos homens, de suas atividades e obras na superfície da Terra se soma o
novo interesse que experimentam pela representação das pessoas que estudam, seus
imaginários, seus horizontes de expectativa, suas atitudes, suas preferências, suas
sensibilidades, suas crenças, suas ideologias, suas religiões.

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110 A natureza desses elementos é qualitativa (Blunt et al., 2003). Alguns deles podem
ser estudados através de textos, pinturas, estátuas, edifícios, músicas, danças que eles
inspiram ou expressam. O imaginário turístico pode ser lido nos materiais de
publicidade que as agências de viagem divulgam, ou nos cartões postais oferecidos aos
viajantes nas lojas de souvenirs. Uma parte essencial dos novos interesses geográficos
não tem, entretanto, uma expressão objetiva.
111 Os serviços públicos, a grande fonte de dados estatísticos, não são feitos para coletar
informações difíceis de formular e identificar. As pesquisas de opinião até conseguem
fazê-lo, mas se baseiam em questionários que geralmente só conseguem medir os
elementos já identificados — os envolvimentos políticos, por exemplo.
112 Ao administrar ele mesmo os questionários, o geógrafo extrai do trabalho de campo o
mesmo tipo de informação, mas ele pode utilizar-se de procedimentos mais flexíveis,
realizar entrevistas não-diretivas, deixar seu interlocutor falar: é nessas condições que
ele consegue levantar aspectos radicalmente novos — e diferentes daqueles que
esperava — da realidade que analisa. O trabalho de campo recupera todo o seu valor.
Alguns exemplos comprovarão isso
113 O campo e as cidades suíças são deliciosamente organizados. Mergulha-se em uma
atmosfera harmoniosa que seduz os turistas. A irmã da minha mulher havia casado com
um pastor suíço e morava em uma mansão num dos belos quarteirões da região alta da
cidade de Lausana. Nós morávamos em Besançon, na França, e gostávamos de visitá-
los para aproveitar a paz que reinava naquele ambiente excepcional. Meus cunhados
ficaram doentes ao mesmo tempo. Os incômodos começaram para eles: na primavera e
verão, já não tinham mais forças para podar as cercas vivas que rodeavam seu terreno
na altura recomendada – 1,20m –, e para colher, no outono, as castanhas que caíam no
chão; o que estragava o ambiente. Os vizinhos notificavam a polícia, que intervinha,
emitia um relatório, cobrava caro pela contravenção e enviava os trabalhadores
municipais para cortar as cercas vivas e recolher as castanhas – a altos preços, claro.
Por detrás da aparente harmonia, era o peso de uma rede implacável de vigilância
mútua que se via...
114 No início dos anos 1990, fui professor-visitante da Universidade de Amsterdã. Uma
jovem colega francesa, casada com um pintor holandês, era professora em um de seus
departamentos. Nós estávamos almoçando com ela um dia, que reclamava de não
conseguir encontrar programas de TV que pudessem distrair seus filhos e
proporcionar-lhe momentos de descanso. Havia, é claro, "Os Pioneiros", mas a série
passava no canal protestante conservador, e seu marido era um protestante de
esquerda. Sem condições, para ele, de deixar seus filhos assistirem a tal show.
115 Nossa interlocutora nos explicou então: a televisão estatal holandesa divide o tempo
de emissão entre os diversos componentes do país, protestantes conservadores ou
progressistas, católicos, minorias de imigrantes (turcos e marroquinos). Na Holanda, o
que conta são as comunidades que a constituem: fala-se de "pilares", "colunas", e se diz
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que a sociedade holandesa é "pilarizada". O Estado está a serviço das comunidades, mas
não as domina. Estávamos descobrindo, de repente, o que opunha fundamentalmente
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concepções holandesas e francesas de democracia.
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116 Eu lecionava na Universidade Laval, no Quebec, e havia pedido aos meus alunos que
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fizessem um trabalho sobre um aspecto econômico ou social de sua localidade ou região
activer
de origem. Um desses ensaios tratava de uma paróquia do distrito de Bas du Fleuve,
onde faltam terras aráveis, onde a colheita da cevada ou aveia (o trigo não cresce) se faz
geralmente durante o primeiro cair da neve de outono, e onde os homens vivem
sobretudo — mas mal — da floresta, da caça ou da pesca. Só conseguem sobreviver com
a caça ilegal. Muitos são pegos e condenados à prisão. É no outono que isso acontece
geralmente. Mais de 20 % dos homens entre 20 e 50 anos estão, por isso, geralmente,
entre as grades. Por que uma tal proporção não parecia algo escandaloso? Por que não
suscitava na imprensa comentários indignados? A dificuldade de subsistência em um
meio tão ingrato explicava em parte esses comportamentos. Eles resultavam também
da convicção de que a prisão era "inglesa" e não tinha nada a ver com a moral. Ser
condenado e passar dois ou três meses na prisão não tinha nada de desonroso.
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29/05/2023, 11:20 O papel do trabalho de campo na geografia, das epistemologias da curiosidade às do desejo

117 Esses são alguns exemplos que mostram o que o trabalho de campo revela de mais
precioso no campo cultural: o que diferencia grupos aparentemente tão próximos que
nem suspeitamos da profundeza de suas divergências. Afinal, na Lausana e no Quebec,
fala-se francês como na França, e a democracia holandesa é tão forte quanto aquela que
vivemos no nosso país. Um detalhe, um pequeno incidente, revela então o abismo que
nos separa de pessoas que acreditávamos estar tão próximas.
118 Se fosse para resumir o que a prática direta em campo ensina de mais precioso à
geografia, poder-se-ia se dizer que ela contribui duplamente:
119 1 - A visão global e compreensiva das paisagens permite entender o que caracteriza as
unidades territoriais, encontrar seus limites — esta é, por assim dizer, a contribuição de
Humboldt, tão importante para a geografia física quanto para a geografia humana.
120 2 - O trabalho de campo permite encontrar as diferentes práticas ou políticas que
contribuem para modelar o espaço, assim como as características dos comportamentos,
das atitudes, e das concepções da vida em um dado lugar — o direito da comunidade em
controlar alguns comportamentos de seus membros, como na Suíça: a aceitação, na
sociedade quebequense, de sanções penais generalizadas, pois não são percebidas como
desonrosas; a ideia, nos Países Baixos, de que o que é fundamental para a nação são as
comunidades que convivem no país, e não o Estado, que está a seu serviço.
121 É a esse retorno ao trabalho de campo e ao frescor dos testemunhos que ele permite
recolher que os estudos sobre o espaço vivenciado, tão numerosos nos anos 1970,
devem muito de seu sucesso: eles rompiam com o caráter frio e calculista de muitos
trabalhos da Nova Geografia, pobres por contar somente com estatísticas.

O TRABALHO DE CAMPO E AS NOVAS


EPISTEMOLOGIAS

Das epistemologias da curiosidade às


epistemologias do desejo
122 A partir do final do século XIX, os geógrafos salientam o papel do trabalho de campo
no caráter científico que a disciplina assume agora, mas não se demoram no modo de
praticá-lo. É preciso esperar até os anos 1970 ou 1980 para que os estudos comecem a
ficar mais precisos: é então que se começa a reagir a uma concepção puramente
intelectual da ciência; leva-se em consideração agora as "práticas" sobre as quais ela se
apoia (Robic, 2000; Baudelle, 2001).
123 Isso se traduz por uma evolução da concepção das condições do saber, que conduz a

☝🍪
uma reflexão mais voltada para os fundamentos da epistemologia. Deixa-se de
privilegiar suas dimensões puramente intelectuais, o "movimento das ideias": o aspecto
Ceconcreto dos métodos e suas condições materiais são agora levados em conta.
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124 O movimento se acentua
vous donne le contrôle sur nos anos 1990, o que resulta na mutação, que se produz
então,
ceux da imagem
que que se tem da ciência e da natureza da epistemologia. O que motivava
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o pensamento científico
activer era a curiosidade. O termo designava primeiramente "o desejo,
a preocupação que se tem sobre as coisas". Ele se aplica posteriormente à "tendência
sobre o querer aprender, conhecer coisas novas" (Robert). É um "apetite" uma “sede de
saber". Nessa perspectiva, a ciência resulta de um movimento do espírito, que o leva a
explorar o real para compreendê-lo e explicá-lo.
125 Assim, a geografia nasce da tendência a conhecer nosso ambiente e aqueles que se
estendem para além do horizonte e que se descobre ao viajar. No fim da Idade Média e
durante a Renascença, quando a epistemologia moderna começa a se constituir, ela se
alimenta do olhar que vagueia sobre um mundo que se descobre por ser inundado de
luz. Com Roger Bacon e Robert Grosseteste, no século XIX, uma corrente do
pensamento cristão se interessa pela luz porque ela foi criada pelo Senhor desde os

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29/05/2023, 11:20 O papel do trabalho de campo na geografia, das epistemologias da curiosidade às do desejo

primeiros dias da Gênese: ela aparece como a energia que Deus mobiliza para modelar
o Universo – como o veículo de sua graça.
126 No século XV, a reflexão dos platônicos de Florença vai nesse sentido, como enfatiza
André Chastel:
127 Os princípios filosóficos da perspectiva se reduzem de fato à ideia de que o espaço é
inteiramente atravessado pela luz (ele é assim "inteligível") e com estrutura matemática
(ele é assim "mensurável"). Esses dois pontos, que já se encontravam presentes no
pensamento de alguns intelectuais do século XIII, ocupam um lugar central na "física"
do século XV e na doutrina de Ficin. Um de seus tratados da juventude, Quaestiones de
luce, insiste sobre o fato de que a propagação dos raios não é um deslocamento de
elementos corporais. A luz é cosa espirituale e só pode gerar efeitos inteligíveis. O
comentário no Timeu consolidará essa intuição pela teoria da alma do mundo e pela
concepção matemática do espaço que dela resulta... Tal é a ordem platônica que
desenvolve a intuição do cosmos harmonioso (Chastel, 1982, p. 305-306)
128 Como foi visto, essa concepção do saber se modifica sob a influência de outro
componente do pensamento medieval, o nominalismo, que impõe o retorno ao real e à
garantia da experiência pessoal das coisas. Essa dialética do espírito e do mundo se
efetua graças ao jogo do olhar e da luz, que é algo espiritual.
129 O corpo está implicado na construção da verdade somente através do olhar — que
escapa, pois ele percebe a coisa espiritual, às determinações materiais. Isso tem várias
consequências.
130 1- O lugar que a cartografia ocupa no desenvolvimento da geografia vem daí : ela
resume e coloca ao alcance de todos aquilo que o olhar do viajante descobre.
131 2- A geografia explora o mundo através do olhar, o que reforça, a partir de Humboldt,
no início do século XIX, a ênfase na experiência direta do espaço estudado, no terreno,
nas paisagens que nele se descobrem e que a imagem permite comunicar.
132 3- Ciência do olhar, a geografia se mostra evidentemente como uma ferramenta de
vigilância, como o sublinha, depois de dúzias de anos, todos os trabalhos inspirados no
"Vigiar e Punir" de Focault.

As epistemologias críticas do trabalho em campo


133 A transformação das perspectivas epistemológicas resulta em boa parte de uma nova
maneira de analisar os procedimentos dos pesquisadores, em geral, e dos dos geógrafos
em particular. Isabel Lefort (2012, p. 472-275) fala do "desejo do trabalho em campo":
134 O que leva o geógrafo ao campo não é somente o desejo de entrar em uma pedreira, é
simplesmente o desejo de se apropriar de um pedaço do mundo e de ser reconhecido
por isso [...] Assim vivenciado e exprimido, a relação com o campo certamente não diz
respeito somente ao interesse intelectual do geógrafo, mas a toda a sua pessoa, nas suas
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dimensões psicológicas e intimamente pessoais. (Lefort, 2012, p. 472)
135 Na nova perspectiva, o geógrafo que trabalha em campo é motivado mais pelo desejo
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curiosidade. Toda a disciplina se modifica então: ela não é mais
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própria de espíritos puros. Ela tem bases corporais, por muito tempo negligenciadas. É
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preciso corrigir esse esquecimento. É a isso que os colegas começam a se dedicar, no
activer
mundo anglo-saxão, nos anos 1990:
136 A partir do início dos anos 1990, o problema do trabalho em campo surge na
geografia anglófona, impulsionada duplamente pelo desenvolvimento de uma
epistemologia feminista [...] e pelo desenvolvimento dos estudos qualitativos – do
desdobramento e da codificação dos quais os geógrafos feministas participam, ao lado
da tradição fenomenológica e do conjunto das correntes pós-estruturalistas (Volvey et
al., 2012 p.446)
137 É compreensível então que a corrente dos estudos qualitativos esteja implicada nessa
reavaliação do papel do trabalho de campo na geografia: desde Humboldt, é isso que a
observação direta oferece de mais precioso à geografia. O papel das geografias do
gênero vem, em contrapartida, do lugar enfim concedido à corporeidade do
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29/05/2023, 11:20 O papel do trabalho de campo na geografia, das epistemologias da curiosidade às do desejo

pesquisador. O que está em pauta "é o ‘regime escópico’ de conhecimento da geografia


clássica (elaboração de dados produzidos durante a observação visual)". Há um desejo
de substituí-lo por "um 'regime háptico' de conhecimento (um regime baseado na
elaboração científica de dados pré-linguísticos, sejam eles hápticos ou empáticos) [...]"
(Volvey et al., p. 453-454)
138 Uma interpretação “de gênero” da geografia se esboça assim através da análise do
que o geógrafo faz fora de seu escritório. A prática masculina da saída de campo,
"baseada na exploração, evolui entre posse por agrimensura, penetração pelo olhar e
controle pelo descobrimento exaustivo de um espaço exterior [...] feminilizado [...] "
(Volvey et al., p. 447). A motivação inconfessa dessa forma de prática? "A estratégia de
confirmação ou consolidação da identidade social, masculina, do pesquisador" (Volvey
et al., p. 447)
139 Considera-se outra prática em campo: ela seria dominada pela preocupação com o
outro – o care, para usar o termo em inglês – que caracteriza as atitudes femininas.
140 A pesquisa de campo feminista [...], dotada de uma escala de operação reduzida
(microprocedimentos) e baseada na interlocução foi colocada como fundamento de um
feminist political project within the discipline. Um projeto de empoderamento
recíproco do sujeito pesquisador e do (dos) sujeito(s) interrogado(s) que são ouvidos e
representam suas vozes [...] até participar de uma estratégia de ativismo político [...]
(Volvey et al., p. 447)
141 Eis o programa de uma epistemologia que considera que o conhecimento científico
foi até então prejudicado pela supremacia masculina, e que convém repensar de
maneira mais “pura” o trabalho em campo.

O desenvolvimento das epistemologias críticas da


geografia na França
142 O desenvolvimento das epistemologias críticas é mais recente na França do que nos
países anglófonos. E nela assume diferentes formas. Para Yann Calberac, "o trabalho de
campo nas ciências sociais se mostra como o equivalente em laboratório nas ciências
experimentais": é ao analisar essa prática que se rompe enfim com as epistemologias
tradicionais:
143 Fazer uma história da geografia sob o ângulo do trabalho de campo convida-nos
então a superar as representações que os geógrafos têm de sua disciplina para
interrogar o discurso que o trabalho de campo não cessa de alimentar (Calberac, 1970)
144 É a essa questão que ele dedica sua tese (Calberac 1970). Mas Anne Volvey opta por
um ângulo diferente:
145 Ela se interessou pela prática do trabalho de campo dos geógrafos. Ela se interroga,

☝🍪
então, sobre sua dimensão subjetiva, que coloca no centro de sua reflexão para fazer
dela uma questão anterior ao cognitivo, e sobre sua dimensão espacial, que instaura por
meio dessa questão. (Volvey et al., p. 452)
Ce site utilise des cookies et
vousSua proposta a leva a enfatizar aquilo que bloqueia o desenvolvimento das
146
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ceux que vous háptico
epistemologias ao estilo dos geógrafos anglófonos:
souhaitez
147 Se os activer
geógrafos anglófonos contemporâneos substituíram um 'regime linguístico'
(elaboração de dados produzidos na interdiscursividade) pelo 'regime escópico' de
conhecimento da geografia clássica (elaboração de dados produzidos pela observação
visual), eles penam, no entanto, para fundar um 'regime háptico de conhecimentos (um
regime baseado na elaboração de dados pré-linguísticos, sejam hápticos ou empáticos)
[...] . De fato, eles não adotam o princípio da simetria que lhes permitiria considerar
plenamente um regime háptico de conhecimento a partir de uma reflexão crítica
fundada na relação entre a metodologia de campo baseada no modelo do care, a
dimensão espacial dela e a experiência subjetiva do pesquisador. (Volvey et al., p. 453-
454).
148 Qual a contribuição dessas epistemologias críticas?

https://journals.openedition.org/confins/12414 21/25
29/05/2023, 11:20 O papel do trabalho de campo na geografia, das epistemologias da curiosidade às do desejo

149 As epistemologias do desejo frente às epistemologias da curiosidade


150 A nova curiosidade pelo trabalho de campo resulta da mutação que, nos últimos
trinta anos, a própria concepção que se tinha da epistemologia sofreu: o conhecimento
deixa de responder ao despertar das curiosidades, isto é, a uma necessidade
fundamentalmente intelectual. Ele responde a uma motivação mais profunda e mais
geral: o desejo.
151 Essa mutação se insere em um movimento mais amplo: o pesquisador não está
jamais isolado em sua torre de marfim, suas reflexões carregam a marca da formação
que recebeu, do meio social e intelectual onde evoluiu, das políticas ali executadas. O
saber que ele elabora deve ser contextualizado: o pensamento não se move em um
ambiente sem fricções e tensões. O saber que resulta do tratamento dos dados é
"situado" — isto é, universal.
152 As epistemologias críticas insistem há muito sobre o fato de que o trabalho científico
reflete sempre a "posição" daquele que o faz: o que já ocorria no caso do historicismo;
também o de muitos sociologismos ou economismos; de um certo marxismo, por
exemplo, que pregava que o econômico (o estados das forças produtivas e os modos de
produção) decidisse sempre tudo em última instância. As epistemologias da
corporeidade não escapam à crítica que todas essas concepções levantam: "o que
garante a validade do saber científico na epistemologia feminista e os métodos
qualitativos em geral?" (Volvey et al., p. 449)
153 Ao substituir um saber "situado" pelo seu contrário, não construímos um saber
universal. Os colegas francófonos que exploram essas novas pistas de pesquisa estão
conscientes da fragilidade desse tipo de saber. Para se libertar, Yann Calberác se inspira
em Bruno Latour e em sua Teoria do ator-rede. Anne Volvey tira partido das variantes
da psicanálise que dão conta do papel da subjetividade nas práticas em campo.
154 É evidentemente necessário levar em conta o que pesa para o pesquisador, que
orienta seus trabalhos, o seduz ou repugna enquanto ele confronta o mundo. A
conquista do saber se dá através de incessantes batalhas. Ela não comporta uma vitória
que abra definitivamente ao espírito humano o conteúdo do saber: o universo platônico
das ideias não existe; o conhecimento se constrói e seus resultados são sempre
provisórios.
155 Alguns concluem dessa constatação que as formas tradicionais do conhecimento não
têm fundamento. De fato, é preciso submetê-las constantemente à revisão, rever seus
resultados, reduzir as ambições. A consideração do trabalho de campo e da dimensão
corporal que ele abarca não questiona a ideia que a evolução da geografia reflete um
certo número de lógicas ligadas à história das ideias, à dinâmica das instituições, à
ambição dos pesquisadores, à demanda social. Não se ganharia nada esquecendo essas
determinações para considerar apenas aquelas que levam em conta as epistemologias
do desejo.

☝🍪
CONCLUSÃO
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156 Qual
ceux quebase dar
vous ao método da geografia? O trabalho de campo? A ideia é menos
souhaitez
universalactiver
do que parece à primeira vista. Tem raízes medievais, encontra seus primeiros
teóricos no século XVIII, consolida-se no decorrer do século XIX, triunfa no início do
século XX. Poder-se-ia acreditar que um tema tão central teria dado lugar a uma
elaboração sistemática. Na França, isso não aconteceu: um início de aprendizagem nas
excursões e, depois, muito empirismo. Cada um aprende como se organizar quando se
vê sozinho na natureza. A experiência às vezes é traumatizante e é interpretada de
muitas formas, como enfatiza toda uma corrente contemporânea de pesquisa.
157 Nos últimos 50 anos, a geografia vem dando cada vez mais espaço ao estudo dos
processos responsáveis pelas distribuições observadas. O trabalho de campo perde o
papel estratégico que tinha. No entanto, não desaparece das práticas da disciplina: ele
permite avaliar os limites do produto da análise dos mecanismos econômicos, sociais

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29/05/2023, 11:20 O papel do trabalho de campo na geografia, das epistemologias da curiosidade às do desejo

ou políticos. Experiência fundamental, ajuda a descobrir o que faz sistemas culturais


aparentemente semelhantes divergirem fundamentalmente. Trabalho de campo,
portanto, mas não se dá mais no mesmo momento da pesquisa: não é mais o que vem
em primeiro lugar, mesmo que ainda seja uma parte importante.

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Table des illustrations


Titre Figura 1: Antonio Teixeira Guerra em campo

Crédits Fonte:« Antonio Teixeira Guerra », Confins 16, 2012,


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Figura n° 2: Grupo de estudantes de Rennes 2 e da l’USP em campo
Titre durante “O ano da França no Brasil”, iniciativa dos ministérios da Cultura
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Hervé Théry
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Titre Figura n° 3: Entrevista em campo com um fazendeiro de Goiás
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Crédits Foto Hervé Théry
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Titre Figura n° 4: Observação do terreno em São João da Balisa
Crédits Foto Hervé Théry
URL http://journals.openedition.org/confins/docannexe/image/12414/img-4.jpg
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Titre Figura n° 5: Observação em campo e no mapa em Presidente Prudente
Crédits Foto Hervé Théry
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Pour citer cet article


Référence électronique
Paul Claval, « O papel do trabalho de campo na geografia, das epistemologias da curiosidade às
do desejo », Confins [En ligne], 17 | 2013, mis en ligne le 22 octobre 2017, consulté le 28 mai
2023. URL : http://journals.openedition.org/confins/12414 ; DOI :
https://doi.org/10.4000/confins.12414

Auteur
Paul Claval
Université de Paris-Sorbonne, p.claval@wanadoo.fr

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Le Brésil face à un avenir incertain
Brazil faces an uncertain future
Paru dans Confins, 501 | 2019

Vidal, Vidais [Texte intégral]


Vidal, Vidaux
Paru dans Confins, 23 | 2015

Le mouvement de Rénovation de la géographie au Brésil [Texte intégral]


Paru dans Confins, 20 | 2014
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Giovanna Thomaz; revisão de Patrícia Reuillard (UFRGS)
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https://journals.openedition.org/confins/12414 25/25

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