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José de Sa Barreto Sampaio — Sertanejo de escol — Pe. AZARIAS SOBREIRA PROLOGO Vem comigo, prezado leitor. Através destes pobres ra- biscos tomards conhecimento de um cearense de nosso tempo que, em pleno sertéo, lutou setenta anos por um lugar 20 sol; € tendo triunfade de mil obstéculos morceu de pé e sem nédoa, amando e resistindo, elevando-se ¢ benfazendo. Os que, como eu, se derem & tarefa de sondardhe as razdes do proceder sempre rectilineo, fazendo dele permanente mira de seus parentes e conterraneos, concluirée comigo que bem me- recida é esta tentativa de lhe perpetuar a meméria, apontando-o A estima das novas geragées. Queiram, sua vitiva e seus filhos, perdoar-me o constran- gimento, que hao de sentir, ao verem impresso este ensaio bio- grafico, para cuja confecgio talvez me negassem todo apoio, ta- manho é 0 horror que thes inspira a publicidade. Mais alto, porém, deve fatar o bem da sociedade a quem nunca foi intitil a narragio de grandes e edificantes exemplos. Dai a minha irredutibilidade no propésito de escrever e editar © vertente trabalho. Zaca Sampaio, cearense da gema, afirmativo e bom, sin- cero ¢ Jégico, salvé | 76 _ REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA Comecei a amd-lo dezesseis anos antes de o ter conhecido pessoalmente. Meu velho pai, em suas constantes excursdes pelo campo das reminiscéncias, gostava de referir impressdes de sua demo- rada permanéncia em Barbalba; e jamais, ao entrar nesse as- sunto predilecto, silenciava sua admiragio pela familia Sampaio, ali secularmente domiciliada. Entre outros vultes, aludia a José de Sa Barreto Sampaio,geralmente conhecido pelo nome de Zuca Sampaio. Era este ainda bastante pobre, mais rico de hbouradez, tenacidade e amor ao torrdo natal; e eram prendas morais gue j4 o distinguiam em meio a seus progressistas ¢ honrados conterraneos. ‘Ao Zuca, ainda no hergo, como a seus seis irmdoszinhos, vira-o meu pai sitbitamente privados da paterna assisténcia, nas gartas de negra © desnorteante orfandade. E dai o erescente in- teresse com que ficon seguindo os passos da indecisa ninhada de criancas. Mesmo porque a mae desses drfiios, agora a res- ponder sozinha pelo sustento e orientagio da casa, era uma dessas raras mulheres de inquebrantavel £6, nas quais nada é de admirar em matéria de herofsmo eristie. Lar modelo foi, inquestio- navelmente, aquele, marcado pela ordem e pelo trabalho, pela simplicidade evangélica e arorosa confianca na Providéncia. Ja entéo, gragas a influéncia e amizade do Padre Tbiapina, com quem ficou se carteando e a quem muito ajudou na edifi- cagio da Casa de Caridade municipal, o autor de meus dias se votava ao servico dos deserdados da fortuna e A frequente pratica dos sacramentos. E, por bem explicavel afinidade de aspiragées, erathe grato contemplar de perto aquela familia, que j4 se fazia notabilizar por excepcional aferro ao bem. Havia eu completado meus vinte anos quando, por via epis- tolar, tentei o primeiro contacto com Zuca Sampaio. Alingido esmagadoramente, como toda a sua parentela do Ceara, pela revolugdo politica de 1924, encontrava-se cle foragido no sertio de Pemambuco, a 18 Iéguas de sua querida Barbalha. De 14, enguanto se refazia dos prejuizos sofridos, espreitava a hora oportuna de regressar aos pagos e recomegar a vida comercial bruscamente interrompida, Serviu-me de pretexto um emprés- timo que lhe mandei propor, de duzentos mil reis, no auge da REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA 77 seca do quinze. Respondeu-me em carta porejante de simpatia e que foi o ponto de partida de uma amizade que o tempo néo teve o poder de entibiar. Vale a pena salientar, entre parén- tese, que foi essa a tinica vez em que o ocupei, s6 resgatando © débito dois anos mais tarde, quando bem cémodamente o pude fazer. Oo HOMEM Feita a precedente apreseniagio, passemos a uma anélise menos superficial do ancido sertanejo que, com tamanha forca, se projectou em minha retentiva, impondo-se ao meu respeito € afeigio. José de Sa Barreto Sampaio veio ao mundo em Barhalha, no dia 7 de Agosto de 1861. Foram seus pais Schastido Ma- nuel de Sampaio e Francisca de Sd Barreto Sampaio. Daquela unio conjugal criaram-se sete filhos que, sem excepedo, atin- giram a velhice e admiravelmente souberam honrar o nome de seus avés e a educagao recebida. Mal balbuciava Zuca os primeiros vocdbulos, com oito meses de nascido, verificou-se a morte do chefe da casa com trinta anos apenas e cuja tnica he- ranga foi uma nesgazinha de terra fresca, nas imediagées da cidade. E ainda nio passara da adolescéncia, quando desabou sobre a antiga Provincia a calamitosa seca trienal de 1877, que por pouco ndo despovoou o Nordeste. —— $6 Deus sabe das aperturas que atravessémos naquele tempo, disse-me dona Vivi, a primogénita da irmandade e que acaba de falecer nonagendria, mas ainda no gozo de suas fa- culdades. Para escaparmos, tivemos que nos refrigerar no brejo e cavar a terra... na humilde propriedade que nos coubera por quinhio. Zuca ja estava rapazinho e se entregou ao trabalho da roca com tal ardor que parecia criado na enxada. Orgava o nosso heréi pelos 66 anos e eu pelos 22, quando consegui abragi-lo pela primeira vez. Exa alvo e corado, de estatura e compleigéo medianas, tendo sémente a mareé-lo, de maneira inconfundivel, um certo descaimento das pilpebras, eco Jonginquo de incidioso mal dos olhos que o acometera na in- fancia. Nao era ele nada atraente & primeira vista. Suna ascen- wade 7 REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA déncia provinha exclusivamente dos dotes morais que, irradiando de todo 0 seu ser, pouco a pouco dominavam o ambiente, fa- zendo sobressair-lhe a personalidade. ‘A fronte, como o olhar, estava Jonge de demmeiar uma inteligéncia de escol, cousa que ele nao possuia. Sua supe- rioridade provinha antes de sua profunda crenga religiosa e de sua forga de vontade. Cata-lhe o bigode sobre o libio fino e sombreado de um qué de melanciolia que the emoldurava o rosto, claramente assinalado pela continua teflexio. Bem pro- porcionados eram o nariz é a boca, é 0 cabelo cortado A esco- vinha. Salvo em dias de gala, costumava apreserita-se de calga branca, paleté preto e chapeu de maga, tudo escrupnlosamente cuidado, mas sem afectagio. Coriversava com relativa vivaci- dade e em tom patriarcal revelando equilibrio e eapacidade de observagao. Embora aferrado as prdprias idéias, discutia com seguranga e élevagio. Na defesa de suas teses, dir-se-ia que se achava sempre 4 vontade, fossem guais fossem o preparo e 0 prestigio intectual do contendor, como se considerasse vio tudo o mais, excepto a prépria verdade, APRENDIZAGEM Bem cedo comegou Zuca a frequentar a escola ptilica, onde se destacon pela indole cordata, assiduidade e pertindcia. Em contraste com sua vontade de tudo aprender, militava a antiga doenga dos olhos, que sériamente o embaragon na luta pela vida. Talvez em consequéncia disso, até os 33 anos ficou sem contrair casamento e também sem ingressar no semindrio, nao obstante o ardente desejo que sentia de se consagrar a Deus, exclusivamente. Empolgavam-no os edificantes exemplos do Pa- dre Ibiapina, o grande missiondrio cearense do terceiro quartel do século dezenove, e do Padre Joao Francisco da Costa Na- gueira, entiio vigirio colado de Barbalha ¢ ainda hoje recordado com acentos de justa veneragdo. ‘Adolescente, desenvolveu as nogdes adquiridas, tomando Ji- gies com o Padre Anténio Tomas de Aquino, habil professor que, por entdo, ali abrira um externato. O modesto patriménio REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA 79 intelectual de que, na velhice, era depositdrio, ele o alcangou a prépria custa, queimando as pestanas & luz do candieiro, sempre que the sobrava tempo da 4rdua tarefa cotidiana. Incontes- ‘avelmente contribuiu pra o seu arejamento mental a facilidade que teve, por motivos comerciais, de viajar, diversas vezes, até Recife e Fortaleza. Devorado pela sede de se esclarecer, ne- nhuma ocasi&e esperdicou, naquelas pragas, de ouvir conferen- cistas de feigdo literdria, religiosa ou cientifica. E, de re- gresso, era seu fado comprar livros recomendaveis que lhe ro- bustecessem a £6, a fibra patridtica e os conhecimentos amon- toados com invejavel paciéncia. PROFISSAO Nunea serd desinteressante, num pais de imprevidentes, como © nosso, dar a conhecer 0 modo pelo qual um homem vontadoso e incorrutivel chegou a fazer independ@ncia econémica, assegu- rando a educagio dos filhos. Tirante uma infalivel percentagem de gatunos, que enricam roubando descaradamente, a maioria dos chamados mimosos da fortuna, salvo a bipétese, ainda bem rara, de um casamento com viliva endinheirada, atingem uma situagio de equilibrio a & custa de muito trabalho, tino e economia. A experiéncia mostra que todo homem trabalhador, ajui- zado e econémieo, sem grandes canseiras, pode adquirir folgada mediania financeira, senéo verdadeira fortuna. A maior parte fica a mercé da miséria, sem possuir um taco de terra e uma casinha regular, ou por indoléneia ou por nao se preocupar com os imprevistos do amanha. Nao se advertem de que o Divino Mestre, num dia de milagrosa multiplicagio de pies, depois de haver saciado cinco mil pessoas famintas, nao per- mitiu que fossem lancadas no mato as sobras daquela pasmosa refeicéo. O que fez foi mandar guardé-las para outra neces- casinha regular, ou por indolncia ou por nao se preocupar sidade, dando-nos imperecivel ligio de economia. Colligite fragmenta, ne perant, foi a divina recomendagio. Quem, portanto, passando pela vida, nada ajunta, deve queixar-se, nao da sorte ou da terra onde mora, e sim de sua prépria imprevidéncia. A prova é que os estrangeiros que nos REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA ptecuram, mesmo quando aqui chegam sem eira nem beira, em répidos anos se acham hem instalados, quando nao ficam milio- nérios. E mio precisa langar mo de meios ilicitos: Basta-Thes aproveitarem as horas e gastarem sempre menos do que vio ga- nhando, Enxergando no comércio um bom meio de vida, Zuca Sam- paio, logo que se Ihe oferecen oportunidade, empregou-se como caixeiro de Anténio Sampaio, seu irmio mais velho, Este, re- cém-desposado com uma irmé do oculista dr. Barreto Sampaio, seu primo carnal, com o dote da mulher conseguira abrir wma hoa casa de tecidos ¢ de boa mente acolhera, como sdcios e in- teressados nos lucros, Zuca e Dao Sampaio, seus irmaéos. Data de entéo o aparecimento, no Ceara, da acreditada fisa Sampaio e Srmios que, j4 positivamente miliondria, saiu da circulagéo em Janeiro de 1914, sob as patas da revolugdo de Juazeiro do Norte. O NOIVADO Deve-se ao respeitdvel Padre Jodo Francisco da Costa No- gueira, principal modelador da familia catélica barbalhense, a feliz resolugao tomada por Zuca Sampaio de contrair matriménio, desistindo, uma vez por todas, da inoperante ideia de se fazer padre, Sua missiio era de chefe de familia e nao de director de conseiéneias. Casando-se com uma moga piedosa e equili- brada, em condigées de The entender a sede de espalhar o bem, poderia vir a ter filhos de acentuada espiritualidade, que nao sdmente fizessem aprecidvel apostolado leigo, como ele j4 vinha fazendo, mas ainda militassem com zelo nas préprias fileiras sacerdotais, N&o custou 0 jovem idealista a encontrar aquela que devia ser a eleita de seu coragio ¢ chegou a ser, com toda verdade, aquilo que, de sua prépria esposa, pode Rui Barbosa afirmar: alma de sua alma, vida de sna vida, flor sempre viva da bon- dade de Deus em seu lar, Foi cla o seu primeiro amor. Nao houve, porém, namoro nem cousa que o valha, a titulo de estudo do cardcter, um do outro, Bastou o alto conceito em que a REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA 81 menina era tida no circulo social da terra, sobretudo na esti- mativa do pdroco, seu director espiritual. Maria Costa Sampaio, geralmente conhecida pelo meigo apelido de Iaiazinha, contava entio 27 anos e era, sem favor, o modelo da juventude feminina de Barbalba. Rica de mo- déstia, temor de Deus e amor ao trahalho, porém pobre, bem pobre mesmo, de bens da fortuna. A’ carta de proposta enviada pelo imprevisto pretendente, [aidzinha respondew que era seu pai o tinico apto a dar, sobre o caso, a palavra definitiva... Ela tinha medo de dar um passo em falso, em matéria de tanta relevancia. Dificil avaliar a ansiosa expectativa em que ficou © propo- nente até que o futuro sogro, também consultado sobre o assunto, trinta dias depois foi procurd-lo no “Gabinete de Leitura”, onde este ja se entretinha dando aula gratuita a meninos pobres, e lhe disse, sem predmbulos: —~ ““Trago-lhe, finalmente, a embaixada. Taiazinha esté mesmo disposta a se casar com vocé.” A HONRADEZ DA FIRMA Na histéria do Cearé comercial, a firma Sampaio e Irmaos, com sede em Barbalha, merece registro em lugar de relevo. Modestamente inaugurada em 1892 e violentameute arran- cada do cendrio em 1914, a firma em foco, em vista da hoa orientagio de sua triplice directoria, dentro de vinte anos con- quistou tal crédito, no aprego dos sertées vizinhos, que ainda hoje é dificil explicd-lo. Naquela fase de inseguranga e comuni- cages feitas s6 em lombo de animal, notével percentagem de familias e pequenos negociantes iam, anualmente, abastecer-se na Casa Sampaio e Irmaos. E no somente no Municipio de Barbalha e na zona do Cariri, onde encravado, mais também nas regides limitrofes, de Pernambuco, Piaui e Paratha. Tornara-se proverbial e correra mundo a invacilavel seriedade que presidia aos minimos pormenores na organizagdo daquele préspero estabelecimento. Fosse quem fosse, o fregués era siste- maticamente despachado com inteira isengdo de drimo e a preco uniforme. Alé um surdo-mudo que ali chegasse com um bi- Ihete para a compra de uma mercadoria, tinha-se a certeza de 82 REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA que lhe seria vendido o artigo ao prego adoptado para todos. Os fregueses da casa ndo perdiam tempo em exigir abatimento, porque jd ninguém ignorava o elevado critério intransigentemente mantido pas varias cotagdes. Ai do caixeiro que maltratasse os pobres matutos, ou se atrevesse a pedir vinte réis mais do que fora prefixado a cada mercadoria ! Falando sobre isto ao actual vigdrio de Iguatu, Padre José Ferreira Lobo, eis o que ele me contou, confirmando a exactidio destes conceitos: ~- Lé por 1905 (2) era caixeiro da Casa Sampaio e Irmiios, quando ali se apresentou, para efectuar uma compra avultada, um destacado amigo da familia. Apesar de conhecer o sistema que adoptavamos, de escrupulosa uniformi- dade nos pregos depois de recebida a mercadoria, exigiu que The fossem abatidos quarenta réis em cada metro de uma fa- zenda que lhe fora passada, verbi gratia, & razdo de $440. Por mais que lhe repetissem que a firma nio podia se afastar do seu programa, abrindo excepgdes, o fregués persistia em dizer que ndo pagava aguele quebrado. Afinal, para evitar contenda, fez-selhe a vontade, embora a contra-gosto. Logo a seguir entra o chefe da casa e & lealmente inteirado da insdlita ocorréncia. Com a firmeza costumada admoestou o caixeiro faltoso, adian- tando que antes houvesse ofertado ao comprador o tecido em questo, e, depois de mandar botar abaixo todo o estoque do mencionado tecido, num total de dezenas de pegas, ali mesmo Ihe rebaixou o prego para $400 cada metro! Nao foi pequeno © prejuizo monetario dai decorrente, porém ficaram salvos os prineipios, para glria da firma barbathense. E foi gragas a essa incontrastada honradez, aliada ao tino e & coragem dos trés irmios, que, ao transferir-se para Recife, em 1914, Anténio de $4 Barreto Sampaio, o sécio fundador da empresa, néo obstante os danos causados pela revolugéo num total de oitocentos contos, pode em Pernambuco adquirir iméveis que se clevaram a mais de mil contos, sem se desfazer do que deixara em sua cidade natal. E, por sinal dos grandes lucros que Ihe deram a primazia entre os seus conterrdncos, também os dois outros sdécios estavam em satisfatéria situagdo, mandando educar a prole nos melhores colégios do Estado e até do Pats. Seria agora o caso de perguntar: por que sfo téo raros REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA 83 os comerciantes dessa témpera? No valeria a pena tomar tal exemplo e aspirar a tamanha confianea piiblica? AUSPICIOSAS REVELAGOES Estava Zuca com seis anos completos quando ouviu o vi- gario anunciando, na matriz, 0 ano jubilar de 1867 e promul- gado pelo Papa Pio IX. Entrando em pormenores em exer- Cicios a serem praticados, afim de se lucrar uma verdadeira indulgéncia plenaria, 0 zeloso pastor insistiu, particularmente, sobre a necessidade de uma confissio bem feita. — Vocé, meu filho, respondeu ela, por enquanto fard sdmente as oragdes que o padre recomendou. Quando eu for rezar, vocé ird também e fara tudo comigo. Confissio & ne- gécio muito sério: nio chega ainda para menino de sua idade. Sem se deixar abater, 0’ pequeno ajuntou: —- Mamde, eu sei tanto o que é confissdo como sei que aquilo é telha. E apon- tava para o tecto. E, como a boa senhora deixasse ao vigitio a solugo da divida, resolveu este pela atirmativa, depois de ter examinado o singular aspirante 4 primeira comunhio. Passado o tempo santo, pode o Padre Jofio Nogueira dar o seguinte testemunho:— O Zuca me surpreendeu: nao pensei que j4 tivesse tanta com- preensio e piedade. Quisera ter licenga para dizer aqui certos sinais admiraveis que notei na confisséo dele. Devia ter razdo o experiente cura. A prova esta nisto: dai por diante até os 79 anos, 0 precoce menino ficou fazendo, todas as bocas de noite, com igual empenho, uma visita de quinze minutos ao SS, Sacramento, na prépria matriz. Ficou comungando todos os meses, pelo menos por ocasido das pri- meiras sextas feiras, até que, com o perpassar do tempo, pode avizinhar-se do banquete eucaristico cada semana, senio diaria- mente. Aos dez anos de idade ja era téo assinalada a sua in- clinagdo religiosa que pode ser o heréi do seguinte episddio, que despretenciosamente me contou fidedigna testemunha ocular. Era costume de sua santa mae recitar, em voz alta, ao por do sol de cada dia, uma tocante férmula de visita a Nosso Senhor 84 REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA Sacramentado, na matriz. Alias, essa incompardvel prece, de igual maneira e no mesmo local, 6 regularmente feita, ainda hoje, como setenta anos para trds. Um belo dia, tendo ali chegado uns novos vizinhos, Zuca se pds a brincar com eles, na praga fronteira; ¢ de tal animagéo se deixou possuir que nao viu a mie saindo para a igreja ¢ indo fazer a costumada visita ao Deus escondido, visita & qual ja era ele assiduo, apesar de seus tenros janeiros, $é depois do anoitecer, cessado 0 folguedo, foi que 0 homem menino caiu em si, recordando-se da tradicional prece da tarde. Inconso- lavel, correu logo ao pé da mamée, repetindo que néo podia dormir sem haver eumprido aquela obrigagio. E de tais roga- tivas se valeu que o jeito que ela achow foi atranjar a chave da igreja e uma yela acesa para que o filho, embora sozinho, fosse ajoelhar na capela-mor e ler a tocante oragio. . Se pelo dedo se pode conhecer o gigante, também por esta unica ocorréncia bem se poderia avaliar a témpera do homem entrevisto naquela criange. A forca de vontade, o sentimento do dever, o espirito de {6, 0 amor & disciplina, tudo isto reve- Jado naquela ocasigo, E longe esteve, pela vida afora, de ser um catélico piegas, fiel a0s dogmas, mas hereje nos manda- mentos. Pelo contrdrio. Tudo nele era clevagio moral, fran- queza e coeréncia a toda prova. Se quisesse fazer suas as expressdes de Sao Paulo, teria podido assim falar a filhos e discipulos: —- “Sejam meus imitadores, como eu o tenho sido de Jesus Cristo”. Sim, porque o fitho cagula de Sebastido Ma- nuel de Sampaio era, antes de tudo mais, um homem de bem que resolutamente se tragara o proprio caminko e que ninguém seria capaz de corromper. O LAR Foi em 1916 que comecei a frequentat, periddicamente, a residéncia de Zuca Sampaio. Desejoso de sentir, mais de perto, as palpitagdes de ena alma, cheguei a ir passar com ele, feito seu héspede, toda uma semana, em 1925. E, no decurso de 23 anos, sempre que me sobrou tempo, transportei-me a Barbalha, onde ele e sua irmi REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA 85 Vivi, apesar de cega e otogendria, eram o meu principal entre- tenimento. Nao me cansava de ouvi-los e interrogé-los sobre mui- tas cousas de antanho e de que eram talvez os tinicos deposi- tdrios insuspeitos e fiéis, E que palestras, meu Deus! Deviam ser daquela marca as falas de Vicente de Paulo, Joana de Chantal, Zélia Pedreira de Castro e Frederico Ozanam, quando procurados por velhos amigos chegados de longe. Por mais que as horas se escoassem em dias consccutivos, o interesse da conversagio cra o mesmo, como a mesma era a atmosfera superior em que eles mantinkam. as palestras, variassem embora as circunstancias. Falava-se de tudo, é verdade; mas nem a politica, nem religifo, nem 0 co- méreio, nem a familia, nem a ingratic dos homens serviam jamais de pretexto para mesquinhos desabafos ou malévolos jui- 20s sobre alheias intengdes. A caridade evangélica, e nio a de fachada hoje tio em voga, a tudo presidia, podendo-se ali dizer © que dos primeiros cristios dizia Sdo Paulo: “Nossa conver sagio se apoia no céu”. Depois de ter passado dias e dias com o Padre Tabosa Braga ou Dom Quintino Rodrigues, ficava-me horas esquecidas com Zuca Sampaio, que nunca alisara bancos de colégio; ¢ nem uma vez me senti em nivel mental notavelmente inferior, mesmo quando os assuntos ventilados eram exactamente semelhantes. Assim € que eu imagino os confessores da {6 nas suas expansdes com os seus familiares, chamem-se embora Sebastido Leme ou Felicio dos Santos, Antonio Tabosa Braga ou José de S4 Barreto Sampaio! A igreja, sua hierarquia, sua historia, seus principais herois; o Brasil, suas deficiéncias administrativas, sua necessidade de uma geracao 4 ajtura de seus grandes destinos; as secas do Nor- deste, as obras de agudagem e outras medidas de emergéncia, feitas ou por fazer; o Cearé ¢ a zona do Cariri com seus homens e seus problemas mais palpitantes; as Conferéncias Vicentinas, 0 clero, o exército, a genealogia das familias barbalhenses, etc., tais foram, varias vezes, os esponténeos assuntos de nossas con- versagées. E quase sempre ele que os abordava, dando 0 tom ao encontro. Maz, se 1A estivesse o seu irmio Dao Sampaio, entdo nosso 86 REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA papel ficava sendo o de quase exclusives aparteadores. Porque este outro se constituia a prépria alma da roda, prolongando e acalorando desmesuradamente a conversagéo. Para termos uma ideia do grande tribuno e advogado que o Brasil perdeu, dei- xando & margem da instrugdo superior aquele belo e impar bar- balhense, seria preciso ficarmos com ele as sé3 e nos dispormos a argui-lo e escuté-lo pacientemente. Era, no fundo e na forma, a eloquéncia em marcha, com a forte convicgdo e 0 acento de um profeta dos tempos novos. Que o digam, entre outros, o Dr. Manuel Floréncio de Alencar ¢ o Cénego Manuel Macedo, que tiveram, como eu, magnificas ocasides de ouvi-lo e pasmar, mesmo apés amargos reveses da fortuna e achaques que lhe couberam nos tltimos tempos. Acentuadamente idealista, em vivo contraste com o Zuca, que foi sempre pratico e estranho a quaisquer arrebatamentos, yiveu Dao Sampaio os derradeiros anos persuadido de haver descoberto o moto continuo, lastimando apenas ndo dispor de recursos para torné-lo realidade... Bem verdadeiro é 0 con- ceito de que o génio fica tio sdmente a dois passos da loucura ! O EDUCADOR Forgado por imperiosas razdes, como jé vimos, desistica Zuca da velha aspiragio de se fazer padre, carreira que lhe aparecia como o mais belo caminho da vida. E’ que gostaria de continuar a obra de evangelizagéo do Padre Ybiapina, cujas prédicas tantas vezes ouvira extasiado e cujos tocantes exemplos ainda mais o arrebataram. Mas, contraindo mipcias, tomou a firme deliberagio de proporcionar aos filhos uma educagdo que os habilitasse a fa- zer, pela Patria e pela Religiio, o hem que ele, desde peque- nino, em véo havia idealizado. Dai veio a escolha de uma esposa nos moldes em que ja vimos deslisar 0 seu pitoresco noivado. Assim se explica sua existéncia de rendncia a umas tantas cousas licitas do convivio social, no empenho de dispensar, a formagdo moral ¢ intelectual da prole, toda a delicada assis- téneia compativel com suas pequenas forgas. Sua absorvente preocupagdo era, dum lado, o reforgamento, REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA 87 em niimero e qualidade, das fileiras do clero, entéo nem sempre bem representado , do outro lado, a formagéo de verdadeiros servidores da Patria, servidores que moralizassem a ptiblica administragio, arrancando o Brasil do abismo em que ia se afundando. Para atingir o alvo acariciado, logo que péde, com geral desapontamento, construiu uma nova residéncia, espécie de chacara, distante de outras habitagdes, em pleno recéncavo. La poderiam os seus meninos brincar 4 vontade, mas de- baixo de vigilancia e, portanto, sem riseo de serem contagiados pelo molecérie da rua. La haviam de crescer sadios de corpo e alma, até que chegasse o tempo oportuno de entrarem em calé- gios e academias. Se assim imaginara o futuro, melhor lhe foi dado coneretizar, como havemos de yer, 0 seu programa domés- tico. Merecide prémio de suas acrisoladas virtudes civicas e cristas, ndo s6 pode desempenhar a penosa tarefa, tal qual a tinha concebido, mas teve a consolagao de contemplar de perto, em toda a evidéncia, os abengoados frutos de seus esforgos, numa yelhice invejivel. * * Ao contemplar, agora, 0 austero regime de nosso hiogra- fado, a gente fica presa de uma senasgao de arrepio, como di- ante do inverossfmil. “Forte como a propria morte é 0 amor”, dizem as Letras Sagradas, Sim, porque sé um grande amor pode explicar us prodigios de actividade silenciosa que, durante decénios, sem outro estimulo sendo o da consciéncia, Zuca Sampaio realizou, As-vezes entre desnorteadoras contradigées. Mal nascia o sol, no inverno ow no verdo, 14 estava ele de pé e a caminho do es- tabelecimente comercial. Ali, dada a crescente fama da firma, passavam-se as horas bastante cheias até a tardinha, exceptuado © pequenino descango do almoco. Fechada a loja e feito o parco jantar, ele se dirigia para o “Gabinete de Leitura”, destacada construgio de que ele fore sécio fundador, e nao s6 o mais benemérito, mas também o principal obreiro, A caminho, entretanto, entrava na matriz e 88 REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA se recolhia por um bem quanto de hora, em coléquio com 0 Divino Prisioneiro do sacrario. No referido “Gabinete de Leitura”, com a sua decisiya cooperagéo, néo sdmente funcionava uma yegular biblioteca, adrede organizada para recreio e mutrigéo mental do piblico citadino, mas se ministrava, como ainda hoje, aula gratuita de primeiras letras a eriancas e adultos, sem distingdo de categoria social, Quem quisesse aprender era sé apresentar-se, contanto que submetesse ao modesto regulamento. Com os rudimentos da instrugao, ele inculcava os principios morais, o amor da Pa: tria e a doutrina cristé. Para poder ensind-las, aprendia pr meiro aquelas nogées, as caladas da noite, roubando ao pobre corpo 0 repouso necessdrio, contanto que nem wm dia chegassem seus alunos a ficar sem a ligdo devidamente explicada. E, desde que seus primeiros fithos foram precisando de professor, ele se constituiu o mestre suplementar dos mesmos. As vinte horas, encerrado 0 servigo no “Gabinete de Leitara”, Zuca Sampaio ia para casa, de rota batida, no empenho de tomar, em segunda mAo, as ligées que seus filhinhos haviam dado, no correr do dia, & respectiva professora. Fra aquilo uma escrupulosa recapitulagio de tudo, que se prolongava até ds nove da noite, quando toda a familia siste- tmaticamente tratava de se recolher. Muitas vezes saia em cena a tradicional palmatéria, emprestando animagio ao argumento e alertando os menos aplicados. Motivo de geral regozijo era, para os petizes, a chegeda de alguma visita de cereménia ou outro imprevisto assim, dando margem ao cancelamento da ligéo da noite. Enquanto nio, fi- cavam os olhos infantis atentos ao relégio da sala, rogando Deus que batessem as nove horas libertadoras, antes que o pa- pai se desocupasse. Soadas que fossem as aludidas badaladas, sentiam-se alforriados e prorrompiam em ruidosas expre: de desafogo ! SEU APOSTOLADO No “Gabinete de Leitura” foram sempre frequentes as acti- vidades promovidas pela directoria, a propésito de grandes datas REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA 89 nacionais, municipais ou do préprio grémio. Em tais ocasiées, por mais luzida que fosse a assisténcia, podia-se ter por certa uma s6bria alocugao do veterano lidador. Usando da palavra, pren- dia as atengdes, néo digo pelo inesperado dos lances oratérios que ele ignorava, mas pela correcgdo da linguagem e elevacio dos assuntos. Varias vezes, era manifesto 0 improviso, 0 que ndo o impedia de dizer alguma cousa aproveitavel e edificante. Nem uma vez deixou de achar pretexto para proferir uma palavra de fé. Como Sao Paulo em pleno Areopago, impelido pela sede de ver alargado o reino de Deus, expandia-se com 0 auditério, falando-lhe das tribulagées ¢ dos triunfos da Igreja, como da necessidade de uma vida mais intima com o Divino Mestre. E, pronunciados com acentos de inabaldvel devota- mento, de seus labios se escapavam os inefdveis nomes de Jesus e Maria, Vicente de Paulo, Ozanam, Dom Vital... Dir-se-ia que o préprio Padre Ibiapina, redivivo naquele ‘privilegiado discipulo, falava por ele, sustentandy o estandarte sagrado que téo promissoramente havia fincado naquele secanto do Ceara. “Ardoroso discipulo de Frederico Ozanam, as Conferéncias de Sao Vicente lhe constitaiam o supremo ideal. Presidente do Conselho Particular, era admirével o seu zelo, visitando, com frequéncia, cada uma delas, confortando os confrades, exor- tando-os ao cumprimento do dever. Ja doente, para néo deixar © convivio dos seus queridos companheiros de apostolade, deso- bedecia as prescrigdes dos médicos; e assim foi que a morte veio encontré-lo em franca actividade de Vicentino exemplar, “FE as Conferéncias de Séo Vicente, em Barbalha. sio um helo atestado de acgio catélica, dessa incomprendida e subtil acgio catélica de que José de Si Barreto Sampaio foi, em nossa terra, o grande mestre. Pertinho de morrer, chamou-me para junto de si e me disse quase ao ouvido: — Quero fazer um pe- dido a V. Rvdma. :é que meu filho Pio seja o primeiro cardi- dato 4 minha substituigdc, como presidente do Conselho Parti- cular Vicentino. Isto, sem contrariar, de forma alguma, o di- reito de escolha de meus companheiros. Mas me faca ainda um favor: s6 depois de minha morte diga isto a meu filho, “Hoje, como desde entéo, é 0 dr. Pio Sampaio, médico ¢ 90 REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA ilibado cidad&o, 0 desvelado continuador do saudoso morto, o que assegura a vida das Conferéncias, verdadeiro centro de espi- ritualidade e trabalho em minha paréquia. “A cabeceira dos moribundos era frequentemente encon- trado, exortando-os 4 resignagio e ao arrependimento. Alias. acredito que o respeito humano munca embaragou as manifes- tagdes de sua boa consciéncia. Era inigualivel o desassombro com que professava e defendia a £8, “Lembro-me que, um ano destes, tendo chegado a Barbalha uns pastores protestantes, logo instalaram o culto sectério numa praca ptiblica. Como eu me excussasse de aparted-los, ele me pediu licenga e, abrasado de zelo pela preservagéo da doutrina crist& no torrdo estremecido, foi-lhes ao encontro, rezando o terco com os fiéis e impugnando a heresia pregada pelos inova- dores, até que os desalojou definitivamente. Sem ter estudado acgio catélica, Zuca Sampaio era um homem de acgao catdlica. Batia & ports do pobre e do rico, no empenho de levar Jesus Cristo a todos”. Os periodos acima aspeados sfo trechos de preciosa corres: pondéncia que me enderegou o ilustrado Padre José Correia Lima, desde muitos anos vigdério de Barbalha e recém-falecido em meio a brilhante acco paroquial. CARACTER TEMPERADO $6 por excepgdo Zuca Sampaio se ocupava de sua propria pessoa, mas 86 o fazia com manifesto desencanto e fastio.. Servi inutiles sumus... Ougamos, porém, o que depds sobre o digno barbalhense ocitado Padre José Correia. Sao palavras cheias de verdade ¢ autoridade, pela circunsténcia de terem sido pronunciadas por qum péde observa-lo mais de perto, até como seu director espi- ritual, “Embora velhinho, José de Si Barreto Sampaio tinha a alma, o coragio ¢ a inteligéncia do mogo idealista dos tempos modernos, com todas as harmoniosas vibragées de perfeito imi- tador do Divino Mestre. Queria tudo fazer e a todos levar para Jesus Cristo. Severo e enérgico nas suas atitudes, era o que REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA 91 se chama um cardcter sem jaga, sem contemporizagéo com o mal. A verdade foi talvez a flor mais formosa que lhe enfeitou a vida, a ponto de até parecer ignorar o eufemismo das meias palavras, tao comum em politicos e negociantes. “Sem jamais se distanciar do sentimento ideal de respeito & pessoa dos ministros de sua Religido, sabia, na hora azada, admoestar, caridosamente, 0 préprio paroco, se no mesmo obser: vava alguma irregularidade de conduta, Mas se lhe chegava a vez de ser advertido, aceitava as observagées do vigério com tamanha humildade que dificilmente se encontrara, em nossos dias, quem o iguale. “Morrendo, deixou filhos que hao de ser, no céu, pedras cintilantes de sua coroa, enquanto aqui na terra vio the imorta- lizando a obra”. * * Eu bem poderia encerrar aqui o presente capitulo, tal a forga do sobredito testemunho. Mas preciso referir um caso passado entre nés dois sémente, em 1918, quando eu ainda trabalhava como escriturdrio do bispado cratense. Ali foi cle visitar-me no préprio pago episcopal, pois eu estava morando com o prelado diocesano. Ao dispedir-se, ofer- tei-lhe dois excelentes livros: — “Goffiné” e “Pela Mae de uma menina”. No queiram saber do tamanho de meu pasmo quando ele, depois de haver examinado os volumes, me restituiu um deles, dizendo s6 aceitar o “Goffiné” $ — Como, seu Zuca? atalhei eu. Pois eve o outro para seus filhos. Trata-se de um romance de inspiracdo catélica, recém-escrito por frei Pedro Sinzig ¢ muito edificante. — Por isto mesmo é que eu nao o coduzo, meu generoso amigo. Adoptei por sistema s6 oferecer & minha familia livros absolutamente verdadeiros. Romance é sempre romance, seja embora da pena de um monge... E nada o demoveu da irredutivel atitude. Tive que me resignar com a devolugio, é certo; mas daquele dia por diante comecei a enxergar aquele homem numa altura consideravel- 92 REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA mente maior, nio sem lhe invejar, do intimo dalma, a surpre- endente firmeza moral. Verdade é que os que assim procedem fazem poucos ami- gos, e esses meamos vio thes ficando cada vez mais raros. A verdade é como o non de que falava Vieira: de diante para trés ou de tris para diante, é sempre non, cheio de arestas e hostili- dades arrepiantes. Mas ai! do mundo, quando nele faltarem curidio, inicos para quem a cegueira humana apela, como para a derradeira esperanga. * * Da mesma forma como Zuca Sampaio perseverou no moné- tono trabalho de alfabetizagio de seus conterréneos pobres, as- sim se conduziu em relagéo 4s Conferéncias Vicentinas. Cou- be-lhe também a gloria de ter sido, no recuado ano de 1889, um dos fundadores da aludida Sociedade de Sao Vicente de Paulo, entéo instalada em Barbalha. Desde o nascedouro, por- tanto, acompanhou os passos dessa benemérita instituicdéo da caridade e, sem medo de contestagdo, pode-se afirmar nao ter existido, naquela terra, ninguém que o excedesse, em solicitude pela prosperidade do novel sodalicio. Alids, desde a fundagio até a morte, através de meio século, por conseguinte, foi ele o nico presidente do Conselho Parti. cular de sua terra e 0 mais ardoroso incentivador da obra vi- centina em Barbalha. Melhor do que ele, ninguém conhecia a letra dos estatutos; ninguém comparecia mais regularmente as reunides semanais, de que ficou sendo a palavyra de animagio e estimulo personificado no exemplo. Emulos dignos de sau- dosa recordagiio foram para ele alguns distintos catélicos, seus conterraneos, dos quais Anténio Filgueiras, Anténio Correia e Rufino Duarte de Queirés merecem particular mengéo. VIDA DE FAM[LIA Vou aqui tentar uma sintese das impressdes que as repe- REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA 93 tidas visitas ao lar de Zuca Sampaio foram me acumulando no espfrito, cada vez mais robustecidas, Penetrando naquela casa, logo se percebia um ambiente excecional de paz, dessa rara paz que o mundo ca de fora desco- nhece e que & o fruto da mitua compreensio, de mios dadas com um sentimento profundo de fé. Nada de artificial no falar ou no agir. Uma confianga esquesita, que ndo eliminava 0 res- peito, unia entre si o pai, a esposa e os fithos do casal. Genuina vida patriarcal, é verdade, mas sem a classica absorpgio da per- sonalidade dos inferiores pelo dono da casa. Todos, a seu tempo, tomayam parte nas palestras ¢ emitiam opiniao, como nas assembleias democratas que ainda nao perderam o espirito de hierarquia, Nem uma yez observei ali uma cena de desinteligén- cia, uma mostra de susceptibilidade, uma frieza no tratamento do héspede ou dos de casa entre si. Se 1d havia paixées fermen- tando, deviam ser as da tolerancia, as do empenho de tudo fazer por motivos superiores, as da estima pelo préximo, mesmo quan- do a prudéncia forgava a pér-se-lhe A distancia. Essa benevoléncia generalizada, essa preocupacio de ben- fazer andava longe, entretanto, de converter aquele chefe de fa- milia em um ingénuo a quem se podesse enganar com lagrimas de crocodile. Habil psieélogo, ele tinha o dom de enxergar longe e se desviava dos espertalhdes vulgares, como da falsa virtude, embora esta se encontrasse no pindculo da popularidade. Odiava a desconfianga, mas custava muito a confiar intei- ramente. E esta, a meu ver, a melhor explicagdo do seu cons- tante equilibrio econdmico, pois, sem ser rico, viveu e morreu independente, apesar das secas e apesar da custose educacio dos filhos. Antes de mais nada ele considerava a prépria obrigagso de prover ao futuro da familia, atendendo a que nenhum filho ficasse improdutivo, & falta de hoa alimentacdo e de cultivo intelectual. Ignoro se chegou a ter inimigos, no sentido restrito do vo- edbulo. Conversando horas e horas com ele tive ocasiao de ouvir-lhe preciosas confidéncias. Nunca, porém, expresses de azedume contra vivalma, embora condenasse, sem contempori- zagio, 0 vicio e a desfargatez, Se mastigava o pao da inimizade, estou convencido de que nada o empataria de repetir as ex- 94 REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA pressdes do presidente Vargas: “Inimigos propriamente ditos no sei sé os tenho; mas, se os tiver, ndo serdo tio inimigos que seja impossivel tornarem-se, de novo, meus amigos”. O que se dissesse dele parceia ser-lhe indiferente, como se Ihe bastasse 0 momo refugio do lar e o testemunho de sua voz interior. Sua franqueza ia ao extremo. Interessando-se pela sorte de todos, condoendo-se de todos os infortinios, jamais o inti- midava a ira dos maus ou o melindre dos poderosos, se se tornava necessdria uma palavra franca, em defesa da inocéncia, da fé ou da moral. Por mais ocupado que estivesse, sempre achava tempo de fazer uma carta que lhe fossem pedir os compadres e afilhados matutos. Passando com decéncia, dando a todos os filhos esme- rada educagio, nunca comprometido em negociatas indecotosas, jamais foi pesado aos outros ¢ passou pela vida num ambiente de relativo mistério, pois ninguém sabia a quanto realmente montavam os seus modestos haveres. Uma de suas grandes paixées consistia no trabalho, Néo podia ficar inactive. O trabatho Ihe dava gosto pela vida, da- va-lhe novos alentos, feito gindstica mental. Trabalhando, es- quecia-se dos dissabores da existéncia, tinha a ilusio de nao estar de todo envelhecido e assim conseguia por em vibragio toda a sua personalidade. Por trés de tudo isto, confirmando-o nos bons propésitos ou moderando-lhe a impetuosidade do temperamento, sugerin- do-lhe uma boa iniciativa ou neutralizando certas informagées mal inspiradas, estava a incompardvel esposa que Deus lhe con- cedera. Ela era a confidente, a conselheira, a doce visio de seu longo peregrinar. Amando o anonimato, feliz na posse do seu Deus e de sua casa, casa que ela moldara & propria imagem e semelhanga, a ambigdo de Dona laiazinha era que o marido cumprisse 14 fora, de cabega esguida, mas apostdlicamente, os préprios deveres, REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA 95 sob o mesmo prisma e com a mesma dedicagio com que ela cut- dava do lar, sua via-crucis e seu monte de transfiguragio. Sem aquela mulher forte e evangélica, sem 0 seu espirito de remincia e sem sua providencial colaboragao, nao teria exis- tido, tal qual, o acatado varéo de que venho me ocupando. UM PAROCO MODELO Ficaria inacabada esta modestissima monografia se dei- xasse de ser aqui focalizada, embora perfuntoriamente, a figura de um dos mais antigos vigdrios de Barbalha, que 14 passou trinia anos de actividade e do qual algumas familias exemplares daquela terra ainda sio consolador reflexo. Exactamente na época da meninice de Zuea Sampaio, estava em plena accio pastoral o j4 entéo vigdrio colado dali, Padre Jodo Nogueira. A principio fora um sacerdote comum, mas hquele tempo ja se achava santamente abrasado de zelo, gragas A influéncia da amizade que a ele consagrou o missiondrio Padre Ibiapina. ‘A experiéncia se encarregou de demonstrar que a simples presenca de um padre zeloso e prudente opera verdadeiro milagre de soerguimento mora] e, 4s vezes, material, no meio em que vive. Dentro em pouco, estd ele constituindo a mira obrigatéria de bons ¢ de maus que, no podendo olhd-lo com indiferenga, por ele acabam modelando a propria conduta. Forma do préprio rebanho, cis como o define a Sagrada Escritura. E é por ai, exac- tamente, que se pode caleular a calamidade que representa para as massas populares um eclesidstico sem caridade nem com- postura. O Padre Jodo Nogueira, qual novo Eliseu, assimilou, em pouco tempo, o espirito de sacrificio, o alto sentimento de pie- dade, sobretudo o tino na direcgdo das consciéneias, que eram subidos dotes do pranteado apéstolo sobralense. Com ele, por ocasio das prolongadas misses, aprendera a levar vida escoi- mada de preocupagées terrenas. Aprendera a se entregar, com todas as suas faculdades, ao escrupuloso amanho da vinha do Senhor. Aprendera a ficar, cada dia, longo tempo entretido com o Rei do Amor, na solidao do sacrario, bebendo preciosos ensi- 96 REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA namentos e proporcionando aos fiéis inaprecidvel edificagdo. Data de entao a visita regular que, nestes selenta anos, vem sendo feita, & boca da noite, por uma falange de adoradores fiéis, ao SS. Sacramento, na matriz de Barbatha. Sem esse humilde e pouco letrado pdroco do alto sertio do Cearé dificil seria entender o aparecimento de semelhantes flores de seriedade e vida interior que o presente opiisculo nos deixa entrever. A benéfica actuagdo do missiondrio sobre o Padre Jodo Nogueira, foi téo notdvel que este tiltimo, ao ver partir dali, para outras Provincias do Nordeste, 0 providencial guia de sua consciéneia deliberou acompanhd-lo, como auxiliar das santas missées, renunciando, desta forma, as suas fungdes paroguiais, como ao convivio da familia. Sabedor de tio estranha atitude, todo o populoso Muni- cipio se alvorogou ¢ enternecen, como se estivesse para se dar ali uma desgraga colectiva. Organizou-se entio uma descomunal representagio, feita de elementos de todas as classes, para tentar demover o querido pastor de semelhante propésito. A tentativa era escabrosa, pois todos sabiam quanto aquele sacerdote custava a retroceder, depois de ter amadurecido uma resolugdo a tomar. Teve meu pai a honra de ser o intérprete do povo, indo & frente de algumas dezenas de homens escolhidos para tio ardua missio diplomitica, felizmente coroada de pleno éxito, na mesma ocasifio. 0 OCASO Depois de havermos contemplado nosso herdi menino, co- merciante, noivo, chefe de familia, educador @ vicentino exem- plar, contemplémo-lo agora preparando-se para a morte. Antes de cair de cama, alquebrado pelos anos e pela en- fermidade, ia um dia presidir, na igreja distante, uma reuniéo do ConseTho Particular vicentino, quando um dos fithos pro- curou det@lo, fazendo-lhe ver a impossibilidade de semelhante esforgo. Longe de se deixar impressionar com as prudentes pon- deragdes, respondeu simplesmente: —- “Dar-me-ei por feliz. se morrer assistindo uma reunido vicentina”, A propésito do seu apego a Sociedade de So Vicente de REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA o7 Paulo, eis 0 que dele dizia, com inteira justiga, um de seus mais distintos companheiros de apostolado: —- “Seu Zuca ama as Conferéncias mais do que a propria vida”. Contando perto de quarenta anos de gratuito magistério aos pobres no “Gabinete de Leitura”, e quase cinquenta de Presi- dente geral da benemérita Sociedade de Sio Vicente de Paulo; vendo satisfatériamente colocada sua numerosa prole e sentin- do-se cercado do geral aprego de seus concidadaos, de quem vinha sendo modelo e estimulo de primeira ordem, bem podia ele exclamar com o velho Simeio: — “Senhor, podeis agora deixar ir em paz 0 vosso servo, pois meus olhos jd viram reali- zado o que mais ambicionet .. .” A penosa moléstia, imobilizando-o no leito, foi, até o der- radeiro suspiro, a esplendorosa confirmagio da vida activa. Talis vita, finis ita. Aceitou a morte como os justos costumam aceité-la. Nem um gesto de impaciéncia, nem a mais pequenina recriminacdo. Sua absoluta conformidade se refletia até na se- renidade do semblante. Todos os dias 0 infatigdvel vigario The ia dar a Sagrada Eucaristia, mesmo depois de lhe ter, bem cedo ainda, administrado os derradeiros sacramentos, recebidos entre sinais de profunda religiosidade. — “Se é para sofrer, meu Salvador, estou pronto”, gos- tava ele de monologur, nas agudas crises de dispneia. & que a morte foi para ele como é um alvard de soltura para o exilado, saudoso de sua patria. Nem um filho ou nora faltou 4 sua cabeceira, nos dias finais. EF esses filhos — dois médicos, um engenheiro militar e trés honrados comerciantes — é que 0 conduziram & derradeira morada, banhados no mais sentido pranto. Apesar de terem comparecido ao enterro mais de mil pessoas amigas, muitas das quais chegadas de longe, como o préprio bispo diocesan, es extremosos filhos a ninguém mais cederam o disputado encargo de conduzir ao cemiterio 0 pai idolatrado, segurando, eles mes- mos, as algas do esquite. — Vale a pena viver, comenta-se ao regressar do campo santo; vale a pena viver para possuir semelhantes filhos, Mas vale ainda mais morrer para ser assim chorado por todos eles! Zuca Sampaio, eis uma bela altitude humana, bem digna de nossa contemplagao!

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