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Os peixes no Sermão de

Santo António
Valor simbólico
«Simulando dirigir-se aos peixes, Vieira denuncia os pecados da
humanidade, quer elogiando os peixes por possuírem qualidades
que estão ausentes nos homens, quer criticando os seus vícios,
que coincidem com os defeitos dos homens.»
Ana Cristina Macário Lopes e Susana Soares
Vieira constrói o Sermão como uma alegoria.

Dirige-se a um auditório fictício, os peixes, sendo que o


auditório real é constituído por homens, os colonos, cujo
comportamento se condena e se pretende alterar.

Assim, todo o discurso é figurativo, apresentando uma dimensão


simbólica associada às virtudes e aos vícios dos peixes.

«Isto suposto, quero hoje à imitação de Santo António voltar-me da terra


ao mar, e já que os homens se não aproveitam, pregar aos peixes.»
(capítulo I)
Louvores aos peixes – Capítulos II e III

Louvores em geral (Capítulo II)


De forma geral, são louvadas as qualidades dos peixes, que:

foram as primeiras criaturas a ser criadas por Deus;

são as criaturas mais numerosas e as maiores;

«Começando pois pelos vossos louvores, irmãos peixes, bem vos pudera eu dizer
que entre todas as criaturas viventes, e sensitivas, vós fostes as primeiras, que
Deus criou. […] Entre todos os animais do mundo, os peixes são os mais, e os
peixes os maiores.» (capítulo II)
Louvores aos peixes – Capítulos II e III

Louvores em geral (Capítulo II)


De forma geral, são louvadas as qualidades dos peixes, que:

são bons ouvintes e obedientes;


são disciplinados e atentos;

são melhores do que os homens;

não se domam nem domesticam.

«[…] aquela ordem, quietação e atenção com que ouvistes a palavra de Deus da boca do seu servo
António. [...] Os homens perseguindo a António [...] e no mesmo tempo os peixes [...] acudindo à
sua voz, atentos e suspensos às suas palavras, escutando com silêncio [...] o que não entendiam.»
(capítulo II)

«[…] entre todos os animais se não domam, nem domesticam.» (capítulo II)
Louvores aos peixes – Capítulos II e III

Louvores em geral (Capítulo II)


De forma geral, são louvadas as qualidades dos peixes:

louvando os peixes, criticam-se os homens;


os homens são acusados de serem piores do que os peixes.

«Peixes, quanto mais longe dos homens, tanto melhor: trato e familiaridade
com eles, Deus vos livre.» (capítulo II)
Louvores aos peixes – Capítulos II e III

Louvores em particular (Capítulo III)


Peixe de Tobias; Torpedo;

Rémora; Quatro-olhos.

As virtudes das quatro espécies louvadas são semelhantes às qualidades da


pregação de Santo António e Padre António Vieira, mas estabelecem
contraste com os comportamentos dos homens, dominados por seus vícios.
Louvores aos peixes – Capítulos II e III

Peixe de Tobias
Características:

«[…] eis que o investe um grande peixe com a boca aberta […] perguntando que
virtude tinham as entranhas daquele Peixe [….] o fel era bom para sarar a
cegueira, e o coração para lançar fora os Demónios…» (capítulo III)
Louvores aos peixes – Capítulos II e III

Peixe de Tobias
Dimensão simbólica:

Este peixe corresponde, no plano dos homens, a Santo António e Padre António Vieira.

As palavras destes pregadores têm o poder não só de curar a cegueira dos homens
que persistem nos seus vícios, como também podem afastar os Demónios dos
corações humanos, para que estes ouçam e pratiquem a verdadeira doutrina.

«Pois a quem vos quer tirar as cegueiras, a quem vos quer livrar dos Demónios,
perseguis vós? […] Ah moradores do Maranhão, quanto eu vos pudera agora
dizer neste caso! Abri, abri estas entranhas; vede, vede este coração.» (capítulo
III)

Nota: Com os deíticos “este” e “estas”, Vieira refere-se ao coração, às qualidades


psicológicas e morais de Santo António (à sua fé), cuja imagem estaria exposta, nesse dia, na
igreja, aquando da celebração litúrgica.
Louvores aos peixes – Capítulos II e III

Rémora
Características:

«[…] peixinho tão pequeno no corpo, e tão grande na força, e no poder, que não
sendo maior de um palmo, se se pega ao leme de uma nau da Índia […] a
prende e amarra mais…» (capítulo III)
Louvores aos peixes – Capítulos II e III

Rémora
Dimensão simbólica:

À semelhança deste peixe, que impede os naufrágios, as palavras de Santo António


também refrearam as paixões humanas, impedindo os homens de se perderem para Deus.
As pregações de Vieira devem ter o mesmo efeito nos colonos.

«Se alguma Rémora houve na terra, foi a língua de Santo António […] e
rebelde mostrou a língua de António quanta força tinha, como Rémora,
para domar, e parar a fúria das paixões humanas.» (capítulo III)
Louvores aos peixes – Capítulos II e III

Torpedo
Características:

«Está o pescador com a cana na mão, o anzol no fundo e a boia sobre a água, e
em lhe picando na isca o Torpedo, começa a lhe tremer o braço.» (capítulo III)
Louvores aos peixes – Capítulos II e III

Torpedo
Dimensão simbólica:

Através das descargas elétricas que emite, este peixe faz tremer a mão do pescador. Assim
deve ser o efeito das palavras dos pregadores sobre os homens, alertando as suas
consciências e persuadindo-os a moderarem as suas ações. Assim foi o efeito das palavras
de Santo António em todos os que o quiserem ouvir.

«Se eu pregara aos homens, e tivera a língua de Santo António, eu os fizera


tremer. Vinte e dois pescadores destes que se acharam acaso a um Sermão de
Santo António, e as palavras do Santo os fizeram tremer a todos de sorte, que
todos tremendo se lançaram a seus pés, […] todos tremendo restituíram o que
podiam […].» (capítulo III)
Louvores aos peixes – Capítulos II e III

Quatro-olhos
Características:

«[…] aqueles quatro olhos estão lançados um pouco fora do lugar ordinário […]
que os da parte superior olham direitamente para cima , e os da parte inferior
direitamente para baixo […].» (capítulo III)
Louvores aos peixes – Capítulos II e III

Quatro-olhos
Dimensão simbólica:

Este peixe tem dois pares de olhos para vigiar os inimigos do mar e para vigiar os do ar,
defendendo-se deles.
Assim, os olhos são como sentinelas e devem estar atentos ao Bem/Céu (os que olham para
cima) e ao Mal/Inferno (os que olham para baixo).
Santo António foi exemplo deste peixe na terra e deve ser seguido pelos homens, que devem
orientar as sua ações distinguindo o bem do mal.
«Esta é a pregação, que me fez aquele peixezinho, ensinando-me que se tenho
Fé, e uso de razão, só devo olhar direitamente para cima, e só direitamente
para baixo: para cima, considerando que há Céu, e para baixo, lembrando-me
que há Inferno.» (capítulo III)
Repreensões aos peixes – Capítulos IV e V

Repreensões em geral (Capítulo IV)


De forma geral, são apontados aos peixes alguns vícios:

comem-se uns aos outros: os peixes grandes comem os pequenos (ictiofagia) e em grandes quantidades;

são ignorantes e movidos pela vaidade;

deixam-se enganar facilmente.


Repreensões aos peixes – Capítulos IV e V

Repreensões em geral (Capítulo IV)

Da mesma forma, os homens são alvo desta crítica, pois exploram-se uns aos outros (antropofagia
social) e, na sua ignorância, também se deixam «cegar», iludir, pela vaidade.

«Antes porém que vos vades, assim como ouvistes os vossos louvores, ouvi
também agora as vossas repreensões. […] A primeira coisa, que me desedifica,
peixes, de vós, é que vos comeis uns aos outros […] Não só vos comeis uns aos
outros, senão que os grandes comem os pequenos. […] mas como os grandes
comem os pequenos, não bastam cem pequenos, nem mil, para um só grande.»
(capítulo IV)
Repreensões aos peixes – Capítulos IV e V

Repreensões em particular (Capítulo V)


Roncadores;

Pegadores;

Voadores;

Polvo.

Os vícios das quatro espécies repreendidas são opostos às qualidades de Santo


António e Padre António Vieira, mas são semelhantes aos comportamentos dos
homens, também eles dominados pelos seus pecados.
Repreensões aos peixes – Capítulos IV e V

Roncadores
Características:

«É possível que sendo vós uns peixinhos tão pequenos haveis de ser as roncas
do mar? Se com uma linha de coser, e um alfinete torcido vos pode pescar um
aleijado, porque haveis de roncar tanto?» (capítulo V)
Repreensões aos peixes – Capítulos IV e V

Roncadores
Dimensão simbólica:

Estes peixes, sendo pequenos, julgam-se superiores; são arrogantes e


orgulhosos.
Contrariamente a Santo António, que tinha poder, mas não se vangloriava e
revelava humildade, outros houve como Pedro, Caifás e Pilatos que foram
roncadores na Terra.
Assim, estes peixes servem para ensinar aos homens que não só devem ser
ponderados nas suas promessas (palavras), pois dificilmente as cumprirão mas
também que devem ser humildes: quem tem mérito não precisa de o exibir.

«Assim que, amigos Roncadores, o verdadeiro conselho é calar, e imitar a Santo


António. Duas coisas há nos homens, que os costumam fazer roncadores,
porque ambas incham: o saber, e o poder. Caifás roncava de saber: […] Pilatos
roncava de poder: […]. E ambos contra Cristo. Mas o fiel servo de Cristo,
António, […] tanto calou, por isso deu tamanho brado.» (capítulo V)
Repreensões aos peixes – Capítulos IV e V

Pegadores
Características:

«Rodeia a Nau o Tubarão nas calmarias da Linha com os seus Pegadores às


costas, tão cerzidos com a pele, que mais parecem remendos, ou manchas
naturais, que os hóspedes, ou companheiros.» (capítulo V)
Repreensões aos peixes – Capítulos IV e V

Pegadores
Dimensão simbólica:

Os Pegadores são peixes pequenos, que se agarram aos maiores e, quando


estes morrem, o mesmo lhes sucede.
Representam o oportunismo e parasitismo social.

São dissimulados e astutos.

«Este modo de vida, mais astuto que generoso, se acaso se passou, e pegou de
um elemento a outro, sem dúvida que o aprenderam os peixes do alto depois
que os nossos Portugueses o navegaram; porque não parte Vizo-Rei, ou
Governador para as Conquistas, que não vá rodeado de Pegadores […].»
(capítulo V)
Repreensões aos peixes – Capítulos IV e V

Pegadores
Dimensão simbólica:

Os Pegadores que seguiram Herodes e usufruíam do seu poder e prestígio


«morreram» (perderam o seu poder e a sua influência), quando o monarca
faleceu, como morrem os pegadores que se agarram ao Tubarão.
Contrariamente, Santo António, sendo um bom Pegador, agarrou-se (pegou-
se) a Cristo, e é o que todos os homens devem fazer, estando, assim,
seguros de morrer, isto é, sendo bons cristãos conquistarão a vida eterna, o
Céu.

«Peguem-se outros aos grandes da terra, que eu só me quero pegar a Deus.»


Assim o fez também Santo António, e senão, olhai para o mesmo Santo, e vede
como está pegado com Cristo, e Cristo com ele.» (capítulo V)

Nota: Neste momento do sermão, Vieira deve ter acompanhado as suas palavras de um gesto bem claro,
apontando a imagem de Santo António, que segura (pega) o Menino Jesus ao colo.
Repreensões aos peixes – Capítulos IV e V

Voadores
Características:

«Dir-me-eis, Voador, que vos deu Deus maiores barbatanas, que aos outros do
vosso tamanho. Pois porque tivestes maiores barbatanas, por isso haveis de fazer
das barbatanas asas?» (capítulo V)
Repreensões aos peixes – Capítulos IV e V

Voadores
Dimensão simbólica:

Os Voadores foram criados por Deus como peixes, mas querem ser aves.
Assim são pescados como peixes e caçados como aves.

Representam a ambição desmedida e a presunção dos homens.

Santo António é apresentado como um exemplo de humildade e


simplicidade, que aceita a Vontade de Deus, postura que os voadores da
terra devem seguir.

«O Voador fê-lo Deus peixe, e ele quis ser ave, e permite o mesmo Deus que
tenha os perigos de ave, e mais os de peixe. […] A Natureza deu-te a água, tu
não quiseste senão o ar, e eu já te vejo posto ao fogo. Peixes, contente-se cada
um com o seu elemento.» (capítulo V)
Repreensões aos peixes – Capítulos IV e V

Polvo
Características:

«O Polvo com aquele seu capelo na cabeça parece um Monge, com aqueles seus raios
estendidos parece uma estrela, com aquele não ter osso, nem espinha parece a mesma
brandura, a mesma mansidão. E debaixo desta aparência tão modesta, ou desta
hipocrisia tão santa, […] o Polvo é o maior traidor do mar.» (capítulo V)
Repreensões aos peixes – Capítulos IV e V

Polvo
Dimensão simbólica:

O Polvo, à semelhança de Judas, representa a falsidade e a


dissimulação dos homens, em geral, e dos falsos pregadores, em
particular («parece um Monge»).

É mais traidor ainda do que o apóstolo de Cristo, pois usa a sua


capacidade de transformação cromática para se esconder e apanhar
desprevenidamente as presas.
Repreensões aos peixes – Capítulos IV e V

Polvo
Dimensão simbólica:

Ataca de emboscada como os maiores traidores da terra.

Pelo contrário, o exemplo de Santo António, que se pauta pela transparência, pela
bondade e pela genuinidade, deve persuadir os homens à sinceridade, à caridade e à
verdade nas suas ações.

«O Polvo escurecendo-se a si tira a vista aos outros, e a primeira traição, e roubo que
faz, é à luz, para que não distinga as cores. Vê, Peixe aleivoso, e vil, qual é a tua
maldade, pois Judas em tua comparação já é menos traidor! […] Vejo, Peixes, pelo
conhecimento que tendes das terras […] me estais respondendo, e convindo, que
também nelas há falsidades, enganos, fingimentos, embustes, ciladas, e muito
maiores, e mais perniciosas traições.» (capítulo V)

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