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SALVATORE CANALS ab ASCETICA MEDITADA Titulo original: Ascética Meditada: Copyright by Edizioni Azes Tradugiio de EMERICO DA GAMA Capa de Ratl Sarrosira RESERVADOS TODOS OS DIREITOS EM LINGUA PORTUGUESA A EDITORIAL ASTER, LDA. * LARGO DONA ESTEFANIA, 8, 1.°-E, LISBOA, 1 JESUS, O AMIGO Meu amigo, ha neste punhado de terra que sfo as mossas pobres pessoas— que somos tu é@ eu—uma alma imorial que iende, por vezes sem o saber, para Deus, que sente, mesmo sem reparar nisso, uma nostalgia profunda de Deus e que deseja com todas as suas forcas, mesmo quando o nega, o seu Deus. E esta tendéncia para Deus, este desejo veemente, esta nostalgia profunda, quis o préprio Deus que pudéssemos concretizd-la ma pessoa de Cristo, que passou pela Terra como homem de carne ¢ osso, como ta e como eu. Deus quis que este nosso amor fosse amor por um Deus feito homem, a quem conhecemos e compreendemos, porque é dos nossos; amor de Cristo Jesus, que vive eterna- mente com o seu rosto amavel, com o seu cora- cio que ama, com as suas mios e os seus pés chagados e com o seu lado aberto: Jesus Christus heri et hodie, ipse et in saecula. («Je- sus Cristo ontem e hoje e para sempres). & ASCETICA MEDITADA Jesus, que é perfeito Deus e homem perfeito, que é o caminho, a verdade e a vida, que é a luz do mundo e o pio da vida, pode ser nosso amigo se tu e eu assim o quisermos. Escuta Santo Agostinho, que to recorda com a sua inteligéncia clara, com a experiéncia profunda do seu grande coracéo: Amicus Dei essern si voluero, («Serei amigo de Deus se assim o quiser»). Mas, para atingirmos esta amizade, é preciso que tu e ett nos aproximemos dele, o conhegamos e o ame- mos. A amizade de Jesus é uma amizade que Jeva longe: acharemos a felicidade e a tranqui- lidade, saberemos sempre, com critério seguro, como comportar-nos; encaminhar-nos-emos para a casa do Pai e seremos, cada um de nés, alter Christus («outro Cristo»). Foi por isso que Jesus Cristo se fez homem: Deus fit homo ut homo fieret Deus, («Deus fez-se homem para que o homem se fizesse Deus»). Mas, ha tantos homens que se esquecem de Cristo, ou n&o o conhecem nem querem conhecé-lo, ou nado rezam e nao pedem in nomine Iesu («em nome de Jesus)», nio pronunciam o wmico nome que os pode salvar, e olham para Jesus Cristo como uma personagem histérica ou uma gléria passada, e esquecem que Ele veio e vive ut vitam habeant et abundantius habeant («para que todos os homens tenham vida e a tenham em abundancia»), E, repara, todos estes SALVATORE CANALS 9 homens séo homens que quiseram reduzir a religido de Cristo a um conjunto de leis, a uma série de proibigGes e de pesadas responsabili- dades. Almas atacadas de uma singular miopia, que Ihes faz ver na’ religiféo apenas aquilo que custa esforcgo, aquilo’ que pesa, aquilo que abate; inteligéncias minusculas e unilaterais, que que- rem considerar o Cristianismo com mentalidade de maquina de calcular; coragdes desiludides e mesquinhos que néo querem saber das grandes riquezas do coracio de Cristo; falsos cristios, que pretendem roubar 4 vida crist{ o sorriso de Cristo. A estes, a todos estes homens, que- reria dizer-Ihes: Venite et videte («vinde e vede»). Gustate et videte quoniam suavis est Dominus. («Provai e vede como o Senhor ¢ suave»). A mensagem que os Anjos anunciaram aos pastores na noite de Natal foi uma mensagem de alegria: Ecce enim evangelizo vobis gaudium magnum, quod erit omni populo: quia natus est ‘vobis hodie Salvator, qui est Christus Dominus in civitate David. («Eis que vos anuncio uma grande alegria, uma alegria grande para todo o mundo; nasceu-vos hoje, na cidade de David, o Salvador, que é Cristo nosso Senhor»). O Mes- sias esperado pelas gentes, o Redentor. anun- ciado pelos Profetas, o Cristo, o Ungido de Deus, nasceu na cidade de David. «Ele é a nossa paz» — ipse est pax nostra—e a nossa alegria: é por 10 ASCETICA MEDITADA isso que invocamos a Virgem Maria, Mae de Cristo, como Causa nostrae Iaetitiae, («causa da nossa alegria»). Jesus Cristo é Deus, perfeito Deus. Vamos render-lhe, tu e eu, a nossa adorac&o com aque- las palavras que o Pai pée nos labios de Pedro: Tu es Christus, Filius Dei vivi, («tu és Cristo, o Filho de Deus vivo»). E rendamosthe também a nossa adoragiio repetindo a confissfo de Mar- ta, ou a do cego de nascenca, ou a do centurifo. Jesus Cristo é homem, perfeito homem. Sa- boreia este titulo, que era tao caro a Jesus Cristo: Filius Hominis, («filho do Homem»). Era assim que se chamava a si proprio. Escuta Pila- tos: Ecce homo («cis o homem»), e dirige 0 teu olhar para Cristo. Meu amigo, como o sentimos perto de nds! Cristo é o novo Addo, mas nés senti- mo-lo ainda mais perto. O dom da imunidade & dor fez que Addo n&o pudesse sofrer: mas Tu, Se- nhor, sofreste e morreste por nos. Jesus, tu és ver- dadeiramente perfeito homem: o homem per- feito. Quando nos esforcamos por imaginar o tipo perfeito do homem, o homem ideal, invo- luntariamente pensamos em ti. E ao mesmo tempo, Jesus bom, Tu és Eimmnanuel, Deus con- nosco. E tudo isto, meu amigo, para sempre: Quod semel assumpsit numquam dimisit, («Aqui- lo que uma vez tomou nunca o larga»). Procura ter fome e sede de conhecer a santfssima noe SALVATORE CANALS Vi Humanidade de Cristo, procura viver muito perto dele. Jesus Cristo ¢ homem, é um verda- deiro homem como nés, com alma e corpo, inteligéncia e vontade, como tu e eu. Recorda-o com frequéncia, e ser-ted mais facil aproxima- res-te dele, na oragio e na Eucaristia, e a tua vida de piedade encontrard nele o seu verda- deiro centro, e o teu cristianismo sera mais auténtico. Intimidade com Jesus Cristo, Para que pos- sas chegar a conhecer, amar, imitar e servir a Jesus Cristo, é preciso que te aproximes dele com confianca. Nihil volitum quin praecogni- tum. («Nao se pode amar aquilo que se nao conhece»), E as pessoas conhecem-se pelo convi- vio cordial, sincero, intimo e frequente. Mas onde procurar o Senhor? Como aproximar-se d'Ele e conhecé-lo? No Evangelho, meditando-o, contemplando-o, amando-o, seguindo-o. Pela lei- tura espiritual, estudando e aprofundando a ciéncia de Deus. Na Santissima Eucaristia, ado- rando-o, desejando-o, recebendo-o. Meu amigo, o Evangelho deve ser o teu livro de meditagdo, a alma da tua contemplacdo, a juz da tua alma, o amigo da tua solidio, o teu companheiro de viagem. Que os teus olhos se habituem a contemplar Jesus, perfeito homem, que chora a morte de Lazaro —lacrymaius est Testis («Jesus pds-se a chorar») —e chora sobre 12 ASCETICA MEDITADA a cidade de Jerusalém; que se habituem a. vé- -lo passar fome e sede; a contempla-lo, sen- tado junto do pogo de Jacob, fatigaius ex itinere, («cansado do caminho»), enquanto espera a Samaritana; a considerar a tristeza da sua alma no Horto das Oliveiras: Tristis est anima mea usque ad mortem («A minha alma esta iriste até & morte») —e a sua solidfo sobre o madeiro da Cruz; e as suas noites passadas em oracio, e a ira enérgica com que expulsa os vendilhées do templo, e a sua autoridade ao ensinar tam- quam potestatem habentem («Como quem tem autoridade»). Enche-te de confianca quando o vires——compadecido da muliidéo — multiplicar os pies e os peixes, e oferecer A vitiva de Naim o filho ressuscitado para uma nova vida, e resti- tuir Lazaro ressuscitado ao afecto de suas irmas ... Aproxima-te de Jesus Cristo, meu irmao; aproxima-te de Jesus Cristo no siléncio e na operosidade da sua vida escondida, nas penas e nas fadigas da sua vida publica, na sua Pai- xo e Morte, na sua Ressurreicao gloriosa. To- dos encontramos n’Ele —causa exemplar— o modelo, o tipo de santidade que convém a cada um de nés. Na intimidade da nossa confidéncia com Ele, escutaremos as suas palavras: Exem- plum dedi vabis ut quemadmodum ego feci vo- bis ita et vos faciatis: («dei-vos o exemplo, fazei como eu fiz»). SALVATORE CANALS a Antes. de terminares, pousa confiadamente o teu olhar na Santissima Virgem. Ela soube, como nenhuma outra, trazer no seu coragdo a vida de Cristo e meditd4la dentro de si: Maria conservabat omnia verba haec conferens in corde suo («Maria guardava todas estas palavras me- ditando-as no seu coracio»), Recorre a Ela, que é Mae de Cristo e tua Mae. Porque a Jesus sempre se vai através de Maria. A NOSSA VOCACAO CRISTA Falava eu um dia com um jovem, tal como fago contigo neste momento. Procurava con- vencé-Io da necessidade de viver cristimente a sua vida, de frequentar os sacramentos, de ser alma de oracio, de dar a todas as suas accdes e a toda a sua vida uma orientacao sobrenatu- ral. Jesus —dizialhe— precisa de almas que, com grande naturalidadie e com uma grande doacgfio de si mesmas, vivam no mundo uma vida integralmente cristé. Mas dos seus olhos transpirava a resisténcia da sua alma; e as suas palavras tratavam de justificar tudo o que a sua vontade se recusava a admitir. Passados alguns minutos, admitin com sinceridade o que até entéo provavelmente nunca tinha confessado nem mesmo a si proprio: «Nao posso viver como diz, porque sou muito ambicioso», Lem- bro-me de que lhe respondi: «Olha: tens diante de ti um homem muito mais ambicioso do que tu, um homem que quer ser santo. A minha SALVATORE CANALS a5 ambicao ¢ tao grande que ndo se contenta com nenhuma coisa da Terra: ambiciono Jesus Cristo, que é Deus, e o Parafso, que é a sua gloria e a sua felicidade, e a vida eterna». Permite-me que’ continue contigo aquela conversa, Niio te parece que neste ponto to- dos nos, cristios, deveriamos ser santamente ambiciosos? A vocagio do cristao & vocagio de santidade. Todos os cristdos, pelo simples facto de o serem, tém a obrigag&io— ocupem o posto que ocuparem, facam o que fizerem, vivam onde viverem—de ser santos. Todos ‘estamos igualmente obrigados a amar Deus sobre todas as coisas: Diliges Dominum Deum tuum ex tota mente tua, ex toto corde tuo, ex tota anima tua, ex omnibus viribus tuis («ama- ras o Senhor teu Deus com todo o teu coragio, com toda a tua mente, com toda a tua alma e com todas as tuas forgas»). Esta ideia, tio sim- ples e clara, primeiro mandamento e compén- dio de toda a Lei de Deus, perdeu forga e, hoje em dia, nado informa na pratica a vida de muitos discipulos de Cristo. Senhor, como se amesquinhou o ideal cris- tio na mente dos teus! Pensaram e pensam, Jesus, que o ideal de santidade é excessivamente elevado para eles, e que nem todos os coragées cristéos podem albergar essa aspiragéo. Que ela permaneca —senti que o diziam, em todos os 16 ASCETICA MEDITADA tons — para os sacerdotes e para as almas que foram. conduzidas 4 vida do claustro por uma vocacio especial. Nés, homens do mundo, deve- mos contentar-nos com uma vida cristé sem excessivas pretensdes e renunciar humildemente aos voos da alma, embora corramos o risco de experimentar de vez em quando uma nostalgia estéril e pessimista. A santidade—é 0 que con- cluiram muitos e muitas, vencidos pelos precon- ceitos e pelas ideias falsas—nao é para nds: seria presungao, jactancia, falta de equilibrio, desordem, fanatismo. E declararam-se vencidos antes de terem comecado a batalha. Quereria poder gritar ao ouvido de muitos cristaos: Agnosce, Christiane, dignitatem tuam («toma consciéncia, 6 cristéo, da tua dignidade»). Ouve-me, amigo: deixa que a tua inteligéncia se abra serenamente, livre de preconceitos. A vo- cacao cristé é vocagao de santidade. Os cristaos —tedos, sem distingao — sao, segundo a pala- vra de Sao Pedro, gens sancta, genus electum, regale sacerdotium, populus acquisitionis, («raga santa, estirpe de eleicao, sacerddcio real, povo de conquista»). Os primeiros crist&os, conscientes da sua dignidade, chamavam-se entre si com o nome de santos. Quando perderds este medo a santidade? Quando te convencerés de que o Senhor te quer santo? Qualquer que seja a tua con- SALVATORE CANALS Ww digo, a tua idade, as tuas forcas, e a tua posigao social, se és cristo, o Senhor quer-te santo. Estote perfecti sicut et Pater vester coe- lestis perfectus est («sede perfeitos como é per- feito o vosso Pai dos céus»). Jesus dirigiu estas palavras a todos, e a todos propés a mesma meta. Sao diversos os caminhos, porque «na casa do meu Pai ha muitas mansdes» fin domo Patris mei mansiones multae sunt), mas a meta, o fim, é idéntico e comum a todos: a santidade. Como nos alvores da cristandade, também hoje, depois de dois mil anos de Cristianismo, nds, cristéos, devemos formar um sé coracio e uma sé alma nesta aspiracdo & santidade e nesta conviccio profunda: Muiltitudo credentium erat cor unum et anima una. («A multidio dos fiéis tinha um sé coracéo e uma s6 alma»), B a mesma conviccio, firme e luminosa, que ani- mava as palavras de Sao Paulo, dirigidas a todos os fiéis: Haec est voluntas Dei: sanctifi- catio vestra («esta € a vontade de Deus, a vossa santificagio»). Quantos titulos para se reclamar e exigir de ti esta santidade! O Baptis- mo, que nos fez filhos de Deus e herdeiros da sua gloria; o Crisma, que nos confirmou como soldades de Cristo; a Santissima Eucaristia; em que se nos da o préprio Senhor; o:sacra- mento da Peniténcia e o do Matriménio, se o Is ASCETICA MEDITADA recebemos. Sfo chamadas, meu amigo, chama- das @ santidade. Escuta-as. Eliminados os preconceitos, inundada a mente de novas luzes, é facil agora formular um pro: poésito: fazermos do problema da santidade tim problema muito pessoal, muito concreto e muito nosso. Deus nosso Senhor —estamos intima e profundamente convencidos dissa— quer-nos santos: porque somos cristéos. Levantemos para Deus ‘0 olhar, o coragio, a vontade. Quae sur- stun sunt sapite, quae sursuim sunt quaerite: («Sa- boreai o que é elevado, procurai o que é elevado»); a dignidade crista abre-nos agora os horizontes rasgados e serenos. Respiramos profundamente os ares que sopram destas lonjuras abertas, e sao ares que renovam a nossa juventude, como sé renova—esta dito na Escritura—a juven- tude da dguia: Renovabitur ut aquilae juventus tua, («Renovar-se-A a tua juventude como a da aguia»). Agora compreendemos finalmente como sdo ocas as nossas ideias mesquinhas, e detestamo- -las. E deploramos o tempo perdido e os nossos vaos temores. Ja nio temos qualquer medo da santidade e reconhecemos finalmente que fre- quentes vezes os nossos coragées —como es- creve o Salmista— ibi trepidaverunt timore ubi non erat timor («amedrontaram-se quando nfo havia razio para temer»). Confiemo-nos 4 pro- SALVATORE CANALS 19 tecgio da Virgem Maria, que é Regina sanc- torum omnium, («Rainha de todos os santos»), e Sedes Supientiae, («Sede de Sabedoria»), para que a ideia da santidade seja nas vossas vidas cada dia mais clara, mais forte e mais con- creta. UM IDEAL PARA A VIDA Se me permites, vou continuar a reflectir contigo sobre o mesmo assunto. Acho que chegou o momento de darmos humildemente gracas a Deus: Laquewws contritus est et nos liberati sumus (« 0 laco desfez-se e nés fomos finalmente libertados»), segundo as palavras do Salmista. O Jaco dos preconceitos, das ideias falsas, foi desfeito e agora estamos con- vencidos de que a ideia da santidade deve abrir caminho na nossa mente e em todas as mentes cristas. Comec4mos o caminho: a pérola preciosa brilhou diante dos nossos olhos, as riquezas do tesouro escondido alegraram o nosso coraciio. E, no entanio, conheci almas, meu irmiao, mui- tas almas que, tendo chegado a este ponio, por um motivo ou por outro (nao faltam razdes nem desculpas), nfo souberam ir mais longe. Uma experiéncia dolorosa, nao é verdade? Mas fecunda. Almas que tinham visto, mas fecharam SALVATORE CANALS ai os olhos ou adormeceram; almas que tinham comegado e nao continuaram, que teriam po- dido fazer muito e nao fizeram nada, Como vés, é necessério passar da ideia & conviccio, e da convicgio A decisa6. Devemos convencer-nos profundamente de qie a santidade é para nés, de que a santidade ¢ aquilo que o Senhor nos pede antes de qualquer outra coisa, Unum est necessarium («uma s6 coisa é necessdria»). Que nunca te falte uma fé firmissima nestas palavras divinas: a unica derrota concebivel numa vida cristi—na tua vida—é que nos atrasemes no caminho que conduz 4 santidade, que desistamos de apontar a meta. A vida e o mundo nao teriam qualquer sentido se nado fosse por Deus e pelas almas. Nio valeria a pena viver esta nossa vida se nao estivesse iluminada em todo o momento por uma procura viva e amorosa de Deus. Escuta: Quid prodest homini si mundum universum lucretur, animae vero suae detrimen- tum patitur? ( Para qué peusar em tantas coisas, se depois esquecemos a tmica que conta? Que importa re- solver tantos problemas pessoais e dos outros, se depois deixamos por resolver o problema mais importante? Que sentido tém os nossos éxitos, os mossos triunfos —as nossas «subi- 22 ASCETICA MEDITADA das» — na vida, na sociedade, na profissio, se depois naufragamos na rota para a santidade, para a vida eterna? Que lucros e que negécios sdo os teus, se nio consegues alcancar o Paraiso e deitas a perder o negécio da tua santidade? que con- sistem os teus prazeres se te ivas para sem- pre do prazer de Deus? Se nao procuramos verdadeiramente, ardentemente, a santidade, nao possuimos nada; se procuramos a santidade, possuimos tudo: Quaerite primum regnum Dei et iustitiam eius et omnia adiicieniur vobis («Procurai primeiro o Reino de Deus € a Sua Justiga e tudo o mais vos serd dado por acrés- cimo»). Medita, meu amigo, nestas consideracdes e faz por tua conta muitas outras: consideracdes concretas e actuais para a tua vida de agora, para a tua condicéo presente e para os perigos que ameacam a tua alma; consideragées que re- forcem a conviccio profunda que deves ter em telacgio & santidade: é o tmico caminho de feli- cidade temporal e eterna. Dominus meus et Deus meus («Meu Senhor e meu Deus!»), Deveriamos pér toda a decisio e toda a firmeza destas’ palavras do Apédstclo Tomé no nosso empenho em. procurarmos a santidade acima de qualquer outra coisa. Firme- SALVATORE CANALS 23 mente decidido a scr santo, decidido a avancar a todo o custo: essa deve ser a tua disposicio. Que exemplo luminoso o de Teresa de Avila! Avancar sempre pelo caminho, repelindo o cansaco, a desconfianga, a fraqueza, a morte: «aunque me cansé, aunque no pueda, aunque reviente, aunque me muera. E nao te esquecas de que o que nos detém no nosso caminho nao sio as dificuldades e os obstaculos que real- mente se apresentam; o que nos detém é a nossa falta de decisio: Non guia impossibilia sunt non audemus, sed quia non audemus impossibilia sunt («N&o ousamos porque scjam impossiveis, mas sio impossiveis porque nfo ousamos»). A. falta de decisio ¢ o tmico verdadeiro obs- taculo: uma vez ultrapassado, nao -existem outros, ou, melhor, vencemo-los com grande fa- cilidade. Que 0 nosso «sim» a Deus seja um «sim» decidido e, com a sua graga, sempre mais audaz, total, indiscutido. Dizia Lacordaire que a eloquéncia é filha da paixdo: dai-me um homem com uma grande pai- x0 —acrescentava— e farei dele um orador. Dai-me um homem decidido—poderia dizer-te a ti—um homem que sinta a paixdo da san- tidade e dar-vos-ei um santo. Que ninguém nos venga no desejo de santidade. Aprendamos, com a graca de Deus, a ser homens de grandes dese- jos, a desejar a santidade com todas as forgas 24 ASCETICA MEDITADA da nossa conviccéo e com todas as fibras do nosso coracao: sicut cervus desiderat ad fontes aquarum («como um veado deseja as frescas fontes das Aguas»). Se tu, que lés estas linhas, és jovem, pensa na tua juventude, nesta juventude que é a hora da generosidade: que uso fazes dela? Sabes ser generoso? Sabes fazéla frutificar numa procura eficaz e fecunda da santidade? Sabes inflamar-te com estas ideias grandes... e convencer-te... @ decidir-te? Mas se ja saiste da juventude e entraste pela vida dentro, nao te preocupes, porque é a hora de Deus para ti: todas as horas sfo boas para Ele, a todas as horas Ele nos convida (na hora da terga, da sexta ou da noa) a convencermo-nos, a decidir- mo-nos e a desejarmos a santidade, como o préprio Jesus nos ensinou com a parabola dos operarios da vinha. Todas as idades sio boas e, repito-te, seja qual for a tua condicéio, a tua situagao actual e o teu ambiente, deves conven- cer-te, dicidir-te e desejar a santidade. Sabes perfeitamente que a santidade nao consiste em gragas extraordindrias de cragéo, nem em mor- tificagdes e peniténcias insustentaveis; menos ainda é a heranga exclusiva das solidées lon- ginquas do mundo. A santidade consiste no cumprimento amoroso e fiel dos deveres pes- soais, na aceitagio alegre e humilde da von- SALVATORE CANALS a5 tade de Deus, na unido com Ele no irabalho de cada dia, em saber fundir a religiao e a vida em harmoniosa e fecunda unidade, e em tantas outras coisas pequenas e habituais que tu co- uheces. : Haec via quae videtur («Este caminho que se vé»). O caminho é simples e claro. Convence- -te, decide-te, deseja! Concretiza o teu esforco e a tua luta, e persevera com amor e confianga. A San- tissima Virgem, Rainha de todos os Santos, dar- -te-A Iuzes e proteceio, serd para ti apoio e consolo na luta. 4 VIDA INTERIOR Na sua mente excelsa, SA0 Tomas viu todos os bens da natureza desvanecerem-se em con- fronto com o mais pequeno bem sobrenatural e exprimiu em termos metafisicos esse conceito: Bonuni wnius gratiae maius est quam bonum naturae totius universi («QO bem de uma sé graga é maior do que o bem natural de todo o universo»), Um escritor contemporaneo, igual- mente maravilhado com a grandeza deste sen- timento, exprimiu o mesmo conceito de forma psicoldgica: Deus ocupa-se mais de um coracio em que pode reinar, do que do governo natural de todo o universo Hsico e do governo civil de todos os impérios do mundo. Hoje quero falar-te deste Reino de Deus onde o Senhor en- contra as suas delicias, deste Remo de Deus que estd dentro de nés, deste Reino de Deus tio admirdvel quiao desconhecido. O coracgéo dos homens é como um pres¢pio onde Jesus nasce de novo; e em todos os cora- SALVATORE CANALS a7 goes que tenham querido recebé-lo, 0 préprio Jesus cresce de varios modos, em idade, sabe- doria e graca. Jesus nao é igual em todos; mas, de acordo com as possibilidades do coragio em que nasce, da capacidade de quem o recebe, ma- nifesta-se diversamente na vida dos homens, ou como uma crianga, ou como um adolescente em pleno desenvolvimento, ou como um homem maduro, Reinar, nascer e crescer no coracgio e na vida, esse é o -desejo de Cristo, que assim quer fazer de cada cristéo —de ti, de mim— um alter Christus, (eum outro Cristo»). E a esta chamada da graga, a este convite de Jesus, deve- remos todos responder repetindo as palavras do Precursor: Oportet illum crescere, me autent minui («EB preciso que Ele cresca e eu. diminua»). Esta transformagio em Jesus Cristo, esta uniao com Deus, que é fruto da vida interior, abarca a vida inteira e faznos experimentar e saborear a realidade consoladora e reconfor- tante da parabola da vide e dos sarmentos. Ego sum vitis vos palmites; qui manet in me, et ego in eo, hie fert fructum multi; quia sine me nihil potestis facere («Eu sou a vide e vés os sarmentos; quem permanace em mim e eu nele, esse dard fruto abundante: porque sem mim nao podeis fazer nada»). Sarmento unido & vide. Alma de profunda vida interior. Nao tardards a perceber que os teus pensamentos comecgam a 28 ASCETICA MEDITADA transformar-se sob o influxo da sabedoria pré- pria da vida sobrenatural, que passas a pensar com as ideias de Deus e a encarar o mundo e a vida com os olhos de Deus. Com esta unido de pensamento com Jesus Cristo, nunca terds uma inteligéncia pag. Tornar-te-s alma de visdo sobrenatural e nao merecerds a censura de Cristo: Nonne et ethnici hoc faciunt? («Nao fazem o mesmo os pagios?»). A tua visio do tmoundo, profundamente sobrenatural, dara luz e calor 4 tua palavra. A linfa do espirito sobre- natural tornard fecunda a tua prépria vida afec- tiva. Compreenderds as palavras de Sao Paulo: hoc eniin sentite in vobis quod et in Christo Tesi (stende nos vossos coragées os mesmos sentimentos de Jesus Cristo»). Os sentimentos dé Jesus, cheios de pureza e de compreensio, de amor pelas almas e de compaixao por aqueles que se afastaram do seu caminho, so o patri- ménio de quem se transformou em Cristo. De- pois desta uniéo de pensamento e de sentimento com Jesus Cristo, depois desta renovagio da vida intelectual e afectiva, a linfa da vida inte- rior penetrard-em toda a tua actividade exte- ~ rior: as tuas obras, flores e frutos da tua vida interior, estaréo saturadas de Deus e revelariio a sobreabundincia do teu amor por Ele; sé agora serfo verdadeiramente opera plena coram Domino («obras ricas na presenga do Senhor»). | SALVATORE CANALS 2 A tua unido com Jesus, meu irmfo, é sobre- tudo interior. Os teus pensamentos, os teus de- sejos, os teus afectos sfo a parte mais delicada e mais intima da tua vida e sfo também a parte mais generosa e preciosa do teu holocausto. E é exactamente todo este mundo interior — este feixe de espigas palpitantes de vida— que o Se- nhor pede as almas. Se lhe dds apenas as tuas obras exteriores, mas Ihe negas ou discutes a parte mais intima da tua vida—os teus desejos, os teus afectos, os teus pensamentos — jamais serds alma de vida interior. Formula no teu intimo esta pergunta: onde é que vivo habitualmente com os meus pensamentos, com os meus afectos, com os meus desejos? nal, igualmente certo, de que nao és alma de vida interior. Porque n&o deves esquecer que ubi thesauriis vester est, ibi et cor vestrum erit («onde estiver o teu tesouro, ai estard o teu cora- cio»). O wnico tesouro das almas de vida interior ¢ Jesus, aquele Jesus quem vidi quem amavi, in quem credii, quem dilexi («que vi, que amei, no qual acreditei, que adorei»). Como vés, o grande campo de batalha ao ASCETICA MEDITADA das almas que aspiram a uma verdadeira e profunda vida interior ¢ o coracio. E no ccoragio que se vencem e se perdem as batalhas de Deus. Por isso, a guarda do coragéo é uma norma fundamental da vida ascética. Quando as almas querem e néo pdem obstdculos As obras de Deus, Ele condu-las & verdadeira unifo: ins- taura dentro delas o seu reino, que ¢ regnum iustitiae, amoris et pacis («reino de justica, de amor e de paza). Se estas consideracées abriram os teus olhos para a realidade de um reino de Deus totalmente interior — regnuim Dei inira vos est («O reino de Deus esta dentro de Vés») —é entio neces- sario que os teus olhos se abram de frente para uma nova realidade: reguum coelorum vint patitur. Deves lembrar-te dé que o Rei- no dos Céus padece violéncia, de que o ca- minho para este reino interior é caminho de mortificagéo, de purificacio. E para que te sintas sarmento unido & vide, e para que dese- jes sé-lo cada vez mais, é preciso que escutes no- vamente a voz de Cristo: Ego sum vitis vera et Pater meus agricola est, («Eu sou a verda- deira vide, e meu Pai o agricultors), Omnem palmitem in me non ferentem fructum, tollet eum; et omnent qui fert fructum, purgabit eum, ut fructum plus afferat. («Todo o sar- mento que nao dd fruto em mim, Ele o testator trina rem SALVATORE CANALS 5t cortaraé; e todo o que der fruto, podé-lo-d, para que dé fruto mais abundante»). Para que dés. mais fruto, para que a tua unifio com o Senhor se fortaleca, é necessdria a poda, a purificagio. Nao tenhas medo do cutelo do podador: Pater mets agricola est. («O meu Pai é 0 agricultor»). Com a poda, o Senhor purificara a tua inteligéncia e a tua vontade, 0 teu coragdo ea tua meméria. Nao podes avancar um passo na vida de unio com Deus, sem necessdria- mente dares um primeiro passo na via da putri- ficacio. Para isso, é preciso que colabores com o Senhor, quando chegar o momento da poda: deixa-o agir! E quando vires cairem os ramos e as folhas, alegra-te, pensando nos préximos novos frutos que a poda promete. A abundancia de frutos depende da tua vida interior, do teu grau de unidéo com Deus. Qui manet in me, et ego in eo, hic fert frutum mul- ium. («Quem permanece em mim, e eu nele, esse da muito fruto»). Que a. tua actividade exterior, que a tua acgiio intensa, nao te afastem de Deus. Escuta de novo o Senhor: manete in me («per- manecei em mim»), Lembra-te de que a vida interior é a alma de todo o apostolado. Quanto maior for a tua unido com Deus, tanto mais abundante sera o fruto do teu apostolado. O fruto, bem entendido, nao o sucesso, que é uma coisa completamente diferente. E mais 32 ASCETICA MEDITADA eficaz um homem de vida interior, com uma palavra esponténea, do que wma pessaa pouco interior, com um discurso que esgote as pos- sibilidades do intelecto, Quero lembrar-te ainda que a sensibilidade do apéstolo Para os problemas e necessidades do seu apostolado nao depende do seu grau de imersio no trabalho externo, nem da sua habi- lidade, mas do seu Brau de unifo com Deus. Antes de concluirmos ‘esta breve conversa com o Senhor, escutemos de novo as palavras de Jesus: maneie in me, GUARDA DO CORACAO Desejo que escutes dos labios desse gran- de santo da Igreja, que € Santo Agostinho, a confissio da feliz experiéncia do seu gran- de coragio e da sua mente lucida: Fecisti nos, Domine, ad te, et inquietum est cor nos- trum, donec requiescat in Te. («Fizeste-nos, Se- nhor, para ti, e 0 nosso coracgfo esta inquieto enquanto nfo descansar em ti»). Este santo, cuja vida sem dtivida conheces, percorreu com sede de verdade e de amor muitos caminhos da terra. E da sua alma grande e nobre, depois de tantas experiéncias dolorosas, deixou escapar o grito que te referi acima e que é uma verdadeira con- fissaio. O seu coragéo inquieto e rico procurava felicidade e descanso, e, depois de muitas tenta- tivas imiiteis, encontrou tudo encontrando a Deus. Esta inquietacao, que todos trazemos dentro de nds, tem de ser pacificada, acalmada; este desejo ardente, que sentimos no intimo, tem de 3 Jt ASCETICA MEDITADA ser satisfeito, Enquanto essa inquietacao nao for pacificada, e esse desejo ardente satisfeito, o coracéo do homem anela, sofre e procura. A his- téria de cada homem é a histéria de um pere- grino, de um viandante que procura a felicidade. Todos os homens, alguns conscietemente, ou- tros —a maioria— inconscientemente, procu- ram a Deus. Por isso, meu irm&o, o mundo divide-se em duas grandes partes: o das pessoas que amam a Deus com todo o coragdo, porque o eucontraram, e o das almas que o procuram com todo o coracéo, mas ainda nao o encon- traram. Aos primeiros, o Senhor ordena: Diliges Dominum Deum tuum ex toto corde tuo. («Amaras o Senhor teu Deus com todo o teu coracio») « aos segundos, promete: Quaerite et invenietis («Procurai e encontrarcis»), Pergunta-te, meu irmao, a qual das duas partes pertences, para saberes 0 que deves fazer. E nfo te esquecas de que, se vés ou-sentes a falta de alguma coisa, © que na realidade te falta é Deus Nosso Senhor, que ainda nio se encontra presente na tua vida ou que se nao encontra com a plenitude devida. Quero recordar-te uma verdade muito sim- ples, uma verdade que ¢ a base de todas as con- sideragGes feitas até agora. O coragio do ho- mem, todos os coragdes, inclusive os coracdes das almas consagradas a Deus, foram criados | SALVATORE CANALS 35 para a felicidade e nado para a mortificagao, para a posse e Nao para a renincia. E esta exigéncia de felicidade e de posse é jd uma realidade pre- ciosa aqui mesmo na Terra: uma realidade pre- ciosa e bela que, para se manifestar, nfo espera que entremos no Paraiso. Se o caracgio humano foi criado para a felicidade —felicidade que deve comegar aqui mesmo, na Terra—e a feli- cidade sémente se encontra em Deus, deves admitir que o caminho que a ela conduz nao pode ser sendo o da guarda do caragao. . A ciéncia da guarda do corac&o é feita de ordem e de luta, de defesa e de ataque, de re- mincia e de sofrimento; mas tudo esta orde- nado para a felicidade e a posse. Guardar o coragio quer dizer conservd-lo para Deus, viver de modo que o nosso corag&o seja o Seu reino, que nele existam todos os amores que se devem encontrar em consequéncia do nosso estado ec da nossa condi¢io, mas que todos estejam har- monicamente fundidos no amor de Deus e para ele ordenados. Guardar 0 corac&o significa tam- bém amar com pureza e paixfo aqueles a quem devemos amar, e excluir ao mesmo tempo os cittmes, as invejas e as inquictacdes, que sdo causas certas de desordem no amor. A guarda do coracgao significa sempre ordem no amor. A ciéncia da guarda do corag&o ensina o cristo 36 ASCETICA MEDITADA a penetrar na profundidade da alma para desco- brir os seus movimentos e tendéncias, Como sao poucas as pessoas que tém a cora- gem de olhar com olhos sinceros para essa fe- cunda e escondida fonte da vida humana que é 0 coragao! Quanta malicia e quanta grandeza vibram escondidas no coragdo humano! Se expe- rimentarmos enfrentar o nosso coragio, nao tardaremos a descobrir que Deus, a natureza e o.deménio sio os itrés eternos prota- gonistas do combate espiritual que diaria- mente se trava nele. E comprovaremos perfei- tamente como as batalhas de Deus se vencem e se perdem ‘no coracdo. Compreenderemos entaio, em toda a sua pro- fundidade, a censura dirigida por Cristo: aos fariseus: Populus iste labiis me honorat, cor autent eorum longe est a me («Este povo honra- -me com os ldbios, mas temo coragio longe de mim»). O Senhor, que ama os puros de cora- sao e que quer instaurar o seu reino nos cora- gées, nfo pode aceitar semelhante servico hipd- crita e puramente formal. Uma alma habituada & vigildncia do coracio cai na conta de que a maior parte das suas acces so exclusivamente naturais ou um misto de natureza e de graga: pode comprovar, com pena e dor, gue raramente realiza acgdes deri- vadas por completo da graca e perfeitamente SALVATORE CANALS 7 sobrenaturais. O cardcter sobrenatural de uma accao ¢ continuamente ameacado de todos os lados: no comego, no meio e no fim. E por isso que estas almas fazem da guarda do coragaéo uma vigilancia continua da sua pré- pria intimidade, uma presenga em todas as suas acc6es no momento exacto em que as realizam. Imaginando o coragéo como um campo de ba- talha, podemos dizer que esta ciéncia ensina a viver permanentemente como sentinelas nas li- nhas avancadas. E verdade que o caminho nao é facil, mas quando o coragio atinge a purificagfo com- pleta, Deus Nosso Senhor, com a sua presenca eo seu amor, ocupa a alma e todas as suas po- téncias: memoria, inteligéncia, vontade. E deste modo que a pureza do corac&o conduz 4 uniado com Deus, unio a que normalmente n4o con- duzem os outros caminhos. Uma vez alcancada a pureza do coragiio, a alma pode facilmente praticar todas as virtudes que as circunstancias da vida lhe exigirem; e relativamente 4s outras virtudes que nao tiver ocasifo de praticar, possuira igualmente a sua alma, o seu espirito e, por assim dizer, a sua esséncia; e é o que Deus Nosso Senhor deseja. Na escola do coragio podemos aprender, num instante, mais coisas do que nos poderiam ensi- nar, num século, os mestres da Terra. Sem a 38 ASCETICA MEDITADA guarda do coracéo, por mais que nos esforce- mos, nunca chegaremos 4 santidade; mas com ela, e sem outras accGes externas, muitas almas se santificaram. E, por outro lado, meu amigo, é este o caminho que conduz a felicidade, ao descanso sereno e completo do corac4io em Deus. Com justa preocupacéo, um auior espiritual interroga-se se é oportuno, nos nossos dias, in- sistir exclusivamente no aperfeicoamento hu- mano que o Cristianismo, vivido com profun- didade e dedicagao, traz necessariamente con- sigo. Fazendo eco deste grito de alarme, quero dizer-te que talvez a caracteristica mais im- portante do mundo de hoje seja a sua falta de sentido ieoldgico. Agora que te encon- tras em meditacfo a sés com Deus, sob o seu olhar, pensa novamente na tua experiéncia pes- soal, na tua vida de relacio com os outros, nas reaccées dos outros—e nas tuas—das suas ati- tudes—-e as tuas—-em face dos valores espi- rituais e das inevitdveis provacées da vida, e em face de tantos acontecimentos que interes- sam & Igreja e em que se jogam problemas que poem em sério perigo o bem das almas. Nao te parece que muitos cristaos—e porventura tu mesmo ~—nio contemplam a grandeza de Deus 40 ASCETICA MEDITADA e da sua Igreja? Nao te parece que em muitas inteligéncias cristés se vai extinguindo o sentido teolégico? Nao é verdade que, no modo de agir e de falar de tantos cristos, se chega a menospre- zar o «sentido da cruz», que esté sempre tao inti- mamente unido ao sentido teolégico? Tu e eu sabemos muito bem que, para se ver a Deus, é preciso morrer: Dewin nemo vidit un- quam («Nunca ninguém viu Deus»). Alguma coi- sa de parecido se passa na nossa vida interior. Para vermos Cristo e para 0 conhecermos na obs- curidade luminosa da fé, para vivermos com Ele numa intimidade sempre crescente, é preciso que aprendamos a morrer para nds mesmos. Temos necessidade de sentido teoldgico, temos necessi- dade do sentido da cruz: ubi crux ibi Christus («Onde esta a cruz ai esta Cristo»). O préprio Jesus —que nos disse, revelando-nos um se- gredo: Regnum Dei intra vos est («O reino de Deus esta dentro de vdés») acrescenta, mos- trando-nos um caminho: Regnum coelorum vim patitur («O reino dos céus é tomado a forga»). Se nos falta sentido teoldgico, se nfo temos o sentido da cruz, a nossa vida corre o risco de ser apenas humana: cessamos de viver como cristéos, para viver como pagaos, na melhor das hipdéteses como bons pagios. A cruz é a nossa tinica esperanca. Exalta a cruz, a cruz de Cristo: na tua inteligéncia, para SALVATORE CANALS 41 que compreenda o seu valor e necessidade, e para que nao seja paga nos seus jufzos e racio- cinios; na tua vontade, para que a ames e a aceites, mio com resignacio, Mas com amor; nas tuas obras, para que tenham um pouco da eficdcia redentora da Cruz. A santidade con- suma-se na cruz, porque a cruz é a morte do pecado, e o pecado é o unico inimigo da santi- dade. Escutemos a voz do Mestre: Si quis vult et post me venire, abneget semetipsum, tollat cru- cem quotidie sequatur me («Se alguém quiser vir apéds mim, renegue-se a si mesmo, tome to- dos os dias a sua cruz e siga-me»). Para um cris- tao, nao existe outro caminho: o seu caminho é o caminho real da santa Cruz. Esta cruz, a cruz de Cristo, a santa Cruz, deve ser procurada-— para caminharmos abra- cados a ela—«todos os dias»: quotidie. No dia em que nado sentirmos sobre os ombros 0 peso da cruz e nio soubermos, com a nossa inteligén- cia, reconhecer o seu valor, nesse dia deixare- mos de viver como discipulos de Cristo. Deves olhar a cruz com fé, e levala com amor. Sem te sentires nunca, nem por um instante, vitima. A cruz nado faz vitimas ... faz santos! Nao pro- voca Caras tristes, mas rostos alegres. Quem vive assim compreende que a vitira é uma sé: Jesus Cristo, que sofreu e morreu por todos, que sofreu e morreu no abandono. 42 ASCETICA MEDITADA Nos cristios—tu e eu—somos felizes car- regando-a Cruz, porque descobrimos a verda- deira, a tmica felicidade, que é pariicipacio da felicidade de Deus. Mas se queremos carregar «todos os dias» — quotidie——a cruz que nos faz discipulos do Senhbor, precisamos de a desco- brir. E seraé este o nosso primeiro propdésito: abrir bem os olhos da alma, os olhos da fé, para descobrirmos a cruz de Cristo na nossa vida. Em que consistira para ti a cruz de Cristo? Escuta, meu amigo: o que é que te custa mais esforco no teu dia a dia? B essa a cruz do Re- dentor para ti. Essas tentagdes poderosas que te assaliam, a tua satide periclitante, o teu tra- balho duro, extenuante, os defeitos do cardcter que te humilham, os defeitos das pessoas que vivem 4 tua volta e que te fazem sofrer ... Adquire visto sobrenatural! Essa é a cruz de Cristo para ti. Propde-te firmemente reconhe- cé-la e abracé-la, quando surgir no teu caminho de cada dia. Pede ao Senhor que te faca desco- brir o mistério da Cruz, e caminhards a passo de gigante pelas vias da santidade. E agora que conheces a cruz de Cristo, agora que couheces o seu valor e necessidade, como te serd facil carregé-lal Carrega-a com alegria, com amor. Carrega-a’ generosamente, e aprende a escondéla aos olhos dos que vivem A tua: volta, como se esconde um tesouro. Esconde-a SALVATORE CANALS as por tras de um sorriso generoso, e descobriras o sentido — dentro, na tua alma profunda— das palavras do Senhor: Jugum mezum suave est et onts meum leve («O meu jugo é suave, e 0 meu peso € leve»), Ele,'o bom Cireneu das almas, ajudar-te-4 a levé-la; E nao te limites a levar a tua cruz: leva generosamente também a cruz dos teus irmaos. Mas, sobretudo, ensina-lhes o valor da cruz. Pede ao Senhor por eles, para que saibam descobrir e amar a cruz em tudo o que os preocupa ou angustia, naquilo que os faz sofrer. A cruz, sé a santa cruz, dard fecundidade e eficdcia & tua vida de apdstolo. Cum exaltatus fuero a terra, onmia traham ad meipsum («Quan- do for levantado da terra, atrairei tudo a mim») quando souberes permanecer na cruz cont amor, como Jesus Cristo, entio.atrairas a ti— ao Senhor—todas as almas que se aproxima- rem; entéo serds verdadeiramente carredentor com Cristo. Ndo te esquecas de que Maria San- tissima, a Rainha dos martires, é também Rai- nha da paz. Aproxima-te dela com confianga. Para lhes fazeres companhia, ao pé da cruz. DA ESPERANCA CRISTA Dentre as virtudes que deixam um sulco mais profundo no espirito humano, que influem mais notériamente sobre a vida e a actuacdo dos homens, destaca-se a virtude crista, teologal, da esperanca. Na verdade, wm mesmo homem, con- forme viva sob o impulso da esperanca ou permanega inerte sob o peso do desespero, aparece-nos —e é, verdadeiramente —como um gigante ou um pigmeu. Na nossa convivéncia @ nos nossos encontros humanos, todos os dias presenciamos — nao sem surpresa e mdgoa— estas transformagdes surpreendentes: o nosso século padece, porventura mais do que nenhum outro, da falta desta virtude. Quantas filosofias, quantas atitudes, quantos estados de a4nimo dos homens do nosso tempo nio mergulham as suas raizes em almas sem esperanca, divididas entre a angistia e o temor, uma angtstia que nada pode dissipar, um temor que nada pode afastar! SALVATORE CANALS 45 A verdade é que o homem nao pode vi- ver sem esperanca,. A esperanga éa cha- mada do Criador, principio e fim da nossa vida, a que nenhuma criatura humana pode fugir; éa voz do Redentor qui vult omnes homines sal- vos fieri («que deseja ardentemente a salvacao de todos os homens»); ninguém pode recusar- -se a escut4la sem perder a paz da alma; € a profunda nostalgia de Deus, que Ele préprio introdwiu em nés—dom maravilhoso— de- pois de ter realizado, em relagio a cada homem, aquelas inefaveis «obras das suas mios» que, na linguagem dos tedlogos, se cha- mam criac&o, elevagio e redengiio. Através dos séculos cristios, poucos como Santo Agostinho souberam exprimir, com aquele tom persuasivo de conhecimento adquirido, com aqueles’ acen- tos comovidos de experiéncia sofrida, esta nos- talgia profunda do coragio humano. Escritor de intuigdes elevadas e de profundos estados de alma, soube definir num grito do seu espirito magnanimo toda a condicio do homem, vian- dante nesta terra: Fecisti nos, Domine, ad Te, et inquietum est cor nostrum, donec requiescat in Te («Fizeste-nos, Senhor, para ti, e o nosso coragdo estarA inquieto enquanto nao descansar em Ti»). Detenhamo-nos por um instante nesta frase, para procurarmos esclarecer melhor o nosso 46 ASCETICA MEDITADA trabalho e saber a raziio das nossas ansias. Nao & possivel eliminar, erradicar a nostalgia que cada um traz dentro de si: enraizada na nossa propria pessoa humana, que est4 destinada a ver Deus um dia e a gozar para sempre dele, esta nostalgia sera sempre o nosso companheiro de viagem, o amigo das horas alegres e tristes da nossa jornada terrena. Mas pode —e deve — ser aliviada, e para isso esta a virtude da esperan- ca. Na segunda parte da frase de Santo Agosti- nho, deixa-se realmente uma porta aberta: ... da- nec requiescat in te («...enquanto nao descansar em Ti»), Se esta porta estivesse fechada, a inquie- tagio e a nostalgia converter-se-iam em deses- pero e angiistia. Enquanto estivermos a caminho, enquan- to permanecermos como viandantes nesta ter- ra, traremos dentro de nds a nostalgia de Deus e uma inquietagéo obscura, gerada pela incerteza acerca da obtencdo do nosso fim tl- timo (com efeito, salvo uma revelagdo privada de Deus, ninguém pode estar certo da sua pré- pria salvacio eterna): nostalgia e inquietacio que podem—e devem, agora que estamos con- vencidos disso—ser mitigados pela esperanca crista. Nés, cristios deste mundo, apoiamo-nos ma esperanca, e quando a esperanca findar — tal como a fé, no fim da nossa vida terrena — entdo terenos a alegria da posse sem sombras SALVATORE CANALS 47 eo reino da caridade sem mais temores, No fim da nossa vida humana, meu irm4o, espera-nos ou a alegria da posse ou o desespero de nos vermos privados para sempre de Deus. A esperanga, virtude teologal, faz-nos tender continuamente para: Deus, pela confianga no socorro que Ele nos prometeu: Confidite, ego vici mundum («Tende confianga, ea venci o mundo»). O motivo formal — como diriam os ted- logos — desta virtude é€ o préprio Deus, sempre disposto a ajudar: Deus auxilians («Dens auxilia- dor»), a omnipoténcia auxiliadora. E, apesar dis- so acontece tantas vezes que n6s, cristéios — e esta é uma das muitas contradigdes da nossa vida — substituimos na nossa alma e no nosso coragaio a grande e bela Esperanca — que é a de Deus e do nosso ultimo fim—por outras mais peque- nas, embora sugestivas, esperangas humanas. Nao é que os cristZos nfo devam ter esperangas humanas, antes pelo contrario: existem espe- rangas belas ec nobres que devem estar presen- tes no nosso coragéo mais que em nenhum outro. Mas também aqui—na «provincia» da esperanga —é preciso que na nossa alma e no nosso coracio reinem a ordem, a hierarquia e a harmonia da esperancga, e que nenhuma espe- ranca humana — por mais nobre e bela que seja —possa obscurecer a luz e diminuir a forca 48 ASCETICA MEDITADA da esperanga em Deus, nosso fim tltimo, pos- suido e gozado para sempre na vida eterna, E por isso que nfo raras vezes na nossa vida Deus, mediante o jogo da sua Providéncia, faz cair compassivamente algumas esperancas hu- manas que o nosso padrio de valores pessoal talvez tivesse exorbitado, a fim de impedir que possam ocupar no nosso coragio o lugar que s6 a grande esperanga de Deus deve ocupar. BE preciso entéo que saibamos secundar o jogo da Providéncia e que aprendamos a restabelecer a verdadeira ordem de valores na escala da esperanca. Deus ajudar-nos-4 eficazmente a acal: mar todas as esperangas humanas que, em obsé- quio & ordem estabelecida por Ele, néio tenhamos hesitado em colocar no seu justo lugar. Mas se, pelo contrario, ao abalarem-se por disposi- cao divina as esperangas humanas, ripostarmos persistindo em afastar de nés a grande esperanca de Deus, cavaremos com as nossas miios um fosso de rebeliao e desespero. Nao preciso de te dizer quantas crises deste género conheci: tu mesmo terds tido experiéncia de muitas. Crises de que nao raro s6 tomamos conhecimento pela aparéncia humana exterior, e a que damos o nome de complexo ou nervos, enquanto a verdadeira rea- lidade € outra, e o diagnéstico é de natureza mais espiritual, de contetdo mais profundo. SALVATORE CANALS 49 De uma coisa podes estar certo: enquanto nao possuirmos e vivermos a verdadeira virtude cristé da esperanca, a nossa vida estara despro- vida de firmeza, e permaneceremos na instabi- lidade. Passaremos com extrema facilidade da presuncéo, quando tudo correr bem e a nossa vida nfo experimentar sobressaltos nem desi- lusdes, para o desencorajamento, que desper- tara e se anichara no nosso 4nimo ao menor contratempo que aliere as nossas previsdes, ferindo a nossa susceptibilidade, invalidando oS nossos programas ou desiludindo as nossas expectativas. A virtude da esperanca profunda- mente vivida, coloca-se acima de tais flutua- gdes, convertendo-se em firmeza invencivel e abandono confiante, numa permanente fideli- dade ao dever. Lembras-te das palavras de Cristo as Aguas agitadas e ameacadoras do mar da Gali- leia? Tace obmutesce («Cala-te, acalma-te»), Pa- recem incarnar a voz da esperanga que, com a sua forga, impoe siléncio ao tumulio interior do desa- lento. Et venit tranguilitas magna («E sobre- veio uma infinita bonanga»). Esse é o fruto da esperanca: a calma, a serenidade, a paz. Como ensinam os tedlogos («a esperanga da uma certeza de tendéncia»); spes certitudinaliter tendit in suum finer, afirma Sio Tomas. Nao obstante os nossos insucessos, as nossas incoe- réncias, as nossas culpas, devemos sempre espe- 4 50 ASCETIGA MEDITADA rar em Deus, que prometeu ajuda aqueles. que o procuram com humildade e com perseveranca: Petite et accipietis, («Pedi e recebereis»),. O qué? Os bens temporais, condicionalmente, na medida em que forem iteis 4 nossa salvaciio eterna; as gracas mecessdrias, sem condigies; e nao apenas a graca, mas o Espirito Santo, altissinuun donum Dei («altissimo dom de Deus»). E aqui retornam esponténeamente ao nosso espirito as palavras de Jesus & Samari- tana: Si scires dowum Dei... («Se conhecesses o dom de Deus...»), se verdadeiramente conhe- céssemos e compreendéssemos na sua plenitude o dom de Deus, invocariamos com mais fre- quéncia o Espirito Santo, e procurariamos con- fiadamente nfo nos desviarmos do caminho recto e alcangar sem quedas nem demoras 0 nosso fim ultimo. A batalha da esperanga cristéi deve ser tra- vada todos os dias: Dominus regit me et nihil mihi deerit («O Senhor governa-me, e nada me faltard»), plenamente convencidos — porque isso faz parte da prdépria virtude teologal da es- peranca—de que esta nfo depende dos nossos méritos ou virtudes, mas da misericérdia e ommnipoiéncia de Deus. Com efeito, A luz da esperanca, Deus aparecenos non aestimator meriti, sed veniae largitor («nao pelo apreco dos nossos .merecimentos, mas pela largueza do oP SALVATORE CANALS 51 vosso perddo»)}, como repetimos todos os dias numa das oracgdes da Santa Missa. Fazendo finca-pé nas forcas que obtemos desia virtude teologal, devernos aprender a combater os mo- vimentos de desdénimo quotidiano que dificul- tam o nosso caminho quotidiano para a perfeigio evangélica; devemos aprender a resistir, tam- bém diariamente, as alfinetadas do pessimismo que, com o decorrer do tempo e a monotonia da vida, tendem a aumentar. Estes estados de Animo encerram qualquer coisa que evoca na nossa meméria, com a sua forga pacata e um pouco melancélica, duas figuras evangélicas: mulier inclinata («a mulher curvadas) e o homem da mao direita tolhida, duas figuras que, pelo seu abatimento, pela sua fraqueza e inactividade, esto particularmente aptas a exprimir os efeitos produzidos no espirito hu- mano por essas doengas morais chamadas pes- simismo e desalento, que nfo sio mais do que auséncia da virtude e da esperanga. Com nao menor ardor, devemos, porém, impedir que o pessimismo e o desalento pene- trem na nossa vida de apostolado, com o seu tr4gico peso de esterilidade. O apostolado cris- _tio exige esforca continuado, perseverante, te- nacidade e fé incomovivel nas gracas do Senhor @ na missfio por Ele confiada a cada homem. Para que nenhum dos elos desta cadeia se que- oo 52 ASCETICA MEDITADA bre, é precisa a forga que brota da esperanca cristé, através da qual o homem bem tempe- rado na luta do apostolado aprende a saber recomegar. Sirva-nos de exemplo a tenacidade do apéstolo Pedro, no episddio da pesca mila- grosa: nao se detém pelo facto de totam noctem laborantes nihil coepimus («toda a noite tra- balhando, nfio apanhdmos nada»); pelo contra- rio, declara-se disposio a regressar ao trabalho, in verbo tuo laxabo rete («segundo a tua palavra Jangarei a rede»). Mas, com a forcga da esperanca crista, nao devemos procurar robustecer apenas a nossa vida; é preciso que saibamos infundir nos ou- tros confianca e serenidade, dando vida a um verdadeiro e especifico apostolado de confianga, seguindo o exemplo dos andénimos amigos do cego de que fala So Lucas no seu Evangelho, que o encorajam com estas belas palavras a responder ao apelo do Senhor: Animaequior esio: surge, vocat te («Animo: levanta-te, Ele chama-te»), A esperanga crist& conduz as almas ao abandono: com efeito, quem espera verdadei- ramente no Senhor é sempre fiel 4 vontade ma- nifesta de Deus (fidelidade que entra no 4m- bito da virtude da obediéncia) e assim dispde eficazmente o seu dnimo para o abandono na vontade de beneplacito de Deus. Este perfeito abandono, a que conduz a virtude da esperanga, SALVATORE CANALS 53 difere profundamente, como sabes, do «quietis- mo», exactamente porque o abandono, quando é verdadeiro, se faz acompanhar da esperanca e da constante fidelidade aos deveres de cada dia, nas mais pequenas coisas, em todos os. ins- tantes. Na verdade, a esperanga nio poupa o cristéo; leva-o a comprometer-se com todas as suas forcas e possibilidades, coage-o a pros- seguir, a perseverar no seu caminho, mesmo que venham a ruir todos os apoios humanos; é precisamente nestas ocasides que se afirma em toda a sua grandeza a verdadeira esperanga em Deus, E o momento de contra spem in spem credidi («esperei contra toda a esperanca»), afirma vitoriosamente Sio Paulo; é sempre um momento de Deus, um momento que Ele re- serva as almas particularmente amadas. A esperanga nao deve ser nunca um cémodo subterfiigio da nossa preguica. E o que te recorda o Senhor em dois milagres que realizou: quando (initium signorum, «comeco dos milagres») trans- forma em Cand da Galileia a dgua em vinho e quando multiplica os paes e os peixes dian- te da multidio. Tanto num caso como noutro, o milagre da omnipoténcia do Senhor opera- -se depois de se terem esgotado todas as possibi- lidades humanas, depois de os homens terem feito tudo o que podiam fazer; a agua nao sera transformada em vinho sendo quando os fiéis 54 ASCETICA MEDITADA criados tiverem enchido os recipientes usque ad sumimum («até ao cimo») e, antes de multiplicar os pies e os peixes, o Senhor exige o sacrificio total de todos os meios de subsisténcia de que dispunham, isto ¢, dos peixes e dos pAes que pos- suiam; nao importava que fossem poucos ow muitos, o importante era que dessem tudo o que tinham. Para comecarmos a viver a virtude da esperanca, devemos pedir a ajuda da nossa Mie do céu, daquela que é a nossa esperanga: Mater mea, fiducia mea («Minha m&e, minha es- peranga»). HUMILDADE Tenho pensado repetidas vezes que a virtude da humildade paga caro o prego do nome que traz e da realidade que contém. Com efeito, nenhuma outra virtude é tio desprezada, tao ignorada e deformada, como esta virtude crista. A virtude da humildade ¢ uma virtude humi- Thada. E nao sei o que Ihe faz mais mal, se o esquécimento em que o mundo a deixa, as tro- gas e o escdrnio com que muitos a acolhem, ou a falsidade e a pouca elegdncia com que alguns a apresentam. Pareceme que se torna verdadeiramente necessdrio que nés cristfos aprendamos a conhe- cer melhor esta virtude, sentindo profunda- mente a sua importancia; que lutemos por conquisté-la e vivéla rectamente e, desse mo- do, possamos apresentd-la tal como é€ aos olhos de um mundo contagiado de vaidade ¢ de soberba. A este apostolado do bom exemplo, tio eficaz como esquecido, devemos tu e eu sentir- 56 ASCETICA MEDITADA -nos convidados por Jesus Cristo, quando diz: Discite a me quia mitis swum et luunilis corde, («Aprendei de mim que sou manso e humilde de coragiio»). Humildade de coracio: assim nos quer o Senbor, com aquela humildade que nasce no coracio e frutifica nas obras. Porque é falsa essa outra humildade que nasce e morre nos labios: é uma caricatura. Palavras, atitudes, modos, sao incapazes por si sds de criar uma virtude: sfo capazes, sim, de a deformar. A inte- ligéncia deve abrir-nos o caminho do coracdo e ajudar-nos a depositar nele, com afecto, a boa semente da verdadeira humildade, que, com o tempo. e a.graca de Deus, deitara raizes profun- das e dard frutos saborosos. A humildade tem inicio no momento Iumi- noso em que a inteligéncia descobre e admite, com a forga necessdria para que o coraciio possa ama-la, a verdade fundamental, simples e profunda de que, sem Deus, nao podemos fazer nada. Devemos aprender a partir, com as nossas m&os soberbas o pao branco da verdade evangélica, e a distribuilo diante dos nossos olhos ofuscados, que tém em ido alta considerago 0 nosso «eu» e os nossos talentos. Escuta-me! Todos os nossos esforcos por melhorar e por crescer no amor de Deus e na pratica das virtudes evangélicas, sio vaos se a graca de Deus nao nos ajudar: Nisi Dominus SALVATORE CANALS 57 aedificaverit domuun, in vanum laborant qui aedificant eam («Se o Senhor néo edifica a casa, em vio se afadigam os que a constroem»). A vigi- lancia mais atenia e constante é perfeitamente inttil sem a vigiléncia forte e amorosa da graga divina: Nisi Dominus custodierit civitatem, in vanum vigilat custos («Se a Senhor nao vigia a cidade, vai é a vigilancia da sentinela»). Eis por- que as nossas palavras e as nossas acgGes de nada servem quando pretendemos servir-nos delas para a nossa actividade em beneffcio das almas. Sem a agua pura da graca divina, o nosso apos- tolado e as nossas fadigas séo uma agitacio estéril: Neque qui. plantat est aliquid neque qui rigat, sed qui incrementum dat, Deus («O que conta nfo é aquele que planta, ou aquele que rega, mas Deus, que da o incremento»), Mas esta graca, que é necessdria para se progredir nas virtudes, para se resistir as ten- tagées € para que o nosso apostolado seja fe- cundo, é concedida pelo Senhor aqueles que sao humildes de coracio: Deus sitperbis resistit, humilibus autem dat gratiam («Deus resiste aos soberbos e da a sua graca aos humildes»). O Se- nhor, que com suma bondade e uma vigilaucia cheia de delicadeza, distribui copiosamente as suas gracas, néo se serve dos soberbos para rea- lizar os seus designios: teme que se condenem. Se se servisse deles, esses homens encontrariam 58 ASCETICA MEDITADA. nessa graca, de acordo com os seus habitos, um novo motivo de soberba, e, nessa vangloria, a causa de um novo castigo. Meu amigo, conforme ensinam os santos, a humildade consiste na verdade. Que grande motivo para a aceitarmos ce vivermos! Noverim me! («Que eu me conhega, Senhor!»), Este conhe- cimento intimo e sincero de nés mesmos con- duzir-nos-A pela mio & humildade. Deixame que to diga—tenho-o dito a mim mesmo muitas vezes, no meu intimo—nao és nada: a existén- cia, recebeste-a de Deus; nao tens nada que nao tenhas recebido d’Ele; os teus talentos, os teus dons, de natureza e de graca, sio exactamente isso: dons; nao o esquecas! A graca é gracga e fruto dos méritos do Salvador, A este nada que tu és, ainda acrescentaste o pecado: abusas- te tantas vezes. da graga de Deus, por ma- licia ou, pelo menos, por fraqueza! E'a essas duas realidades ainda somaste uma terceira, mais triste que as primeiras: sendo nada e pe- cado ... viveste de vaidade e de orgutho. Nada ... pecado ... orgulho. Que fundamento seguro para a nossa humildade, que serd certamente humil- dade verdadeira, humildade do coragiio! O soberbo e o incrédulo tém muito mais de comum do que pensamos. O incrédulo é um cego que atravessa o mundo e vé as coisas cria- das sem descobrir Deus. O soberbo descobre SALVATORE CANALS 59° e vé Deus na natureza, mas nao consegue des- cobriLo e vé-Lo em si mesmo. Se descobrires: Deus em ti mesmo, serds humilde e atribuiras: a Ele tudo o que de bom exisie em ti: quid habes quod non accepisti? («que possuis que nao te- nhas recebido?»). Nao fechards insensatamente os- olbos a nenhuma das virtudes ou qualidades. que existem na tua alma, porque sabes que vém de Deus e que um dia Ele te pedira contas delas.. Trabalhards para que déem fruto: nado enter- rards nenhum dos teus talentos. E, conservando: o wiérito das boas obras, saberds dar toda a gléria a Deus: Deo omnis gloria! («Para Deus. toda a gloria»). A vai complacéncia nfo encon- trara lugar na tua alma bumilde. Através do sulco aberto pela humildade, a paz entrara na tua alma. E wma promessa di- vina: Discite a me quia imitis sum et humilis corde et invenietis requiem animabus vestris {«Aprendei de mim, que sou manso e humilde de coragiio, e encontrareis paz para as vossas almas»). Um coragdo sincero e prudentemente hu- milde nfo se perturba por nada. Meu amigo, podes estar certo de que, quase sempre, a causa das nos- sas perturbag6es e das nossas inquietagdes reside na preocupacdo excessiva pela estima propria ou no desejo inquieto da estima dos outros. A alma humilde abandona a estima prdépria e 0 desejo de estima dos outros nas mfos de Deus. 60 ASCETICA MEDITADA E sabe que ai estio seguras. Tira forcas da hhumildade para dizer ao Senhor: se tu nao as queres, eu também no sei que fazer com elas. Neste generoso abandono, encontra a paz pro- metida aos humildes. Que a humildade de Maria te sirva de consolo e modelo. MANSIDAG Tu, que conheces a vida do Senhor, sabes perfeitamente que Jesus Cristo quis unir nu- ma mesma pagina do Evangelho a mansi- dio e a humildade. Ele to recorda agora com a sua voz amiga e com palavras claras: Discite a me quia mitis sum et humilis corde et invenietis requiem animabus vestris («Apren- dei de mim, que sou manso e humilde de coragao e encontrareis paz para as vossas almas»). Como vés, a mansidio e a humildade sdo duas virtudes que devem permanecer unidas no nosso coragaio, duas irmfs que vivem a mesma vida, dois metais preciosos que se fundem completando-se, um com a sua solidez, outro com o seu raro esplendor. Dois aspectos muito positivos e muito viris da nossa vida interior; com a humildade ganhamos o coragao de Deus; com a mansidao, atraimos os nossos irmaos e conquistamos os seus coracées. Agora que meditamos na presenca de Deus, 62 ASCETICA MEDITADA -quero dizer-te que esta virtude é para todos, também para ti. Todos precisam muito dela, ja que a vida é uma continua relagdo com os -outros, uma convivéncia, uma série de relacdes, 2 ocasiao de encontros de todo o género. A tua familia, os teus irmaos, os amigos; as tuas rcla- -G6es profissionais e sociais; os teus superiores, os teus iguais, os que est&o sujeitos a ti: é aqui que o Senhor te espera. Em todas estas relacdes -e encontros deve resplandcer a tua mansidio ‘eristé. Se souberes ungir o teu cardcter com a forga.e vigor desta virtude, o teu cora- -c4o_ assemelhar-se-4 ao coracio de Cristo: mitis sum et humilis corde («sou manso e humilde de -coracdo»), © sacerdote deve ser humilde para ter pa- -ciéncia e caridade cristis no trate com as almas -¢ assim ser eficaz; a mae cristé garantira a educagao, forte e duradoira, dos seus filhos se -souber exercitar-se na mansidao; na intimidade ‘da familia reinard a paz se as relagées mutuas :se desenvolverem num clima de mansiddo; -© se as relagées profissionais e sociais decor- ‘ressem sob o signo desta virtude, seriam bem -diversas, e muitos, que procuram initilmente a “paz por outros caminhos, nfo tardariam a en- -contra-la, Todos somos facilmente inclinados a pensar «que se chega mais longe na pratica do bem com SALVATORE CANALS 63 gritos e ordens peremptorias, que a educacao se garante com ameacgas e modos bruscos, que o respeito se obtém elevando a voz e usando mo- dos autoritarios. Mas entéo que lugar ocupara nas nossas vidas a mansidao crista? Porque motivo Jesus a recomendou no Evangelho? Quantas vezes a prépria vida se encarregou de te dar uma resposia a estas interrogacées, ensi- nando-te que a eficacia se esconde quase sempre por detrds da mansidio de Cristo, que o bem ¢ 0 fruto daqueles que procuram e sabem encontrar palavras claras e amdaveis, utilizdlas numa con- versa serena ¢ persuasiva, e ungi-las com o balsa- mo das boas maneiras. Quantas vezes a experién- cia te fez compreender que as correcc6es e as censuras, feitas sem mansidao cristé, fecham o coragio da pessoa que as deve receber, porque niio podemos esquecer nunca que, quando deixa- mos de ser pai, irmiéio, amigo para o nosso proxi- mo, tudo o que sai dos nossos labios traz fatal- mente consigo. mesmo o germe da esterilidade. Procura sempre—por. meio da mansidio erista, que é@ amabilidade e afabilidade — ter nas mos os coracées das pessoas que a Provi- déncia divina p6és no.caminho da tua vida e Trecomendou aos teus cuidados. Se perdes o coracgio dos homens, dificilmente poderds ilu- minar-lhes as inteligéncias e conseguir que as suas ‘voritades sigam o caminho que lhes indi-

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