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EDITORA 34 Editora 34 Ltda. Rua Hungria, $92. Jardim Europa CEP 01455-000 Sio Paulo - SP Brasil Tel/Fax (11) 3811-6777 www.editora34.com.br Copyright © Editora 34 Ltda. (edico brasileira), 2019 Lire le monde © Editions Belin, 2014 A FOTOCOPIA DE QUALQUER FOLHA DESTE LIVRO £ ILEGAL E CONFIGURA UMA, ‘TUAIS E PATRIMONIAIS DO AUTOR. APROPRIAGAO INDEVIDA DOS DIREITOS INTE! ‘Titulo original: Lire le monde: expériences de transmission culturelle aujourd'hui Imagem da capa: A partir de gravura de Moisés Edgar, do Grupo Xiloceasa, Sao Paulo Capa, projeto grafico e editoragao eletronic: Bracher & Malta Producao Grafica Reyisao: Daniel Liihmann, Alberto Martins, Beatriz de Freitas Moreira 1° Edicgdo - 2019 CIP - Brasil. Catalogagao-na-Fonte (Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ, Brasil) Petit, Michéle P2281 Ler o mundo: experiéncias de transmissao cultural nos dias de hoje / Michéle Petits tradugio de Julia Vidile. — Sao Paulo: Editora 34, 2019 (1 Edigao). 208 p. ‘Tradugao de: Lire le monde: expériences de transmission culturelle aujourd'hui ISBN 978-85-7326-742-6 1. Leitura - Jovens, 2. Educagao - Acesso a leitura. 1. Vidile, Julia. II. Titulo. cpp - 372.4 Di PARA QUE SERVE A LEITURA? “Qs livros me permitem constituir uma espé- cie de abrigo permanente onde quer que eu esteja. Hles sio como as foguciras de acam- pamento que afastam a noite na floresta.” Jean-Marc Besse* “A literatura esta mais proxima da vida do que da academia.” Beatriz Helena Robledo® A importancia da leitura raramente € explicitada, como se fosse Obvia. Todavia... Henriette Zoughebi, que por muito tempo dirigiu o Salado do Livro Infantojuvenil de Montreuil, contou-me certo dia uma cena a que assistira: “Um menini- nho observava sua professora mergulhada em um livro; in- trigado, ele se aproximou dela e fez a seguinte pergunta: ‘Tia, por que vocé esta lendo, se j4 s be ler?’”. Muitas criangas tém o sentimento de ter de enfrentar determinados aprendizados sem compreender o sentido, 0 porqué, como se se tratasse de uma légica ou mesmo de ca- prichos préprios da escola, aos quais é preciso submeter-se sem tentar compreender. Mas se existe um aprendizado cuja necessidade funcional e utilidade social poderiam parecer pa- tentes, isso sem falar de todo o resto, nao seria o da leitura e o da escrita? Em nossas sociedades, 0 escrito nao € onipre- 32 Jean-Mare Besse, Habiter, Paris, Flammarion, 2013, p. 172. 33 Beatriz Helena Robledo, La literatura como espacio de comuni- cacién y convivencia, Buenos Aires, Lugar Editorial, Colecci6n Relecturas, 2011. Para que serve a leitura? 37 sente, nao faz parte da paisagem familiar? Ele nao acompa- nha nossos gestos cotidianos? Esse no é 0 caso para todos. Quando comecei a traba- lhar em pesquisas sobre a leitura no meio rural,“ surpreendi- -me ao constatar que, em certas regides, ler poderia revelar-se impossivel ou arriscado, j4 que aparentemente nao servia pa- ra nada, justamente porque a utilidade dessa pratica nao fo- ra estabelecida. A mulher de um agricultor contava o seguin- te: “Essa é a mentalidade daqui: ninguém perde tempo len- do... Sempre tem alguém que passa e diz: ‘Olha sé, ela nao move uma palha e o marido se mata de trabalhar!’. Quando vejo aparecer alguém, escondo o livro. Fico de olho no que esta em volta. Minha atencdo nao esta intacta. Ao menor rui- do... eu fico em guarda”. Muitas pessoas se referiam a esta recomendagao secular: “nao se deve perder tempo”, “nao se deve ficar ‘desocupado’”. Quanto aos que liam, como essa mulher, cles frequentemente se escondiam. Encontrei muitas coisas como essas nos bairros populares, onde as vezes as meninas que gostavam de ler eram acusadas de serem pregui- ¢osas ou egoistas, e os meninos leitores, de se dedicar a ati- vidades de menina. Lembremos também os trabalhos em que Bernard Lahire demonstrou que as mulheres realizavam o essencial dos atos cotidianos de escrita no seio do espaco do- méstico e que, para os homens de meios populares em parti- cular, as ocasides de escrever podiam se tornar extremamen- te raras, talvez até quase inexistentes.>> De modo semelhan- te, as pesquisas sobre as praticas culturais dos franceses nos mostram que 51% dos homens que vivem em uma familia +4 Michéle Petit, Raymonde Ladefroux e outros, Lecteurs en car- pagnes, Paris, BPI-Centre Georges Pompidou, 1993. 35 Bernard Lahire, “Masculin-féminin: Pécriture domestique”, em Daniel Fabre (org.), Par écrit: ethnologie des écritures quotidiennes, Paris, Editions de la Maison des Sciences de /Homme, 1997, pp. 145-64. 38 Ler o mundo operdria nao leram nenhum livro em 2008.°6 E, de maneira mais ampla, que as sucessivas geragdes leem cada vez menos em suportes impressos (sem que a recente progressdo dos li- vros digitais tenha compensado esse declinio). Assim, a per- gunta merece nossa atengdo: para que serve a leitura, parti- cularmente dos livros? UTILIDADE SOCIAL OU EXIGENCIA VITAL? Ao longo dos tltimos trinta anos, a rentabilidade esco- lar esteve no cerne da maioria das indagacées sobre a leitura: o fato de que os alunos das classes favorecidas leem mais li- vros do que os outros contribuiria para seu sucesso? Essa ati- vidade propiciaria um melhor desempenho na aquisi¢aéo da lingua, da ortografia, da sintaxe? Ela proporcionaria uma introdug&o a competéncias especificas? Isso seria particular- mente comprovado pelas avaliagées internacionais do PISA” — mesmo que alguns sejam bons alunos sem serem leitores, e vice-versa. Em 2000, os resultados destacaram que o “ren- dimento escolar” em leitura e escrita estava diretamente li- gado ao gosto pela leitura. Os de 2009 vao no mesmo senti- do: essa pratica seria um investimento para o sucesso escolar. No inicio do primario, o mais importante seria 0 fato de os pais lerem em voz alta: as criangas para as quais os pais fa- zem leituras diversas vezes por semana obtiveram classifica- ¢Ges superiores Aquelas cujos pais nao leem nunca ou leem raramente. No ensino secundario, quanto mais os adolescen- 36 Olivier Donat, “La lecture régulidre de livres: un recul ancien et général”, Le Débat, n° 170, maio-agosto de 2012, p. 46. 37 PISA (Programme for International Student Assessment ou Pro- grama Internacional de Avaliagao de Estudantes) é um sistema mundial de avaliacio de desempenho escolar, focado prioritariamente em leitura, matemitica e ciéncias. (N. da T.) Para que serve a leitura? 39 tes sentem prazer em ler — no papel ¢ online —, melhor o seu desempenho na compreensio escrita. Segundo Eric Char- bonnier, a leitura “romperia” um pouco os determinismos sociais: os jovens de meios populares que se dedicam bastan- te a essa atividade obtém, em média, notas melhores que os que vém de classes mais abastadas, mas que se interessam pouco pela palavra escrita. F preciso notar que aqueles que “leem livros de ficgdo por prazer”, que diversificam as leitu- ras, assim como os que se dedicam a diversas atividades de leitura online, teriam melhor desempenho.** E se, quase sem- pre, os meninos tém em média resultados mediocres na com- preensao escrita, isso se deveria antes de tudo a seu parco interesse pela leitura e pela escrita ¢ a falta de envolvimento com a literatura.*? O socidlogo Stéphane Beaud também insiste: a hostili- dade a leitura manifestada por muitos meninos seria bas- tante prejudicial a seu percurso escolar e, posteriormente, universitario: “A relagado com a cultura escrita é um elemen- to essencial para o sucesso escolar, ela € mesmo a chave de tudo”.4° Embora muitos outros elementos entrem nessa con- ta, a familiaridade com a palavra escrita é um fator decisivo para o destino escolar e, além dele, do devir profissional e social. Pois se houve um tempo em que as exigéncias técnicas necessarias As diversas profissdes se transmitiam por imitagao 38 Ver os resultados do PISA 2009 no site da OCDE: . No momento em que eu termi- nava este livro, 0 resultados de 2012 comecavam a ser publicados. Con- sagrados mais particularmente 4 matematica, eles ndo retomam a discus- so sobre o que fora encontrado nas avaliagdes anteriores. 3° OCDE, Résultats du PISA 2009, vol. 3, p. 89. Sobre esse assunto, © relatério remete particularmente a Kimberly Safford, Olivia O'Sullivan e Myra Barrs, Boys on the Margin: Promoting Boys’ Literacy Learning at Key Stage 2, Londres, Centre for Literacy in Primary Education, 2004. 40 Stéphane Beaud, 80% au niveau bac... et apres? Les enfants de la démocratisation scolaire, Paris, La Découverte-Poche, 2003, p. 325. 40 Ler o mundo gestual mais do que por uma explanagao de linguagem na qual a palavra escrita teria um papel importante, esse nado ¢ mais 0 caso. No futuro, quando cada pessoa puder ser cha- mada para exercer diversas profiss6es sucessivamente, uma relagéo ambivalente com a palavra escrita sera ainda mais prejudicial. Beaud especifica: “O bloqueio dos meninos em relagao A leitura é uma questo fundamental que condiciona 0 aces- so deles aos estudos, mas também sua relagao com a politi- ca”.*! £ verdade que quando estamos pouco 4 vontade no uso da palavra escrita, fica muito mais dificil conquistar uma voz no espaco ptiblico. Sob esse aspecto, a contribuigéo da leitura e da escrita para uma atitude reflexiva e critica, para uma capacidade de claboracio e de argumentagao e, a par- tir daf, para uma cidadania ativa, foi muito destacada duran- te as tiltimas décadas. Por sua vez, o compartilhamento de um corpus de obras e referéncias comuns foi frequentemente apresentado como um elemento capaz de contribuir para a integragdo de sociedades pluriculturais expostas a processos crescentes de segregacao. Entretanto, o fato de que muitos pais ¢ profissionais veem na leitura, antes de tudo, uma garantia antifracasso ou um passaporte para a cidadania, tem efeitos perversos: essa atividade tornou-se uma obrigagao, originando discursos de cunho moralizante sobre o fato de que ler é necessario ou, pior ainda, de que é necessario desejar ler. E as ladainhas so- bre o fato de que “os jovens nao leem mais” irritam os inte- ressados, que veem nisso uma vontade de controle sobre seu suposto tempo livre, uma intrusdo em seu universo. Dessa maneira, no é de espantar que, para uma parte cada vez maior deles, a leitura seja uma tarefa ingrata 4 qual seria ne- +1 Stéphane Beaud, intervengao por ocasiaio da Journée de formation continue 4 PIUFM de Paris, 2 de fevereizo de 2004: . Para que serve a leitura? 41 cessario submeter-se para satisfazer os adultos (ainda mais se estes insinuam que eles deveriam estar lendo em vez de assis- tir a séries esttipidas, ou se teimam em dar livros de presente quando eles sonham com videogames). Dentre os transmissores da cultura escrita, a principal alternativa a todas essas abordagens utilitdrias consistiu em reivindicar o simples “prazer de ler”, o que também tem efei- tos contraproducentes: ouvir falar de prazer o tempo todo quando ele jamais foi sentido pode afastar ainda mais uma pessoa da pratica que deveria proporciona-lo. Mas, aos olhos dos prdprios leitores, o que se passa? Por que eles leem? Para que “serve” a leitura para eles? Foi so- bretudo por outras dimens6es que as pessoas que encontrei chamaram a minha atengao, quer leiam com frequéncia ou s6 eventualmente. Para elas, ainda mais do que a utilidade escolar, profissional e social, a leitura parece basear-se em uma necessidade existencial, uma exigéncia vital. Deixemos claro que eles se referem a algo mais amplo que as acepgGes académicas da palavra “leitura”: os livros relidos diversas vezes, assim como outros que eles folhearam apressadamente, pescando uma frase aqui, uma imagem ali;# os textos descobertos na solidio, bem como leituras orais ¢ compartilhadas; os devaneios que acompanharam ou se se- guiram a esses momentos, as lembrangas que tém deles, as vezes muito tempo depois. - Frequentemente se diz que a tecnologia digital favorece um modo de leitura descontinuo, ao passo que o impresso suscitaria uma leitura atenta, continua, estudiosa. Nao estou certa de que a oposicdo seja tio marcada assim. Pensemos em Rimbaud, ainda no colégio, que lia sem se- quer cortar as paginas dos livros que pegava emprestado por uma noite; e em todos aqueles (a maioria!) que, de longa data, leram de maneira igual- mente desenvolta, saltando paginas ou pardgrafos, largando um livro pela metade para comegar outro, guardando apenas um trecho curto ou somen- te uma ou duas frases... amplamente recompostas. oe Ler o mundo Ee" SEs Ao escutd-los, ao estudar também muitas lembrangas de leitura, ao observar oficinas em que essa pratica ocupa atualmente um papel essencial, desenvolvidas em contextos criticos e em diferentes partes do mundo, surge a hipdtese de que nestes tempos em que cabe a cada pessoa, muito mais do que no passado, construir o sentido de sua vida e sua identi- dade, ler talvez sirva antes de tudo para elaborar um sentido, dar forma a sua experiéncia, ou a seu lado escuro, sua ver- dade interior, secreta; para criar uma margem de manobra, ser um pouco mais sujeito de sua historia; por vezes, para consertar algo que se quebrou na relagdo com essa historia ou na relagdo com o outro; para abrir um caminho até os territérios do devaneio, sem os quais nao existe pensamento nem criatividade. ‘Tudo isso vai muito além da rentabilidade escolar, mui- to além também do “prazer” ou da distracao, e depende de diversos vieses, de processos complexos que nao pretendo detalhar aqui, limitando-me a evocar alguns aspectos que, aos olhos de muitas das pessoas com quem conversei, $40 es- senciais, mas dos quais muito pouco se fala. Os LIVROS, PARENTES DAS CABANAS Como, por exemplo, o seguinte: a leitura tem muito a ver com 0 espaco, ela se relaciona com os alicerces espaciais. Fla parece ser um caminho privilegiado para encontrar um lugar, se acomodar, ali fazer seu ninho. Ao ouvir as lembrangas de leitura das pessoas, dentre elas muitos filhos de imigrantes, logo me espantei ao consta- tar que essas lembrangas eram, muito frequentemente, asso- ciadas a metdforas espaciais. Mais precisamente, meus inter- locutores falavam de um espaco que lhes teria, literalmente, dado lugar: “os livros eram uma terra de asilo”, “eram a mi- nha paisagem”, “eu tinha um lugar meu, meus livros, tudo Para que serve a leitura? 4B isso”, “os livros eram o meu lar, cles sempre estavam I para me acolher” etc, Para designar esse espaco, eles utilizavam termos que remetiam a algo vasto — um pais ou universo, um outro continente, imenso, uma terra de asilo, uma paisa- gem —, mas também intimo — um abrigo, um reftigio, uma cabana em uma ilha... : ; De maneira recorrente, as leituras de infancia, em par- ticular, so associadas a cabana, esse lugar de intimidade um pouco rebelde e de aventura, esse territério proprio que dé lugar as distancias.*7 Como nas palavras do jovem Ridha que ao falar de O livro da selva, de Kipling, explicava: Mawel construiu uma cabaninha para si, um pequeno lar, e, na ver- dade, ele impéde suas marcas. Ele se delimita. E weios bem que © ser nado € somente seu prdprio corpo, ele vai além dis- so. Ele precisa de espago, ¢ esse espago também é ele. [...] Pa- ta mim, um livro é um quadro, um universo, um espago no qual podemos evoluir”. Penso também no menino que lia romance The Prince of Central Park [O principe do Central Park] (a histéria de um 6rfao exposto ao sadismo de uma ma- drasta e perseguido por um traficante, que encontra refagio em. uma arvore), e interrompeu a leitura para construir sua propria casa na drvore. Vassilis Alexakis, por sua vez, conta que Tarzan lhe ensinou a subir em Arvores, Robin Hood, a fabricar arcos, ce Robinson Crusoé, a construir paler E ele conta que as brincadeiras inspiradas por suas leituras ti- nham seu cendrio em uma pequena edicula no fundo do jar- 436 Quando falamos de cabanas, pensamos em algo que nos é muito proximo, muito familiar, e que, ao mesmo tempo, evoca as distancias, os lugarejos, até mesmo as t “ 1 i ib erras Aa... B8cteve Gi Fs 8 : : s ‘as de aventura...”, escreve Gilles Tiberghien, que observa que “a cabana é um lugar psiquico, mais do que fisico”. Ver Demeurer, habiter, transiter: une poétique de la cabane”, em Augustin Berque ¢ outros, L’Habiter dav btic 4 . Ss Sa poétique premiére, Pari a , Paris, Editions Don- ner Liew, 2008. ” #4 Vassilis Alexakis, L’Enfant grec, Paris, Stock, 2012, p. 70. 44 Ler o mundo dim: “Os indios [a utilizavam] para suas assembleias gerais, os cientistas americanos para conceber sua viagem a Lua, Zorro para se trocar, Jane para dar aulas de inglés a Tarzan, Cyrano para compor cartas de amor a Roxane”. Em dias de muito vento, a cabana tornava-se uma nave que cruzava a trirreme de Ulisses ou aportava em continentes longinquos. “Aquele lugar exposto a todos os perigos era, ao mesmo tem- po, uma espécie de paraiso. Eu fazia, em suma, a sintese de todos os Classicos Tustrados que ja tinha lido...”.6 Isso nao é exclusivo dos meninos. Muitas leitoras se re- ferem a lugares associados A leitura, que tém como caracte- ristica ser de tamanho reduzido e um pouco escondidos, quer se situem debaixo de uma mesa ou escada, numa edicula, nu- ma despensa na qual era armazenada a roupa a ser passada ou nos galhos de uma cerejeira. Como esta antiga livreira, Claude André: “Meu livro preferido durante muito tempo, aquele que conseguiu mesmo fazer com que eu me esquecesse de que tinha lido outros, pois s6 me lembraya dele, era Os cinco, de Enid Blyton. [...] Eu punha 0 colchio e uma lu- mindria debaixo da minha escrivaninha para ler em se- gredo: eu me instalava bem quentinha, a noite caia, as passagens secretas da velha casa abriam-se para mim e 0 mesmo vento soprava na ilha de Kernach e em torno do meu quarto. Eu era transportada. [...] Ouvia soprar o vento na charneca € ao mesmo tempo estava abrigada.”46 Ao comentar essa lembranga, ela insistiu na sensagao bastante fisica que teria experimentado e concluiu com as se- 45 Ibid., pp. 102-4. 46 Claude André, “L’Escabeau de la librairie”, Bouquins Poutins, n° 6, 1989, Médiathéque de la Ville de Metz. Para que serve a leitura? guintes palavras: “Procuro por isso o tempo inteiro quando leio”. Experiéncia primordial, cena vista como origindria, cuja riqueza ou tonalidade ela tentaria reencontrar muito tempo depois. Um reduto um pouco escondido, passagens secretas que se abrem para um outro mundo, o transporte, tantos elemen- tos que ressurgem em muitas lembrangas e que, longe de se opor, se atraem. Mas, nessas evocagées, 0 aspecto que pri- meiramente se destaca parece ser a dimensao do “desloca- mento”, do afastamento saudavel do que est perto, o salto para fora do quadro habitual gragas 4 descoberta de que exis- te um outro mundo, mais longe. E esse “longinquo” do livro que permite moldar ou preservar um espaco para si, mesmo que ele nao assuma a forma fisica e tangivel da cabana ou do reduto sob a mesa; é esse outro espaco que permite encontrar um lugar, no sentido mais pleno do termo. O objeto-livro e seus contetidos, textos e ilustragdes pa- recem conjugar-se para fazer da leitura essa experiéncia es- pacial. O aspecto material do livro, quando se trata do cédex, contribui provavelmente para seu carater hospitaleiro. E co- mum ver bebés pousarem um livro sobre a cabega, como se fosse um telhadinho. Um livro é uma espécie de cabana que se pode carregar consigo; nds a abrimos, entramos, podemos voltar a ela, e sob esse aspecto seria preciso estudar mais de perto o que ocorre com 0s livros eletrénicos e os tablets. Ofe- receriam eles a mesma protegdo, podemos “entrar” ali da mesma maneira que em um livro encadernado? “Ficamos ex- postos a tela e protegidos pelo livro” devido a seu carter imutavel, escreve Michel Melot.*7 Um livro é uma miniatura, um resumo do mundo, pron- to a restituir espacos bem mais vastos, dos quais oferece uma * Michel Melot, Livre, Paris, L-Ocil Neuf, 2006, p. 186 [ed. bras.: Livro, Sao Paulo, Atelié Editorial, 2012]. 46 Ler o mundo verso condensada.** Mais ainda quando, em suas paginas, um escritor ou ilustrador representou todo um universo que os leitores poderao usar de base para desdobrar seu proprio microcosmo. Pois toda imagem nos acolhe, segundo o psica- nalista Serge Tisseron: “Antes de ser um conjunto de signos a explorar ¢ decifrar, ela é primeiro um espago a habitar e, ceventualmente, a habitar com outras pessoas”.4? Quanto a escrita, Freud via nela “a casa de habitagao, o substituto do corpo materno, essa primeirissima morada cuja nostalgia per- siste provavelmente para sempre”.°° O caréter habitavel se- ria, assim, suscitado pelo suporte, as imagens ¢ o texto. E talvez, particularmente, 0 texto literdrio, que os poetas des- de sempre comparam a uma habitagdo. O escritor espanhol Gustavo Martin Garzo, por sua vez, compara “a casa da li- teratura” a de Jane e Tarzan, que tém um lugar para si no meio das drvores, mas no qual entram todos os perfumes e ruidos da floresta.5! Mais uma vez, a cabana que da lugar ao que é longinquo. O intimo e 0 imenso. Ler, ou ouvir uma leitura em voz alta, jA serve para abrir esses espagos, ainda mais para aqueles que nao dispdem de nenhum territério pessoal. Em contextos violentos, uma par- 48 Anne Zali assinala que, dentre os miltiplos territ6rios do escrito, © livro é um condensado, e acrescenta: “Ou seja, a presenga do imenso, a presenga do vasto mundo como ele est4, permanece disponfvel no inte- rior do formato reduzido do livro”. Ver “L’Ecrit dans tous ses états”, se- mindrio Métamorphoses du livre et de la lecture a 'heure du numérique, Biblioteca Nacional da Franga, 2010: . 49 Serge Tisseron, Psychanalyse de Vimage, Paris, Dunod, 1997, p. 33. 50 Citado por Patrick Ben Soussan em La Culture des bébés, Ramon- ville, Erés, 1997, p. 43. 51 Gustavo Martin Garzo, conferéncia durante as Segundas Jornadas Interprofesionales, Centro UNESCO de Catalufia e Grup de Biblioteques Catalanes, Calafell (Espanha), 11 de marco de 2005. Para que serve a leitura? 47 te deles escapa a lei do lugar, uma margem de manobra se abre. Pois 0 que descrevem, ao evocar essa saida de sua rea- lidade ordinaria provocada por um texto, nao é tanto uma fuga, como frequentemente se diz de maneira depreciativa, e sim um salto em um outro lugar no qual o devaneio, o pen- samento, a lembranga ¢ a imaginagao de um futuro tornam- -se possiveis. “O que torna um pais habitdvel, qualquer que seja ele, é a possibilidade que ele deixa ao pensamento de abandona-lo”, escreve Jean-Christophe Bailly.5* Talvez o mesmo valha para todos os espacos. Para aqueles que perderam seu lar e os espacgos que lhes eram familiares, os livros podem ser outras tantas moradias emprestadas, um meio de recompor seus alicerces espaciais. “Naquela época, eu li tudo o que podia, era a nica maneira de encontrar um lugar”, diz 0 escritor cubano Abilio Estévez, referindo-se ao tempo em que, tendo emigrado para Barce- lona, ele dormia no chao, na casa de amigos.3 Algo que, de mancira explicita ou intuitiva, bem sabem os bibliotecdrios, professores ou psicélogos que langam mao de livros com criangas, adolescentes e adultos que esto exilados, desloca- dos, ou cujo ambiente de vida foi destruido ou alterado, co- mo € 0 caso da periferia de Medellin, na Colombia, onde bi- bliotecérios desenvolveram um programa intitulado “O re- fagio dos contos” quando uma parte da populagao foi expul- sa pelos combates que opunham grupos armados. Usando um colete 4 prova de balas, Consuelo Marin ia ler em voz alta para as pessoas reunidas em uma escola do bairro. Certa manha, ela ouviu tiros que se aproximavam e quis interromper a leitura, mas os jovens ouvintes exigiram ouvir o final da histéria: “Aquelas criangas que passavam as Jean-Christophe Bailly, Le Dépaysement: voyages en Prance, Pa- ris, Seuil, 2011, p. 77. 53 Libération, 11 de outubro de 2012. it Ler o mundo nos corredores da escola, com medo do es- noites chorando a iz lo conto, como uma segun- curo, no queriam perder o fim di 5 one dla pele, a pele da alma que nao se pode despir aca “Todos os viviparos tém sua toca”, escreve E ascal Quig nard, acrescentando: “E a ideia de um lugar que nao a meu, e sim eu em pessoa”.5> Todos os viviparos tem Ea 0 c, além disso, todos os humanos tém necessidade do al ae de uma cultura. Os bens culturais, e os yroe em ee - relacionam-se 4 toca, a essa “segunda pele”, essa “pele cla alma” de que fala Consuelo. O ESTRANHO ESTATUTO DAS LEMBRANGAS DE LEITURA Ler, mas também observar ilustragGes, pins A® ou a mes, cantar, contar, desenhar, escrever um. blog para a 4 tilhar suas descobertas, sao atividades que serve para - por entre o real e 0 cu todo um tecido de palavras, es e- cimentos, de histérias, de fantasias, sem o qual o mun i seria inabitavel, mesmo que vivamos em lugares bem mais c oe e aqueles onde grupos armados se enfrentam. er- emprestar ao que nos rodeia uma et espessura simbdlica, poética, imaginaria, uma pro: uni idade a partic da qual sonhar, sair 4 deriva, fazer asec eee a Permite ainda constituir uma espécie de reserva ee e sclvagem & qual sempre poderemos fecortey para mol see lugares em que viver, “quartos para St nos ce a p a pensar. Serve para se fabricar uma familia quan e esta ot ver ausente (e, de certa maneira, ela sempre estard ausente). tes do qu vem para 5% Consuelo Marin, “Biblioteca publica, bitécora de vida”, Medellin, 2003: . $5 pascal Quignard, La Barque silencieuse, Paris, Seuil, 2009, p. 59. : 49 Para que serve a leitura? Vassilis Alexakis conta o seguinte: “Agora que meus pais e meus irmaos morreram, minha familia s40 os personagens da literatura de minha infancia”, D’Artagnan, Tarzan, Kara- ghiosis, Alice ou Dom Quixote, que, pelo menos, “tiveram o grande mérito de nao envelhecer”.5 Ele escreve para eles: “Nés nos perdemos um pouco de vista quando co- Mecei a ganhar idade, todavia a lembranga de seus en- tusiasmos sempre me acalmou o coragdo nos momen- tos dificeis. |...] Eu seria muito infeliz se devéssemos nos separar. Mas por que deveriamos? Eu era mais jovem quando os conheci. Vocés sao as tinicas Pessoas com as quais posso evocar 0 jardim de Caliteia, onde cresci.”57 Pois o tempo da leitura nao se reduz aquele em que vi- ramos as paginas ou aquele em que ouvimos alguém ler em voz alta. O devaneio e as lembrangas de uma leitura fazem parte dela. F estranho que os te6ricos da recepgio tenham se interessado tao pouco por esses tragos, como se toda leitura S¢ consumasse no instante, e que aquilo que ocorre depois, sujeito a todos os desvios, pouco importasse.58 Entretanto, essas lembrancas tém um estatuto bem curioso: dos livros que lemos, restam pouquissimas coisas, esquecemos praticamen- te tudo, mas os raros tracos que restam, nés os revisitamos de uma maneira bastante particular para tentar nos proteger quando a realidade material é insuportavel, como fizeram tantos deportados que resistiram recitando versos para si *6 France Culture, La Fabrique de l'Histoire, 8 de outubro de 2012: shttps://www.franceculture.fr/emissions/la-fa brique-de-lhistoire>. %” L’Enfant grec, op. cit., p. 253. *8 Brigitte Louichon,-por sua vez, dedicou um livro Aquilo que per- manece das leituras que sio frequentemente “como os textos etruscos, es- critos na neve. Algumas lembrangas, todavia, sao escritas nos livros”. Ver La Littérature apres coup, Rennes, PUR, 2009, 50 Ler o mundo mesmos. Ou Jean-Paul Kauffmann, refém no Libano, que ae rante trés anos rememorou para si mesmo os poemas € r mances “de antes”, empenhando-se para reencontrar su; “impregnacao”, sua “infusao”: “Restituir a intriga de O vermelho e o negro, de Eugénie Grandet ou de Madame Bovary nao _ 0 ob- jetivo que cu perseguia. Recriar a lembranga de ma leitura, reconhecer em mim o trago que dela ee reencontrar a impregnagao, esse era 0 aia que eu tin! zB determinado. Dar uma significagao aquilo que eu lia era acess6rio. © que eu procurava era a infusio do texto, no sua interpretacao.”5? Além disso, para cada pessoa, ler e se lembrar de an leituras ou de suas escapadas culturais serve para ae cotidiano um pouco de beleza, dar um plano de uni a par tico a vida, esbogar histérias que talvez jamais ise rea! st i mas que sao uma parte de si. Como para eee que vivia num bairro popular, em uma cida eS ae de tudo lhe indicava nao haver lugar para ele. & os a longamente de O castelo de minha mite, de Marce = , lido na adolescéncia, e relembrava, enone a ae rada a que se chegava apés um longo a ae 4 mentara suas fantasias sobre um Sul no qual ele po a viver um dia, proximo de Aubagne, e onde, enfim, oe i ria seu lugar. Ou para uma moga na Eee pene quem uma bibliotecaria incentivara aler as a le aaa me de Sévigné e propusera em seguida participar me Z cursdo para visitar um castelo no qual a Be ee hospedado. Anos mais tarde, tendo se tornado cal ; 59 Jean-Paul Kauffmann, La Maison du retour, Paris, Nil Editions, 2007, pp. 115-6. St Para que serve a leitura? ela reencontrou a bibliotecdria por acaso. Muito emoci da, falou-lhe quase imediatamente da excursio: “Se eran oes ade penso naquelas cartas, naquela casa...” » dizia ela, uma de suas mais belas lembrangas. retornava para recarregar seu coracao. , mt Ns ey é depois de muito tempo que as leitu- sumem um relevo decisivo, assim como s6 se conclui uma viagem anos mais ti 4 s tarde. Ha todo u ir psiqui Ef im certas narrativas, ee a qual ela imagens ou frases, largamente recompostas 8 argam recompos ou transfiguradas. Nao sei mais qual escritor argentino dizia zi . at€ que, mais que um livro, era a lembranga de um livro que q q come contava, 9 comegamos a modifica-lo, a imagin4- Quanda omegamos a modificé-lo, a ii agina-lo de F e outra maneira. E por isso que, as vezes, nos dece; 0! Pi q 5 ‘pcionamos quando reencontramos num texto uma Passagem que tanto nos marcara. Na verdade, nés nao haviamos amado essas li- nhas idei ae tanto quanto a ideia que elas despertaram em nés ou a lembranca que veio A tona. ENCONTRAR PALAVRAS A ALTURA DE SUA EXPERIANCIA , Pois uae dimens&o de apropriacao selvagem, quicé de desvio, esté em acao na leitura, sem esperar a recomposi¢aio 1 3 PO: da lembranga: ela é imediata. Desde a mais tenra idade, uma crianga nao recebe passivamente um texto, ela o tran rma. ‘0, el: sfo incorpora e integra a suas brincadeiras e ncena-~ as brincadeira: S € pequenas encen cOes. E, durante a vida inteira, de forma discreta ou secreta, > . . S um trabalho psiquico acompanha essa prati a, eitores es- balhi Ol ha es i Ica, OS crevem sua propria geo; eral bi ; en ropria geografia e sua propria historia entre as Em dquio consagrado a St a - m col6q nsagrado a Stendhal, um jovem pro: fessor afro-americano observou. assim, que ndo lia iy quando oO vermelho e o negro, Julien Sorel era negro e Madame de Ré- branca, “ nal, branca. “Sorel volta a ser branco quando eu sou profes: 52 Ler 6 mundo sor”, especificava.6° De maneira semelhante, Paul Auster dis- se um dia a sua mulher, Siri Hustvedt, que o romance de Jane Austen, Orgulho e preconceito, se passava no salao de seus préprios pais, em Nova Jersey. O que Hustvedt comenta da seguinte maneira: “Embora qualquer professor de ensino se- cundario que se respeite tivesse reagido com sarcasmo a tal declaragdo a respeito do ‘quadro’, eu me dei conta de que fi- yera a mesma coisa quando |i o romance de Céline, Morte a crédito” ©! Ela explica: “O que me parece notavel é ter sido preciso pensar a respeito para constatar o que eu fizera”. Nos tomamos posse dos textos lidos tranquilamente, sem nem pensar, tamanha nossa necessidade de que se faga presente do lado de fora aquilo que esta dentro de nds, de tanto que buscamos ecos daquilo que vivemos de forma con- fusa, obscura, indizivel, e que por vezes se revela e explicita de maneira luminosa, transformando-se gragas a uma hist6- ria, um fragmento ou uma simples frase. E tal é nossa sede de palavras, de narrativas, de configuragées estéticas, que muitas vezes imaginamos descobrir um saber a respeito de nés mesmos fazendo 0 texto derivar de acordo com os nos- sos caprichos, encontrando aquilo que o autor jamais imagi- nara ter posto ali, como o salao de Nova Jersey onde Auster yé desenrolar-se a obra de Austen. Qualquer que seja o lugar que nos viu nascer, estamos sempre atentos as ressonancias de nossas experiéncias mais dificeis de exprimir, que poderiam, enfim, explicitar-se e en- contrat uma forma. Somos seres de linguagem sempre na captura de tiradas felizes ¢ em busca de lembretes. Emprega- mos todos os recursos, frases entreouvidas no metré, em um 60 Roubei esse exemplo de Robert Bober, que o evocou durante uma discussdo piblica sobre o filme Traduire [Traduzir], da cineasta Nurith Aviv. & Siri Hustvedt, Plaidoyer pour Eros, Arles, Actes Sud, 2009, pp. 46-7. Para que serve a leitura? 53 café ou na rua, mas também aquilo que encontramos nos re- servatorios de sentido préprios as sociedades em que vive- mos, lendas, crengas, ciéncias, bibliotecas. “Todos temos um texto secreto submerso em nés, nao sabemos © que ele diz e, entretanto, nada, ee nen nos interessa mais do que ele”, diz Olivier Rollin. Ler — para encontrar fora de si palavras 8 altura de sua experién- cia, figuragées que permitem encenar, de maneira distanciada ou indireta, aquilo que vivemos, sobretudo os capitulos diff- cls de nossa histéria. Para disparar tomadas de consciéncia subitas de uma verdade interior, acompanhadas por uma sen- sagdo de prazer e pela liberacdo de uma energia entravada. Ler serve para descobrir, nao por meio do raciocinio, mas de uma decifragao inconsciente, que aquilo que nos en nos intimida, pertence a todos. 1 CONHECER O OUTRO POR DENTRO Ler também permite aventurar-se no Outro, exploré-lo. apaziguar sua estranheza. Em um texto intitulado Dans if peau de Gisela [Na pele de Gisela], David Grossman diz ter chegado a conclusao de que “nds nos colocamos fora de al- cance — ou seja, nos protegemos — de qualquer um; da pro- jegdo de sua interioridade em nds”, daquilo a que de chama © cas que reina em outrem”. Mesmo nos casais que vivem em relativa felicidade, pode haver de maneira instintiva, in- consciente, um acordo tdcito que consiste em nao conic eh nh : pa hee Rolin, “A quoi servent les livres?”, conferéncia feita a con- a Embaixada da Franca no Sudao, em 2011, reproduzida no site Me- diapart: . eee a ies 63 David Gi i bs Fee avid Grossman, Dans la peau de Gisela, Paris, Seuil, 2008, pp. 54 Ler o mundo profundamente seu cénjuge. O mesmo ocorreria entre pais e filhos. E isso também vale para o Outro em si, claro. “O que se passa realmente no foro interior do Outro nos amedron- ta”, escreve Grossman; em sua opiniao, a escrita seria, entre outras coisas, “um ato de protesto, de resisténcia, até mesmo de revolta contra esse medo”. A medida que ele escreve, a ne- cessidade de conhecer 0 Outro por dentro, de tocar esse mis- tério humano, se imporia ao escritor. A escrita seria a unica maneira de conseguir isso, bem mais do que a fusao fisica, er6- tica. O ensinamento da literatura seria, assim, uma qualida- de de escuta, de atengdo as nuances, as singularidades, a “es- se milagre nico que cada ser humano representa”, “Uma vez que conhecermos 0 Outro por dentro — mesmo que se trate de nosso inimigo —, nao poderemos mais ser indiferentes.” Fazendo eco a escrita, a leitura de obras literarias é um meio quase incomparavel de conhecer o Outro por dentro, de se colocar em sua pele, em seus pensamentos, sem temer seu caos, sem medo de ser invadido, sem se assustar demais com a projecio de sua interioridade em nos. Uma maneira niio 86 de se revoltar contra o medo do Outro, como diz Grossman a respeito da escrita, mas também de domestica- -lo, de suaviza-lo. Ler serve para elucidar sua experiéncia singular, mas também para ampliar infinitamente os limites dessa expe- riéncia, permitindo entrar “na pele de Gisela”, de um homem se eu sou uma mulher, de um vaqueiro brasileiro ou uma mu- ther de letras japonesa se sou europeu, de um louco se me vejo sdbio, ou de uma santa se sou ateia. Em seus sentimen- tos, suas sensagdes, seu ponto de vista, nos pensamentos dos outros, esse mistério. Somente a literatura permite tal acesso Aquilo que eles experimentaram, sonharam, temeram e con- ceberam, mesmo que vivam em meios inteiramente diferentes do nosso. E af que a arte do romance torna-se politica, observa Orhan Pamuk, “nao quando o autor expressa opinides polf- Para que serve a leitura? 5S ticas, mas quando fazemos um esforgo para compreender al- guém que € diferente de nds em termos de cultura, de classe e de sexo”.®* Como esta jovem, Aziza, evocando sea leitura de um texto que se passava na Segunda Guerra Mundial: “Nés estudamos [a guerra] na aula de Histéria, mas nunca é a mesma coisa, Aprendemos sobre as con- sequéncias demogréficas, mas é dificil entender quando nao se viveu aquilo, Porque, nesse caso, eu tinha a im- ptessao de estar vivendo a historia, com aquelas pessoas. E meio abstrato quando o professor diz: ‘Entio, teve cem mil mortos’, Anotamos 0 niimero e pronto. Quan- do lio livro, pensei comigo: como eles podem ter vivido isso tudo...” / Hoje, essa contribuicao da leitura de obras literdrias no aprimoramento da faculdade de empatia é frequentemente destacada para “justificar” sua utilidade. “A empatia nao é a moralidade, mas pode lhe fornecer elementos essenciais” escreve Martha Nussbaum.® Como eu disse na Tneroducacs Nussbaum se preocupa com a tendéncia de sistemas eho tivos submetidos ao modelo do mercado e a um imperativo de utilidade econémica, centrados em competéncias técnicas diretamente avaliaveis. Esses sistemas abandonam cada vez mais as modalidades de ensino que permitem formar homens 2 ; an ethan Pamuk, Le Rovnancior naif et le romancier sentimental aris, Arcades-Gallimard, 2012 [ed, bras.: O romancista ingénuo eo sem. timental, Sao Paulo, Companhia das Letras, 2011] 6 Martha Nussbaum, Les Emotions démocratiques, op. cit. p. 51 De maneira similar, 0 escritor Gary Shteyngart observa: “Ler é deixar por um momento de ser voc€ mesmo ¢ entrar na personalidade de um eit Isso estimula a empatia, o que nao é ruim para a democracia”; ver entr 2 vista publicada no Mediapart: . aoe 56 Ler o mundo « mulheres dotados das capacidades criticas e empaticas ne- cessdrias ao exercicio de sua cidadania: a literatura, a hist6- hia, a filosofia e as artes. Para Nussbaum, a literatura e a ar- 1c sio particularmente adequadas para desenvolver a facul- dade da empatia, 0 respeito, a compaixio, e também para nos deixar menos sujeitos ao medo e a agressividade. Ela faz referéncia a Winnicott e aos grandes pedagogos progressis- tas que “entenderam desde cedo que a principal contribuigao das artes para a vida apés a escola era reforcar Os recursos cmocionais ¢ imaginativos da personalidade, propiciando as criancas capacidades insubstituiveis para entender a si prd- prias e aos outros”. O critico Lee Siegel ironizou recentemente, na revista ‘The New Yorker, os estudos que se dedicam a estimar em que medida a leitura de obras literarias tornava as pessoas mais empaticas.®” Ele apelava para o bom senso, para o fato de que todo mundo j4 conheceu grandes leitores perfeitamente indiferentes ao destino dos outros. A empatia, alids, poderia conduzir a generosidade, mas igualmente 4 capacidade de manipular os outros com sutileza: o desleal Iago ¢ habil em detectar as menotes flutuagGes da alma de Otelo que, por sua vez, é totalmente desprovido de tal qualidade... Quanto a esse aspecto, Nussbaum nao é ingénua. Ela nao acredita que uma simples frequentac3o das obras baste para desenvolver a capacidade de se identificar com 0 outro e fazer bom uso dela no espacgo publico. Ela preconiza uma pratica particular: um ensino em grupos pequenos em que os alunos ou estudantes possam debater entre si ¢ ter bastante tempo de discussao com seus professores (os quais, ela nota, 66 Les Emotions démocratiques, op. cit., p. 129. 57 Lee Siegel, “Should Literature Be Useful?”, The New Yorker, 6 de novembro de 2013. Sobre o estudo de D. C. Kidd e E. Castano: “Reading Literary Fiction Improves Theory of Mind”, Science, 18 de outubro de 2013. Para que serve a leitura? nao sdo formados para isso na Europa); e obras que deem conta da pluralidade das experiéncias e culturas humanas. A deriva utilitarista dos sistemas educativos, ela contra- poe certos programas universitaérios que nado comportavam as “artes liberais” e que as desenvolvem hoje em dia porque seus responsaveis entenderam o que estava em jogo: “Foi pre- cisamente nos institutos de tecnologia e de administragado indianos, no centro de uma cultura da tecnologia voltada pa- ra o lucro, que os professores sentiram a necessidade de in- cluir cursos de artes liberais, em parte para corrigir a estrei- teza de espirito de seus estudantes, mas também para enfren- tar as animosidades nascidas das diferencas de religido e de casta”.®§ Nussbaum aponta também o papel da literatura na formagio de juizes e legisladores: ler literatura, pensa ela, serve para construir um imagindrio mais humano como com- ponente da “racionalidade publica”. Além disso, a tendéncia Law and Literature |Direito e Literatura] desenvolveu-se ra- pidamente nas universidades norte-americanas e vem come- gando a ganhar corpo em diversos paises.®? “Os LIVROS ME ENSINAM A ESCUTAR” Ler todo dia obras literarias serve também para que os médicos, no exercicio das especialidades mais rduas, encon- trem forgas para exercer sua arte com uma grande humanida- de, mas também para irrigar seu pensamento. Eo que mostra $8 Les Emotions démocratiques, op. cit., p. 156. ®? Martha Nussbaum, Poetic Justice: The Literary Imagination and Public Life, Boston, Beacon Press, 1997. Ver também os trabalhos de Frangois Ost. Para citar apenas um exemplo, na Faculdade de Direito da Universidade de Buenos Aires, 0 programa Leitores pela Justia “desen- volve ages que articulam a leitura, a literatura e o direito, pensando em uma sociedade mais justa”: , ia Ler o mundo 11 Bibliotheque du docteur Lise [A biblioteca da Sa lise], resultado de trinta anos de conyersas entre Mona Tho- mas © uma amiga oncologista, grande leitora. Para essa mu literatura e medicina estao sempre interligadas. F a lite- a os doentes jtura que lhe ensina a atengao singular dedicada a d jue ela trata — ao passo que tantas vezes essa mesma Ps luridade € perdida na objetivagao do discurso médico. Os s me ensinam a ouvir inclusive os pacientes que nado tém »70 “Se consigo extrair os pacientes da mas- literatura. Um doente nao é subs- Imente sou cega, egois- liv vontade de falar. 4a, do impreciso, é gracas a tituivel por outro doente. Eu provave 3 ta... entao, os livros me abrem os olhos.” Ela evoca: “(...] uma experiéncia e uma delicadeza que ndo adquits sozinha ou na faculdade, mas na frequentacao assidua de minha biblioteca. Porque um romance nao € apenas uma histéria. Um grande romance as vezes mal tem uma historia. E nisso eu garanto que a literatura me auxilia € nunca deixa de me apoiar no exercicio da medicina. Vo- cé entende por que Henry James tem seu lugar entre meus livros? Por causa de sua sutileza, que me ajuda a ouvir as pessoas. Junto com Tanizaki.””! De cada um dos livros que leu, bem como de seus ae sonagens, a doutora Lise fala com gratidao. Estes ‘agua = a coragem de lutar. Eles ensinam que existe algo aa no homem, para além de seu corpo, ¢ que nao se resume a0 S ser ¢ sua alma. Ele, o homem, é falho, mas nao seu espirito e - Qs livros também so seus aliados para m sua palayra” : i : que age no hospital. Ela nota a lutar contra a razao contabil 70 Mona Thomas, Forét, 2011, p. 9. 71 Ibid., p. 153. La Bibliothaque du docteur Lise, Paris, Stock-La 59 Para que serve a leitura? importancia de sua presenga fisica: “Comprei muitos livros que guardo antes mesmo de 1é-los. Eles esto perto de mim, tenho necessidade deles”,72 Ali, “no meio da bagunca”, vi- vos, nutrizes, eles lhe sio essenciais, imbuidos de toda a com- plexidade, de todas as contradigées humanas. Eles conse- guem dizer um indizivel que a adaptagao cinematografica fracassaria em refletir: “Mesmo 0 Doutor Jivago no cinema nao é téo bom quanto o romance. Nao ha nada sobre 0 so- frimento dos Personagens, a dificuldade, a pobreza enfrenta- da, no fundo nao ha grande coisa no filme. Mas como os amantes sao lindos...”, Universidades de exceléncia entenderam a importancia da literatura e da arte, construindo programas de “humani- dades médicas”. J4 faz trinta anos que a universidade norte- -americana Johns Hopkins, muito renomada por seu ensino da medicina, edita a revista Literature and Medicine [Lite- ratura e Medicina] para explorar as conexées entre a com- preensao literdria e o conhecimento ea pratica médicos, Des- de entao, nos Estados Unidos, no Canada, na Gra-Bretanha, na Australia e na Escandinavia, as iniciativas se multiplica- ram € os estudantes e profissionais da medicina foram enco- rajados a ler romances ou Poesia. Para dar um exemplo re- cente, o King’s College de Londres implementou um centro de humanidades médicas com pesquisadores dos departa- mentos de Cinema, Letras, Medicina, Histéria da Arte, Filo- sofia, Psicologia e Historia, que trabalham sobre o tema da representagao da satide e da doenca e sobre a experiéncia dos pacientes.”3 2 Ibid., p. $7. 73 Na Franga, desde 2010, uma experiéncia baseada na arte e na li- teratura € conduzida na Faculdade de Medicina de Paris-Descartes com estudantes do 5° ano, no contexto de um curso optativo: “Do estudante de medicina ao médico responsdvel”. “Para agucar 0 olhay, preservar sua capacidade de empatia, vao ao cinema, leiam romances, assistam a séries a Ler 0 mundo Jerome Bruner, por sua vez, relembra quea ae i medicina da Universidade Columbia, em Nova Yor A la sionou um programa de medicina narrativa depois oe a ponsdveis compreenderam “que uma parte, ou x sa mesmo a totalidade, dos sofrimentos (ou das ie pods ser imputada aos médicos que ignoravam oar eee scien tes Ihes contavam a respeito de sua doenga, la ce oe viviam e de seu sentimento de serem negligencia dos, bees até abandonados”.”4 Eles no ouviam essas histérias, m: atinham aos “fatos”. MOVER © PENSAMENTO, RELANGAR A NARRAGAO inten- Ler serve ainda para encontrar uma forca e uma a : i viver a ativi- sidade que acalmam, um inesperado que faz ne eee dade psfquica, o pensamento, a narragao ae ae ici i i ta, “es eI i eira Leite, psicanalista, leio”, conta Patricia Per “a = i i responde talvez a dimens: maior, que correspo companhia de algo ; © aes de minha inquietude: 0 belo, o sutil, 0 aa a ae éé itas vez ue vocé é abalada, mui sa, esses Momentos em q a1 eae Ea detalhe, e que reacendem a sua ae de z a sua capacidade estética”. E que permitem “escrever , é i ual que seja na mente, ¢ esse é outro elemento essencial do qi jouco se fala. ; / 5 A literatura, sob suas miltiplas formas (mitos e 4 : idrios inti ces, albuns. contos, poemas, teatro, didrios intimos, romances, Albuns, > di i . Ver de TV”, diz o professor Beloucif (Le Monde, a de abril 2 re ae ; Sern -Le Mirail, o program: s ambém, na Universidade de Toulouse: , Hy eae pelo Laboratério de Letras, Linguagens e fee ae He-creatie unty ted: e/aceuell ptogranumien de secletraeiae far fe/piGeramme-arictesanter64 161.kjsp?RH=ProgRech_! bate a” 74 Jerome Bruner, Pourquoi nous racontons-nous des histoires?, Pa ris, Retz, 2002, p. 93. 61 Para que serve a leitura? histérias em quadrinhos, ensaios), oferece um suporte excep- cional para reanimar a interioridade, mover o pensamento, reanimar uma atividade de construgao de sentidos, de sim- bolizagao, suscitar as vezes colaboragées inéditas. E esse nem sempre € 0 privilégio de abastados que se banharam desde os primeiros anos de vida na cultura escrita. Retornemos a Colémbia, onde Beatriz Helena Robledo percorreu o pais para propor oficinas baseadas na leitura e na escrita Aqueles que sempre viveram longe dos livros: ado- lescentes desmotivados, antigos guerrilheiros ou paramilita- res, populagGes que fugiam do conflito armado, criangas que viviam na rua ou em abrigos... Aonde quer que ela va, sua convicgao € a mesma: a literatura é pura vida, a vida em si.”> Para todos, ela propde sempre os melhores livros, os mais belos poemas, as mais belas lendas. E inventa mil estratage- mas para que esses textos se insiram na experiéncia dessas pessoas, dando aten¢4o a singularidade de cada encontro, de cada situagao. Qs textos lidos abrem um espaco em ruptura com a si- tuagdo dos participantes e reavivam a atividade psiquica, 0 pensamento, as palavras e as interagdes dessas pessoas, de- volvendo-lhes ecos da parte mais profunda delas préprias. Como no caso do ex-guerrilheiro Julio, cuja voz ninguém ja- mais tinha escutado e que, depois de ter ouvido uma lenda, falou como r 0 fazia ha anos para evocar os mitos aprendi- dos em sua infancia, e depois para contar sua propria histé- ria (e vemos af que ler também serve, as vezes, para reencon- trar uma ligaga4o com a tradigao oral). Ou um outro rapaz, igualmente desmotivado, que explicava como as oficinas de leitura haviam contribuido para sua educag&o sentimental, para a formagao de sua sensibilidade, de sua interioridade: 7S Beatriz, Helena Robledo, [a literatura como espacio..., op. cit. a Ler o mundo “Nossa cabega € meio... como dizer, embaralhada, cheia de nds. Consegui organizar melhor minhas ideias, pensar com mais calma, sem fazer as coisas de qualquer jeito, mas mais lentamente ¢ aprendendo ater sentimen- tos. Porque lé esse tipo de coisa era muito reprimido. E aqui n&o. La, a gente simplesmente ceauets os sentimen: tos, 0 que a gente tem por dentro.”’ Ao longo dos anos, Beatriz Helena pees ae segundo conta, as infinitas possibil dades ova a ae tura e pela escrita para reconstrutr © sentido da vi a a feridas, ampliar o mundo. Com os mais frageis, os mi Es rentes de vinculos, ela observou como a literatura (gra a maestria de um mediador) criava no interior dos passin 1 Ancora, “um sedimento de verdade, de certeza afeti- de possiveis, de comu- tes uma ya”. Como ela se tornava um espaco & a nicagio e de convivio, uma outta maneira de as Ses do, tanto interior quanto exterior, Como, além lo a envolvente e protetor da leitura, que evoquei anteriorme: ; > uma transformagao das emogées e dos sentimentos, a boragao da experiéncia vivida, uma projecao em a can eo inicio de uma relagdo com os outros eram, em a. - dicdes, possibilitados 77 Nao é por isso que ti ° < livre de seus dramas, violéncias e desigualdades, mas manobra se abre. a No a inteiro, muitas pessoas notaram que os ba tos literarios constituiam desde cedo, e durante toda a vida, ativar um processo de simboliza- a re excelentes suportes par: ie a cA, de pensamento, € para renovar as representagoes da a toria de uma pessoa; para sustentar e reavivar discursos, n: 6 Documento final, Proyecto Jovenes de Palabra, CERLALC, 2004, p. 10. ; 77 Michéle Petit, L’Art de lire..., op- cit. Para que serve a leitura? rativas, discuss6es e conversas sobre a vida, sobre os temas mais delicados, mas sempre sob a protegdo da mediacio de um texto; para estimular as trocas, fazer circular muitas coi- sas em um grupo. A fim de contar a experiéncia humana, todas as socie- dades recorreram a especialistas, narradores, poetas, drama- turgos, artistas ou psicanalistas, que trabalham lentamente, mantendo-se um pouco afastados. Os escritores tomam o tempo necessdrio para dar sentido a um acontecimento, a uma experiéncia singular e universal. Profissionais da obser- vacio, eles escrevem em proximidade com o inconsciente e seus mecanismos (o deslocamento, a condensagio...). Eles espantam a poeira da lingua, “tramam a beleza com as pala- vras”, como diz Olivier Rolin. Suas obras muitas vezes nas- cem do desejo de elucidar um aspecto daquilo que eles pré- prios viveram. Em ressonancia, as palavras lidas As vezes con- ferem inteligibilidade e alegria, ainda mais quando se propéde aos leitores no um decalque da vida deles, mas uma meté- fora, uma transposi¢ao, um desvio. Quando homens ou mulheres me relatavam suas lem- brancas, eram esses instantes de clucidacao, de descoberta, essa narracdo interior de sua prépria historia, durante ou apés a leitura, que eram evocados de forma recorrente.”8 A propésito, além dos textos literdrios, o essencial da leitura, quando ela nao é regida pela obrigagdo ou pela utilidade ime- diata, est4 provavelmente nos momentos em que erguemos os olhos do livro e surgem associagées inesperadas.”? 78 Ver Michéle Petit, Eloge de la lecture..., op. cit. 79 Ha mais de vinte anos, Yves Bonnefoy introduzia a ideia de que “na leitura de um texto, a interrupgao pode ter um valor essencial e quase fundador na relagao do leitor com a obra”, em “Lever les yeux de son li- vre”, Nouvelle Revue de Psychanalyse, n° 37, 1988, p. 13. 64 Ler o mundo ERGUER OS OLHOS DE SEU LIVRO Ler serve para reavivar o devaneio, a criatividade, para cncontrar aquela conversa, aquele didlogo tao singular, que hem conhecem os artistas e os cientistas: muitos deles ado- ram ler, Como Gérard Garouste, pintor e escultor, para quem ler é “uma questao de sobrevivéncia” ¢ que volta sempre aos mesmos grandes textos: a Biblia, Dom Quixote, O terceiro livro dos fatos e ditos heroicos do bom Pantagruel, de Rabe- lais. “Para realizar as oito portas da rue de |’Université [em Paris], fui inspirado por um verso das Gedrgicas de Virgilio. Estou atualmente trabalhando com o Fausto de Goethe para preparar uma exposicdo e tenho de fato a impresséo de me ‘fabricar’ ao contato dessa leitura”.®° “Quando pesquisava locais para rodar meu filme, levei comigo As cidades invisiveis, de Italo Calvino. E. um livro so- bre viagem, obviamente, mas também sobre as relagdes en- tre um lugar e seus habitantes”, explica Gianfranco Rosi, cujo filme sobre as pessoas que vivem nas imediagdes do grande anel vidrio que circunda Roma recebeu o Leao de Ou- ro em Veneza.*! Alain Prochiantz, neurobidlogo especialista em morfogénese cerebral ¢ autor de pecas de teatro, diz por sua vez que “para se afastar do cotidiano e refletir melhor, nada supera a leitura dos Antigos”. Com eles, ele tece os fios de uma conversa e defende a necessidade de uma escrita cien- tifica literdria, “para dar livre curso ao devaneio e rastrear seus préprios pensamentos” .°? 80 [’Express, 16 de outubro de 2010, p. 126, 81 Le Monde, 10 de setembro de 2013, p. 13. [Trata-se do longa- -metragem Sacro GRA, 0 primeiro documentario a vencer 0 Festival de ema de Veneza. (N. da T,)] 82 Journal du CNRS, n° 179, dezembro de 2004. Para que serve a leitura? 65 A leitura recebe sua dignidade dos pensamentos que desperta, dizia Proust. Para ele, a leitura era “a iniciadora cujas chaves magicas nos abrem, no fundo de nés mesmos, as portas das casas em que nao terfamos sabido penetrar”.*3 Ele evocava a figura de um anjo que abre as portas e sai vo- ando em seguida, momentos de graca em que resvalariamos na quintesséncia da vida. E cagoava do letrado, para quem “o livro ndo é 0 anjo que voa assim que abre as portas do jardim celeste, mas um idolo imével, que ele adora em si mesmo”.®+ O que a experiéncia da leitura tem de insubstituivel tal- vez seja o fato de abrir os olhos e provocar esse pensamento vivo, o fato de atrair ideias, sugerir comparagGes insédlitas, ins- pirar, despertar. O que constitui seu valor sdo esses momen- tos em que as palavras surgem, os elos sdo tecidos, em que somos de certa forma fecundados — e eis que os leitores es- tao do lado da feminilidade. E por isso que tantos escritores leem antes de comegar a escrever, € por isso que tantos sabios gostam da poesia ou dos romances para reavivar sua ativida- de inventiva, para que surjam conexGes inesperadas. Trata-se de todo um pensamento aberto para o exterior, e talvez seja por isso que olhamos ao longe quando erguemos os olhos de um livro. “Pensamos sempre alhures”, dizia Montaigne. Nes- ses instantes, pensamos fora de nds, em um “longe” para o qual a leitura nos transportou. Nao fizemos mais do que pas- sar pelo livro que nos langou em uma outra cena. Essa experiéncia nao ocorre toda vez que pegamos um livro, longe disso, mas talvez seja o que muitos leitores ardo- rosos buscam, mais ou menos conscientemente: esses momen- tos de revelagdo, sempre fugazes, em que o mundo parece 83 Marcel Proust, Sur la lecture, Arles, Actes Sud, 1988, p. 37 [ed. Sobre a leitura, Campinas, Pontes, 2003]. 4 Tbid., p. 40. bras. 66 Ler o mundo novo, intenso, em que encontramos nosso lugar poeticamen- te, em que vemos 0 que nao viamos, em que estamos atentos, acolhendo 0 que nos rodeia e os pensamentos que nos che- gam. Uma expectativa frequentemente frustrada, mas nds insistimos, 4 caga do anjo que nos abriré as portas por um instante. E mesmo as de nosso mundo interior, da qual uma folha repentinamente se desenha, se revela. Mas ler ajuda também a reencontrar a admiragio diante do que nos rodeia, a olhar melhor “a fim de detalhar o mistério”, como dizia Caillois. Erguer os olhos seria mais facil com os suportes impres- sos do que com a leitura em tela? Esta ultima solicita nossa interatividade, desconectar-se € dificil a tal ponto que novas patologias multiplicam-se, pois, por termos sido literalmente capturados, esquecemos de nos levantar de vez em quando e nos mexer. Todavia, o desejo de suspensdo subsiste, mesmo que assumindo outras formas. As bibliotecas contempora- neas, “espagos de conexao”, sdo “igualmente apreciadas pe- las possibilidades de desconexao que autorizam”, observa Christophe Evans. “Elas permitem preservar a concentragao, mantendo distancia das fontes de distragao e de parasitagem a que o individuo moderno esté permanentemente submeti- do.”85 Se eles vém acompanhados de amigos, se o celular fi- ca ligado e o computador conectado, os jovens usuarios evi- tam “se distrair (demais) nas redes sociais ou em aplicativos lidicos”. Assim, as bibliotecas so “espacos de desacelera- cdo”, “um trunfo importante neste momento de aceleracao 85 Christophe Evans, “Actualité et inactualité des bibliothéques”, Le Débat, n° 170, maio-agosto de 2012, p. 68. Na leitura de revistas, que os jovens adultos costumam apreciar, um tempo mais lento também seria pro- curado (dentre outros elementos) a fim de compensar, por vezcs, 0 excesso de solicitacdo materializado na profusao de links nas telas. Ver Jean-Fran- cois Barbier-Bouvet, “La lecture des magazines par les jeunes adultes: un écran de papier?”, em Christophe Evans (org.), Lectures et lecteurs a Vheu- re d’Internet, Paris, Editions du Cercle de la Librairie, 2011, p. 127. Para que serve a leitura? 67 dos ritmos sociais e de conexdo permanente”, aponta Evans, que em outro momento observa que ninguém previra o re- torno das bicicletas ao centro das cidades... Ler ou permanecer na companhia dos livros serve para encontrar um outro tempo, um outro ritmo, serve para me- ter “um bastao nas rodas da engrenagem”, diz Pep Bruno pata quem isso também “rompe a continuidade do ruido” és permite entao que o siléncio reaparega”.8¢ ; As pessoas que ouvi na zona rural ou nas cidades de pe- riferia francesas, aquelas que conheci na América Latina ou em outros lugares, ou aquelas cujas lembrangas pude ler en- contraram em suas leituras, ocasionais ou regulares, nao tan- to um degrau decisivo para realizar uma ascensio social, ¢ sim miltiplos expedientes para encontrar um lugar, ee reapropriar um pouco de sua vida, pensa-la, sonhé-la. Gra- gas a arte de um mediador (pai, amigo, professor, bibliotecd- tio...), elas compreenderam um dia que o que deve ser lido. pelo atalho das paginas, somos nds mesmos e este mundo. A partir dai a leitura nao mais apareceu como a ingestao dolo- rosa de formulas impostas por uma autoridade, ou um pri- vilégio invejado e detestado proprio dos privilegiados, ou uma atividade empoeirada a qual a gente de outrora ce dicava por nao dispor de nada melhor, mas como um meio de reavivar um pensamento, uma curiosidade, de viver de um jeito mais lticido, mais intenso, mais divertido ou poéti- co. E um mecanismo para participar de algo mais vasto do que nés mesmos. “Com os livros, ndo temos apenas a nés mesmos quando nos observamos viver”, dizia uma senhora do campo. 86 Pep Bruno, “La révolution silencieuse: lire en tant qu’acte de ré- volte”: . 68 Ler o mundo Mas nao € por isso que devemos idealizar a leitura. Hen- ry Miller lembrava que “as coisas podem perder todo o valor, todo o encanto e toda a sedugio se vocé é arrastado pelos cabelos para admird-las”.*” E explicava: “Desde o instante em que yocé recomenda um livro com excesso de entusias- mo, desperta-se no interlocutor uma certa resisténcia”. Se vocé também defende a leitura com demasiado entusiasmo, acaba parecendo agressivo. De resto, existem outras ativida- des que abrem espagos, deixam ouvir 0 mais profundo da experiéncia humana, nutrem o imagindrio ou reativam o pensamento, segundo modalidades um pouco diferentes. Tal- vez haja mesmo algumas — mas nem tantas assim — que deixam em nossa memGria tragos com a mesma forca, aos quais podemos retornar para encontrar um lugar nos piores momentos ou para mudar a tonalidade do cotidiano, E tra- ta-se ainda menos de opor a leitura a essas outras praticas, mas sim de multiplicar as passagens entre elas, ou de articular a literatura oral e a escrita, obras infantojuvenis e adultas, criagées contemporaneas e classicas, impressos € telas (co- mo diz Michel Melot, “por que privar-se de suas respectivas virtudes?”). Nestes tempos de revolucao digital em que as referéncias culturais, bem como as informagées, chegam por diferentes meios, muitos profissionais estéo conscientes dessa nece dade de langar pontes, de inscrever a palavra escrita em uma abordagem mais vasta. Hoje, muitos livros escolhidos pelas criancas foram objeto de adaptagées cinematograficas ou te- levisivas.38 De modo mais abrangente, Olivier Donnat obser- va, “como pensar que a imersao cada vez mais precoce das jovens geracdes cm um fluxo quase permanente de narrativas 8? Henry Miller, Les Livres de ma vie, Paris, LImaginaire-Gallimard, 2007, p. 41 ed. port.: Os livros da minha vida, Lisboa, Antigona, 2006]. 88 Séminaire sur le développement de la lecture des jeunes, Ministé- tio da Cultura e da Comunicagao francés, junho de 2011. 69 Para que serve a leitura? audiovisuais (filmes, séries de televisdo, videogames etc.) po- deria nao ter consequéncias sobre suas maneiras de satisfazer seu gosto pelo romanesco e sua capacidade de fazer funcio- nar seu imaginario somente a partir das palavras...”.89 Entretanto, o imaginario ndo funciona exatamente da mesma maneira a partir de imagens filmadas e de palavras lidas. Segundo 0 neurobidlogo Pierre-Maric Lledo, “quando colocamos um individuo em uma mesa de tomografia e the pedimos para ler, vemos que 80% de sua atividade mental é exercitada. Quando ele assiste a um filme baseado na mesma obra, essa visualizagéo mobilizaré apenas 15% da atividade total de seu cérebro”.”° Ler em uma mesa de tomografia nao é exatamente a mesma experiéncia que ler em uma cabana ou debaixo de uma cerejeira, mas essas observagdes concordam com as de muitas pessoas, de todas as idades, que dizem sentir-se bem mais “passivas” quando estao diante de imagens que se mo- vem em uma tela do que diante de um livro. Ou com as de Vassilis Alexakis, que escreveu a propésito dos livros de sua infancia: “Esses textos nao foram escritos para serem re- presentados: eles se dirigem ao imagindrio de seus lei- tores. O encanto dos personagens que apresentam resi- de no mistério que os envolve. Eles sao feitos de uma matéria que nao suporta os projetores, Alice perde toda a sua leveza assim que a vemos. Suas bruscas mudancas de tamanho tornam-se reconhecidamente ridiculas na tela. Parece-me que a histéria em quadrinhos trai menos 8 Olivier Donat, “La lecture régulitre...”, op. cit, p. 51. * Entrevista publicada no Sud Ouest, no dia 29 de marco de 2012: . 70 Ler o mundo os textos, nem que seja pelo fato de cita-los abundan- 91 temente. Alexakis observa ainda: “Eu suprimia trechos inteiros nos livros que lia, eu criava vazios [...]. Minhas pequenas tentativas de depreciagio nao eram desprovidas de segun- das inteng6es: eu fazia de tudo para livrar o meu proprio caminho”. Todas as artes podem participar do trabalho gracas ao qual as criangas ¢ os adolescentes liberam seu proprio cami- nho, mas a contribuigao da leitura, particularmente de obras literarias, € de grande sutileza, como vimos ao longo deste capitulo. Seria uma pena se ela fosse cada vez mais restrita a uma minoria. Por outro lado, nao devemos nos privar de as- socid-la a outros gestos, principalmente para facilitar sua abordagem.°” 91 Vassilis Alexakis, L’Enfant grec, op. cit., pp. 128-9. 22 E podemos comemorar 0 fato de que programas ou oficinas que cruzam “artes ¢ letras”, “literatura ¢ satide”, “literatura e justiga”, “cién- cias e humanidades” etc., se desenvolvem tanto nas universidades quanto na sociedade civil. Por exemplo, o Laboratorio de Letras, Linguagens e Artes da Universidade de Toulouse-Le Mirail “trabalha no desenvolvimen- to de programas para descompartimentar os saberes puramente discipli- nares, aliando reflexao critica ¢ praticas artisticas”. i ? 7 Para que serve a leitura?

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