Você está na página 1de 21
Meméria e Arte Diretora Vanilda Salinac de Souza Mazzoni Conselho Editorial Maria da Gloria Bordini ‘Célia Marques Telles Manoel Mourivaldo Santiago Almeida Alicia Duha Lose Jorge Augusto Alves Lima Sandro Marcio Dumond Alves Marengo Fabiano Cataldo de Azevedo APOIO SB MiGut wrainc ds, GS FICHA TECNICA Coordenagao Geral: Risonete Batista de Sowa Projeto Grifico e Diagramagao: Livia Borges Souza Magalhies Organizagio: Risonete Batista de Souza, Rosa Borges, Isabela Santos de Almeida, Débora de Soura F488 Filologia em didlogo: descentramentos culturais ¢ epistemoldgicos Risonete Batista de Souza... [et a}, organizadoras. — Salvador Meméria & arte, 2020. 529 p. ISBN: 978-65-87693-00-2 1. Filologia. 2. Lingua — Histéria. I. Souza, Risonete Batista de. IL Titulo. DD 400-21. ed. Ficha catalogrifica: Leticia Oliveira de Araijo CRBS/1836 Edigio de textos e meméria: noticias da cidade do Salvador 4G) EDICAO DE TEXTOS E MEMORIA: noticias da cidade do salvador Maria das Gracas T. Sobral! 1INTRODUCAO A Filologia é definida por Auerbach (1972, p. 11) como “{...] 0 conjunto das atividades que se ocupam metodicamente da linguagem do Homem ¢ das obras de arte escritas nessa linguagem”, abrangendo, dessa forma, diversas areas do conhecimento. A sua atividade mais antiga, a edigio critica de textos, surgiu na antiguidade grega, no século III a. C., em Alexandria, quando foram reconstituidos os textos da poesia homérica pela necessidade de preservagio do patriménio cultural. Como assevera Auerbach (1972, p. 11): [J a necessidade de constituir textos auténticos se faz sentir quando um povo de alta civilizagio toma consciéncia dessa civilizagao e deseja preservar dos estragos do tempo as obras que ' Doutora em Letras pela Universidade Federal da Bahia. Professora da Faculdade de Tecnologia ¢ Ciéncias - FTC. E-mail: sobralmg@ig.com.br. olvido como também das alteragdes, mutilagdes e adigdes que 0 uso popular ou desleixo dos copistas clas introduzem necessatiamente Infere-se, assim, que o surgimento da atividade filolégica esta relacionado ao desejo de preservacio da cultura, da histéria de um povo. De acordo com Spina (1997, p. 75), os objetivos da Filologia tém variado conforme as os autores ¢ os lugares em que essa atividade foi pocas desenvolvida. Dentre esses objetivos esté o estudo das informagées contidas no texto, denominado de fungio transcendente, [uJ em que o texto deixa de ser um fim em si mesmo da tarefa filoligica para se transformar num instrumento que permite 20 fildlogo reconstituir a vida espiritual de um pove ou de uma comunidade em determinada época. A individualidade ou presenca do texto praticamente desaparece, pois o leitor, abstraindo do texto, apenas se compraz no estudo que dele resultou (SPINA, 199 77) Ao aproximar a Filologia da Histéria, a fungéo transcendente possibilita 0 conhecimento de elementos da cultura de um povo, como corroboram Spina (1997, p. 74), “a Histéria é, sem diivida, a disciplina que maiores pontos de contato apresenta com a Filologia [...]” ¢ Telles (2008, p, 116), “a Filologia Textual na sua retomada de posigio volta-se para aquilo que sempre foi o seu primeiro ¢ ultimo fim: o estudo da cultura de um povo, a partir do texto”. Tomando como base essas declaracées ¢ lembrando as palavras de Mandel (2006, p. 17), para quem a escrita € 0 espelho dos homens ¢ das sociedades, ao realizar a edigio de textos, revelam: E com essa visio que permite ao fildlogo, a partir da edigdo de o modo de ser, de agir ¢ de pensar de uma sociedade. documentos, trazer 4 baila elementos da meméria que nos aproximam da ¢ destacar histéria de um determinado perfodo que, neste estudo, propo: sos em alguns aspectos da meméria da sociedade quinhentista expr Edigio de textos e meméria: noticias da cidade do Salvador JHB) documentos editados do Livro Velho do Tombo, pertencente ao acervo do Mosteiro de Sao Bento da Bahia, o qual resguarda o registro do patriménio da ordem teligiosa beneditina na Bahia desse perfodo, mas também salvaguarda parte da memoria dessa sociedade. O estudo sera realizado dialogando com textos que tratam da Histéria da Bahia, de Luis Henrique Dias Tavares (2008), Thales de Azevedo (2009) e Antonio Risério (2004), e de uma das concepgées de Memoria descrita em Histéria e Meméria, de Jacques Le Goff (2012). 2A EDICAO DOS DOCUMENTOS Os documentos editados referem-se ao periodo colonial, compreendem 0 periodo entre 1568 ¢ 1596, sio 11 documentos, perfazendo um total de 37 félios, trasladados no infcio do século XVIII, mas prescrvadas todas as caracteristicas do original quinhentista no que tange a autenticacio do traslado. © conjunto dos documentos editados compreende 16 tipos de atos jurfdicos, j4 que em alguns documentos ha mais de um ato juridico, como se observa no Quadro 1: Quadro 1 — Tipos de Registros Tipo de registro Folios Data Carta de Sesmaria 38 a OP 12/01/1568 Instrumento de Dote Br a OF 21/08/1577 Tnstrumento de Venda FB" a 49e" 08/11/1578 [| 45vadoe [04/06/1593 Instrumento de Posse 491" a 490" 18/12/1578 Edigio de textos ¢ m nora: noticias da cidade do Salvador {OS 168" a 1680 10/02/1587 Tira tiv 13/11/1586 Tov" a die 05/07/1593 Tnstrumento de Trespassagio © | 16/04/1596 Doagao Doagao de Terras T6Te © tT 1670671580 Tor 171171586 167" a 1680" (06/02/1587 Ticenga de Instalagao 168" a 169" 15/04/1581 1898" a 18D" 15/04/1581 Testamento 163" a 166F 10/08/1584 Fonte: Banco de dados do Projeto ediggo semidiplomatica do Livre Velho da Tombo do Mosteiro de Sio Bento, Sclecionaram-se para esse estudo os seguintes documentos, cuja identificaco corresponde a do Livro Velho do Tombo: Sesmaria dada no anno de1568 a Catherina Alluare)x daterra de Villa velba atheo Ribeiro, 0 qual deixou ad(it)a terra aeste Conuento, e Tresladoauthentico dadoacam dos Recifes Esalgado —defrontedes(enbo)radaConceitam — nestatC}id(ad)eaqual — doagao Nostrespason ManuelNunes descitas, Eaodespois(n}ola Retificon senGenroE filha como daescritura. —adiante ~—a_—fo)l(ba)1v4.} Constaesta doagadfoidadapor(ChrisptovjamAff(onsjo Genro deM(anujelNunes Enaé porelle, datados de 1568 € 1586, e trasladados em 24/02/1706 ¢ 07/10/1708, respectivamente. Abaixo a descri¢io dos documentos: = Sesmaria dada no anno de1568 a Catherina Al{uare)z daterra de/ Villa velba atheo Ribeiro, 0 qual deixcon ad(it)a terra aeste Conuento Traslado da Carta de Sesmaria de terras dada a Catherina Alvare: em Vilha Velha em 12 de janeiro de 1568, folios 38v° a 40r°, por Francisco Pereira Coutinho, Capitio e Governador da Capitania, feita pelo escrivao Edigio de textos e meméria: norcias da cidade do Salvador [ATO de Sesmarias Nofre Pinheiro Carvalho ¢ registrada no Livro de Registro por Francisco de Moraes, escrivao da Provedoria, no povoado Percira, ja trasladado em 14 de junho de 1633. Autenticado pelo tabeliio Joao Baptista Carneiro em 24 de fevereiro de 1706, O documento apresenta duas scriptae, a primeira, do escrivao que fez o traslado e, a segunda, do tabelifo. A letra do escrivao é bem tragada (Cf. Figura 1). Destacam-se as grafias do final anguloso, do inicial longo, com lacadas superior c inferior, eo do medial, com haste voltada para a esquerda, as quais conferem um aspecto visual especial ao texto. A escrita tem varias ligaduras, separagao irregular das palavras ¢ unio de diversos termos. Figura 1— Félio 391° do Livro Velho do Tombo - scriptor 1 - Rsctivao iplomatica do Mosteiro de Sio Bento. A escrita do tabelido é de dificil leitura (Cf. Figura 2), j que se caracteriza pela scriptio continua, na qual as palavras sfio quasc todas ligadas. alisfo de textos memria: noticias da cidade do Salvador TiN Figura 2 — Folio 40r° do Livro Velho do Tombo - scriptor 2 — Tabeliao Mosteizo de Sao Bento © documento é bastante escurecido e manchado pela tinta. A mancha escrita tem 38 linhas, encontraram-se 20 abreviaturas, Apresenta anotacdes_marginais, A esquerda, linhas 2 a 8, referindo-se a um documento que esta a folha 36. Nas duas primeiras linhas esta a identificagio do documento, nas linhas 4 a 6 esté a anotacio sobre o despacho para o traslado. O traslado do documento ocupa as linhas 7 a 41. As palavras Despacho e Pereyra esto escritas entre barras. Félio 39r°: a mancha escrita tem 39 linhas, encontraram-se 7 abreviaturas, colagem de papel de seda na borda superior sobre o trecho faziamerse, porque ficaua. Félio 39v*: félio escurecido e manchado pela tinta. A mancha escrita tem 42 linhas, encontraram-se 11 abreviaturas, Apresenta reclamo. Félio 40r°: corroido na borda superior ¢ na linha 2 com prejuizo em algumas letras da palavra sobrescrite. A mancha escrita tem 29 linhas, das quais apenas 12 linhas sao da carta de sesmaria (1.1-12), encontraram-se 20 abreviaturas. ‘Tresladoauthentico dadoagam dos Recifes Fsalgado/ defrontedes(enho}radaConceigam nesta {C}id(ad)eaqual doacaé/Nostrespasou ManuelNunes — deseitas, _- Eaodespois{n}ola/ —_Retificou seuGenroF filha como daescritura adiante a f(o)I(ha)1v{.} Consta/ esta Edicio de textos e meméria: noticias da cidade do Salvador |J4I2)/NNNNN doagadfoidadapor(Chrisptov)amAff(ons)o Genro deM(anu)elNunes Enaé porelle Traslado da carta de Sesmaria feita a Manuel Nunes de Seixas em 4 de novembro de 1586, félios 10r° a 11v°, A mancha escrita tem 36, das quais apenas 6 sio da carta de sesmaria., possui 6 abreviaturas. O documento apresenta as seripfae do scriptor | ¢ do scriptor 2, como se observa nas figuras 3 e 4. O documento é autenticado pelo tabeliio Joio Baptista Carneiro em 7 de outubro de 1705. Figura 3 — Félio 10v° do Livro Velho do Tombo — seriptor 1 — Bsctivao Feet ah Sania ho bs Fone Banco dedadorcdo Prowicalicae somidiplomatca do tarw ile © Tome fo Moscio de Sia Bento Figura 4 — Folio 10v° do Livro Velho do Tombo scriptor 2 — Tabeliao Tonte: Banco de dados do Projeto edigio semidiplomatica do Livre Velho da Tombo do ‘Mosteito de Sio Bento, Félio 10: otroido nas bordas direita e inferior. Manchado pela tinta da escrita do verso do documento. A mancha escrita tem 31 linhas, das quais apenas 6 sto da doacao, encontraram-se 9 abreviaturas. Félio 10v*: corrosao nas bordas esquerda ¢ inferior ¢ em alguns trechos do texto os quais foram restaurados por conjectura, A mancha escrita tem 44 linhas, encontraram-se 3 abreviaturas, Félio 111°: suporte escurecido, manchado pela tinta, corroido nas bordas dircita ¢ inferior. A mancha escrita tem 46 linhas, encontraram-se 12 abreviaturas. Folio 11v°: a mancha escrita tem 34 linhas, das quais apenas 9 sio da doagio, encontraram-se 23 abreviaturas. 3 DOCUMENTOS E MEMORIA © conceito de meméria é bastante amplo ¢ pode ser abordado a partir de diferentes perspectivas. A concepgio de meméria adotada nesse estudo refere-se a conservacio de informacées sobre o passado de uma sociedade retidas em documentos, ancorada pela seguinte definigao de Le Goff (2012, p. 455), “[a] meméria € um elemento essencial do que se costuma chamar identidade, individual ou coletiva, cuja busca é uma das atividades fundamentais dos individuos e das sociedades de hoje, na febre ¢ na angustia”, assim, “[a] meméria, na qual cresce a histéria, que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado para servir ao presente ¢ a0 futuro. Devemos trabalhar de forma que a meméria coletiva sirva para a liberta¢ao e nao para a servidio dos homens” (LE GOFF, 2003, p. 471). Percebe-se pela citagéo acima a importincia dos documentos como meméria ¢ também os cuidados que devem ser observados na sua utilizagdo, como ressalta Le Goff (2012, p. 456), “[...] a meméria coletiva é néo somente uma conquista, é também um instrumento ¢ um objeto de poder” , é produto da sociedade de acordo com as relacées de poder, “[...] faz parte das grandes questées das sociedades desenvolvidas e das sociedades em desenvolvimento, das classes dominantes e das classes 6ria: noticias da cidade do Salvador J4TH{)(0NNNNN dominadas, lutando, todas, pelo poder ou pela vida, pela sobrevivéncia pela promocio” (LE GOFF, 2012, p. 455). Assim, os documentos séo fontes de informagées que permitem diferentes leituras a partir de diferentes perspectivas de diversos aspectos da sociedade. Nos documentos editados, estio registrados fatos, acontecimentos, informagées, personalidades, costumes, crengas, relagdes de familia, tragados da cidade, que delineiam e evocam a histéria de uma sociedade, possibilitando a comunicagao através do tempo e do espaco. Dentre os documentos quinhentistas, selecionaram-se as duas Cartas de Sesmaria, visto que os registros contidos nesses documentos ajudam a compreender 0 proceso que envolvia a institui¢ao da sesmaria no Brasil, fornecem informagées sobre o regimento que regulava a doacio, a descricao, os limites da terra doada ¢ 0 favorecido com a doagio, Além das informagées pertinentes a0 objetivo do documento, podem ser evidenciados também nesses documentos aspectos religiosos, sociais, culturais ¢ registros de personalidades do perfodo. A Carta de Sesmaria € um documento juridico, caracteriza-se, conforme Bellotto (2002, p. 13), como “{...] documentos que, emanados das autoridades supremas, delegadas ou legitimadoras (como € 0 caso dos notitios), sio submetidos, para efeito de validade, a sistematizagio imposta pelo Direito”. Possuem, portanto, caracteristicas da comunicacao juridica, sua linguagem € prescritiva e descritiva, visto que tem como objetivo assegurar direitos. Observ: di se, nesses documentos, a repeti¢do informages em varias partes, recurso estilistico que, conforme Damiio e Henriques (2009, p. 233), “[-..] indica a importdncia de uma ideia, prestando-lhe énfase [...)”, garantindo, dessa forma, a eficiéncia dos direitos neles expressos. digi de textos e meméria: noticias da cidade do Salvador 415] O sistema de sesmaria era o instrumento juridico que legalizava a doagio de terras institufdo por D. Joao ILL, rei de Portugal, a partir do século XVI, através da implantagao das Capitanias Hereditarias. De acordo com Tavares (2008, p. 85), considera-se como Capitanias Hereditarias “[...] lote de terra doado a particular da escolha do rei para que ocupasse ¢ 0 explorasse com seus préprios recursos, obrigado a conceder sesmaria ao cristo que a solicitasse e a pagar taxas ¢ tributos ao rei e 4 Ordem de Cristo”. Com a instituigdo desse instrumento juridico, Portugal promovia povoamento das terras ¢ permitia o aproveitamento por particulares das terras da colénia brasileira. Nele estavam estabelecidos condigdes e prazos para a concessao das terras, como se pode verificar no fragmento seguint “[.] comtal condigam eentendimento que ella rompa eaproueite asditas terras cas fortifique edadata desta Carta emtres annos seguintes porque nam nofazendo ella asim pasados os ditos tres annos se daram as ditas terras que aproucitadas nam tiuer da Sesmaria aquem as pedir para asaproucitar [...) (Livro Velho do ‘Tombo, folio 398vo, 1. 4-8) O primeiro documento € bastante complexo, concentra varias informagées desde a concessio de terras a Diogo Alvares, por Francisco Pereira Coutinho ¢ confirmadas por Thomé de Souza’, ¢ posterior recebimento por heranca de metade dessas terras por Catherina Alvare mulher de Diogo Alvares, 0 pedido de registro da sesmaria dada a Diogo Alvares, fato esse que gerou a peticio de Catherina Alvares, em 12 de janciro de 1568, a0 Governador Mem de Sa? para a emissio da carta de sesmaria, objetivando a regularizacio das terras, como se pode constatar no fragmento seguinte: 21° Gow 3° Governador Geral no periodo de 1558 a 1572 nador Geral no periodo de 1549 a 1553, Edicio de textos e meméria: noticias da cidade do Salvador |J4T@)INNNNNNN [.] Saibam quantos este instromento deCartadesesmaria viremq(ue) Jno anno donasimento de Nososenhor JezusChristo de mil quinhen/tos esesenta coito annos 20s doze dias deJan(ci)ro napouoacamdo Perei/ra termo da Cidade doSaluador da Bahia detodos ossantos. perante/Mim escriuam abaixo _nomeado pareceojoamdefiguciredo moradorna/dita pouoagam emeaprezentou huma peticam porpartede Catherina/ Al(uare)2 suasogra comhum despacho nella do Senhor Mendesé do Com/selho del Rey Noso Senhor Capitam daditaCidade cgouernador/geral nestas partez do Brazil et c(octera) emaqual petigadsecontinha/entreoutras couzas nella contheudas, ‘queporfalecimento de Diogo Aluares/seumarido Iheficou ametade dehuma da{ta} deterra desesmaria,/aqualesta junto destapouoagam ecorrendo do mar para oCertam/a quallhefoi_ dada por FranciscoPereiraCoutinho CapitameGouernador/quefoi destaCidade digo destaCapitania, a quallhefora confirma/da porThomé — desouzaGouernador_—quefoi_—easim mais demuitotempo/aesta p(ar)te posuhia 0 dito Diogo Aluares humpedaso deterra quevai/pellacabeseira desua data ao Longo dehum ribeiro, aqualtesra odito seumarido pedio a Thomé de souza celle thadeo efez mersedellapor/despacho dehumapeticam epello {io seumarido nam tirar Carta como/tinhanodespacho deThomédesouza dequethefez merse delhedar/aditaterra [..] (Livro Velho do ‘Tombo, folio 38vo, I. 10-30). Como se pode verificar no trecho acima, além das informagées sobre © sistema de sesmarias, esse documento traz um registro sobre Diogo Alvares ¢ Catherina Alvares considerados, na histéria do Brasil, como a primeira familia brasileira documentada, constituida por um portugués ¢ uma india. Consta também nesse documento o pedido de Catherina Alvares para a incorporagio de terras pedidas anteriormente por Diogo Alvares a ‘Thomé de Souza, “ co dito Ribeyro [...]” (félio 39r 1. 4-5), segundo Tavares (2008, p. 70), essas aquelas quarenta varas entreella tertas .| corresponderia ao trecho do bairro da Graca”, na qual foi construida a igreja e o convento de Nossa Senhora da Graga e onde esto ‘os restos mortais de Catherina Alvarez, que morreu em 1589. alisfo de textos memria: noticias da cidade do Salvador ATTN O segundo documento refere-se 4 Carta de Sesmaria das terras dadas a Manuel Nunes de Seixas solicitadas para fazer camboas‘, como se verifica no trecho destacado: LJ Miguel digoManuelNunez —deseitas._—_Ca/pitam daguardadomuitoillustre senhor ManuelTelesBarreto doConselho/deEIRey — NossoseahorEGovernadorGeral_detodo esteestado /doBrazilaprezentou/AmimTabaleambumapetigamco mhumdespachoaopeé do ditosenhor dequeotres/ladodeverbo ad verbumheoseguinte Diz ManuelNunesdeseita quede/fronte doforte questi. ——aNossasenhora_—— daConceygam =——_estamhuns, Recifesdepedras/Correntes, digo correndo paraaparte dosul Equesepodemfazer camboas paratomar/peixe Pedeaossasenhorialhefacamersedelhosdar desesmaria Eoquebanhascaa/goasalgada paraRemedioseuBdesuafamilia EReceberé mertse = Desp(ach)o/Doulhos senamsamdados ManuelTellesBarreto EComaditaCondicam/EComasmais Contheudas no Regimento doditosenhorihadeo Eouuepordada desses/maria Eosditos Recifes queestam defronte do dito baluarte Kistopellopoder —que/tém —desuaMagestadeparaqueelle dito ‘ManuelNunes nellesfaga camboas para/tomar peixe como dis emsua petigamparaelle dito’ ManuelNunes Eparatodos/seus herdeitos parasempre paraque dosditos Recifesasimeomobanhaagoasalgada/posafazer como deCouzasuaquehé porestaCartadesesmaria Emandaelledito/senhor quedellahajaposeesenhorio _parasempresempagar _tributo algumEseri /obrigadoafazerRegistar estaCarta nosLiuros dafazenda delRey Nossosenhor/dentro dehumanno conformeoseuRegimento comaspenas nellecontheudas Eporque/odito. ManuelNunes. tudo prometeo cumprir pelladitamaneyraKodito senhor/Governadorlhemandouserfeita estaCarta [...] (Liveo Velho do Tombo, félio 10vo, 13- 33) { interessante, também nesse documento, o registro da pratica da posse de tetras: [J Saibam —quantos_estepublico/digo _esteinstromento depossevirem — queno anno donasimentodeNosose/nhor JezusChristo demilquinhentos oitental’seiz anos aostreze diaz/domes deNovembro —-NestaCidade ——dosaluador napraiaesitu{con}thcudo/naCarta desesmaria__ tras onde ManuelNunesdeseita Requereo amim/ Tabalead Ihedese posse dosRecifesE-praiaContheudanaditaCarta_defronte —_/dobaluarte queesta aNossasenhora daConceigamparaapartedosul + Armadilha natural para pegar peixes durante a preamar. Edigio de textos © men 6ria: noticias da cidade do Salvador J418))NNNN evisto/aditaartaRuTabalead —peranteas testemunhas —_abaixo asignadas tomey/Aodito Manuel Nunes pellamaé, entramos pellapraia dos Recifes por/estar amaré baixamar, elhemeti namad area,pedrase<}>os, lagoa coHa tomou/Edestamaneiralhedei, Eouuepor dada a ditapose corporalautual [...] (LIVRO VELIIO DO TOMBO, folio Ir°, | 1- 11, grifo nosso) Essa pratica social, denominada de rito, isto é, uma ceriménia constitufda por atos e expressdes, representa uma forma de comunicacio simbélica, cujas caracterfsticas dependem do contexto social no qual sio destinam. E, praticados ¢ os objetivos aos quais stas_ encenacées, conforme Schmitt (2002, p. 415-416), possuem extrema diversidade e variam de acordo com os meios sociais, as circunsténcias, 0 grau de solenidade, a despesa efetuada, com o que se pode perder ou ganhar. No documento cm anilise, a pratica legitima a posse de terras por uma encenagio simbélica na qual sao utilizados elementos pertencentes a0 espaco a ser ocupado. Outro aspecto marcante nos dois documentos é a meméria coletiva caracterizada pelo cristianismo. Nesse perfodo, os ideais pregados pela Igreja Catélica eram os valores que predominavam na sociedade da época, corresponde ao inicio da colonizagio do Brasil, ¢, para Portugal, o interesse pela descoberta de novas terras ia além do interesse comercial, significava a expansio do cristianismo. Como assevera Azevedo (2009, p. 12), “[...] todo o seu esforco convergia para a cristianizagio dos mesmos povos, atitude que caracterizou as nagdes latinas e catélicas ¢ as distinguiu das que, na época das grandes descobertas, construfram outros impérios.” Vetifica-se, no trecho do documento de 1568, que a doacio das terras tinha como condigéo © pagamento do dizimo 4 Ordem de Nosso Senhor Jesus. Salienta Tavares (2009, p. 38), esta “| fora de chivida que D. Joao agia por uma percepcio das possibilidades da nossa terra e pelo Edigio de textos ¢ m desejo de a incorporar, com a catequese da sua gente, ao mundo cristio que Portugal tanto alargara”. [| Thomedesouza./ Treslado do Regim(en)to/declRey nososenhor, Asterras cagoas d{os} Ribeyros queestiuerem dentro/ do termo limite daditaCidade quesamseizLegoasparacada p(ar}te/quenam forem dada: roueitem, eestiuerem vagar ede/volutas paramimporqualquer ia, oumodo queseja podereis dar de/SesmariasPessoas queuolas pedirem as quaes terras asim dareis liure/mente sem outro algumforo nemtributo somente odizimo aordem de No/sosenhor Jezus Christo ecomascondigoens cobrigagoens doforal/dado as ditas terras deminhaobrigagam digo edemi{nb}aorde/nagam do quarto Liurotitulo dassesmarias comcondigam queatal/pesoa, oupessoas Rezidam napouoagam daditaBabia, oudas terras/quelheasimforemdadas aomenos tres annos, equedentro nodito tempo/que asnamposam vender nem alhear, © tercis lembranga quenad/deis acadapesoa mais terra _queaquella quesegundosuaposibilidade/virdes, ouuospareser_ __quepode aproueitar. Esealgumas pesoas aquefo=/rem dadas _terras noditotermo eastiveremperdidas por as nam apro=/ueitarem, evolas tornaremapedir uos Ihas dareis denouo para as aprouei/tarem comascondigoens cobrigagoens contheudas neste Cap(itul)o oqualse/tresladaré nas Cartas desesmarias (Livro Velho do Tombo, folio 39¢, |, 21-39, grifo nosso) Destarte, constata-se que D. Jodo TI, ao implantar as Capitanias Hereditarias que permitia a doacio das terras pelo sistema de sesmarias, tinha como preocupagio nao somente a ocupagio e defesa das terras conquistadas, mas também com a propagacio da fé cristi e, assim, salienta Le Goff (2012, p.425), “[...] 0 cristio € chamado a viver na meméria das y. , ainda, que os documentos em estudo juntamente com palavras de Jesus [.. Ressalta-se, os demais do perfodo quinhentista apontam dados, ainda que nio explicitados pelos nomes, sobre a formacio das ruas, povoados do perfodo inicial da cidade de Salvador, j que muito pouco ficou registrado sobre o processo de ocupagao do solo desse periodo iniciado com a chegada de Francisco Pereira Coutinho, que, segundo Tavares (2008, p. 92-93), “estabeleceu-se proximo da enseada da Barra, construindo casas para cem 6ria: noticias da cidade do Salvador J42O)/iiliillllll moradores”, as quais formaram a Vila do Pereira, Vila Velha ou Povoacio do Percira. Por meio do estudo de dados coletados em varios documentos do mesmo periodo € possivel delinear, ainda que seja com lacunas, o processo de urbaniza da época. Sobre a populagao da época, afirma Tavares, (2008, p. 93), Do pouco que se sabe dos primeitos dias da capitania, conhecem se 08 nomes de Peto de Géis, provedor da fazenda, do esetivao Diogo Luis ¢ dos colonos Antio Gil, Custddio Rodrigues Correa, Vicente Diss, Perna Dolores, Sebatizo Aranha, Pedto Afonso de Thotmes, JoloVeloso ¢ 0 de Diogo Alvares, morador da regio, onde vivia com sua mulher tupinanba, filhos ¢ filhas. Caramuru, velho Nesses documentos estio, também, registrados dados sobre a populacio da época, nomes, relacées outras informacées, pois, conforme Bacellar (2010, p. 39-40), “| Igreja, por intermédio do Padroado Régio — acordo entre a Igreja Catélica ¢ a Coroa Portuguesa, no qual ficam estabelecidos dircitos ¢ deveres entre ambos — atuava como um auténtico servigo publico”, ¢, ratificado por Le Goff (2012, p. 515), “o registro paroquial, em que sio assinalados, por pardquia, os nascimentos, os matriménios € as mortes, marca a entrada na histéria das ‘massas dormentes’ ¢ inaugura a era da documentacio de massa”. Nos quadros 2 ¢ 3 es das Cartas de sintetizam-se as informac6 Sesmarias: Edigio de textos e m Quadro 2 - Sesmaria dada no anno de1568 a Catherina Aluare)z daterra de Wa velha atheo Ribeiro, 0 qual deiccou ad(it)a terra aeste Connento TITULO Sesmaria dada no anno del568 a Catherina Al(uareyz daterra de/Villa velha atheo Ribeiro, 0 qual deixou ad(it)a terra aeste Conuento CARACTERISTICA | Folio) _[ 36-406" s Scriptores [1 e2 PALEOGRAFICAS CARACTERISTICA | Data do 13/01/1568 SDE CONTEUDO | original Tipo do documento Carta de Sesmaria ‘Nome das pessoas envolvidas ou mencionadas ‘Joam de Figueredo — gento de Catherina Alvarez, Diogo Alvarez Catherina Alvare: — mulher de Diogo Alvarez Francisco Pereira Coutinho ~ Capitam Governador da Capitania ‘Thome de Souza- Governador 1549/1553 Men de $4 - Conselheito do Rei e Governador Geral 1558-1572 Frei Diogo da Franca ~ Padre de Sao Bento Francisco de Souza Menezes- Governador 1592/1602 Frei Antonio Trindade — Prior do Mosteiro de Sao Bento Antonio Borges Pascoal Teixcita - Tabeliio Nofte Pinheiro Carvalho - Sesmarias Francisco de Moraes ~ Escrivao da Provedoria its noticias da cidade do Salvador 22 Edigio de textos e meméria: noticias da cidade do Salvador 422) Mathias Cardozo — Tabeligo do documento original CARACTERISTICA | Tabeliao Joio Baptista Carneico SDE Data de autenticagao | 24/02/1706 AUTENTICAGAO, OBSERVAGOES _| Lancamento marginal informa que: a Sesmaria dada a Diogo Alvarey esta ADICIONAIS a folha 36 ¢ a Augio/Demarcagio desta Sesmaria esti na sentenga contra Antonio Borges a folha 26, Data do Traslado | 24/02/1706 Fonte: Banco de dados do Projeto edigio semidiplomatica do Livre Velho do Tomba do Mosteiro de Sao Bento. Quadro 3 - Tresladoanthentico dadeagam dos Recifes Esalgado/ defrontedes(enbo)radaConceicam nesta C}id(ad)eaqual doacaé / Nostrespason ManuelNunes deseitas, Eaodespois{n}ola Retificon senGenroF,filha como daescritura adiante a f(o)l(ba)1v4.} Consta / esta doagaéfoidadapor(ChrisptovjamAff(ons}o Genro deM(anu)elNunes Enaé porelle TITULO Trealado authentico da doagam dos Recifes esalgado defroate de Sz da Conecigam nesta C Nunesde sei < aqual doagaé aos erepasou Manuel 28, e20 despois {n}ola Retificou seuGenroefilha como d aescritura adiante a f. 11 v. consta esta doagaé foi dada por Xp +" Aff Genro do Me Nunese naé por elle CARACTERISTICAS | Félio(s) | 10r11ve | PALEOGRAFICAS —_[Seriptores [1 e2 | Edigio de textos e m CARACTERISTICAS | Data do 04/11/1586 DE CONTEUDO original Tipo do Doagao de terras documento "Nome das Manuel Nunes de Seixas — Capitio da Guarda pessoas do Governador Manuel Telles Barreto envolvidas ou Christovam Affonso ~ Genro de Manuel mencionadas Nunes Seixas Manuel Telles Barreto — Conselho do Rei/ Governador Geral 1583/1587 Leonardo Pires ~ morador dafreguesia de ‘Tasuapina Martin Ramalho Salvador Ferreira — morador na fazenda de Martin Ramalho Antonio Fernandez Rocho ~ Procurador Geral do Sio Bento Padre Frei Hyacinto do Disterro — Procurador de Sao Bent Henrique Valensuella — proprietirio do officio Frei Joseph de Santa Catherina — Religioso de Sio Bento ¢ Procurador Geral de Sio Bento Francisco de Souza Menezes ~ Governador 1592/1602 Domingos de Morim Soares Domingos de Oliveira — Tabelizo do documento original Manuel Luis da Costa — tabeliio Francisco da Rocha Barbosa — Tabelizo do traslado da Sesmaria em 13/10/1654 Francisco Alvares Tavora — Tabeliao do traslado da sesmaria em 11/03/1689 CARACTERISTICAS | Tabeliao Joao Baptista Carneiro DE AUTENTICAGAO [Data de ‘O7/10/1705 autenticagao OBSERVAGOES Tangamento marginal informa que a Sesmaria esta a folha 10 ADICIONAIS. ‘Data do Traslado 07/10/1705 Fonte: Banco de dados do Projeto ed Mosteiro de Essas afirmativas rciteram a importincia das informacées Semidiplomatica do Livre Velho de Tombe do Bento. contidas no Livro Velho do Tombo como fonte de pesquisa que possibilitam trazer & tona diversos elementos da memé6ria coletiva do periodo colonial. iss noticias da cidade do Salvador 4230000 Edigio de textos e meméria: noticias da cidade do Salvador 42H) 4 CONSIDERACOES FINAIS Pelo exposto, é inegavel reconhecer a importincia do labor filolgico. Pela exposigao de trechos das Cartas de Sesmarias, constatam- se diversas informacées sobre a meméria do periodo colonial, as quais trazem a baila referéncias sociais, culturais, politicas ¢ histéricas. Dessa forma, ao editar um texto, fixa-se em novo suporte registros de um dado momento da histéria, relatos que gradativamente se perdem, possibilitando aos diversos campos do saber o acesso a importantes informagées que possibilitam compreender a formagao de uma sociedade nos aspectos sécio-histérico-culturais, REFERENCIAS AUERBACH, Erich. Introdugao aos estudos literarios. Traducao de José Paulo Paes. Sao Paulo: Cultrix, 1972. AZEVEDO, Thales. Povoamento da cidade do Salvador. Salvador: Fundagao Pedro Calmon, 2009. BACELLAR, Carlos. Uso ¢ mau uso dos Arquivos. Im: PINK, Carla Bassanczi (org,). Fontes histéricas. 2 cd. rcimpressio. Sao Paulo: Contexto, 2010. BELLOTTO, Heloisa Liberalli. Como fazer andlise diplomatica e andlise tipolégica de documento de arquivo. Sio Paulo: Arquivo do Estado, Imprensa Oficial, 2002. BERWANGER, Ana Regina; | L, Joio Euripedes Franklin. Nogdes de paleografia e diplomatic 5 . 2. ed. Santa Maria: EDUFSM, 1994. CUNHA, Celso. O Oficio de filélogo. In: id. Sob a pele das palavras: dispersos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; Academia Brasileira de Letras, 2004. Eig de textos e meméria: noticias da cidade do Salvador 2500000 DAMIAO, Regina Toledo; HENRIQUES, Antonio. Curso de Portugués Juridico. 10 ed. reimpressio. Sao Paulo: Atlas, 2009. LE GOFF, Jacques. Histéria e meméria. Trad. Bernardo Leitio et al. 6. ed. Campinas, Sao Paulo: Unicamp, 2012. LIVRO VELHO DO TOMBO DO MOSTEIRO DE SAO BENTO DA CIDADE DO SALVADOR. 1945. Bahia: Tipografia Beneditina, 513p. MANDEL, Ladislas. Escritas, espelho dos homens e das sociedades. Sao Paulo: Rosati, 2006, PORTO FILHO, Ubaldo Marques. Catharina Paraguassu: matriatca do Brasil. Salvador: Acirv, 2012. RISERIO, Antonio. Uma historia da cidade da Bahia. Rio de Janeir: Versal, 2004. SCHMITT, Jean-Claude. Ritos. Traducio Eliana Magnani. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude. Dicionario tematico do ocidente medieval. Tradugio coordenada por Hilério Franco Jtinior. Sao Paulo; Bauru (SP): Imprensa Oficial do Estado; EDUSC, 2002. v. 2, p. 415-428. SPINA, Segismundo, Introdugao a edética: Critica textual. Sao Paulo: Cultrix, 1997. TAVARES, Luis Henrique Dias. Histéria da Bahia. 10. ed. Sao Paulo; Salvador: Ed. UNESP; Edufba, 2008 TELLES, Célia Marques. Fontes primérias pata a s6cio-histéria da Bahia: 0 Livro Velho do Tombo do Mesteiro de Sao Bento da Bahia, Scripta Philologica, 2008, v. 4.

Você também pode gostar