A Felicidade Paradoxal

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Na nova religia da continua melhoria das condigdes de vida, © bem-estar tornou-se uma paixéo de massa, 0 objetivo supremo das sociedades democraticas Entramos em uma nova fase do capitalismo, que deu origem ao que Lipovetsky chama de sociedade de hiperconsumo. 0 turboconsumidor individualista, flexivel, hedonista, liberto das antigas culturas de classe esta muito mais em busca de satisfagGes emocionais imediatas que de demonstragdes de condigéo social. O espirito de consumo inftra-se nas relagdes do consumidor com a familia, com © trabalho, com a religido, com a poltica, como lazer. Viveros numa espécie de império do consumo ‘em tempo integral, servido por um mercado diversificado que, a uma 86 ver, satistaz e incentiva a ilimitada aspiragdo a novos prazeres. Mas a felicidade que dat resu 6 uma felicidade ferida: jamais, mostra Lipovetsky, 0 individuo contemporéneo atingiu tal grau de desamparo, pois tornou-se o tinico responsavel por seu éxito ou seu fracasso, estando assim constantemente sujeito a medos, ansiedades e frustracGes. Ha = 3 I A FELICIDADE PARADOXAL ENSAIO SOBRE A SOCIEDADE DE HIPERCONSUMO gilles lipovetsky Companuta Das LETRAS Consumo trazfelicidade? Pesquisas recentes mostram que maioria dos tranceses se considera feliz 0 cenario dessa felicidad & 0 da rmadernidade formada na segunda rmetade do século XX, no que LUpovetsky chara de “civlizagéo do deseo: hiperconsumo, mercantilizagdo dos modos de vida, exacerbagio do gosto pelas novidades. 0 novo Cogito diz: "Comoro, logo existo”. Se antes se tratava de consumir para exbir posigo soci, agora se busca, no imediatismo dos prazeres, maior bem-estar, mais ‘qualidade de vida por meio de tum consumo intimizado, emociona, voliado para satistagbes privadas. No entanto,ndo estamos no melhor os mundos. Bem ao contéto, a crticas que se fazem a sociedad 4e hiperconsumo sao inémeras: perda ) da reinvengio permanente do consumo e dos modos de vida es- 14 diante de n6s “A sociedade de hiperconsumo comega sua carreira por vol- ta do fim dos anos 1970 e seu decurso nao se dé sem incontaveis criticas. Sem duivida, estas modificarao sua fisionomia atual. A pés-sociedade de hiperconsumo esté, entio, na ordem do dia? A meu ver, nao € nada disso, sendo o roteiro mais provavel seu alar- gamento na escala do planeta, em uma época que nao dispoe de substituto digno de crédito: em breve, serao centenas de milhdes, de chineses e de indianos que entrardo na espiral da abundancia dos bens e servigos pagos, indefinidamente renovados. Nao nos enganemos: nem os protestos ecologistas nem os noyos modos ‘de consumo mais sébrio bastaréo para destronar a hegemonia crescente da esfera mercantil, para fazer descarrilar 0 trem-bala consumista, para opor-se & avalanche dos novos produtos com ciclo de vida cada vez mais curto. Estamos apenas no comego da sociedade de hiperconstumo, nada, por ora, esté em condigdes de deter, nem mesmo de frear, o avango da mercantilizagao da ex- periéncia e dos modos de vida No entanto, cedo ou tarde, chegaré o momento de sua su- peracio, que inventaré novas maneiras de produzir, de trocar, ‘mas também de avaliar o consumo e de pensar a felicidade. Em ‘um futuro distante, uma nova hierarquia de bens e de valores 4 luz. A sociedade de hiperconsumo teré morrido, cedendo 0 passo a outras prioridades, a um novo imaginario da vida em so- ciedade e do bem viver. Para um melhor equilibrio? Para maior felicidade da humanidade? 20 PRIMEIRA PARTE A SOCIEDADE DE HIPERCONSUMO “Sociedade de consumo”: a expresso aparece pela primeira vez nos anos 1920, populariza-se nos anos 1950-60, seu éxito permanece absoluto em nossos dias, como demonstra seu amplo uso na linguagem corrente, assim como nos discursos mais es- pecializados. A idéia’de sociedade de consumo soa agora como uma evidéncia, aparece como uma das figuras mais emblemati- cas da ordem econémica e da vida cotidiana das sociedades con- temporaneas. ‘Mas nao é menos verdade que interrogagdes ¢ diividas a seu respeito vieram luz, alguns nao hesitaram mesmo em lavrar sua certidao de 6bito. Assim é que, no comeso dos anos 1990, obser- vadores assinalam mudangas significativas nas regides democr: ticas da abundancia em crise: perda do apetite de consumir, de- sinteresse pelas marcas, maior atengdo aos pregos, recuo das compras por impulso. E, sim, nosso fim de século sublinhava “o fim da sociedade de consumo’, manchete entdo do semandrio LExpress. Outros tipos de consideragdes alimentaram ainda o ques- 23 tionamento do ideal-modelo da mass consumption society. Re- lembrarei dois deles muito brevemente. 0 primeitd, insistindo na revolugao das tecnologias da informagao e da comunicagao, anunciou o advento de uma sociedade de novo género: a das re- des ¢ do capitalismo informacional tomando o lugar do capita- lismo de consumo. © segundo apoiou-se nas mudangas de atitu- des e de valores de que nossas sociedades sao testemunhas. Depois de ter posto a énfase no bem-estar material, no dinheiro e na se- guranga fisica, nossa época daria prioridade A qualidade de vida, a expressio de si, & espiritualidade, as preocupagdes relativas a0 sentido da vida. De um sistema cultural essencialmente materia- lista, terfamos pasado a uma Weltanschauung (visio de mundo] tendencialmente “pés-materialista” Sociedade informacional, so- ciedade pés-materialista: assim, veriamos desaparecer pouco a poucoa sagragaio das coisas” pintada em outros tempos por Geor- ‘ges Perec. Se por “fim da sociedade de consumo” entende-se perda de fSlego das paixies consumistas e colocagao em xeque da mercan- tilizagao das necessidades, a idéia, com toda a certeza, nao resiste um instante ao exame. E preciso, por isso, eliminar de uma vez a temitica de uma “superagao” desse tipo de sociedade e de cultu- ra? Nao creio. Tenho, a0 contririo, a conviccao de que essa hipé- Ha mai ram por uma nova era de mercantilizagio dos modos de vida, as praticas de consumo exprimem uma nova relagio com as coisas, tese é corte! de vinte anos, as democracias envereda- com os outros e consigo. A dinamica de expansio das necessida- des se prolongs, mas carregaa de novos significados colts. individuais. £ um consumidor de “terceiro grau” que deambula ‘nos centros comerciais gigantes, compra marcas mundiais;pro- cura produtos light ou biodinamicos, exige selos de qualidade, navega nas redes, baixa miisica no telefone celular, Sem que se dé por isso e além da familiaridade de uma expresso tornada con- 4 sensual, a era do consumo de massa mudou de fisionomia, eis «que chega a uma nova fase de sua hist6ria secular. Advento de uma nova economia ¢ de uma nova cultura de consumo nao quer dizer mutagao hist6rica absoluta. A pos-so- ciedade de consumo de massa deve ser entendida como uma rup- tura na continuidade, uma mudanga de rumo sobre fundo de permanéncia. O sistema pés-fordista que se impe é acompanha- do por profundasalteragdes nos modos de estimulagao da deman- da, nas formulas de venda, nos comportamentose nos imaginérios de consumo. Mas nao é menos verdade que essas transformagOes, prolongam uma dindmica econdmica comegada desde as tiltimas décadas do século x1x e inscrevem-se na longa corrente da civili- za¢a0 individualista da felicidade, As indhstrias e 0s servigos ago- a empregam logicas de opsio, estratégias de personalizagao dos produtos e dos precos, a grande distribuigao empenha-se em po- liticas de diferenciagao e de segmentagao, mas todas essas mu- dangas nao fazem mais que ampliar a mercantilizacao dos mo- dos de vida, alimentar um pouco mais o frenesi das necessidades, avangar um grau na légica do “sempre mais, sempre novo” que 0 Liltimo meio século Jd concretizou com o sucesso que se conhe- ce. F nesses termos que deve ser pensada a “safda” da sociedade de consumo, uma saida por cima, nao por baixo, por hipermate- rialismo mais que por pés-materialismo. A nova sociedade que nasce funciona por hhiperconsumo, nao por “des-consumo” 5 1, As trés eras do capitalismo de consumo Sea hipétese de uma nova etapa hist6rica da civilizago con- sumidora é justa, ¢ possivel propor um esquema de sua evolugio fundado na distingao de trés grandes momentos. Nao é necessé- rio esclarecer que a “descrigao” que dou deles ¢ das mais sumé- rias, sendo 0 objetivo procurado apenas de abarcar num tinico olhar um fendmeno complexo e secular, por em perspectiva 0 sentido das mudangas em curso, inscrevendo o presente na his- t6ria longa da civilizagao de massa. 0 NASCIMENTO DOS MERCADOS DE MASSA Produgio e marketing de massa O ciclo 1 da era do consumo de massa comega por volta dos anos 1880 e termina com a Segunda Guerra Mundial. Fase I que vé constituir-se, no lugar dos pequenos mercados locais, os grandes mercados nacionais tornados possiveis pelas 26 infra-estruturas modernas de transporte e de comunicagao: es- tradas de ferro, telégrafo, telefone. Aumentando a regularidade, © volume ea velocidade dos transportes para as fabricas e para as cidades, as redes ferrovidrias, em particular, permitiram 0 de- senvolvimento do comércio em grande escala, 0 escoamento re- gular de quantidades macigas de produtos, a gestao dos fluxos de produtos de um estagio de produgéo a outro. Essa fase € contemporanea, igualmente, da elaboragio de maquinas de fabricacao continua que, elevando a velocidade e a quantidade dos fluxos, ocasionaram o aumento da produtivida- decom custos mais baixos: elas abriram caminho paraa produgio de massa. No fim dos anos 1880, nos Estados Unidos, uma ma- quina ja podia fabricar 120 mil cigarros por dia: trinta dessas ‘méquinas bastavam para saturar 0 mercado nacional. Maquinas automiéticas permitiam que 75 operarios produzissem todos os dias 2 milhdes de caixas de fésforos. A Procter & Gamble fabri- cava 200 mil sabonetes Yvory por dia. Maquinas desse tipo apa- reciam igualmente na produgio do material de limpeza, dos ce- reais matinais, dos rolos fotogriificos, das sopas, do leite e outros produtos embalados. Assim, as téenicas de fabricagao com pro- cesso continuo permitiram produzir em enormes séries merca- dorias padronizadas que, embaladas em pequenas quantidades ¢ com nome de marca, puderam ser distribuidas em escala nacio~ nal, a prego unitério muito baixo! ‘A expansio da produgdo em grande escala é também esti- mulada pela reestruturagio das fabricas em fungao dos princi- pios da “organizagao cientifica do trabalho”, Foi no setor do au- tomével que estes receberam sua aplicago mais ampla, Gragas & linha de montagem mével,o tempo de trabalho necessério.’ mon- tagem de um chassi do modelo “T” da Ford passou de doze ho- ras ¢ 28 minutos, em 1910, para uma hora e 33 minutos, em 1914. A fibrica de Highland Park puna 4 venda mil carros por dia, 9 ‘Tendo o aumento da velocidade da produgao permitido baixar 0 prego de venda a ponto de representar apenas a metade do de seu concorrente mais proximo,’ as vendas de veiculos com pregos ‘moderados tiveram um crescimento consideravel. capitalismo de consumo nao nasceu mecanicamente de técnicas industriais capazes de produzir em grandes séries mer- cadorias padronizadas. Ele é também uma construcdo cultural e social que requereu a “educagao” dos consumidores ao mesmo de empreendedores criativos, a tempo que o espirito visiona1 “mio visivel dos gestores”. No fundamento da economia de con- sumo encontra-se uma nova filosofia comercial, uma estratégia em ruptura com as atitudes do passado: vender a maior quanti- dade de produtos com uma fraca margem de ganho de preferén- ia a uma pequena quantidade com uma margem importante, ucro, nao pelo aumento mas pela baixa do prego de venda. A insepardvel desta invencao de marke- ting: a busca do lucro pelo volume e pela pritica dos pregos bai- xos. Pér os produtos ao alcance das massas: a era moderna do consumo é condutora de um projeto de democratizagao do aces- economia de consumo é so 20s bens mercantis. {A fase 1ilustra ja essa dinamica, tendo um conjunto de pro- dutos duraveis e nao duraveis se tornado acessivel a um maior niimero de pessoas. Esse processo, contudo, permaneceu limita- do, uma vez que a maioria dos lares populares tem recursos mui- to escassos para poder adquirir os equipamentos modernos. Al- gumas cifras ilustram os limites dessa democratizagio. Nos Estados Unidos, em 1929, contam-se dezenove automéveis para cem habitantes, e na Franga ¢ na Gra-Bretanha dois para cem ha- bitantes, Em 1932, ha nos Estados Unidos 740 aspiradores, 1580 ferros de passar ¢ 180 fornos elétricos para 10 mil pessoas contra respectivamente, na Franga, 120, 850, vito. Na Pranga, 0 uso dos aparelhos eletrodomésticos permaneceu muito tempo associado 28 a0 luxo: ainda em 1954, apenas 7% dos lares esto equipados com um reftigerador. A fase 1 criou um consumo de massa inacaba- do, com predominancia burguesa.’ Uma tripla invengao: marca, acondicionamento e publicidade ‘Ao desenvolver a produgao de massa,a fase inventou o mar- keting de massa bem como o consumidor moderno, Até os anos 1880, os produtos eram andnimos, vendidos a granel, e as mar- cas nacionais, muito pouco numerosas. A fim de controlar os flu- xos de produgdo e de rentabilizar seus equipamentos, as novas, inciistrias acondicionaram elas mesmas seus produtos, fazendo publicidade em escala nacional em torno de sua marca. Pela pri meira vez, empresas consagram enormes orgamentos & publici- dade; as somas investidas esto em aumento muito répido: de 11 mil délares em 1892, as despesas publicitarias da Coca-Cola ele- vam-se a 100 mil em 1901, 1,2 milhdo em 1912, 3,8 milhoes em 1929." Padronizados, empacotados em pequenas embalagens, dis- tribuidos nos mercados nacionais, desde entao os produtos vao ter um nome, o que Ihes foi atribufdo pelo fabs ‘A fase | criow uma economia baseada em uma infi inte: a marca, jdade de mar- cas célebres, algumas das quais conservaram uma posigao de des- taque até nossos dias. B ao longo dos anos 1880 que sao funda- das ou que se tornam célebres a Coca-Cola, a American Tobacco, Procter & Gamble, a Kodak, a Heinz, a Quaker Oats, a Camp- bell Soup. De 1886 a 1920, o mimero de marcas registradas na Franga passa de $520 para 25 mil. aparecimento das grandes marcas e dos produtos acondi- cionados transformou profundamente a relagdo do consumidor com 0 varejista, este perdendo as fungdes que até entao Ihe esta- 29 ‘vam reservadas: dai em diante, nao é mais no vendedor que se fia 6 consumidor, mas na marca, sendo a garantia e a qualidade dos, produtos transferidas para o fabricante. Rompendo a antiga re- Jacdo mercantil dominada pelo comerciante, fase | transformou 0 cliente tradicional em consumidor moderno, em consumidor de marcas a ser educado e seduzido especialmente pela publici- dade, Com a tripla invengao da marca, do acondicionamento € da publicidade, apareceu o consumidor dos tempos modernos, comprando o produto sem a intermediagao obrigatéria do co- merciante, julgando os produtos a partir de seu nome mais que a partir de sua composigdo, comprando uma assinatura no lugar de uma coisa.’ Os grandes magazines A produgio de massa foi acompanhada pela invengio de um ‘comércio de massa impulsionado pelo grande magazine. Na Fran- ga, 0 Printemps é fundado em 1865 e Le Bon Marché, em 1869s nos Estados Unidos, o Macy’se o Bloomingdale's tornam-se gran- des magazines antes e depois dos anos 1870. Baseado em novas polfticas de venda agressivas e sedutoras, o grande magazine cons- tituia primeira revolugdo comercial moderna, inaugurando a era da distribuigao de massa. Em primeiro lugar, os grandes magazines deram énfase & r0- tagao rapida dos estoques e a uma pratica de pregos baixos com vista a um volume de negécios elevado fundado na venda em grande escala: em 1890, mais de 15 mil pessoas se dirigiam por itavam nos dias de ven- dia ao Bon Marché; 70 mil clientes 0 das especiais, © importante, dai para a frente, é a rapidez de es- coamento de uma quantidade maxima de produtos, mas com uma margem de ganho menor. Em segundo lugar, esses novos empreendedores aumentaram consideravelmente a variedade dos 30 ntes, Permitindo a entrada livre e as “devolugbes”, vendendo a pregos baixos e fixos, etiquetando os produtos oferecidos aos cli precos, o grande magazine rompe com as tradi¢oes comerciais| do passado, especialmente com 0 ritual costumeiro do regateio sobre 0s artigos.* Gracas a uma politica de vender barato, 0 gran- de magazine transformou os bens antigamente reservados & elite em artigos de consumo de massa destinados & burguesia Paralelamente, por intermédio de suas publicidades, de suas animagOes ¢ ricas decoragoes, os grandes magazines puseram em ‘marcha um processo de “democratizagao do desejo”” Ao trans~ formar os locais de venda em palicios de sonho, os grandes ma- gazines revolucionaram a relagio com o consumo, Estilo monumental dos magazines, decoragdes luxuosas, do- ‘mos resplandecentes, vitrines de cor e de luz, tudo é montado pa- ra ofuscar a vista, metamorfosear 0 magazine em festa perma- nente, maravilhar o fregués, criar um clima compulsivo e sensual propicio a compra. O grande magazine nao vende apenas mer- cadorias, consagra-se a estimular a necessidade de consumir, a excitar 0 gosto pelas novidades ¢ pela moda por meio de estraté- gias de sedugao que prefiguram as técnicas modernas do marke- 1g: Impressionar a imaginagso, despertar o desejo, apresentar a compra como um prazer, os grandes magazines foram, com a pu- blicidade, os principais instrumentos da elevagao do consumo a arte de viver e emblema da felicidade moderna, Enquanto os gran- ddes magazines trabalhavam em desculpabilizar o ato de compra, © shopping, o “olhar vitrines” tornaram-se uma maneira de ocu- par o tempo, um estilo de vida das classes médias." A fase 1 in- ventou o consumo-sedugao, o consumo-distragao de que somos herdeiros figis. 3 A SOCIEDADE DE CONSUMO DE MASSA B por volta de 1950 que se estabelece 0 novo ciclo histérico das economias de consumo: ele se constréi ao longo das trés dé- cadas do pés-guerra. Se essa fase prolongow os processos inven- tados no estigio precedente, nem por isso ela deixa de constituir ‘uma imensa mutagio cuja radicalidade, instituidora de uma rup- tura cultural, jamais sera sublinhada o bastante. A economia fordista Marcada por um excepcional crescimento econdmico, pela clevagao do nivel de produtividade do trabalho e pela extensio da regulagao fordista da economia, a fase 1 identifica-se com 0 que se chamou de “sociedade da abundancia”. Multiplicando por trés. ou quatro o poder de compra dos salérios, democratizando os so- hos do Eldorado consumista,a fase 1! apresenta-se como 0 mo- delo puro da “sociedade do consumo de massa”. ‘Sea fase 1 comecou a democratizar a compra dos bens du- raveis,a fase 1! aperfeigoou esse processo, pondo a disposigao de todos, ou de quase todos, os produtos emblemiticos da sociedade de afluéncia: automével, televisdo, aparelhos eletrodomésticos. A época vé o nivel de consumo elevar-se, a estrutura de consumo modificar-se, a compra de bens duraveis espalhar-se em todos os meios: na Franga, a participagao das despesas da alimentacto em domicilio passa, no orgamento das familias, de 49,9%, em 1950, a 20,5% em 1980; entre 1959 e 1973, o consumo dos bens durd- veis progride 10,3% ao ano em volume. Consumando o “milagre do consumo”, a fase tt fez aparecer um poder de compra discri- ciondrio em camadas sociais cada vez mais vastas, que podem en- carar com confianga a melhoria permanente de seu meio de exis- téncia; ela difundiu o crédito e permitiu quea maioria se libertasse 2 da urgéncia da necessidade estrita, Pela primeira vez, as massas tem acesso a uma demanda material mais psicologizada e mais individualizada, a um modo de vida (bens duraveis, lazeres, fé- rias, moda) antigamente associado as elites sociais, ‘A sociedade de consumo de massa nao péde desabrochar se- ‘nao com base em uma ampla difuusto do modelo tayloriano-for- dista de organizagao da produgao, que permitiu uma excepcio- nal alta da produtividade bem como a progressio dos salérios: de 1950 a 1973, 0 crescimento anual da produtividade do traba- Iho foi de 4,7% nos doze paises da Europa ocidental. As palavras- chave nas organizagdes industriais passam a ser: especializagao, padronizacao, repetitividade, elevagao dos volumes de produgio. Trata-se, gragas A automatizagao e as linhas de montagem, de fa- bricar produtos padronizados em enorme quantidade. A “légica da quantidade” domina a fase Nao é apenas a esfera industrial que se moderniza com gran- de rapidez: a grande distribuigao reestrutura-se igualmente, in- tegrando em seu funcionamento os mecanismos de racionaliza~ 40 empregados no sistema produtivo fordista: exploracao das economias de escala, métodos cientificos de gestao e de organi zagao do trabalho, divisao intensfva das tarefas, volume de ven- das elevado, precos os mais baixos possiveis, margem de ganho fraca, rotagdo rapida das mercadorias. A expressao “fabrica de vender” data dos anos 1960: ela revela o impulso da légica pro- dutivista presente na distribuigao em grande escala. Com a for- midavel difusdo do auto-servigo, dos supermercados ¢, depois, dos hipermercados, nao se trata mais apenas de vender a preco baixo, mas de “derrubar os pregos’, sendo “menos caro que o me- nos caro”:"' uma formidavel “revolugao comercial” acompanha a fase Il. A produgao e o consumo de massa reclamavam uma distri- buigdo de massa: o desenvolvimento das grandes dreas com au- 3 to-servigo e a pritica sistematica do desconto vieram responder a essa exigéncia. O grande comércio passa por um crescimento fulgurante:o primeiro supermercado é aberto na Franga em 1957, quando 0s Estados Unidos jé contavam 20 mil del se 2587 em 1973 e 3962 em 1980. O primeito hipermercado abre suas portas em 1963 sob a bandeira Carrefour: contam-se 124 enumeram- em 1972 ¢ 426 em 1980. Expansio consideravel do parque das grandes drcas (supermercado, hipermercado), que se traduziu na progressio de sua participagio no montante de negécios do co- mércio, 0 de alimentos em particular: 20% em 1974, 30% em 1980. ‘Ao longo de toda a fase tt, as préteses mercantis invadem a vida cotidiana, a0 mesmo tempo que comegam a vir a luz politi- cas de diversificagio dos produtos bem como processos visando reduzir 0 tempo de vida das mercadorias, tiré-las de moda pela renovagio rapida dos modelos € dos estilos. O “compl6 da mo: da, que cerca dai em diante o universo industrial, constitui ob- jeto de muitas dentincias. Embora de natureza essencialmente fordista, a ordem econémica ordena-se jé parcialmente segundo 60s principios da seducao, do efémero, da diferenciagao dos mer- cados: a0 marketing de massa tipico da fase 1 sucedem estratégias socioculturais de segmentagao centradas na idade € nos fatore £ um ciclo intermediério hibrido, combinando légica fordista e logica-moda, que se instala. Uma nova salvagao ‘Ao longo dessa fase edifica-se, propriamente falando, a “so- ciedade de consumo de massa” como projeto de sociedade e ob- jetivo supremo das sociedades ocidentais, Nasce uma nova socie- dade, na qual o crescimento, a melhoria das condigdes de vida, 0s objetos-guias do consumo se tornam os critérios por excelén- 4 cia do progresso. Incrementar o PNB e aumentar o nivel de vida de todos figura como “ardorosa obrigasao”: toda uma sociedade ‘se mobiliza em torno do projeto de arranjar um cotidiano con- fortavel e facil, sinonimo de felicidade, Celebrando com énfase 0 conforto material e o equipamento moderno dos lares, a fase 11 é dominada por uma légica econdmica e técnica mais quantitativa que qualitativa, De um lado, a sociedade de consumo de massa apresenta-se, através da mitologia da profu 0, como utopia rea- lizada. Do outro, ela se pensa como marcha rumo a utopia, exi- gindo sempre mais conforto, sempre mais objetos e lazeres. Hé algo mais na sociedade de consumo além da rapida ele- vaso do nivel de vida médio: a ambiéncia de estimulagao dos desejos, a euforia publicitéria, a imagem luxuriante das férias, a sexualizagao dos signos e dos corpos. Bis um tipo de sociedade que substitui a coergdo pela sedugao, o dever pelo hedonismo, a poupanca pelo dispéndio, a solenidade pelo humor, o recalque pela liberacao, as promessas do futuro pelo presente. A fase if se mostra como “sociedade do desejo", achando-se toda a cotidi idora, de sonhos de praia, de ludismo erdtico, de modas ostensivamente jovens. Miisica rock, quadrinhos, pin-up, liberagao sexual, fun nidade impregnada de imaginério de felicidade consui morality, design modernista: 0 perfodo herdico do consumo re- juvenesceu, exaltou, suavizou os signos da cultura cotidiana, Atra- vvés de mitologias adolescentes liberat6rias e despreocupadas com © futuro, produziu-se uma profunda mutagao cultural A fase 11 aquela em que se esboroam com grande rapidez, as antigas resistencias culturais as frivolidades da vida material mercantil. Toda a méquina econdmica se consagra a isso através da renovagio dos produtos, da mudanga dos modelos e dos esti- los, da moda, do crédito, da sedugao publicitiria. O crédito é en. corajado a fim de comprar as maravilhas da terra de abundancia, de realizar desejos sem demora, Entre 1952 ¢ 1972, o investimen- 35 to publicitério francés ¢ multiplicado pelo menos por cinco (em francos constantes); de 1952.a 1973, as despesas publicitérias ame- ricanas so multiplicadas por trés, No comego dos anos 1960, en- quanto a publicidade ganha novos espagos, uma familia ameri- cana ja estd sujeita a cerca de 1500 mensagens por dia, £ como uma época hipertréfica de “criacao de necessidades artificiais”, de “esbanjamento” organizado," de tentagbes onipresentes e de estimulacdes desenfreadas dos desejos que aparece a affluent so- ciety, Poderosa dinamica de comercializagao que erigiu o consu- mo mercantil em estilo de vida, em sonho de massa, em nova ra- ‘io de viver. A sociedade de consumo criou em grande escala a vontade crénica dos bens mercantis, o virus da compra, a paixo pelo novo, um modo de vida centrado nos valores materialistas. ‘Shopping compulsivo, febre dos objetos, escalada das necessida- des, profusio e esbanjamento espetacular: a fase tl menos orde- now a “programagio burocratica do cotidiano”® do que destra- dicionalizou a esfera do consumo; ela menos criou um ambiente. “climatizado” do que privatizou os modos de vida. Enquanto se acelera “a obsolescéncia dirigida” dos produ- tos, a publicidade e as midias exaltam os gozos instantaneos, exi- bindo um pouco por toda parte os sonhos do eros, do conforto e dos lazeres. Sob um dildvio de signos leves, frivolos, hedonistas, a fase 11 se empenhou em deslegitimar as normas vitorianas, os ideais sacrificiais, os imperativos rigoristas em beneficio dos go- 20s privados, Assim, ela provocou uma oscilagao do tempo, fa- zendo passar da orientagao futurista para a “vida no presente” € suas satisfag6es imediatas, Revolugio do conforto, revolugio do cotidiano, revolugio sexual: a fase 1! est no prinefpio da “segun- da revolugao individualista’," marcada pelo culto hedonista e psi- colégico, pela privatizagio da vida ea autonomizagio dos sujei- tos em relagao as instituigdes coletivas, Ela pode ser considerada como o primeiro momento do desvanecimento da antiga mo- 36 dernidade disciplinar e autoritéria, dominada pelas confronta- {goes ¢ ideologias de classe. Esse ciclo, por sua ver, esté terminado, Desde o fim dos anos 1970, € 0 terceiro ato das economias de consumo que se repre- senta no palco das sociedades desenvolvidas, Escreve-se uma pa- gina que inventa um novo futuro para a aventura individualista ¢ consumista das sociedades liberais. Os capstulos que se seguem procuram fixar-lhe os contornos e as apostas. ” 2. Além da posigao social: o consumo emocional A constatagdo € banal: & medida que nossas sociedades en- riquecem, surgem incessantemente novas vontades de consumir Quanto mais se consome, mais se quer consumir: a época da abundancia é inseparavel de um alargamento indefinido da esfe- xa das satisfages desejadas e de uma incapacidade de eliminar 0s apetites de consumo, sendo toda saturagao de uma necessida- de acompanhada imediatamente por novas procuras, Dai a tra- dicional pergunta: a que se deve essa escalada sem fim das neces- sidades? O que é que faz correr incansavelmente o consumidor? No rastro de Veblen, os socidlogos criticos dos anos 1960- 70 esforgaram-se em responder a essas interrogagoes descons- ssidades, sendo o consumo interpre- truindo a ideologia das nei tado como uma ldgica de diferenciagao social. Nada de objeto desejavel em si, nada de atrativo das coisas por si mesmas, mas sempre exigencias de prestigio e de reconhecimento, de status ¢ de integracao social, Estrutura de interctmbio social sustentada pela logica da pos na fase 11 é definido como um campo de simbolos distintivos, ‘io ¢ das competigdes por status, o consumo 38 procurando os atores nao tanto gozar de um valor de uso quan- to exibir uma condigao, classificar-se ¢ ser superiores em uma hierarquia de signos concorrentes.' Nessa perspectiva, a corrida aos bens mercantis ¢ inesgotivel apenas na medida em que se apéia em lutas simbélicas com vista a apropriagao dos signos di- ferenciais. As estratégias distintivas e as lutas de concorréncia opondo as classes sociais ¢ que '4o no principio da excrescén- cia gigantesca do consumo e d npossibilidade de chegar a um limiar de saturagdo das necessidade: DO CONSUMO OSTENTATORIO AO CONSUMO EXPERIENCIAL Digamo-lo sem dissimulacao: a sociologia que se pretendia critica mostrou nao estar a par de seu tempo ao considerar “o feito Veblen” o epicentro da dinamica consumidora, no momen- to mesmo em que o valor de uso dos objetos tomava uma con- sisténcia inédita, em que os referenciais do conforto, do prazer e dos lazeres comecavam a impor-se como objetivos capazes de orientar os comportamentos da maioria, Jé em 1964, E, Dichter observava que o status se tornara uma motivagao secundé aquisigao de um carro.’ De fato, o mesmo acontecia com a tele- visdo, os aparelhos eletrodomésticos, as férias, a praia, cuja sedu- 40 nao pode ser explicada a partir apenas do modelo da distin- do. A verdade é que, a partir dos anos 1950-60, ter acesso a um modo de vida mais fécil e mais confortavel, mais livre € mais he- donista constituia jé uma motivagao muito importante dos con- sumidores, Exaltando os ideais da felicidade privada, os lazeres, as publicidades e as midias favoreceram condutas de consumo ‘menos sujeitas ao primado do julgamento do outro, Viver me- Ihor, gozar os prazeres da vida, nao se privar, dispor do “supér- 39 fluo” apareceram cada vez mais como comportamentos legiti- mos, finalidades em si. O culto do bem-estar de massa celebrado pela fase 1! comegou a minar a légica dos dispéndios com vista & consideragio social, a promover um modelo de consumo de tipo individualista. ‘Mas nao & menos verdade que, durante todo esse ciclo, 0 consumo conservou um forte potencial de prestigio, nao deixan- do 08 objetos de ser valorizados como signos tangiveis de suces- so, provas de ascensio ¢ de integragao social, vetores de conside- ragio honorffica. Os carros americanos 10 sobrecarregados de cromados e de aletas aerodinamicas para impressionar 0 olhar, criar uma imagem de superioridade social, Da mesma maneira que se fica orgulhoso de exibir os objetos como emblemas de po- sigao, a publicidade esforga-se em louvar os produtos como sim- bolos de condi¢ao social: so mulheres maquiadas, “finas” e ele- gantes que encenam os visuais publicitérios para o carro, a batedeira ou o aspirador, Auscultando os comportamentos dos Jifties,V, Packard fala dos “obcecados por posigao social” Essa combinagao de duas légicas heterogéneas (corrida & consideracao/corrida aos prazeres) revela a especificidade com- pésita da fase em relagao ao ciclo precedente que, conhecendo apenas uma difusio limitada dos bens duraveis industriais, cons- truiu-se sob a égide hegeménica do consumo de status, Prolon- gando 0 regime dos dispéndios para dar na vista, a fase 11 €, a0 ‘mesmo tempo, a que erigiu o hedonismo em finalidade legitima de massa, a que transformou a ambiéncia ou o estilo do consu- ‘mo, envolvendo-o num halo de leveza e de ludismo, de juvenilida- dee de erotismo, Juke-box, fliperama, pin-up, patinete, rock'n'roll, toca-discos, transistor, televisdo, Club Méditerranée, cadeira “Djinn” de aspecto zoomérfico, design pop, jeans e minissaia, uns tantos produtos certamente muito diversos, mas que, associados lidade e a liberdade, & provocagao a juventude ou a Eros, a mol 40 ao divertimento, suavizaram, dinamizaram o imagindrio con- sumidor, O momento “pesado’, enfitico e competitivo da mer- cadoria recuou um grau em favor de uma mitologia euforica e Itidica,frivola e juvenil, Dai a natureza hibrida desse ciclo, que se presenta, na escala histérica, como uma formagao de compro- isso entre a mitologia da posieao social e a do fur, entre 0 con- sumo demonstrativo “tradicional” e o consumo hedonista in. vidualista, O consumo intimizado Esse ciclo esté terminado, O processo de reducdo das despesas para atrair consideracao tomou tal amplitude que somos levacos a afirmar a emergéncia de uma nova fase histérica do consumo. No rastro da extrema diversificacdo da oferta, da democrat sao do conforto ¢ dos lazeres, 0 acesso as novidades mercantis| banalizou-se, as regulagdes de classe se desagregaram, novas as- piragdes e novos comportamentos vieram a luz, Enquanto se des- prezam os habitus e particularismos de classe, os consumidores ‘mostram-se mais imprevisiveis e voléteis, mais & espera de quali- dade de vida, de comunicagao e de satide, tem melhores condi- ‘goes de fazer uma escolha entre as diferentes propostas da ofer- ta, O consumo ordena-se cada dia um pouco mais em fungio de fins, de gostos e de critérios individuais. Bis chegada a época do izacio moderna das necessi- hiperconsumo, fase 1 da merca dades e orquestrada por uma logica desinstitucionalizada, subje- tiva, emocional. ‘Uma das dindmicas postas em marcha ha meio século tor- nou-se dominante: em periodo de privadas superam muito as finalidades distintivas. Queremos ob- iperconsumo, as motivagses jetos “para viver”, mais que objetos para exibir, compramos me- nos isto ou aquilo para nos pavonear, alardear uma posi¢ao so- a cial, que com vista a satisfagSes emocionais e corporais, senso- riais e estéticas, relacionais ¢ sanitarias, luidicas ¢ distrativas. Os bens mercantis funcionavam tendencialmente como simbolos de status, agora eles aparecem cada vez mais como servigos & pes- soa. Das coisas, esperamos menos que nos classifiquem em rela- ¢4o aos outros ¢ mais que nos permitam ser mais independentes ‘e mais moveis, sentir sensacdes, viver experiéncias, melhorar nos- sa qualidade de vida, conservar juventude e satide, Naturalmen- te, as satisfagdes sociais diferenciais permanecem, mas quase ja no sdo mais que uma motivacao entre muitas outras, em um conjunto dominado pela busca das felicidades privadas. O con- sumo “para si” suplantou o consumo “para o outro”, em sintonia com o irtesistivel movimento de individualizagao das expectati- vas, dos gostos e dos comportamentos, AAs despesas suntuarias, a corrida & posigao social, os com- portamentos de moda sempre se apoiaram em lutas de concor- réncia entre grupos com a ambigao de classificar-se e de fazer-se reconhecer. A época do hiperconsumo apresenta isto de especifi- co: ela conseguiu fazer passar ao segundo plano e por vezes ex- pulsar a luta das consciéncias, antigamente central no campo do consumo, Dai em diante, este oferece um espeticulo amplamente liberto da dramaturgia que ainda havia nos anos 1950, desenvol- vendo-se a aquisigao das coisas e as priticas de lazer, em grande parte, fora das logicas de rivalidade de status. © que se apodera de porgoes cada dia mais amplas do consumo é uma atividade consumidora sem negativo nem aposta inter-humana, sem dialé- tica nem competigao maior. Nao vejo termo mais adequado que hiperconsumo para dar conta de uma época na qual as despesas jd nao tém como motor o desafio, a diferenca, os enfrentamentos simbélicos entre os homens. Quando as lutas de concorréncia nao sio mais a pedra angular das aquisigdes mercantis, comega a civi- 2 lizagao do hiperconsumo, esse império em que 0 sol da mercado- ria € do individualismo extremo nao se poe jamais, A aposta primeira era ser filiado a um grupo ¢ criar distan- cia social. O que resta disso & hora dos novos objetos de comu- nicagao acelerando as trocas interindividuais e tornando possi- veis as estimulagoes do eu, & hora ainda em que explodem as demandas de satide, de divertimento e de maior bem-estar? Nao émais a oposi¢ao entre a elite dos dominantes e a massa dos do- ‘minados, nem aquela entre as diferentes fragdes de classe que or- ganiza a ordem do consumo, mas 0 “sempre mais” e 0 zapping ¢generalizado, as bulimias exponenciais de cuidados, de comuni- cages ¢ de evasbes renovadas. Agora, a busca das felicidades pri- vadas, a otimizagao de nossos recursos corporais e relacionais, a satide ilimitada, a conquista de espaos-tempos personalizados & «que servem de base a dindmica consumista:a era ostentat6ria dos objetos foi suplantada pelo reino da hipermercadoria desconfli- tada® e pés-conformista. O apogeu da mercadoria nao é 0 valor signo diferencial, mas o valor experiencial, o consumo “puro” va- endo nao como significante social, mas como conjunto de set- -vigos para o individuo A fase it € 0 momento em que o valor dis- trativo prevalece sobre o valor honorifico, a conservagio de si, sobre a comparagio provocante, o conforto sensitivo, sobre a exi- bigdo dos signos ostensivos. Arrastado por esse maremoto, o gosto pelas novidades mu- dou de sentido. O culto do novo nao tem nada de recente, uma ‘vez que se impos desde o fim da Idade Média, especialmente atra- vvés da emergéncia da moda, Mas, durante séculos, a norma do “tudo que é novo agrada” quase nao ultrapassou os circulos res- tritos dos privilegiados, seu valor baseava-se, em grande parte, em seu poder distintivo, Essa nfo é mais a situagao presente. Em pri- meiro lugar, o gosto pela mudanga incessante no consumo jé nao tem limite social, difundiu-se em todas as camadas ¢ em todas as “8 categorias de idade; em seguida, desejamos as novidades mercan- tis por si mesmas, em razao dos beneficios subjetivos, funcionais € emocionais que proporcionam, Hoje, a demanda de renovagao se sobrepos ao desejo do “minimo conforto técnico” que estava em vigor na fase i, curiosidade tornou-se uma paixao de massa e mudar por mudar, uma experiéncia destinada a ser experimen- tada pessoalmente. © amor pelo novo nao é mais tao sustentado pelas paixdes conformistas quanto pelos apetites experienciais dos sujeitos, Passa-se para o universo do hiperconsumo quando 0 gos- to pela mudanga se difunde universalmente, quando o desejo de “moda? se espalha além da esfera indumentéria, quando a paixio pela renovagao ganha uma espécie de autonomia, relegando a0 segundo plano as lutas de concorréncia pelo status, as rivalidades mimeéticas e outras febres conformistas. Daf as novas fungdes subjetivas do consumo. Diferentemen- te do consumo A moda antiga, que tornava vistvel a identidade econdmica e social das pessoas, 0s atos de compra em nossas so- ciedades traduzem antes de tudo diferengas de idade, gostos par- ticulares, a identidade cultural e singular dos atores, ainda que através dos produtos mais banalizados. arranjo dos apart mentos exemplifica tal evoluso. Jé ndo se trata tanto, nesse do- minio, de exibir um signo exterior de riqueza ou de sucesso quan- to de criar um ambiente agradavel e estético “que se paresa conosco”, um casulo convivial e personalizado, Sem ditvida, isso € resultado de compras de produtos padronizados, mas todas as vezes estes sio reinterpretados, dispostos em novas composigoes que exprimem uma identidade individual, o importante sendo menos 0 valor de posigao social que o valor privado e tinico de “sua casa’, tornado posstvel por um “consumo criativo”. Revelo, 40 menos parcialmente, quem eu sou, como individuo singular, pelo que compro, pelos objetos que povoam meu universo pes- soal e familiar, pelos signos que combino “& minha maneira’: Nu- “4 ma época em que as tradigGes, a religido, a politica sio menos produtoras de identidade central, o consumo encarrega-se cada vez melhor de uma nova fungio identitéria, Na corrida as coisas e aos lazeres, 0 Homo consumericus esforca-se mais ou menos conscientemente em dar uma resposta tang(vel, ainda que super- ficial, d eterna pergunta: quem sou eu? Consumo emocional: a idéia vai de vento em popa entre os te6ricos e atores do marketing que louvam os méritos dos pro- ‘cessos que permitem fazer com que os consumidores vivam ex- periencias afetivas, imagindrias e sensoriais, Esse posicionamen- to tem hoje o nome de marketing sensorial ou experiencial. Nao é mais a hora da fria funcionalidade, mas da atratividade sensi vel e emocional, Diferentemente do marketing tradicional, que valorizava argumentos racionais ea dimensio funcional dos pro- dutos, muitas marcas agora jogam a carta da sensorialidade ¢ do afetivo, das “raizes” e da nostalgia (0 “retromarketing”). Outras ao énfase aos mitos ou ao Iudismo, Outras, ainda, fazem vibrar a corda sensivel cidada, ecolégica ou animalista, Lojas estimulam 08 sentidos a partir de ambiéncia sonora, difusio de odor ¢ de ‘conografias espetaculares. Por toda parte, o marketing sensorial procura melhorar as qualidades sensiveis,téteis e visuais, sono- ras ¢ olfativas dos produtos e dos locais de venda. O sensitivo € 0 emocional tornaram-se objetos de pesquisa de marketing desti nados, de um lado, a diferenciar as marcas no interior de um w verso hiperconcorrente, do outro lado, a prometer uma “aventu- ra sensitiva e emocional” ao hiperconsumidor em busca de sensagoes variadas e de maior bem-estar sensivel. ‘0 que chamo de “consumo emocional” corresponde apenas em parte a esses produtos ¢ ambiéncias que mobilizam explicita- 1co sentidos. Ele designa, muito além dos efeitos de mente os uma tendéncia de marketing, a forma geral que toma o consu- ‘mo quando o essencial se dé de si para si. Em profundidade, 0 6 consumo emocional aparece como forma dominante quando 0 ato de compra, deixando de ser comandado pela preocupagio conformista com o outro, passa para uma légica desinstitucio- nalizada e intimizada, centrada na busca das sensagées e do maior bem-estar subjetivo, A fase tt significa a nova relagdo emocional dos individuos com as mercadorias, instituindo o primado do que se sente, a mudanga da significagio social e individual do universo consumidor que acompanha o impulso de individuali- zagao de nossas sociedades. PAIXAO PELAS MARCAS EB CONSUMO DEMOCRATICO O consumo emocional indica, entao, a vitéria do “ser” so- bre o “parecer’, do auténtico sobre o “look” incansavelmente ce- lebrado pelos observadores de tendéncias e pelas revistas? Isso estd longe de ser tdo simples. Como falar de enfraquecimento das aparéncias quando a época vé o triunfo das marcas ¢ de sua ima- gem? Na verdade, 4 medida que o consumidor se mostra menos obcecado pela imagem que oferece a0 outro, suas decisoes de compra sio mais dependentes da dimensao imaginaria das mar- cas. A evolucio da publi tragio desse processo. De fato, 2 publicidade passou de uma comunicagao cons- truida em torno do produto e de seus beneficios funcionais a lade fornece uma esclarecedora ilus- campanhas que difundem valores ¢ uma visto que enfatiza 0 es- petacular, a emogao, 0 sentido nao literal, de todo modo signifi- cantes que ultrapassam a realidade objetiva dos produtos. Nos mercados de grande consumo, em que os produtos sio fracamen- te diferenciados, é 0 “parecer”, a imagem criativa da marca que faza di Pe renga, seduz ¢ faz. vender. Assim, certas marcas conse- m ganhar notoriedade mundial “falando” de tudo, exceto 46 de seu produto (Benetton). Nome, logotipo, design, slogan, pa- trocinio, loja, tudo deve ser mobilizado, redefinido, receber novo visual a fim de rejuvenescer o perfil de imagem, dar uma alma ou ‘um estilo & marca, Nao se vende mais um produto, mas uma vi- sio, um “conceito”, um estilo de vida associado & marca: daf em diante, a construgio da identidade de marca encontra-se no cen- tro do trabalho da comunicagio das empresas. Na fase 1, 0 im- perativo de imagem deslocou-se do campo social para a oferta de marketing, Nao so mais tanto a imagem social e sua visibili- dade que importam, ¢ 0 imaginério da marca; quanto menos ha valor de status no consumo, mais cresce o poder de orientagao do valor imaterial das marcas. Fetichismo das marcas, luxo e individualismo Nesse ponto, uma questo nao pode deixar de ser levanta- da, Como conciliar a expansio do consumo emocional com 0 gosto pelas marcas que se observa tanto nos jovens quanto nos adultos das novas classes abastadas?” A questo merece que nos detenhamos nela ndo apenas porque, cada vez mais, compramos uma marca e nao um produto, mas também porque o fendmeno pode parecer estar em contradigao com um consumo desprendi- do do cédigo das prestagdes simbélicas. Ao levar em conta o atual fetichismo das marcas, somos obtigados a trazer de volta 0 mo- delo do consumo demonstrativo caro a Veblen? Evidentemente, o esnobismo, o gosto de brilhar, de classifi- car-se e diferenciar-se nao desapareceram de modo algum, po- rém nao é mais tanto 0 desejo de reconhecimento social que ser- ve de base ao tropismo em diregao as marcas superiores quanto © prazer narcisico de sentir uma distancia em relagao & maioria, beneficiando-se de uma imagem positiva de si para si. Os praze~ res elitistas nio se evaporaram, foram reestruturados pela légica v7 subjetiva do neo-individualismo, eriando satisfagoes mais para si que com vista d admiragio e estima de outrem, O que impor- ‘ta ndo é mais “impressionar” os outros, mas confirmar seu valor aos seus préprios olhos, estar, como diz Veblen, “satisfeito consi- go"! “LlOréal, porque eu mereco”, Em nossos dias, a mania pelas marcas alimenta-se do desejo narcisico de gozar do sentimento fntimo de ser uma “pessoa de qualidade”, de se comparar vanta- josamente com 0s outros, de ser diferente da massa, sem que se- jam mobilizados, por iss0, a corrida a consideragao e 0 desejo de rovocar a inveja de seus semelhantes. # uma nova relagdo com o luxo € com a qualidade de vida ‘que se traduz no culto contemporaneo das marcas. Nas épocas anteriores, as classes populares e médias viam nas marcas de lu- x0 bens inacessiveis que, destinados apenas a elite social, nao fa- ziam parte de seu mundo real, nem sequer de seus sonhos. Em relagao a essa forma de cultura, produziu-se uma ruptura:a acei~ tagao do destino social deu lugar ao “direito” ao luxo, ao supér- fluo, as marcas de qualidade, A democratizagao do conforto, a consagragao social dos referenciais do prazer e dos lazeres mina- ram a tradicional oposigao entre “gostos de necessidade”, pré- prios as classes populares, e “gostos de luxo”, caracterfsticos das classes ricas ao mesmo tempo que abalaram os valores da res nagao e da austeridade. Na sociedade democritica de hipercon- sumo, cada um esté inclinado a pretender 0 que hé de melhor e de mais belo, a voltar os olhos para os produtos e marcas de qua- lidade, Enquanto os modos de socializacao jé nado encerram os individuos em universos estanques, todo mundo considera ter direito a excelén «0es. E assim que, cada vex mais, os produtos de qualidade (al ce aspira a viver melhor nas melhores cond Pi mentagao, bebida, marcas topo de linha de todo tipo) sao privi- legiados em relagao a quantidade e aos “produtos de necessidade”. ‘A atragao exercida pelas marcas mais dispendiosas 48 a continuidade hist6rica das estratégias distintivas do que a rup- tura constituda pela formidavel difusto social das aspirages de- mocratico-individualistas as felicidades materiais e ao bem viver. Valorizagao da qualidade que, de resto, ndo dé lugar a ne- nhuma atitude sistematica, mesmo no seio das camadas superio- res, Na sociedade de hiperconsumo, jé ndo ¢ indigno gastar a lar- ‘ga aqui e economizar ali, comprar ora em loja seletiva, ora em hipermercado, tendo-se tornado legitimos os comportamentos descoordenadlos ou ecléticos. A obrigagio de despender com fins de representaggo social perdeu seu antigo vigor: compram-se ‘marcas onerosas nao mais em razo de uma pressao social, mas em fungao dos momentos e das vontades, do prazer que delas se espera, muito menos para fazer exibigao de riqueza ou de posi- io que para gozar de uma relagao qualitativa com as coisas ou com os servigos. Mesmo a relagao com as marcas psicologizou- se, desinstitucionalizou-se, subjetivou-se, Hiperconsumo e ansiedade E nfo € 56 isso. Nesse contexto, a compra de um produto de ‘marca no é apenas uma manifestagao de hedonismo individua- lista, visa também responder as novas incertezas provocadas pela multiplicagéo dos referenciais, bem como as novas expectativas de seguranga estética ou sanitéria, Nas épocas anteriores, exis- tiam modos de socializagao, normas e referéncias coletivas que distinguiam inequivocamente o alto € o baixo, o bom gosto ¢ 0 ‘maui gosto, a elegiincia e a vulgaridade, o chique e o popular; as, culturas de classe institufam um universo claro e s6lido de prin- cipios e de regeas fortemente hierarquizados e assimilados pelos sujeitos. Essa ordem hierdrquica se desmantelou ou se desagre- 4gou em favor de sistemas desregulados e plurais, de classificagoes imprecisas ¢ confusas que fazem depender do individuo o que, 49 até entdo, dependia de regras e de estilos de vida comunitirios. Daf resultam diividas e temores individuais relativos aos aspec-~ tos do consumo que, antigamente, eram evidentes porque orga~ nizados pelas tradiges de classe, O culto das marcas € 0 eco do movimento de destradicionalizacao, do impulso do principio de individualidade, da incerteza hipermoderna posta em marcha pe~ la dissolugao das coordenadas e atributos das culturas de classe. ‘Quanto menos os estilos de vida so comandados pela ordem so- cial e pelos sentimentos de inclusdo de classe, mais se impéem 0 poder do mercado ea légica das marcas. Quando a moda ¢ balea- nizada e descentrada, aumenta a necessidade de indicadores € de referéncias “reconhecidos” pelas midias ou assegurados pelos pre~ ‘40s; quando as normas do “bom gosto” se confundem, a marca permite tranqjiilizar o comprador; quando se multiplicam os me- dos alimentares, sio privilegiados os produtos com o selo “biodi- ‘namico”, as marcas cuja imagem ¢ associada ao natural ¢ a0 “au- téntico”, E sobre um fundo de desorientagao ¢ de ansiedade crescente do hiperconsumidor que se destaca o sucesso das marcas. “A ansiedade esta igualmente na origem do novo gosto dos jovens adolescentes pelas marcas, Se é verdadle que a marca per- mite diferenciar ou classificar os grupos, a motivagaio que serve de base A sua aquisigao nao esta menos ligada a cultura demo- cratica, Pois ostentar um logotipo, para um jovem, nao é tanto querer algar-se acima dos outros quanto nao parecer menos que 0s outros. Mesmo entre os jovens, o imaginétio da igualdade de- mocratica fez seu trabalho, levando & recusa de apresentar uma imagem de si maculada de inferioridade desvalorizadora, Sem diivida, é por isso que a sensibilidade as marcas € exibida tao os- tensivamente nos meios desfavorecidos, Por uma marca aprecia- 4a, o jovem sai da impessoalidade, pretende mostrar nfo uma su- perioridade social, mas sua participagao inteira e igual nos jogos ‘da moda, da juventude e do consumo. Bilhete de entrada no mo- 50 delo de vida “moda’, 0 medo do desprezo ¢ da rejeigao ofensiva dos outros que ativa a nova obsessio pelas marcas. A hora do hi perconsumo, é preciso aprender esse fendmeno como uma das manifestagdes do individualismo igualitério que conseguiu es- tender suas exigéncias até o universo imagindrio dos jovens. Como falar de individualismo quando os conformismos de grupo tém um relevo muito mais acentuado que as exigéncias de qualidade de vida ou de singularizagao pessoal? A verdade é que, a0 comprar esta ou aquela marca, o adolescente faz uma escolha ‘que 0 distingue do mundo de seus pais, ele afirma preferéncias ¢ .gostos que o definem, apropria-se de um cédigo. Se o logotipo se reveste de tal importancia, é porque permite uma inclusao rei- vindicada pelo eu e nao mais uma inclusio aceita como um des- tino social, familiar ou outro. E nesse sentido que a compra de uma marca é vivida como a expressao de uma identidade a um 86 tempo clinica e singular. Exibida essa marca em puiblico, 0 adolescente nela reconhece uma das bandeiras de sua personali- dade. Por af se vé que a oposigao posta em evidencia entre indi- vidualismo e “tribalismo” pés-moderno é perfeitamente artifi- cial e enganosa: a despeito de sua dimensio comunitaria, a marca cexibida ¢ subjetivante, ela traduz, ainda que na ambigitidade, uma apropriagio pessoal, uma busca de individualidade assim como ‘um desejo de integrago no grupo dos pares, um eu reivindican- do, a0s olhos de todos, os signos de sua aparéncia, PODER F IMPOTENCIA DO HIPERCONSUMIDOR Enquanto o universo do consumo tende a libertar-se dos en- frentamentos simbdlicos, eleva-se um novo imaginério associa- do ao poder sobre si, ao controle individual das condigdes de vi- da, Daf em diante, 05 gozos ligados a aquisigdo das coisas se 5 relacionam menos a vaidade social que a um “mais-poder” sobre a organizagao de nossas vidas, a um dominio maior sobre o tem- po, o espaco e o corpo. Poder construir de maneira individuali- zada seu modo de vida e seu emprego do tempo, acelerar as opera- ges da vida corrente, aumentar nossas capacidades de estabelecer relacdo, alongar a duragao da vida, corrigir as imperfeigdes do corpo, alguma coisa como uma “vontade de poder” ¢ seu gozo de cexercer uma dominagio sobre o mundo e sobre sialoja-se no co- ra¢ao do hiperconsumidor, (O que é que seduz nos novos objetos de consumo-comuni- casio (computador, videogravador, fax, internet, telefone celu- lar, forno de microondas) a nao ser sua capacidade de abrir no- ‘vos espagos de independéncia pessoal," de aliviar os pesos do espago-tempo? Por intermédio das coisas, buscamos menos a aprovacao dos outros que uma maior soberania individual, um maior controle dos elementos de nosso universo costumeiro. Na fase 111, 0 consumo funciona como alavanca de “poténcia ma’, vetor de apropriagao pessoal do cotidiano: nao mais teatro de signos distintivos, mas tecnologia de autonomizagao dos in- dividuos em relagao as obrigagbes de grupo e aos miltiplos cons- trangimentos naturais, Nao sdo mais tanto os desejos de repre sentagdo social que impulsionam a espiral consumidora quanto 1 desejos de governo de si préprio, de extensdo dos poderes or- ganizadores do individuo. E no momento em que a vontade de poder sobre a direso de nossas vidas triunfa que os objetos técnicos que simbolizam a poténcia viril tendem a perder seu aspecto agressivo e conquis tador, Demonstram isso as novas formas artedondadas e suavi- zadas do automével, que revalorizam as dimensoes de habitabi- lidade e de conforto, de descontragao e de seguranga, B sio cada vez mais numerosos os objetos ¢ ambientes que ilustram agora essa “feminizacio” estilistica. Regressdo da logica da posicio so- 52 cial, redugao da imagem viril dos produtos: duas manifestagbes de uma mesma cultura hiperconsumidora, mais emocional que demonstrativa, mais sensitiva que ostensiva, Os desejos de poder individualista nao progridem sendo em acordo com a eufemiza- «0 dos signos emblematicos da dominagio. Medicalizagio do consumo Nada concretiza melhor o declinio do ethos do consumo pe- lo prestigio que a evolugio das demandas e dos comportamen- tos relacionados a satide, A sociedade de hiperconsumo é aquela nna qual as despesas de satide se desenvolvem por todos os meios, progredindo mais que o conjunto do consumo." © Homo consu- ‘mericus esta cada vez mais voltado para o Homo sanitas: consul- tas, medicamentos, andlises, tratamentos, todos esses consumos dao lugar a um processo de aceleragao que nao parece ter fim. Paralelamente, os espititos sto invadidos todos os dias um pou- ‘co mais pelos cuidados com a satide, os conselhos de prevengao, as informagdes médicas: nao se consomem mais apenas medica- ‘mentos, mas também transmiss0es, artigos de imprensa para 0 grande piblico, paginas da Web," obras de divulgago, guias e enciclopédias médica. Fis a satide erigida em valor primeiro e aparecendo como uma preocupacio onipresente quase em qual- quer idade: curar as doengas jé nao basta, agora se trata de inter- ir a montante para desviat-Ihes 0 curso, prever 0 futuro, mudar 0s comportamentos em relaglo As condutas de risco, dar provas de boa “observanci Ao mesmo tempo, a competéncia médica estende-se a todos 0s dominios da vida para methorar-Ihes a qualidade, Enquanto ‘um niimero crescente de atividades e de esferas da existéncia to- ‘ma uma coloragdo sanitaria, os bens de consumo integram cada ‘vez mais a dimensdo da satide: alimentos, turismo, habitat, cos- 33 _méticos, a temética da saide tornou-se um argumento decisivo de venda. A fase ill anuncia-se como o tempo da medicalizagao da vida e do consumo. Espiral dos comportamentos preventivos, inflagao das de- mandas de cuidados, avango das despesas de satide: fendmenos que mostram, sem nenhuma ambigitidade, a que ponto o para- digma da distingao tornou-se pouco operante, ineapaz que é de cexplicar um consumo excrescente centrado apenas no individuo, em sua satide e sua conservagao. Nada de lutas simbélicas e de vvantagens de distingao: apenas a vigilancia higienista de si, os me- dos hipocondriacos, 0 combate médico contra a doenga € 08 fa- tores de risco, O hiperconsumo médico constitui a ponta extre- ‘ma da tendéncia & dessimbolizagao em vigor na fase mt: aqui nao resta mais que a busca da otimizago da satide pela autovigilin- cia e pelas praticas teenocientificas. ‘Assim, esse reino do Homo medicus tem como conseqiién- cia uma redramatizagao da relaéo com 0 consumo. Nao, eviden- temente, sob a forma antiga das rivalidades por status, mas co- mo angiistia crescente relacionada ao corpo € & satide, Em nome da religiao da satide, é preciso informar-se sempre mais, consul- tar os profissionais, vigiar a qualidade dos produtos, sopesar ¢ li- itar os riscos, corrigir nossos habitos de vida, retardar os efei- tos da idade, passar por exames, fazer revises gerais. Foi-se a época feliz e despreocupada da mercadoria: 0 tempo que chega € o da hipermercadoria medicalizada, reflexiva e preventiva, carre- gada de preocupacées e de diividas, exigindo sempre mais a ati vvidade responsivel dos atores. Nao hé muita diivida de que o imaginério contemporineo do consumo se afirma sob 0 signo de um “modelo de alianga” que concilia divisées outrora plenamente sublinhadas.” No en- tanto, é preciso nao omitir ou subestimar o reforgo simultineo de oposicdes importantes (juventude/velhice, sio/malsio, ma- 54 sgreza/gordura, seguranga/risco, poluido/nao poluido) que acom- panham o culto a satide. Nesse plano, o que domina so menos a flexibilidade e a conciliagao que novas disjungées condutoras de um estado de guerra e de mobilizacao total contra a doenga, a ve- Ihice, a poluigdo, a obesidade, os fatores de risco, Na realidade, 0 consumo nao deixou de ser um campo de batalha: se o conflito {nter-humano recua, 6 em favor de uma luta médica intermind- vel e causadora de ansiedade. A pacificagao do consumo é uma aparéncia enganosa: daqui em diante o sentimento do perigo ¢ do risco onipresente, tudo, no limite, podendo ser percebido como ameagador e exigindo vigilancia, No ciclo m1, a inseguran- ga. desconfianga, a ansiedade cotidiana crescem na proporcao mesma de nosso poder de combater a fata ragdo da vida, lade e alongar a du- Controle do corpo e espotiagao Depois do frenesi da posigao social, eleva-se a obsessio com a satide, De modo que nossa maior independéncia em relagéo a0 parecer social tem como contrapartida a intensificagio do poder das normas ¢ da pericia médicas. O neoconsumidor jé nao pro- cura tanto a visibilidade social quanto um redobrado controle sobre seu corpo por meio das tecnologias médicas: maneira de lutar contra a fatalidade natural, o consumo tende a funcionar como um antidestino. £ assim que as aspiracées narcisicas do hi- perconsumidor nao se separam mais daquelas, mais técnicas, de Prometeu. Um Prometeu acorrentado, ¢ preciso acrescentar, da- do que suas iniciativas sao extremamente limitadas em razio do poder das normas ¢ do dispositive médico. © paciente decide consultar-se e cuidar-se, B isso € mais ou menos tudo, quaisquer que sejam a extensio dos habitos preventivos, as retdricas do ‘consentimento esclarecido” e as novas vontades de promover 0 8 paciente a ator e participante de sua satide, Depois disso, a mé- ‘quina tecnocientifica que tem as cartas na mo e conduz as ope- ragGes, “excluindo” muito amplamente o sujeito, De um lado, a eficacia médica estende os poderes do homem sobre sua vida, do ‘outro, cria um “consumidor sem poder” Muitos comportamentos mostram que, no presente, 0 cor~ po &considerado como uma matéria a ser corrigida ou transfor~ ‘mada soberanamente, como um objeto entregue & livre dispo: ‘sto do sujeito. A cirurgia estética, as procriagdes in vitro, mas ‘também 0 consumo de psicotrdpicos com vista & “gestio” dos problemas existenciais, ilustram essa relagio individualista com 0 corpo, Dai em diante, os sujeitos quetem escolher seu humor, controlar sua experiéncia vivida cotidiana, tornar-se senhores das vicissitudes emocionais fazendo uso de medicamentos psicotro- picos cujo consumo, como se sabe, nao cessa de erescer. A medi- da que se afirma o prinefpio de soberania pessoal sobre 0 corpo, 0 individuo confia sua sorte & agao de substancias quimicas que modificam seus estados psicolégicos “de fora’, sem andlise nem trabalho subjetivo, apenas importando a eliminagao imediata dos dissabores (fadiga, insdnia, ansiedade), a eficdcia mais répida pos- sivel, 0 desejo de produzir estados afetivos “sob encomenda”. F por um consumo passivo de moléculas quimicas que se manifes- ta aqui a exigéncia de soberania individual. Se esses recursos ba- nalizados & psicofarmacologia mostram um desejo individualis- ta de controle do corpo e do humor, eles ilustram, ao mesmo tempo, uma certa impoténcia subjetiva, renunciando o sujeito a todo esforco pessoal ao entregar-se onipoténcia dos produtos _quimicos que agem sobre ele, sem ele." As solugdes de nossos ma- Jes nao so mais procuradas em nossos recursos interiores, mas na acdo das tecnologias moleculares que, ainda por cima, nao deixam de causar tolerdncia, O individuo desejoso de dirigir ou de retificar a seu gosto sua interioridade transforma-se em indi 56 vyiduo “dependente”: quanto mais ¢ reivindicado o pleno poder sobre sua vida, mais se espalham novas formas de sujeicao dos individuos. Um hipermaterialismo médico A questo da medicalizagao da existéncia apresenta o inte- resse de poder avaliar melhor 0 papel ¢ 0 lugar dos valores ditos “p6s-materialistas’. Uma das tendéncias fortes de nossas socie- dades coincide com a formidével expansao das técnicas destina- das nao apenas a conservar e alongar a vida, mas também a me- Ihorar a “qualidade de vida’, a resolver cada vez mais problemas da existéncia cotidiana tanto dos mais jovens quanto dos mais iddosos. Sono, ansiedade, depressao, bulimia, anorexia, sexualida- de, beleza, desempenhos de todo tipo, em todos os dominios as ages medicamentosas e cintrgicas sAo mobilizadas de maneira crescente, Em sociedade de hiperconsumo, a solugao de nossos males, a busca da felicidade se abriga sob a égide da intervengio técnica, do medicamento, das préteses quimicas. Isso nao elimi- na de modo algum as abordagens psicoterapéuticas, mas é for- 080 constatar que a “farmécia da felicidade”* tende a reduzir- Ihes a antiga centralidade. Como nio ver, nessas condigoes, que € muito mais hiper- materialismo cientifico e médico do que os valores pés-materia- listas que comanda nossa épocat Sem duivida, esta é testemunha de novas buscas espirituais, mas a verdade é que se consomem cada vez mais cuidados médicos e outras “pilulas da felicidade”, Como falar de pés-materialismo quando a ordem médico-far- ‘macéutica amplia incessantemente suas fronteiras, quando pro- gride a passo de gigante a medicalizagao do existencial, quando cada vez mais capitais e inteligéncias sao mobilizados com vista a conservagio e ao controle da vida pela tecnociéncia? As deman- 7 das espirituais podem manifestar-se: sfo uma corrente bem fra- ca comparada as da saiide e do prolongamento da vide, £ 0 cor~ po naquilo que tem de mais objetivo” que é macigamente aus- cultado ¢ tratado, e nao hé nenhuma diivida de que amanha essa dindmica materialista ser ainda mais afirmada com as possibili- dades oferecidas pela genética. A fase 111 ndo ¢ hiperconsumidora sendo na medida em que é hipermaterialista. Consideragées que permitem dar da espiral das necessida- des uma interpretagao muito distante daquela proposta pelas so- ciologias da distingdo. Bulimia de cuidados médicos, demanda sem fim de autonomia pessoal e de divertimentos: torna-se evi- dente que a engrenagem das necessidades nao encontra sua ver~ dade tltima na dialética das imitagdes e das pretensdes de classe. 0 fendmeno tem causas muito mais profundas: resulta, no es- sencial, do cruzamento de duas dindmicas indefinidas inerentes as sociedades modernas, A primeira é a da oferta técnica e mer~ cantil que, nao estando mais engastada em sistemas sociais ¢ re- ligiosos, pode inovar e renovar perpetuamente seus produtos ¢ seus servigos. A segunda remete & ordem social democratica ba- seada no individuo igual e em seu direito a felicidade, Na raiz so- cial da demanda ilimitada de consumo, hé menos as lutas de con- corréncia pela classificagdo social que 0 Homo democraticus voltado apenas para si, livre para formar e conduzir a si préprio. ‘Tocqueville mostrou como a paixdo crescente e universal pelos ‘gozos materiais devia ser relacionada a era da igualdade, que pro- duz a recusa da fatalidade das inclusoes sociais, dos desejos insa- cidveis, das cobicas e das insatisfagbes permanentes. Essa I6gica igualitéria, condutora de exigéncias sem fim, intensifica-se em nossos dias por intermédio dessas finalidades que so a autono- ia subjetiva, a satide, o bem-estar, o divertimento, a comunica- ‘gio, e que tém como caracteristica ser axiométicas sem territoria- lade fixa, empurrando sempre para mais longe suas fronteiras, 38 ignorando toda saturaco, Se existe uma homologia funcional ¢ estrutural entre oferta e procura, ela no depende tanto de “dois sistemas de diferengas”* quanto de duas ordens indefinidas (0 mercado, o individuo) constitutivas das sociedades livres da in- fluéncia do religioso e que, por essa razio, podem provocar a es- calada das mudangas, a otimizagao ilimitada de nossos recursos, ‘a extensao infinita de nossas necessidades, 59 3. Consumo, tempo e jogo Frenesi consumidor, mutilagao da vida: no rastro tragado pela critica marxista da religido, fildsofos e socidlogos nao deixa- ram de interpretar a propensio a comprar como um novo 6pio do povo, destinado a compensar o tédio do trabalho fragmenta- do, as falhas da mobilidade social, infelicidade da solidi. “Sofro, logo compro”: quanto mais o individuo esta isolado ou frustra- do, mais busca consolos nas felicidades imediatas da mercado- ria, Ersatz da verdadeira vida, 0 consumo exerce sua influencia apenas na medida em que tem 2 capacidade de aturdir e de ador~ mecer, de oferecer-se como paliativo aos desejos frustrados do homem moderno. ‘Nao ha diivida de que essa interpretago muitas veres acer~ ta.em cheio. A observagao 0 mostra todos os dias: compra-se tan- to mais quanto se est carente de amor, 0 shopping permitindo preencher um vazio, redwzir 0 mal-estar de que se ¢ vitima, Mas toda a questio esté em saber se essa fungao consoladora dé con- ta, em toda a sua extensdo, das paixdes consumistas, Comprar no é mais que procurar esquecer? A meu ver, @ resposta é néo: 60 na escalada dos atos mercantis, ha mais coisas, € coisas diferen- tes, do que uma diversao da “vida ma”. Na fase itl, o consumo nao. pode ser considerado exclusivamente como uma manifestagdo indireta do desejo ou como um derivativo: se ele é uma forma de consolo, funciona também como um agente de experiéncias emo- cionais que valem por si mesmas, Digamo-Io sem rodeios:ascriticas desmistificadoras da ideo- logia das necessidades se equivocaram ao pretender excluir a di- mensao hedonistica do consumo. Problemitica que levava Bau- drillard, por exemplo, a afirmar: “O consumo se define como incompativel com 0 gozo, Como légica social, 0 sistema do con- sumo se institui com base em uma denegacio do gozo” Em mi- tha opiniao, ndo se poderia estar mais enganado sobre a ques- tao, sendo o consumo, em nossas sociedades, inseparavel tanto do ideal social hedonista quanto das aspiragSes subjetivas de pra- zer, Mas de que tipo de prazer se trata? O que é que esta em jogo para o sujeito na corrida as satisfagdes mercantilizadas? E preci so reabrir 0 dossié do Homo consumans, mais complexo, mai “metafisico” do que uma primeira abordagem sociologista deu a entender. © CONSUMO COMO VIAGEM E COMO DIVERTIMENTO Hedonismo, lazer e economia da experiéncia Nada ilustra melhor a dimensao hedonistica do consumo que o papel crescente dos lazeres em nossas sociedades. Sabe-se que as despesas ligadas aos setores do lazer, da cultura e da co- municagdo ocupam um lugar progressivo no orgamento das fa~ ‘iflias: aumentam mais depressa que a média dos consumos. Sua progressio desde os anos 1950 é regular: as familias Ihes consa~ a gravam 69% de seu rendimento disponivel em 1960, 7,3% em 1980, 9,5% em 1999, No entanto, essas cifras traduzem apenas muito imperfeitamente a realidade, visto que numerosas despesas (re- feigoes de lazer, restaurantes, custos de residéncia secundaria de automével, despesas de telecomunicagao), por vezes muito substanciais, nao sao registradas nesse item de orgamento. Alm disso, o tempo ocupado pela misica e pela televisio aumenta sem cessar, dedicando os franceses mais tempo aos consumos audio- vvisuais em casa do que ao trabalho: 43 horas por semana, em mé- dia, para as pessoas que exercem uma atividade profissional. No presente, o tempo reservado aos lazeres e a sociabilidade repre~ senta 30% do tempo desperto dos maiores de quinze anos ¢ ul- trapassa o tempo destinado aos trabalhos domésticos.* © que se consome em profusio sio ficgdes e jogos,* musica ‘e viagens. Em 2001, cada telespectador francés viu 74 horas de filmes de cinema e 262 horas de ficgao televisiva, O turismo tor- nou-se a primeira indiistria mundial: em 1998, 0 ntimero de tu- ristas elevava-se a 625 milh6es ¢ previsdes fazem mengao de 1,6 bilhao de pessoas que fariam ao menos uma viagem ao estran- {geiro em 2020. Essa preponderincia dos lazeres levou certos ana~ listas a falar de um novo capitalismo centrado nao mais na pro- ducdo material, mas no divertimento e nas mercadorias culturais.* setor do turismo ja representa mais de 11% do 7m mundial, e essa porcentagem poderia duplicar em 2008, Em 2000, as empre- sas culturais no mundo representavam ttm montante de neg6- cios total de 515 bilhses de euros (fonte: Unesco) que progride quase duas vezes mais depressa que a média dos outros setores econdmicos. Nos Estados Unidos, as indastrias culturais torna- ram-se o primeiro item de exportago, na frente da aeronéutica eda agricultura, Paralelamente ao aumento dos orgamentos ¢ do tempo con- sagrados aos lazeres, o marketing fornece cada vez mais uma apre- a sentagdo experiencial & oferta hedOnica. A fase i € contempora- nea de uma explosao do ntimero de parques de lazer: na Franca, 250 parques de diversio atraem 70 milhées de apreciadores por ano; a Disneyland Paris tornou-se o primeiro destino turistico europet, com mais de 12 milhdes de entradas anuais. Quase 2 il festivais especializados sao organizados todo ano, atraindo para a Franga um piiblico avaliado em mais de 5 milhdes de pes- soas. As ofertas de fins de semana e de evasdes ins6litas se desen- ‘yolvem, propondo noites em ight, exercicios arriscados com car~ 10, condugao de tanque, viagem de balo, novo look para o rosto. ‘Além dos equipamentos e dos produtos acabados, as industrias de lazer trabalham hoje com a dimensao participativa e afetiva do consumo, multiplicando as oportunidades de viver experién- cias diretas. Jé ndo se trata mais apenas de vender servigos, é pre- ciso oferecer experiéncia vivida, o inesperado ¢ 0 extraordinario ‘capazes de causar emogao, ligagdo, afetos, sensagbes, Gracas a fa- se ti, a civilizagao do objeto foi substituida por uma “economia ‘da experiéncia’* a dos lazeres ¢ do espetéculo, do jogo, do turis- mo e da distragao. £ nesse contexto que o hiperconsumidor bus- ‘ca menos a posse das coisas por si mesmas que a multiplicagao das experiéncias, o prazer da experiencia pela experiéncia, a em- briaguez das sensagdes e das emogdes novas a felicidade das “pe- ‘quenas aventuras” previamente estipuladas, sem risco nem in- conveniente, O turismo organizado, os percursos de escalada planejados, 8 “percursos de descoberta” nas drvores, os labirintos vegetais, 0 parques de diversées sao uns tantos dispositivos constitutivos da indkistria da experiencia. As cidades histéricas tornam-se ci- dades temiticas a fim de responder &s necessidades de “autenti- cidade” dos turistas avidos por quebras de rotina, ambiéncia e exotismos folcloricos. Em certos parques temiticos sao reconsti- tufdos, virtual ou materialmente, cidades da Antiguidade, reser- 6 ‘vas indigenas, animais extintos, momentos de nossa histéria. Ou- tros recriam indoor climas, florestas tropicais, tempestades de ne- ve, ambientes maritimos; outros ainda simulam erupges vulca- nicas ou terremotos. Passamos para uma industria da experiéncia iper- que se concretiza numa orgia de simulagoes, de artificios espetaculares, de estimulagdes sensoriais destinadas a fazer os in- dividuos sentir sensagdes mais ou menos extraordinérias, a faze- los viver momentos emocionais sob controle em ambientes hiper-realistas, estercotipados e climatizados. Sucesso dos par- {ques teméticos que traduz o impulso da mercantilizagio dos la- zeres € a0 mesmo tempo os apetites crescentes ce evasio e de sen sages, de regressao e de renovacio permanente dos prazeres. 0 hiperconsumidor é aquele que espera o inesperado nos ambien- tes mercantis programados, que busca tniversos “loucos” ou feé- ricos, experiéncias e espetéculos sempre mais alucinantes. Ele quer afogar-se em um fluxo de sensagdes excepcionais, moven- do-se num espago-tempo fun, teatralizado, desprovido de todo risco e de todo desconforto, Trata-se de tet acesso a uma espécie de estado magico ou extético inteiramente desconectado do real, tum estado de euforia lidica cujos comego e fim, como no cine- _ma, sio perfeitamente cronometrados. Nenhuma perda das referéncias e confusdo do real e da ilu- sao: simplesmente o encantamento que resulta do excesso espe- tacular e da excrescéncia dos efeitos, o deslumbramento diante da hipertrofia dos artificios, o prazer ligado a um universo con- creto que, integralmente “estruturado” pelo imagindrio, elimina as coergdes do real tao-somente no tempo do consumo. Uma re- creagZo inebriante em que nos divertimos em crer que 0 falso se tornou real, que Id é aqui e 0 outrora substitui 0 agora, A simulagao nao é, evidentemente, o tinico caminho toma- do pelo hedonismo experiencial. Uma outra logica atua,atestada pelas estadas nas casas dos amigos, a perambulagao, a ociosida- 64 de,a bricolagem, a cozinha,a decoragao, as excursoes, 0 gosto pe- la natureza, as praticas musicais e esportivas. Atividades que ex- primem uma logica de auto-organizacio individual do tempo vyte, 0 desejo do hiperconsumidor de se reapropriar de seus préprios prazeres, de passar por experiéncias segundo um modo mais pessoal, nao guiado, nao orquestrado pelo mercado,’ De um lado, o hiperconsumidor deseja sempre mais espetéculos desme- didos, artefatos inauditos, estimulagoes hiper-reais; do outro, quer um mundo intimo ou “verdadeiro” que se parega com ele. Se as vezes ele prefere a simulagdo dirigida ao acaso do real, en- trega-se mais ainda a redescobrir a “autenticidade” da natureza, a organizar seus lazeres de maneira individualizada. Nao é preciso dizer que, em semelhante “capitalismo cultu- ral’, as expectativas ¢ os comportamentos hedonistas ligados a0 consumo sao primordiais, Paul Yonnet contesta a defini¢ao do lazer que enfatiza 0 critério hedontstico," mas devo dizer que sua argumentagdo nao me convenceu realmente, Sem dtivida, este ou aquele espetéculo pode ndo me dar nenhum prazer, mas is basta para eliminara idéia de quea motivagao principal dos com- portamentos de lazer seja a expectativa de uma experigncia de satisfagao. B igualmente verdade que algumas pessoas se ente- diam mais durante o tempo de lazer que em sua atividade de tra- balho. De todo modo, isso estd longe de ser 0 caso mais freqitente, a maioria associando o lazer ao prazer-relaxamento, ¢ 0 trabalho a.uma obrigagao claramente mais fastidiosa. Qualquer que seja a experiéncia vivida das préticas de lazer, nao se pode negar que é com vista a uma satisfagao de tipo hed6nico que os individuos a clas se entregam, o que nao é geralmente 0 caso do trabalho. Fa- la-se de “sofrimento do trabalho”: onde esti o equivalente na es- fera dos lazeres? Acrescentarei que, se uma importante propor ‘glo de assalariados deseja poder trabalhar menos, a maioria das 6

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