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HISTORIA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL Império: a corte e a modernidade nacional privada no Brasil toe: por Tevi ria Carvalo, ra do iapletan LUNION DES ‘CHARGEURS, ~ LINHA REGULAR’ DE PAQUETES — ; FRANCEZES " ENTRE O HAVRE E ONIODE JANEitO, :o francez, _ te remboras. jaichan. © vende 30 ‘Be Foo MEG KM os be > kununon POTTER S&S roummms pe pacts BRITO, ae ome VIDA DESANTA THERESA, Uda os Sees mace S GS pees tol tans os Tree Speers & Connizras. o SNE RE RAIMI DIS FLORES SS RUA DO OUVIDOR. 73 P Na bence e. 19 vendsse sons omanerate ede, levveal, 0 57000 « srroba. 40 COLLETE DE Gur, UA DA AJUDA N, 4 iA Dy WMASCA ADO. cm ea ect Mme. Camille tem a honra tiga casa mui- Ourives n. 17 pa- die fetnes heen cee conhecida do és SOM aca ransas Ga: aug acaba de zeceber aa ow Clerot. Mu- os vidor n. 136, on- costura e de =e sit = ise da ruados *% de continua aalu- Fa senhor Hor fsbriea de Partet@ Yori) sssber:: 4 Marie Stuatt, dito- de puxar i barbatana 6/4 pre Joniones Ravine neln font = HISTORIA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL 2. Conselho editorial Lilia Moritz Schwarcz — presidente do conselho Fernando A. Novais— coordenador da colecao Laura de Mello e Souza — organizadora de volume Luiz Felipe de Alencastro — organizador de volume Nicolau Sevceako — organizador de volume Fernanda Carvalho — consultora de iconografia ioe Apoio cultural: eae jrd HISTORIA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL 2 Império: a corte e a modernidade nacional Coordenador-geral da colegio: FERNANDO A. NOVAIS. Organizador do volume: LUIZ FELIPE DE ALENCASTRO COMPANHIA Das CETRAS Copyright © 1997 by Os Autores Projeto grifico e capa: Hilo de Almeida sobre foto de Joao Ferreira Villela, “Ama escrava e menino Augusto Gomes Leal’, Acervo da Fundagio Joaquim Nabuco, Recife, c. 1860 Guardas: Anioncios do Jornal do Commeércio Editoragdo eletrénica: Acqua Estiiio Grifico Secretaria editorial Fernanda Carvalho Assistente de coordenagio ¢ pesquisa iconogrifica: Pedro Puntoni Indice remissivo: ‘Maria Claudia Carvalho Mattos Preparasio: Marcia Copola Revisio: Beatriz Moreira Ana Maria Barbosa Dados lternacionis de Catalogo ma Pblcasao (cn) (Cémara Braseea do Lr, Brasil) ‘bia de wi pads mo Beas Inpéie / coon seal ‘oly Femando A. Nomis; erginizador do voiome Uae Felipe de ‘Alencasta — So Paulo: Compania das Las 1987, vated ‘i pias no Bra 2) biogrtia 3 978-85-7164451-3 (oes comple 1 ra ~Civiasd 2 Beal - Hira -Impevi, 182-1889 3, Bra = Uss ¢ costumes. Novis, Femando A. 1983.4 Aenea, Le Flip dem. Ste 7.208 ov-981 Indie para catlogostnematicn: 2. Bra: Vida pena Cviiago : Hsia $1 am Todos os direitos desta edi¢do reservados & ee Rua Bandeira Paulista, 702, cj. 32 04532-002 — Sao Paulo — sp ‘Telefone: (11) 3707-3500 11) 3707-3501 ‘www-companhiadasletras.com.br aA PF Y NL n SUMARIO Introducao. Modelos da historia e da historiografia imperial — Luiz Felipe de Alencastro, 7 Vida privada e ordem privada no Império — Luiz Felipe de Alencastro, 17 O cotidiano da morte no Brasil oitocentista — Joao José Reis, 95 A opuléncia na provincia da Bahia — Katia M. de Queirés Mattoso, 143 Imagem e auto-imagem do Segundo Reinado — Ana Maria Mauad, 181 Senhores ¢ subalternos no Oeste paulista — Robert W. Slenes, 233 Caras e modos dos migrantes ¢ imigrantes — Luiz Felipe de Alencastro e Maria Luiza Renaux, 29] Lagos de familia e direitos no final da escravidaio — Hebe M. Mattos de Castro, 337 O fim das casas-grandes — Evaldo Cabral de Mello, 385 Epilogo — Luiz Felipe de Alencastro, 439 Notas, 441 Apéndice, 469 Obras citadas, 487 Créditos das ilustragdes, fontes e bibliografia da iconografia, 50! Indice remissivo, 513 INTRODUCAO MODELOS DA HISTORIA. E DA HISTORIOGRAFIA IMPERIAL A tardia formaliza¢ao do ensino de hist6ria nas universi- dades brasileiras deu lugar a improvisos. Felizmente, deu também destaque a autores que elaboraram obras audacio- sas, livres da estreiteza académica, pluridisciplinares, cuja marca constitui um trunfo de nossa historiografia. Gilberto Freyre é um desses autores, e Sobrados e mucambos uma des- sas obras impares. Livro fundador do estudo da vida privada no Brasil ¢ ensaio pioneiro na bibliografia internacional sobre o assunto, Sobrados e mucambos — publicado em 1936, mas esquemati- zado desde 1922 — atravessa as barreiras da intimidade pa- triarcal e penetra no cotidiano da sociedade do Império.' Mais do que Casa-grande & senzala (1933), clissico de longas revoadas no tempo € no espago, Sobrados e mucambos aproxi- ma-se das regras de ouro do grande livro de historia: uma tematica definida com base no conhecimento de uma con- juntura especifica (a urbanizagao da familia patriarcal rural), uma periodizagao conforme ao tema (0 Império, teatro da mudanca da casa-grande para os sobrados citadinos) e, en- fim, fontes congruentes com a problemitica e a época (dia- rios, correspondéncias, narrativas dos viajantes, jornais e te- ses universitérias oitocentistas). De quebra, Gilberto Freyre granjeia a histéria oral, a memoria relatada por testemunhos dos tempos do Império. Gente da mais diversa condicio — de ex-escravos 4 vitiva de Joaquim Nabuco — foi por ele inquirida nos anos 1920-30, quando a maioria dos brasileiros ainda tinha um pé na roca. Quando, nas suas proprias pala- vras, a residéncia em apartamentos limitava-se ao Rio de Ja- neiro € a Sao Paulo, enquanto o resto do pais vivia em casas B+ His) SRIA DA VIDA FR'VADA NO BRASIL 2 plantadas em cidades meio campestres. O que Ihe permitia concluir, em 1936: “o privatismo patriarcal ou semipatriarcal ainda nos domina; mesmo que a casa seja mucambo”? Por isso mesmo, por causa do jeito como a sociedade brasileira veio a ser, Sobrados e mucambos as vezes confunde tanto quanto ilumina. Para o historiador que busca articular seqiiéncias e rupturas da vida cotidiana ao movimento cali- brado pelo tempo e pelos eventos, fica dificil seguir pelo pats afora os tracos intermitentes das intuicdes freyrianas. Desse modo, o segundo volume da Historia da vida privada no Bra- sil leva em conta, junto com o inventario de Sobrados e mu- cambos — livro que deve ser mais admirado do que imita- do —, as pesquisas recentes dos autores dos capitulos, os segredos dos ntimeros amanhados pela administrago impe- rial e agora sistematizados pela informética. Gracas a esses recursos, 0 primoroso Atlas do Império do Brazil (1868), do ge6grafo e jurista maranhense Candido Mendes de Almeida, primeira visualizagao completa do territ6rio nacional de que dispuseram os brasileiros da época, pode ser digitalizado para combinar-se com os dados espacializados do recensea- mento geral de 1872. Deliberadamente, procedeu-se ao amélgama de “vida privada” e “vida cotidiana”, Com efeito, nao ha por que sepa- rar-se os dois géneros de historia, na medida em que “coti- diano” refira-se 4 intimidade, aos modos de vida, ao dia-a- dia da existéncia privada, familiar, publica, as formas de transmissao dos costumes e dos comportamentos. Tenho para mim que os motivos que levaram Ariés e Duby a distin- guir, alids de modo pouco explicito, o privado e o cotidiano, decorreram, entre outras circunstancias, da necessidade de apartar os estudos por eles organizados na Histoire de la vie privée (Paris, Le Seuil, 1985) da colecao La vie quotidienne en... iniciada pela editora parisiense Hachette nos anos 1940 e contando com titulos prestigiosos. Na Alemanha, onde nao existia esse impasse editorial, o corte historia privada/histéria do cotidiano nao ganha relevo entre os especialistas da Allta- gsgeschichte (histéria do cotidiano).° Inserido de permeio a Colénia e a Republica, este volu- me adequou-se a certos parimetros. Em conjunto, procura- mos esbocar uma evolucao cujo recorte tematico seguia 0 enfoque regional. Além do mais, nao se pretendia analisar cada uma das regides do Império. Mas 0s modos de vida que tiveram continuidade e, mais precisamente, os niicleos cons- titutivos da sociabilidade brasileira contemporinea. Desde logo, nao ha estudo das cidades, vilas e povos de uma regido importante na Colonia — 0 Maranhao e o Pari —, ou seja, a Amaz6nia atual, cujo impacto na sociabilidade nacional per- manece restrito no século xix e em boa parte do século xx. Inversamente, a cidade de Sao Paulo, contando apenas com 25 mil habitantes em 1870 — depois inflada e revolvida de maneira descomunal pela imigracio estrangeira e as migra- g6es nacionais —, s6 vai guardar um ténue vinculo social com seu passado oitocentista. Mais do que na capital, é no este da provincia, em Campinas, com 34 mil habitantes em 1870, que se revela a continuidade histérica engendrada pela sociedade paulista. Continuidade fundada na mescla de es- cravos e imigrantes, de patriarcalismo ¢ coergio econdmica. Desse processo nasceram os costumes das frentes agricolas ¢ pecuérias, depois espalhados pelo Norte do Parana, e pelo Centro-Oeste e Norte do pais. O contexto social da agricultu- ra de fronteira movida por migrantes de dentro e de fora do pais distingue-se dos nticleos coloniais fixos, 1a maioria dos casos formados por alemies e italiano, [nicialmente implan- tados no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina, esses m cleos deram lugar a uma sociedade consistente que se tornou um componente importante da diversidade cultural brasilei- ra. Bahia e Pernambuco, principais provincias de uma drea que constitui o pélo de maior difusdo demogrifica e cultural do pais, aparecem de maneira distinta e complementar. A vida familiar baiana foi analisada mediante 0 cruzamento entre os documentos € as estatisticas extraidas dos testamen- tos da época, enquanto o cotidiano pernambucano emerge do estudo da biografia e do diario intimo de dois senhores de engenho. Enfim, as outras provincias do Império tém sua caracteristica social de maior relevo visualizada nos mapas informativos elaborados com os dados do censo de 1872. Na seqiiéncia dos capitulos, os autores explicitam as mudancas sociais que definiram o perfil da vida privada no Império. 10+ STORIA DA VIDA PRIVADA NO BRAS 2 Naturalmente, o Rio de Janeiro, a corte da monarquia, 0 centro cultural, politico e econémico do territério nacional — desfrutando no século xix de uma preeminéncia que ne- nhuma outra cidade brasileira jamais vird a ter —, mereceu um tratamento especifico no quadro do volume. E no Rio de Janeiro que se desenrola 0 “paradoxo fundador” da histéria nacional brasileira: transferida de Portugal, sede de um go- verno parlamentar razoavelmente bem organizado para os parametros da época, capital de um império que pretendia representar a continuidade das monarquias e da cultura eu- ropéia na América dominada pelas republicas, a corte do Rio de Janeiro apresentava-se como 0 polo civilizador da nagao. ‘Tal era o motor do centralismo imperial em face das muni cipalidades e das oligarquias regionais. Tal era o suporte da legitimidade monarquica diante das reptiblicas latino-ameri- canas. No entanto, é justamente na corte que o escravismo, na sua configuracao urbana, assume o seu cardter mais extrava- gante, tornando emblemitico o desajuste entre 0 chao social do pais e o enxerto de praticas e comportamentos europeus. No tocante a iconografia, também houve uma opcio prévia. Apesar de iniciativas editoriais recentes, o Império é quase sempre representado por meio de pinturas, aquarelas e gravuras dos grandes e pequenos artistas oitocentistas. O que talvez tenha contribuido para agregar — na cultura marcada- mente visual dos brasileiros de hoje — o periodo imperial ao passado colonial, empurrando 0 “arcaismo” monérquico para longe da “modernidade” republicana. Por esse motivo, ao lado de pinturas e desenhos, foram privilegiadas ilustra- oes extraidas da vivacissima imprensa nacional e fotografias da época. Redimensionando a distancia que nos separa do passado, as fotos imperiais ajudam a aproximar as represen- tages, a estabelecer uma nova periodizacao, uma nova tem- poralidade na nossa histéria nacional. Luiz Felipe de Alencastro 1 VIDA PRIVADA E ORDEM PRIVADA NO IMPERIO Luiz Felipe de Alencastro 12. + HIsTORA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL 2 BUROCRACIA DE ARRIBAGAO transferéncia da corte trouxe para a América portu- guesa a familia real e 0 governo da Metropole. Trouxe também, ¢ sobretudo, boa parte do aparato admi trativo portugués. Personalidades diversas, funcionarios ré- gios continuaram embarcando para o Brasil atras da corte, dos seus empregos e dos seus parentes, apés 0 ano de 1808. Con- cretamente, além da familia real, 276 fidalgos e dignitarios régios recebiam verba anual de custeio e representacao, paga em moeda de ouro e prata retirada do Tesouro Real do Rio de Janeiro.' Luccock calculava em 2 mil 0 ntimero de funcio- narios régios e de individuos exercendo fung6es relacionadas com a Coroa. Juntem-se ainda os setecentos padres, os qui- nhentos advogados ¢ os duzentos “praticantes” de medicina residentes na cidade.’ Terminadas as guerras napolednicas, oficiais e tropas lusas vem da Europa para a corte fluminense. Segundo o almirante russo Vassili Golovin, que fez duas esta- dias na cidade, em 1817 havia no Rio de Janeiro de 4 mil a5 mil militares.* No total, pelo menos 15 mil pessoas transferiram-se de Portugal para o Rio de Janeiro no periodo.t Para melhor medir a forga desse empuxo burocratico, convém lembrar que em 1800, quando a capital dos Estados Unidos mudou-se de Filadélfia para a recém-construida Washington, 0 contin- gente de funcionérios do governo federal americano nao ex- cedia o milhar, contando-se desde o presidente John Adams aos cocheiros do servigo postal. VIDA FRIVADA E ORDEM PRIVADA NO IMPERO * 13 1. Esposa do entao principe d. Pedro ¢ futura primeira imperatri do Brasil, d. Carolina Leopoldina desembarcou no Rio de Janeiro em 1817, Fitha do imperador da Austria, 4. Carolina foi cedida em casamento depois de urn minucioso tratado luso-austriaco, no qual Jodo VI pagavea ao sogro de seu flho dotes ¢ contradotes avultados que © obrigavam a hipotecar as rendas da Casa de Braganca. O casamento assegurava aas Braganga 0 apoio do império austriaca. (Charles Simon Pradier, Desembarque da arquiduquesa d. Carolina Leopoldina no Rio de Janeiro, 1818) De resto, administradores e colonos de outras partes do Império portugués, notadamente Angola e Mogambique, também migram para o Rio. Em seguida, Portugal atravessa uma fase de instabilidade politica que contribui para manter no Rio de Janeiro, até meados do século, uma parte dos inte- resses lusitanos anteriormente transferidos para o Brasil. De seu lado, setores mais comprometidos da monarquia espa- nhola saem dos paises sul-americanos tomados por revolu- oes republicanas e mudam-se para o Rio de Janeiro, unico reftigio da legalidade monarquica no Novo Mundo. ‘A parciménia de dados disponiveis nao permite que se mea precisamente 0 fluxo migratério em direcao a nova corte sul-americana. Mas é possivel captar as mudangas com- parando os dados dos censos efetuados na cidade em 1799 e 1821. Entre uma e outra data, a populago urbana, excluidas portanto as freguesias rurais do municipio, subiu de 43 mil para 79 mil habitantes. Em particular, o contingente de habi- tantes livres mais que dobrou, passando de 20 mil para 46 mil individuos. Nao foram sé6 reinéis e monarquistas latino-americanos que aportaram na corte fluminense. O enxerto burocratico suscitou uma procura de moradias, servicos e bens diversos, atraindo para o Rio mercadorias e moradores fluminenses ¢ mineiros. Enfim, chegam mais africanos, dado que a bafa de Guanabara convertera-se, desde o final do século xvi, no maior terminal negreiro da América. Embora a maioria des- 14 + HISTORIA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL 2 2. Divisio eciesiéstica do Impéria: 0 catoicismo era a religido oficial eas sedes das paréquias _funcionavain come cartérios ‘em que os pérocos — funcionérios piiblicos — exerciam as atividades cartorérias. Note-se que 0 mape, como todos os subseqiientes, nao inclui zonas do Norte brasileiro ¢ 0 Acre, pasteriormente incorporados ao territério nacional. (Atlas do Império do Brazil, Candido Mendes, 1868) ses individuos se destinasse & zona agricola, um mimero cres- cente de escravos sera retido no meio urbano para atender a demanda de servicos: entre 1799 e 1821 a percentagem de cativos no municipio salta de 35% para 46%. A RUPTURA DO CIRCUITO DE COMERCIO CONTINENTAL Enquanto a corte se ajeitava no caos pré-urbano do Rio de Janeiro, importantes mudangas atravessavam 0 territério colonial. Movido a ouro em pé, o mercado do poligono mineiro formado por Minas Gerais, Goias e Mato Grosso acambarca- va toda a América portuguesa no século xvii. Comprava bens europeus e escravos pela Bahia e pelo Rio de Janeiro, mulas € gado do Rio Grande do Sul e dos currais do Sao Francisco. Através dos rios Madeira, Mamoré e Amazonas, as minas de Mato Grosso conectavam-se a Belém e ao Atlantico. De ma- neira descontinua, emergira a mais longa rede de comunica- goes terrestres e fluviais do continente americano. Nas vere- das do ouro medravam fazendas, rocas, vendas e vilas que desenhavam um mapa extenso de povoamento e um circuito de comércio continental. Entretanto, a partir dos anos 1770, a produgao no poligono do ouro declina, desativando a imantagao mercantil irradiada pelo centro do territério. Gra- Gas ao ressurgimento da agricultura de exportagao — agora impulsionada pelo algodao, o arroz e o café, além do acticar € do tabaco —, as atividades litoraneas e 0 comércio maritimo de longo curso mantém-se num patamar elevado.* Contudo, rompe-se o circuito de comércio continental. Parte de Minas amplia suas atividades na agricultura, na pe- cuaria e no laticinio, fornecendo alimentos para o Rio de Janeiro. Mas Sao Paulo, o Sul, o Norte e 0 Nordeste desligam- se pouco a pouco do centro mineiro. Trocas litoraneas de cabotagem deslocam e desmancham as trocas sertanejas. Dessa maneira, a Independéncia traz a autonomia politica a um territ6rio esgargado pelo deslizamento do comércio ter- restre interiorano para as zonas costeiras. Investidos de representatividade instituidora apés a In- dependéncia —, quando a legitimidade do governo do Impé- rio sediado no Rio de Janeiro ainda nao se encontrava assen- tada —, as camaras e os juizados municipais catalisam os VIDA FRIVADA £ ORDE FRVADA NO INeERO + 15 16 © HISTORIA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL 2 interesses lncais contrariados pelos novos rumos do comér- cio brasileiro. Desse modo, 0 primeiro confronto institucio- ral entre o privado ¢ 0 ptiblico imperial desenrola-se no ambito do municipio. Por tris dessas pendengas, algumas delas descambando nas guerras civis conhecidas como “revolugdes regenciais”, perfilha-se uma questio central na historia politica das na- ges do Novo Mundo, um debate doutrinério de primeiro plano que viu Hamilton opor-se a Jefferson apés a Revolugao ‘Americana Qual 0 alcance do poder exercido por autorida- es locais deitas pelos proprietarios rurais? Qual 0 escopo do governo central? Estavam em jogo diferentes concepgdes da Iiberdade individual, do pacto politico no Estado constitu- cional moderno. Tudo isso ganha maior complexidade nos paises americanos — particularmente nos Estados Unidos e no Brasil —, onde existia um sistema escravista de permeio a uma comunidade que professava, ou buscava atingir, os prin- cipios liberais predominantes na economia, na politica e na sociedade da Europa Ocidental. (0 PRIVILEGIO FRIVADO Nos confins da lingua latina e do direito romano, a pala- vra privus (perticular) deu origem a duas variantes, privatus (privado) ¢ privus-lex ou privilegium (lei para um particular, privilégio). Essas variantes fundem-se de novo num s6 signifi- cado no contesto do escravismo moderno, no qual o direito — 6 privilégio — de possuir escravos incide diretamente sobre a concepgao da vida privada, Como na Colénia, a vida privada brasileira confunde-se, no Império, com a vida familiar. Resta que, no decorrer do processo de organizacao politica e juridica nacional, a vida privada escravista desdobra-se numa ordem privada prenhe de contradiges com a ordem piiblica.’ Mani- festa-se a cualidade que atravessa todo o Império: o escravo é um tipo de propriedade particular cuja posse e gestio deman- dam, reiteradamente, 0 aval da autoridade publica. Tributado, julgado, comprado, yendido, herdado, hipote- cado, o escravo precisava ser captado pela malha juridica do Império. Por esse motivo, 0 Direito assume um cardter quase constitutivo do escravismo, e 0 enquadramento legal ganha uma importancia decisiva na continuidade do sistema: ao VIDA PRIVADA fim e ao cabo, a escravidio desaba de um dia para 0 outro — de 13 para 14 de maio de 1888 —, quando uma lei de quatro linhas revoga seu fundamento juridico. Hevia, portanto, uma ordem privada especifica, escravista, que devia ser endossada nas diferentes etapas de institucionalizagao do Império. Os condicionantes histéricos desse proceso configuraram dura- douramente o cotidiano, a sociabilidade, a vida familiar e a vida puiblica brasileira. Nesse sentido — e esta € a idéia que fundamenta todo o capitulo —, 0 escravismo nao se apresen- ta como uma heranca colonial, como um vinculo com 0 pas- sado que o presente oitocentista se encarregaria de dissolver. Apresenta-se, isto sim, como um compromisso para o futuro: © Império retoma e reconstréi a escravidao no quadro do direito moderne, dentro de um pais independente, projetan- do-a sobre a contemporaneidade. A PRIVACIDADE E © PODER MUNICIPAL E PROVINCIAL Desde 1828, o Primeiro Reinado comeca 2 erodir o auto- nomismo municipal, restringindo a competéncia das cima- ras as matérias econdmicas locais e proibindo que os verea- dores deliberassem sobre temas politicos provinciais ou gerais. A regionalizagio instaurada pelo Ato Adicional (1834) cria as assembléias provinciais, mas a tendéncia antimunici- palista prossegue. Nesse movimento, o governo central sub- trai a autonomia das municipalidades e, sobretudo, a compe- téncia juridica e policial dos juizes de paz eleitos em cada cidade e dos juizes municipais indicados pelas cémaras: Ora, 0 exercicio do poder pablico por autoridades desig- nadas pelos presidentes de provincias, ou seja, pelo governo central — em detrimento das autoridades locais escolhidas pelos proprietarios, eleitores qualificados da regio —, afigu- rou-se como uma ameaca a ordem privada, isto é, a ordem em geral. Esse embate pode ser ilustrado pelo levante ocorri- do nos sertées do Maranhao, a Balaiada (1839-41), conflito tipico de uma regido desconjuntada pelo recuo do comércio interno, pelo novo desenho da geografia econdmica do pais. Retrato da instabilidade social da area, causa e efeito de um Povoamento pouco gregirio, 0 Maranhao apresentaré no censo de 1872 a maior proporsao de solteiros do Império: trés quartos de seus habitantes respondiam a essa situagao.” ‘ORDEM PRIVADA NO IMFERIO + 17 CODIGO CRIMINAL ho Supend do Braid. Mo De NEMO, 3. Organiizando a legislago nacional, (© Cédigo Criminal do Império do Brasil (1830) adaptow a escravidao 4 modernidade oitocentista. (Codigo Criminal éo Império do Brasil, 1831) 18 + HISTORIA DA VIDA PRIVADA NO BRASII 4.A ordem privada escravisia O homer: branco é 0 senhor, dono, proprietirio dos cinco outros homens nnegros e mulatos. Est na frente, na posigio de autoridade e dominio, Os outros se encontram atrds. O primeiro a esquerda do senkor € muilato,esté bem vestiddo. AO contririo dos outros, deixou 0 cabelo ‘meio liso crescer, penteou-o, fez uma risca no lado esquerlo, come 0 seu senhor. Mas nio pode usar sapatos, privilégio e marca distintiva dos livres e libertos. Tirar fotografia era uma operagio demorada. Ninguém podia se mexer durante quase dois minutos. Outras tentativas jt ‘podiam ter falhado. O forégrafo Militdo, que jez essa foto em Sao Paulo, deve ter reclamado, Por isso (ou por outras razdes mais secrtas, 0 senhor esté zangado, de cara amarrada. O escravo situado & sua direita, assustado, encolhew-se. Na extrema esquerda, 0 homem com a varinha na mito — pastor de cabras ow de vaca leiteira na cidade — tem wm othar altivo, talvez porque traga nas ris 0 objeto de sew ofico, que 0 distingue dos outras cativos, paus ‘para toda obra. Na extrema direita, ‘ohomem de branco se mexeu: cestragou a foro da ordem escravista programada pelo seu senhor. Vai ‘apanhar. No seu rosto fora de foco vislumbra-se 0 medo. Vai apanher, (Foto de Militdo Augusto de Azevedo, Sao Paulo, c. 1870). Meses antes da insurreigio, o presidente da provincia, falando na Assembléia maranhense, explicava o papel dos novos “prefeitos de comarca” e justificava a reducao das com- peténcias dos juizes de paz, expressao do poder senhorial nas municipalidades: “E impossivel que deixeis de conhecer to- dos os excessos cometidos pelos juizes de paz (...] arbitrarie- dades e perseguicio contra os bons, inaudita protegio aos maus, e porfiada guerra as autoridades”, Posta nesses termos, a acusagao nao deixava diividas sobre os propésitos centrali- zadores da politica imperial. Nomeado pela Coroa, o “prefei- to de comarca” — cuja autoridade estender-se-ia sobre varios municipios — estaria encarregado de instaurar a ordem im- perial no interior do pats. Reagindo a iniciativa, 0 jornal Bemtevi, 6rgao do auto- nomismo maranhense, vai direto ao ponto: a autoridade no- meada pelo Rio de Janeiro ‘desagregaria a ordem privada, subvertendo a organizacao social vigente. Um prefeito tem espalhados tantos quantos oficiais de policia, espides, ele quer, para saber do que se passa fora e dentro das casas! Adeus sagrado das familias! Os pre- feitos chamario e corromperao nossos escravos para di- zerem tudo que em nossas casas se faz ¢ se diz, ¢ acres- centarem o mais que nem se faz, nem se diz! Com uma autoridade tio absoluta quem se julgar seguro! Quem os podera ter mao! Mil maldiges pesem sobre a cabega de quem pediu e sancionou uma tal lei! O escravismo entranhava nos lares, no amago da vida privada, um elemento de instabilidade que carecia ser estrita- mente controlado. Em conseqiiéncia, o poder, a seguranga publica, devia tirar seu fundamento da esfera publica de do- minacao mais compacta, mais imediata, mais préxima: a municipalidade. Contudo, governo central absorvia 0 espa- ¢o do poder municipal. Eventualmente manipulado por con- tririos, o representante do governo do Rio de Janeiro poderia transformar os escravos domésticos em espides, trazendo a inseguranga para dentro das casas, para “o sagrado das fami- lias” dos proprietirios. Em todo 0 caso, o Império nao deu mais margem para 0 incremento do poder municipal. Na verdade, a disputa sobe para outro patamar, para a esfera regional, no seguimento da do operada em 1835 com o inicio das assem- bléias provinciais. Desde logo, 0 embate transpunha-se para uma arena mais ampla, e também mais perigosa, na medida em que uma faccéo da classe dominante podia encampar a autoridade publica regional e joga-la contra uma outra fac- 40, abalando a ordem privada escravista. descentraliza Foi 0 que sucedeu em Sao Paulo e em Minas Gerais durante a Revolucao Liberal de 1842. Havia, nas duas provin- cias, a crenga de que o governo centralista do Rio, dominado pelos conservadores, tornara-se “formalmente ditador” a0 desencadear uma “violenta persegui¢ao” contra as camaras, policiais e judicidrias pertencentes arrogando-se atribuigé as municipalidades."' Na cidade mineira de Campanha, a So- ciedade dos Patriarcas Invisiveis fazia seus membros assinar 0 20 + HISTORIA DA VIDA PRADA NO BRASIL 2 5. Recife, teatro da Revolugao Praieira (1848-9), 0 levante politico ‘mais radical ocorrido no lmpério. (Emil Bauch, Largo do Corpo Santo, meados do século XIX) juramento de lutar contra o “governo absoluto”, leia-se cen- tralista, e alegadamente pr6-portugués, do partido conserva- dor. Outros rebeldes, reunidos nas vizinhangas de Caxambu para combater 0 “partido galego”, cingiam “o lagarto [om- bro] do lado direito” com uma faixa verde-amarela." A leitu- ra dos autos dos processos, emerge toda uma trama de rela- ges pessoais, familiares, que orienta o engajamento dos combatentes de um e de outro campo. Deflagradas as hostilidades, as forcas governistas langa- ram mao — conforme denuncia um simpatizante dos libe- rais, 0 cénego José Antonio Marinho — do instrumento mais “iniquo” e de conseqiténcias “mais terriveis” que podia existir no pais: mobilizaram nas tropas legalistas os escravos fugidos dos proprictérios insurgentes. Até aquela altura, con- tinua 0 cénego Marinho, “existiam as mesmas convicgdes” nos dois campos que se enfrentavam em sangrentos comba- tes, “proprietarios, capitalistas, pais de familia estavam debai- xo de uma e de outra bandeira; com a chegada, porém, da tropa de linha, a provincia (de Minas] foi inundada de nu- vens de nagés e minas que levaram a toda a parte a devasta- cdo e 0 saque” Espalhara-se “o germe mais perigoso que por- ventura se possa plantar no Brasil”? Em suma, durante as revolugées do Império, podia-se abrir fogo contra as tropas legais, sublevar os cidadaos, de- sencadear a guerra civil. Desde que um e outro campo guar- dassem “as mesmas convics6es” basicas do consenso impe- rial: o respeito a ordem privada escravista. Mas nao era s6 com relagao aos cativos que surgia 0 VIDA PRIVADA E ORDEM PRIVADA NC iMPERt problema. Em conexdo com 0 escravismo desenvolvia-se 0 paternalismo, o patriarcalismo rural e urbano, segundo a anilise consagrada por Gilberto Freyre. Também nesse domi- nio, nas relagdes entre fazendeiros e homens livres, ocorriam choques entre © publico e 0 privado, como sucedeu em Per- nambuco, quando uma ala radical e urbana do partido libe- ral — o partido praiciro — colidiu com o setor mais tradi- cional dos senhores de engenho, incorporado ao partido conservador. Antes de resumir 0 entrevero, convém sublinhar o entrela- samento do sistema eleitoral com a vida privada no Império. Apés a Independéncia, os homens brasileiros maiores de 25 anos, com certa renda anual, podiam ser “votantes’, isto é, eleitores de segundo grau. Em geral, trinta votantes escolhiam um eleitor de primeiro grau, o qual, dispondo do dobro da renda anual dos votantes, podia eleger e ser eleito vereador, deputado ou senador."* Dada a exigiiidade da populagio adul- ta, livre e masculina nas zonas rurais, os critérios para 2 quali- ficacao dos votantes tinham de ser moderados. Se dispusessem da renda minima exigida, os analfabetos e os ex-escravos (a0 contrario do que definia a legislacao dos estados sulistas norte- americanos) também estavam aptos a eleger-se para o posto de vereador e habilitar-se como eleitores de segundo grau." Além disso, fraudes permitiam que individuos mais modestos fos- sem reconhecidos como votantes a fim de eleger os proprieté- rios de suas terras no escrutinio de primeiro grau. Desse modo, os senhores de engenho e os fazendeiros mantinham um contingente mais ou menos constante de agregados — seu curral eleitoral particular — em suas pro- priedades. Mesmo nos lugares em que existia oferta regular de escravos ou, no outro quadrante social, um mercado de trabalhadores livres. Fatores que, noutras circunstancias, te- riam levado os proprietarios a retomar as terres cultivades pe- los agregados para exploré-las com sua mao-de-obra assala- riada ou cativa. Um dos autores mais perspicazes e menos reconhecidos do Império, Luiz Peixoto de Lacerda Werneck, filho do barao do Paty do Alferes, escrevia sem rodeios em 1855: “O que sustenta hoje a pequena agricultura € 0 nosso sistema eleitoral. Os grandes possuidores do solo consentem 22 + HISTORIA DA VIDA FrIVAEA NO BRASIL 2 ainda os agregados, porque 0 nosso sistema eleitoral assim 0 reclama” Deveres e direitos dos senhores ¢ de seus depen- dentes encontravam, dessa forma, um prolongamento insti- tucional no sistema partidério e eleitoral. Assimilado ao comportamento politico do pais, tal fendmeno constituiu um importante fator de estruturagao das relacoes entre os proprietérios rurais e seus dependentes, dando lugar, mais tarde, ao tripleto “coronelismo, enxada e voto”.”” Tudo isso foi posto em xeque em Pernambuco nas elei¢des para © Senado, em 1847. Nessa oportunidade, os funciondrios regionais ligados ao partido da Praia, detentor do governo da provincia, aliciaram agregados e moradores dos engenhos para que votassem nos candidatos praieiros, contra os proprietérios de suas terras, candidatos conservadores na eleicdo de primeiro grau. Conhecida a vit6ria dos praieiros na eleicdo primaria, a agucarocracia do partido conservador retaliou, apressando-se em expulsar de suas terras 0s agregados “traidores” Nabuco de Araiijo, futuro ministro da Justica e lider do pettido liberal moderado, justificou o expediente em nome do respeito as regras nao escritas do patriarcalismo. Foi tal o terror que se incutiu na populagdo que os mo- radores [...] que se uniam aos senhores de engenho pela forca do habito, pela influéncia dos costumes antigos, pelos lagos da gratidao, antes quiseram votar com a poli- cia que os aterrava do que com os seus patronos naturais que os sustentavam; e como os senhores de engenho, pelo legitimo uso de sua propriedade, tém o direito de expelir de suas terras os moradores que nao lhes agra- dam, a policia atual {praieira] [...] nao duvidou propalar por seus agentes que tal direito nao existia que ela interviria para o fazer cessar."* Revoltados, os agregados expulsos juntaram-se ao parti- do da Praia, engrossando 0 caldo revolucionario que deu a Praieira (1848-9) o estatuto de levante mais radical de toda a historia do Império. Esmagada a revolta, o Ministério conser- vador “saquarema”, justamente chamado de “governo da oli- garquia’, restabeleceu, como Evaldo Cabral de Mello observa no capitulo 8 deste livro, um dos primados do sistema impe- rial: a influéncia politica das familias nas diferentes regiGes do pais. Minas Gerais conhecera um refluxo de sua influéncia VIDA PRIVADA E O2DEM PRI politica na corte apés a derrota da Revolugdo de 1842, S40 Paulo ainda nao era o que viré a ser. Desde logo, esvaziada a autonomia municipal e assentada a preeminéncia das oligar- quias nos governos provinciais, o Segundo Reinado assegura a hegemonia do governo central — da “corte madrasta” —, como definiam os panfletos praieiros. Capital do pafs, corte da monarquia, sede das legacées diplomaticas, maior porto do territério e drea de forte con- centracao urbana de escravos, o Rio de Janeiro aparece, dora- vante, como 0 teatro das contradigdes imperiais. + A HEGEMONIA FLUMINENSE Singular na geografia politica do Novo Mundo, o Impé- rio representou também um momento tinico na histéria bra- sileira. Efetivamente, no regime monarquico forjou-se no Rio de Janeiro — capital politica, econdmica e cultural do pais — um padrao de comportamento que molda o pais pelo século xix afora e 0 século xx adentro. 6. 0 nttmero de comerciantes por mil habitantes livres mostra, em 1872, 0 peso da hegemonia comercial dda corte, inserida aqui no espace da provincia fluminense, (LED-Cebrap) (Ver Apéndice, tabela 1.) 2d + HISTORIA DA VIDA PRIVADA NO BRASL 2 Entre a diversidade rgional esbocada nas diferentes par- tes da Coldnia deste 0 Sscentos e a influéncia estrangeira continuamente manifestada apés a abertura dos portos em 1808, o Rio de Janeiro funciona como uma grande eclusa, re- canalizando os fluxos extemos ¢ acomodando 0s regionalis- mos num quadro mais amplo, pela primeira vez verdadeira- mente nacional. Para se ter uma idéia da densidade de atividades concentradas m cidade do Rio de Janeiro, conside- te-se que sua renda tributiria municipal — referente aos im- postos e taxas recolhidos pela Camara — superava, em 1858, a renda municipal do conjunto de cidades de qualquer uma das vinte provincias do Impéria'” No plano externo, convém lem: brar queo porto fluminerse — numa época em que 0 comés cio intemacional fizia-se epenas por via maritima — apre- sentava-se como escala quase obrigatria dos navios que singrassem do Atlantico Norte para os portos americanos do Pacifico, e vice-versa. No plano inter-regional, o Rio de Janeiro constituia o ponto de enantro ¢ de redistribui¢ao da econo- mia nacional. Metade do coméicio exterior brasileiro passa pelos cais cariocas durante o século 1x.” Etapas bem distintas marcaram o crescimento do Rio de Janeiro. No decurso do século xx, os cativos representam da metade a dois quintos do total de habitantes da corte. Um contraste nascer entrea densidade de escravos na cidade e as pretensées civilizadoras & corte e da Coroa, orgulhosa de seu estatuto de tinica representante do “sistema europeu” — da monarquia — na América tomada pelo sistema republica- no. Contraste que as caracterfstices proprias da gestio e posse de cativos no meio urbaro fazem ainda mais flagrante. Considerando que 2 populacao do municipio pratica- mente dobrou nos anos 1821-49, a corte agregava nessa ulti- ma data, em ntimeros abslutos,a maior concentracao urba- na de escravos exisente no murdo desde o final do Império romano: 110 mil escravos para 266 mil habitantes2: No en- tanto, ao contrario do que sucedia na Antiguidade, 0 escra- vismo moderno, e particularmente o brasileiro, baseava-se na pilhagem de individuos de ama « regiao, de uma nica raga. Em outras palavras, no moderro escravismo do continente americano a oposicio serhor/escravo desdobra-se numa ten- sio racial que impregna toda a sociedade VIDA PHVA: Tamanho volume de escravos da a corte as caracteristica de uma cidade quase negra e — na seqiiéncia do boom do trafico negreiro nos anos 1840 — de uma cidade meio afri na. No micleo urbano do municipio, formado pelas nove paréquias centrais, as percentagens eram menores, mas 0 impacto da presenga escrava parecia maior, na medida em que envolvia 0 centro nervoso da capital, sede dos principais edificios publicos, as pragas, as ruas e 0 comércio mais im- portantes do Império.* Do total de 206 mil habitantes que moravam na area nos anos 1850, 79 mil (38%) eram cativos. Numie data em que o trafico negreiro ja estava legalmen- te proibido havia dezoito anos, o censo de 1849 mostra um. dado revelador: um habitante de cada trés do municipio do Rio de Janeiro tinha nascido na Africa. Isto é, viviam na corte 74 mil africanos escravos e livres." Pode-se dar de barato que a cifra estivesse aquém da realidade, pois os proprietérios costumavam ocultar a origem dos seus africans para esca- par a acusagao de contrabando. Maci¢amente formado por escravos (89%), esse contingente africano fundia-se nos ou- tros 22 mil cativos nascidos no pais. Nessa época, entre 1825 e 1850, desembarcou na drea fluminense o essencial do fluxo de 250 mil escravos mogambicanos deportados para o Brasil. Povo oriundo do planalto do Zimbabue e chamado “moca- ranga’. Daf, talvez, 0 substantivo mocorongo que, no Rio, Espirito Santo e em Sao Paulo ¢ sinonimo de “caipira” e de 7. De longe 9 maior porto do Brasil, @ Rio de Janeire constituia o ponto de convergéncia dos mercados provinciaise das mercidorias importedas. (Foto de Revert Fiearique Klumb, Vista do largo do Paco e do porto, 1860) le redistribuigao 26 * HISTORIA DA VIDA FRIVADA NO BRA festa o final da do Paraguai ent 1870. (Foto de Marc Ferrez, Campo de Santana na festa pelo fim da guerra, 1870) 28 + HISTORIA DA VIDA PRIVADA NO BRAS! 9, Procissdo fostiva de escraves passa pela rua Direita. Contando com « maior populegao urbana de escravos registrada desde o fim do Império romano, 0 Rio de Janeiro inka ares de cidade africana em meados do século passado. Nesta époce, um terco dos habitantes do municipio havia nascido na Africa. (Paul Harro-Harring Cena na rua Direita, 1840) “mulato quase escuro”, Caracteristicas de quem vinha de co- munidades étnicas distintas dos povos da Africa Ocidental e Central até entao deportados para a Colonia e o Império. Outros municipios ¢ cidades brasileiras e americanas ti- nham proporcdes maiores de cativos. Uma das mais fortes deve ter sido a registrada defronte a corte, em Niterdi, onde, em 1833, quatro quintos da populacao eram escraves. Ou em Campos, ainda na provincia fluminense, povoada em 1840 por 58 mil habitantes, dos quais 59% eram escravos.” Salva- dor também possuia uma importante populagao africana li- vre ou cativa. No entanto, a capital baiana tinha menor porte, cerca de 81 mil habitantes em 1855, reunia menos europeus € nao concentrava — como a corte — os atributos politicos € culturais que acentuavam os contrastes da escravidao urbana no Rio de Janeiro.* Num plano mais geral, 0 Impétio também discrepava, em meados do século, das outras duss grandes regides escra- vistas da América: Cuba e os Estados Unidos. Cuba vivia ainda sob o dominio colonial espanhol e as implicacoes mais amplas do problema incorriam na responsabilidade de Ma- dri. Nos Estados Unidos, 0 escravismo, desconectado do tra- fico africano desde 1808, tornara-se uma “instituigao pecu- liar” restrita ao Sul do territério e resolutamente combatida pelos outros estados da Uniao. Entranhado no Estado centralizado, difundido em todo © territ6rio, na corte e nas provincias mais présperas como IDA PRIVADA E OFDEM PRIVADA NO IM nas mais remotas, 0 escravismo brasileiro ameacava a estabi- lidade da monarquia e fezia o pais perigar. E a elite imperial sabia disso: malgrado a ameaga das canhoneiras da marinha de guerra britanica, o Brasil seré — até 1850 — 0 unico pais independente a praticar o trafico negreiro, assimilado a pira- taria e proibido pelos tratados internacionais e pelas propriss leis nacionais. A tolerancia com 0 comércio negreiro reduzia © Império a categoria dos estados barbarescos do Norte da Africa implicados na pirataria. Sob a alegagio de estancar essas atividades no Mediterraneo, a Inglaterra havia fincado pé em Gibraltar e Malta ea Franga invadira a Argélia (1830). Nesse contexto, o bill Aberdeen (1845) — decretado pelo go- verno britinico para ampliar a agao repressiva das canhonei- ras da Royal Navy contra os negreiros brasileiros — ficou conhecido no Império como o “bill argelino”. Tudo indica que a opiniao publica enfiou a carapuga, sen- tindo-se atingida no seu amor-préprio. Nao se pense, com efei- to, que o assunto interessava apenas diplomatas ¢ politicos de alto coturno. Um incidente banal ocorrido em 1857 demonstra © ressentimento criado entre as camadas populares da corte pelo fato de os paises europeus e, em particular, 0 governo britinico tratarem os brasileiros como reles piratas mouros. Um casal inglés, empregado na nova Companhia de Tumina- ‘40 de Gaz, desentendera-se com um delegado carioca. Julgan- do-se ofendido, o meganha exclamou: “Vocés pensam que esto em terras de mouros?” e, ato continuo, deu-lhes voz de prisao.” As conseqiiéncias internas do trifico preocupavam mais ainda a elite imperial. Na Aurora Fluminense, o grande jorna- lista Evaristo da Veiga verberava, desde 1831, os negreiros que queriam “fricanizar 0 Brasil”, introduzindo cada vez mais escravos no Império.”* Quinze anos mais tarde, o sentimento do absurdo suscitado pelo panorama social e politico do Im- pério inspira a Goncalves Dias 0 seu poema em prosa Medi- tagao (1846), escrito depois de seu retorno da Universidade de Coimbra e trés anos antes de sua mudanca do Maranhao para o Rio de Janeiro: “E nessas cidades, vilas e aldeias, nos seus cais, pragas ¢ chafarizes — vi somente escravos |...) Por isto 0 estrangeiro que chega a algum porto do vasto império — consulta de novo a sua derrota e observa atentamente os astros — porque julga que um vento inimigo o levou as Cos- tas d’Africa. E conhece por fim que esta no Brasil”? 30 + HISIORIA DA VIDA PRNADA NO BRASIL 2 Com o término do trafico de africanos em 1850, um fluxo intenso de imigrantes lusitanos, por vezes embarcados na frota negreira reciclada neste novo tipo de transporte, chega a corte. Cruzada pelos fluxos migratérios dos cativos transferidos para a zona rural, e dos portugueses que chega- vam ao seu porto, a corte conservou praticamente 0 mesmo numero de habitantes entre 1850 e 1872. Mas a composicao étnica e social do municipio alterou-se de maneira radic. numero de portugueses dobrou, subindo de um décimo para um quinto da populagao total. Paralelamente, caiam as percentagens referentes aos escravos. Quanto aos africanos, seu niimero sofre uma grande redugao e corresponde, em 1872, a menos de 1% do total de habitantes. Em compensa- 40, a vizinha provincia fluminense aparece como unidade do Império que conta com a maior proporcao de escravos africanos. Repare-se que a vizinhanga dos interesses negrei- ros ¢ escravocratas fluminenses pesara no imobilismo da Coroa, e do Império, sobre a matéria. Onze dos doze depu- tados da provincia do Rio de Janeiro e da corte yotaram contra a Lei do Ventre Livre (1871). Do mesmo modo, em 13 de maio de 1888, oito dos nove deputados que votaram contra a Lei Aurea, haviam sido eleitos pela provincia flumi- nense, considerada por Joaquim Nabuco como a mais “rea- cionéria” do Império, porque, nela, “a escravidao estava po- liticamente organizada”* Segundo um célculo global de Haddock Lobo, o organi zador do censo de 1849, de cada dez habitantes do munici- pio, somente quatro eram brancos nessa tiltima data. Em 1872, em conseqiiéncia da imigracdo portuguesa, essa pro- porcao jé se invertera: de cada dez habitantes, seis foram clas- sificados como brancos. ‘A média de habitantes por domicilio, 0 “fogo” — o qual podia compreender nao sé 0s pais ¢ os filhos, como também outros parentes, os empregados ¢ os escravos —, atingia 9,8 no municipio da corte em 1849. Vinte anos mais tarde, com 0 aumento do niimero de casas e de imigrantes, essa média caira para 6,2. Enfim, 0 niimero volta a subir um pouco, passando para 7,2, no censo de 1890, quando os cortigos tornam-se ¢: racteristicos da cidade.” VIDA FRVADA € ORDEM PRIVADA NO WMPERO * 31 ‘A SUPREMACIA DA FALA CARIOCA Embora formado na Universidade de Coimbra, 0 mara- nhense Goncalves Dias, ao retornar ao Brasil, achava inacei- tével adequar as rimas brasileiras a métrica da prontincia Portuguesa. Numa carta para um amigo, Gongalves Dias ex- plicava que qualquer brasileiro estranharia um poema, seme- Ihante ao de um poeta portugués da época, no qual mite rimava com também.” O sentimento de divergéncia fonética ¢ lingiiistica era, alias, reciproco. Nas charges do célebre cari- caturista lusitano Bordallo Pinheiro, sobre a primeira viagem do imperador a Portugal (1872), aparece, entre as bagagens de d. Pedro 1, um “Guia de conversacao brasileiro-portugués € portugués-brasileiro”® Mas nao era 6 a orelha fina dos poetas ou a pena severa dos chargistas que registrava a diferenga. Amincios publica- 10. Envolvendo a corte, a provincia Muminense, que Joaquim Nabuco considerava a mais “reaciondria” do Império, concentrava os interesses ‘escravegistas ¢ teve grande influéncia sobre a politica imperial. (Candido Mendes, Atlas do Império do Brazil, 1868) GENTES, VOCE JA VIO JA? Novo “@ mut gracloso tuncy brazileire , poesia do’curioso Ik B., posto em musica pelo pro. fessor Dorison : 4¢ numero do No. vo Arpum de modinhas ; preco 800 rs. 11. “Gentes, vocd ja vio ja?” A’ venda naimprensa de mu- Mexendo na concordinncia verbal sica de Filippone e Comp., rus e no ritmo das modinhas, 0 bunds dos Latoeiros nu. 89. mole a Fnguagem € a misica ia ae basin, desde ioendos. de stevie NA rua dos Peacace‘esn, 19 vemdem-se cofres de jornal do ommércos et ferry, por pregus mpdicos dos nos jornais davam como caracteristica principal de al- guns escravos fugidos « sua fala “aportuguesada”. Natural- mente por terem sido criados por senhores portugueses, co- mo nota Gilberto Freyre, pioneiro no estudo desse género de documento.™ Se é verdade que aparecem referencias da mes- ma natureza a escravos sertanejos, de fala “amatutada’, os cativos que falavam portugués corretamente passavam por “perndsticos” diante de senhores inseguros em relagio a0 uso do vernaculo. Fabricio, o estudante de medicina carioca, per- sonagem de um romance de Joaquim Manuel de Macedo, refere-se assim a um escravo, dono de fala escorreita: “o mal- dito do crioulo era um classico a falar portugués””* Nessa altura, 0 sotaque da corte ainda nio havia se esta- bilizado e o Império dividia-se numa sucessio de falares dis- tintos. Eduardo Angelim, cearense de Aracati, foi para o Paré na grande seca de 1825 — primeiro movimento de migracao nordestina — e tornou-se um dos dirigentes da revolucao dos Cabanos (1835-6). Lider carismatico de grande dignida- de politica, foi considerado por Gongalves Dias como “o ribaldi brasileiro”. Testernunho anénimo de um de seus com- panheiros descreve-o em cores vivas: “homem de estatura que dava na craveira cearense, branco com laives de caboclo, a tez de jambo tostada do sol, a cabeca chata, pescogo grosso e curto, cabelos corridos e negros, os pés pequenos, 0 peito SUBTRUO A LI ESE ACMN0 (VENDA NA RUA DU OUITAVDN N77 AS AFAMADAs FOKMIVOAN DE LACAMERT PUL 1834 ORGANISADAS, COM A FEFORMA DOS DIAS SANTOS, PARA TODGS US BISPADOS 00 IMPERIO. largo, a musculatura e pose de um gladiador |...) Falava com corregao © vernaculo do Ceard, abundando em imagens e cortesias”. Donde havia, bem definido nessa época, um “ver- néculo” cearense e um tipo, uma “craveira” cabega chata.* Frei Francisco de Nossa Senhora dos Prazeres Maranhao, autor da Poranduba maranhense e dicionarista do tupi-gua- rani, registra no inicio do século xix “certo dialeto”, mistura de portugués e de linguas nativas, corrente na provincia nor- tista.” Da mesma forma que o Maranhao, Sao Paulo prati: ra até meados do século xvii um bilingiiismo, no qual a lin- gua geral, de uso doméstico e privado, era tao conhecida quanto a lingua portuguesa, praticada em ptiblico e na escri- ta. Dessa maneira, o linguajar paulista conservava — e con- serva até hoje nas cidades do interior — a dificuldade de expresso dos fonemas que nao existem no tupi-guarani, o f, o le o rr, Contudo, o corte bem distinto entre 0 r curto do interior paulista ¢ © r bem rolado do falarrr carioca sé se acentuou na segunda metade do século xtx, quando desem- barcou no Rio de Janeiro a imigragao portuguesa. Nos anos 1850, quando o numero de africanos se apresentava bastante elevado no Rio e na Bahia, é provavel que a lingua portugue- 12. Folhinhas Laemmert para 1854: concebidas e impressas na corte as pautam o cotidiano de todas 6s provincias. (Jornal do Commércio, cout. 1854) 3A + HISTORIA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL 2 13, Em 1872, « populagao masculina portuguesa sobrepuiava a populacio ‘masculina brasileira em alguns bairros do Rio. No censo de 1890 essa tendéncia seré acentuada, Resultou dai um aportuguesarnento do sotague carioca. (LED-Cebrap) (Ver Apéndice, tabela 2.) sa nao tivesse curso entre boa parte dos habitantes das duas cidades, e de outras, como Campos e Niteréi, habitadas pot uma forte proporgao de africanos. Num discurso no Parla- mento, um deputado baiano declarou, em 1851, que 14 Bahia, “entre a populagao preta, nio se fala a lingua do pais” Na corte, a presenca mais densa de portugueses — donos da lingua —, e a presenca igualmente dense de africa~ nos ¢ de seus descendentes — deformadores da lingua ofi- cial —, levou a populacao alfabetizada a molder sua fala Aquela do primeiro grupo. Nos anos 1870, metade da populacdo masculina da corte era estrangeira, vinda principalmente de Portugal. Poucos anos antes, por volta de 1860, Ana Bittencourt registrava que 0s baianos podiam distinguir a fala “bastante aportuguesada” do sotaque “luminense.® Bem longe do advento do radio € muito antes ainda da televisao, os habitantes do Rio ja in- fluenciavam a fala dos habitantes das outras provincias. ‘A partir dos anos 1850, quando o Jornal do Commércio comega a publicar o registro dos debates parlamentares pre- viamente taquigrafados, 0s leitores de todo o Império pude- ram familiarizar-se com a linguagem mais apurada que pre dominava na corte, ou melhor, com a versio padronizada dos discursos editados pelo jornal.! Com efeito, as sessdes da Camara e do Senado passaram a ser transcritas numa sintaxe enum vocabulirio mais polido que apagava os regionalismos VID! FRIVADA E ORDEM PRIVADA NO IMFERO + 35 difundidos na imprensa provincial durante os embates poli- ticos das revolucdes regenciais. Em momentos diversos,Gon- calves Dias e 0 jovem Machado de Assis trabalharam como revisores dos discursos da Camara e do Senado. Em vista da padronizasao da linguagem parlamentar, deputados provin- ciais ou gerais que abusavam dos idiomatismos regionais acabavam sofrendo trogas. De tradicional familia pernambu- cana, o bacharel e deputado Manuel Carneiro da Cunha ex- primia-se num portugués carregado de africanismos ¢ rece- beu em 1843 0 apodo de “deputado caganje”. Isto é, alguém que falava como os negros do reino de Cacanje, em Angola. Fazendo comparagées ousadas entre a Roma antige e a atualidade do Império, relatando novidades das provincias e do estrangeiro, os discursos parlamentares veiculavam tam- bém uma certa forma de ilustragao “imperial”, uma sensbili- dade cultural mais ampla, que plasmou as oligarquias regio- nais ¢ as classes dominantes do Segundo Reinado. A BAIA DE GUANABARA, O PORTICO DO IMPERIO A corte, as embaixadas estrangeiras, 0 comércio mariti- ‘mo, as escalas continuas de viajantes que cruzam o Atlintico 14, Tados os grandes escritores brasileiros moravam na corte e ali escreviam seus romances. As editoras Laemmert ¢ Garnier publicavam “livios de algibeira” a baixo prego € 9s vendiam por correspondéncia emt todes as provincias do Impéria. (Machado de Assis, Helena, 1876) 96 + HISTORIA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL 2 15, Em troca do agricar, do café do fumo e do tabaco brasileiros o paguete trazia da Europa 0s supérfluos ea moda francesa (A Semana Tlustrada, 1867) 0 QUE EW COMPENSAGiO O MESMO PAQUETE T3AZ DE LA’ PARA 0 BRASIL Sul, a chegada de profissionais europeus, engendram no Rio de Janeiro um mercado de habitos de consumo relativamente europeizados, num ultramar ainda pouco ocupado por essas “falsas Europas” (a expresso é de Fernand Braudel), pelas Areas de povoamento europeu mais tarde implantadas na Ar- gentina, na Africa do Sul e na Australia. Além do mais, ha uma particularidade da economia brasileira que deve ser ex- plicada para se entender o afluxo de importados — bens de consumo e supérflios — que transforma a vida social da corte e do Império em meados do século. No capitulo 3, Katia Mattoso analisa de perto a opuléncia privada na Bahia imperial. De fato, no ano de 1850, os fluxos do comércio externo brasileiro conhecem uma répida e decisiva reorientacao. Considerando-se apenas os anos 1841-50, constata-se que cerca de 335 mil afticanos haviam sido ilegalmente importa- dos no Império, representando um valor equivalente a 28% do total das importagées legais efetuadas pelo pais na mesma €poca.” Os pagamentos desse contrabando negreiro corriam por fora. Em letras de cambio emitidas pelos comissirios dos fazendeiros para serem sacadas, em favor dos traficantes, nas grandes casas importadoras de produtos brasileiros em Lis- boa, Porto, Nova York e Londres. VIDA PRIV A LA BELLE AVA RUA DO CUVIDOR ¥/. 82. es LONE , ALFALATE , ca para eno), da oe eekcn ede cOte. Tew PALAIS NE, fax ventidon ce senhoras pare ‘montar a cavallo, maito be fiton « com toda a delicad Cessado 0 trafico, ocorre um retorno das divisas obtidas nas vendas de produtos de exportagdo ¢ até entao reservadas para financiar a compra de africanos. O efeito na balanga comercial ¢ na balanga de pagementos do Império é imedia- to. Comparando-se 0 qitingiiénio de 1845-50 ao de 1850-5 (o ano fiscal corria de julho a junho), constata-se que o valor das importagdes do Rio de Janeiro cresce uma vez e meia. Varios fatores demonstram que houve um forte acréscimo na entrada de importados — beas de consumo semiduraveis, duraveis, supérfluos, jias etc. — destinados aos consumido- res endinheirados da corte e das zonas rurais vizinhas. Cavalos ingleses e de raga arabe, prdprios para passtios, foram importados da Inglaterra. Um aniincio de 1851 destaca © leilao, nz rua Direita, area do comércio inglés na corte, de seis cavalos curopeus “perfeitamente ensinados para sela, sem defeitos nem vicios, mansos a ponto de poderem servir para montaria ce senhora’. Entre eles, o cavalo Waterloo, vencedor das corridas do hipédromo de Somerset, na Inglaterra." No item relativo a jGias e objetos de ouro e prata, 0 crescimento é de quase trés vezes. Os artigos classificados como “nao especi- ficados” — nos quais devem estar inclufdos pianos e toda sorte de novas mercadorias de consumo — tomam proporgées con- sideraveis na pauta de importacdes. De um qitingiiénio ao outro, o crescimento em valor desse item de importados res- ceu sete vezes. No que se refere a balanga de pagamentos, 0 E ORDEM PRIVADA NO IMPERO. + 37 16, Le Belle Amazone, ioja francesa a rua do Ouvidor, vende selas roupas de montaria para as mulheres. Na mesma época havia importagie de cavalos de montaria ingleses. (Jornal do Commércio, abr. 1853) 38 + HISTOWA DA VIDA 17. O rel 0 “cebolao’; de algibeira erd vendido por stes em todas os cantos do Império, trazendo a hora cerva 40 Bras; europeus ¢ americanos fizeram I oitocentista. Fabricantes relogios especiais para serem vendidos no Rio de Janeiro Uornal do Commércio, set. 1854) , cértes de | de 1051. Aa Nelos irandes ce times, 1 © algodio, ingls.es, forte acoofian 695 ditss dos ¢ lisa nghO ; cére ecbeu-re a 42 Cov: Bae $01 a [My conta, ¢ v0" dentro, RIO DR JANEIRO, = pard, 66 defronde Braco de O grdo » provincia mmerecida que 4e9 cu i0| Pelogios os dispeasio de qualqu innos, para das, ten-| RD en An FF new: repatriamento de capitais sob forma de moeda registrou um crescimento de mais de trés vezes nos mesmos qiiingiiénios.* Acresce, ainda, a transferéncia de letras de cambio — ordens de pagamentos em divisas ou em mil-réis — da Europa e dos Estados Unidos, cujo montante parece ter sido considerdvel. Enfim, deve também entrar em linha de conta 0 contrabando de mercadorias valiosas e de facil transporte como as jaias ¢ os relégios de algibeira, os “ceboloes”. Horas ¢ minutos da regularidade diurna dos trépicos, cuja medida costumava parecer aleatéria e desnecessiria aos luso-brasileiros, comegam a poder ser marcados passo a pas- so, de cebolao na mao, nas casas, nas fazendas, nas estra- das, nos rios, nos portos do litoral.“* Com a inauguragao, a partir de 1850, de uma linha regular de navio a vapor entre Liverpool, na Inglaterra, e o Rio de Janeiro, o tempo impe- rial entra em sincronia com o tempo da modernidade euro- péia. Compras e vendas de mercadorias, cartas e encome: das, taxas de cambio, juros comerciais, viagens de parentes € amigos possuiam, doravante, um parimetro temporal fixo. Chovesse ou fizesse sol, com vento ou sem vento, a Linha de DA FRIVADA € ORDEM LINN DE PAQUETES VV APOR DE LIVERPOOL. rOMPANRIA SUL-AMBRICANA K GERAL PK NA- VRGACAO A VAPOR. Estabelecita por ronta regia de 8. M. BK. Os segulutos vapores, novos ¢ de primeirn inarcla, sulicin de Liverpool no dia 24 de cada snes. Bessiteira Capito D. Greew Levitan J. Brow, Onda. GM. Maru Bohan Devem chegar a cate porto no dia 21 © segul: para Mon teidéo no din 24 Estariy de volta no dia 7 do seg wnet para regresar a liverpool nu dia 10 com eyeala pela Bahia, Peruambucy e Lishoa. U vapor Areestino fica ov Hivsia Vrata pare fnser @ care reira outee Monies idéo @ Nuenow- Ayres ein coujuveyau com ob vapores wei, Paquetes a Vapor de Liverpool mantinha o ritmo de seus vapores Brazileira, Luzitana, Olinda e Bahiana com uma pontualidade naturalmente britanica: um ou outro desses navios, “novos ¢ de primeira marcha”, saia sempre de Liver- pool cada dia 24 do més para chegar ao Rio exatamente no dia 21 do més seguinte, continuando depois a viagem para YADA NO MPERIO. + 39 18, Inaugurada em 1850, a Linha de Paquetes a Vapor de Liverpool “estabelecida por conta régia de Sua Majestade Britanica” levava as para chegar ao Rio Romtpendo com trés séculos de incerta navegagao é vela, 0 impacto da regularidade dessa linha a vapor marcou 0 imagindrio imperial: a menstruagio passard 4 ser chamada “paquete’ (Jornal do Commércio, ago. 1853) AO + HISTORIA A PRIVADA Ni 19, AS lojas de roupas jetas, para criancas ¢ adultos, facompasham a intensificagao da vida social nos lugares publicos e privados. O aniincio dé destaque 4 novidade da época: tecidos de borracha importados da Inglaterra ¢ dos Estados Unides. (Jornal do Commércio, jul. 1854) WP FHT, 100,000 PABBWOS. Grands stieeno de da a eae de rope fe pare hemeos VESTUARIOS PARA MENINOS de oda de Zamnee as dade de cas sempre wm bela cxcothe ‘avo Como ne us gore ot Par RUA BO OUVIDOR N. ua da Quitanda n. 77. E. eH. Laemmert. . OVO. CORREO DE MODAS ANNUNCIOS. Condigdes de assignatara. 84 9 Rr Cort Md pea ew dae ro do evo pagurs inpremus con typo care ors bom No domlego de janeiro de £953 said é TH_Cade ntmaro el aderate AO BOM TOM ON ENCIAB DC ates mot fe Jornal das senhoras, om fe boowe, er amo. om Ba? 20, 21. Revistas dirigidas ‘as medas européias. (Jornal do Commércio, out: 1854) ico feminino difundiam fulhetim de & plans, tolo eceiagnido 20 ane eee BELLO SEXO BRAZILEIRO © Prata. Esses ships tinham, como outros navios ingleses, um nome feminino. Eram, porém, packet boats, “paquetes”. No imaginério brasileiro, tamanho foi o impacto da regul ridade de sua chegada as aguas da Guanabara que a men} truacdo de todas as mulheres do Império, e da Republica, tomard o nome “paquete”, em referéncia ao ciclo de 27 ou 28 dias que os packet boats Brazileira ou Bahiana levavam para singrar de Liverpool até Rio. Parte da movimentacao internacional criada na corte nos anos 1850 resultou também do efeito indireto da corrida do ouro na California. Como nao havia o canal do Panama, | A NOTEEDAME-DEPARS, RUA DO OU VIDOR ¥ 38, CANTO DA DO CAKMO. | Grande surtimento de rcuya | i . Nr. e Foupa leita, casacas, subre- Rua do Ouvidor, IG" 485. | casacas, paletos de parno huo ede casisnira’preta AS ERTLQRNBAS rinhvs, jaquetas de alpaca, merivo © pauno ; cartes Bow dfx wae de colletes, cackemerienue, fustioe seda’ brave! vordada, leoqos de seda brauca, propriu vasame ula @ KoiTe {| CAZAUX DECAP « Cu. 1 calyas, culletes, ceroulas, caurisas, gravatas, cola | o I pars canes, as qos trae almititn 6 esis || fecal a: rales da chambre dle coda hninerat le Londres, estar en posts vista do || pubes wo eaten de Notre uve aberto s6 mais tarde, em 1914, nem as estradas através dos 22, 23. Modas de Paris, geralmente Estados Unidos, apenas duas rotas ligavam Nova York a San» Francisco. la-se de navio até a costa da América Central, pas- © sava-se 0 istmo do Panama (entao territério colombiano) em lombo de burro ¢ depois se embarcava, no Pacifico, noutro navio para a California, Ou se fazia a viagem inteira de navio, descendo a América do Sul do lado Atlantico até 0 cabo Horn, para depois subir pela costa do Pacifico. Nessa rota, a escala na Bahia e no Rio ocorria com freqiténcia. Um relatério da embaixada francesa na corte informa: “A febre amarela do ouro [...] traz ao Rio, cada dia, em escala, navios americanos carregados de emigrantes para a Califér- nia”, Mais de 8 mil americanos ja haviam passado pela baia de anabara nos primeiros cinco meses de 1849. Continuando pelos anos seguintes, o movimento contribuird para agregar 0 porto do Rio ao comércio externo norte-americano. Nathaniel Sands, a principal casa importadora americana no Rio, publica reclames de tecidos, de maquinas debulhadoras de milho. Anuncia, também, produtos industriais fabricados para o Sul escravista da América do Norte e, portanto, de boa aceitagao no Império. Tal € 0 caso dos fogdes para cozinha. Sabe-se que os fornos brasileiros apresentavam-se bastante toscos na épo- ndidas em lojas da rua do idor. (Jornal do Commércio, ago. 1 24, As “burras de ferro” (cofres) ¢ outros produios manufaturados norte-americanos penetram em iimero no mercado brasileiro apés 1850, na época da corrida do fornia. Dado que nao ouro na Ci existia ainda o canal co Panama, iarm escala antes de s na Bahia e no dirigirem para San Francisco, (Jornal do Commércio, out. 1854) BURR FERRO A PROVA DO Prono. As melhores e mais bem acabad: BURRAS OH FERRO CATO bi te ie wee FOG), 0 MELHOR 0) ~———DERULIADORES DE. MILO APERFEICOADOS | DO AUTOR SAN) Manoel Por Abrenches ¢ . | 10 RUA DA ALFANDEGA 10 DEFRONTE 03 KOYO EDIFICIO PARA O BANCO COMMERCHL, ca: uns buracos de tijolo em que nao havia nem grelha. Em meados do século comecam a aparecer fornos de ferro do tipo especifico anunciado pela casa Sands: fogdes “muito fortes e igualmente simples na sua composicio, de maneira que po- dem ser sem receio entregues a discricao dos pretos’* Que podem ser usados por escravas e empregadas negras livres. Entretanto, o estabelecimento do Segundo Império na Franga (1852-70) da ao Segundo Reinado um novo tom de modernidade e confirma o francesismo das elites brasilei- ras.” Francesismo que ia além da cépia das modas parisien- ses expostas nas lojas da rua do Ouvidor e referia-se, tam- bém, a vida rural francesa. A um modo de vida caracterizado por uma cultura camponesa rica, menos desequilibrada que a da Itélia, menos riistica que a da Espanha e Portugal, mais densa que a da Inglaterra, mais presente que a da América do Norte. Folhetins, operetas e romances vindos da Franga di- fundiam no Império a imagem de um modo de vida rural, conservador e equilibrado, entrelagado de aldeias e pequenas cidades nas quais 0 padre ¢ o militar, quando havia casernas, apareciam como personagens de prestigio. Desenhava-se a representacdo de uma sociedade rural francesa que aparecia como um paradigma de civilidade para a sociedade tropical e escravagista dos campos do Império. 25, Ewes modelos norte-americanos de miquina de costura, patenteados em 1850, permitians o incremento das atividaces domésticas das mulheres livres ¢ escravas. (Museu Historico ional, c. 1850) AA + HISTORIA DA VIDA FRVADA NC BRASIL 26, 27. A homeopatia incorpora priticas da medicina tradicional brasileira e da fitoterapia indigena Escrito poucos anos antes, 0 livro sobre a homeepatia, do dr. Mure, ‘meédico socialista francés estabelecido no Brasil, id se encontrava na 42 edigao em 1851. Junto com 0 kardecismo e a homeopatia, (0 tratamentos médicos por magnetismo faziam sucessc Seguian-se as teorias do médico aaustriaco Mesmer {1733-181 segundo 0 qua! havia fluidos magnéticos dos seres vivos que se transmitian a outros individues, ‘com efeitos terapéuticos. (26. Jornal do Commércio, ago. 1854; 27 Jornal do Commeércio, maio 1853) a MEWORI' | "A NGETNW UNL 0 SOM, | PEORO ERNESTO ALBUQUERQUE DE oUWEIL VED woWeraTan,, contendo a historia dom sommambulismo, seus p 0S. SU vantagens ¢ sua utilidade. como exen plo de curas ob por este systema Distribue-se gratis em casa do ai RUA DES. JOSE N. 36. gnetisme © de Impresso em Paris, e publicado pelo editor francés Garnier, estabelecido no Rio sécio da editora parisiense, de mesmo nome, o Jornal das Familias, cheio de gravuras coloridas fran- cess , freqiientemente, de contos de Machado de Assis, com- binava os costumes franceses com a cultura local.” Dai a influéncia conjunta, por intermédio de autores franceses ¢ dos circulos francéfilos, de trés correntes de pen- samento e de pratica social que, numa certa medida, se com- pleam no cotidiano do Segundo Reinado: o positivismo, 0 kardecismo e a homeopatia. O positivismo enfatiza, nos es- critos de Auguste Comte, a preeminéncia da cultura latina e introduz o Império do Brasil no concerto das grandes nagdes contemporaneas: nao era pouca coisa para um pafs até entio vilipendiado por causa do tréfico negreiro. O kardecismo aparece como uma religido de brancos que integra 0 cien- tificismo e um dos componentes catarticos, liberadores, das religides afro-brasileiras, o transe.” Enfim, a homeopatia incorpora, como se veré em seguida, praticas da medicina afro-brasileira e da fitoterapia indigena. Médicos homeopatas interessam-se pelas curas obtidas mediante sonambulismo ¢ © magnetismo, abrindo a via ao kardecismo, enquanto os positivistas fazem propaganda da homeopatia. Mudavam as idéias, mudava também a musica imperial. ICA PRIVADA E ORDEN, FRIVADA NO IMPERIO. IMPASSES DA MUSICA IMPERIAL Flauta, rabeca e violao apareciam como os instrumentos europeus mais comuns no pafs até meados do século xix. Harpa, citara e cravo circulavam menos, ¢ o piano sé entrara em poucos sobrados do Rio, de Recife e da Bahia, sendo praticamente desconhecido noutras partes. Familias impor- tantes de senhores de engenho do interior baiano nao tinham nem visto um piano até os anos 1850.” A excecao do piano, todos os outros instrumentos apontados ja estavam, de mui- to, pautados pelos ritmos afro-brasileiros. Nessas circunstan- cias, na auséncia de uma culture musical européia, como impedir que os ritmos ¢ os sons africanos, afro-brasileiros, subvertessem as festas religiosas, civis, sociais? Como entalar nas senzalas 0 som das marimbas, agogés ¢ tambores? Que fazer para que o funeral nao virasse umbigada, e o canto de Natal nao engatasse no lundu? Esta era precisamente a per- gunta feita, em 1834, por O Carapuceiro, vituperando as fes- tas natalinas de Pernambuco num editorial que, hoje, se nos afigura delicioso: “Que quer dizer festejar 0 prodigioso, 0 Sacratissimo Nascimento do Redentor com saraus de seme- Ihante natureza, com o lascivo lundu? (...] Em alguns presé- pios até entram no circulo das pastorinhas mulheres avelhan- tadas, maes de filhos e até avés de netos, armadas de pandei- ros ou maracés, € nota-se que séo as mais dengues, as mais bulicosas e dangadeiras”® Nao se tratava apenas de um problema ritmico, ou mes- mo instrumental: a musica e as dangas afro-brasileiras apre- sentavam-se como resultantes de uma pritica social, de uma cadéncia sonora que compassava os trabalhos, os serées, 0 transporte de gente e de carga, o refluxo do choro, a sublima- ao da dor, 0 tédio da espera ao abrigo da chuva, 0 embalo dos bebés, a viagem para o Além. A onipresenga dos ritmos afro-brasileiros derivava da onipresenga da escravidio afro- brasileira.* Uma virada na musica e nas dancas imperiais sucede nos anos 1850 com o aumento das importag6es de pianos. Como se viu, 0 Rio de Janeiro recebe nessa época carradas de bens de consumo. O surto de febre amarela havia deixado os im- portadores preocupados com uma possivel queda no comér- cio da corte. Nao foi o que aconteceu, explicava um diploma- 45 AG * HISTORIA DA VDA PRIVADA Ni 28. As lojas do Rio vendiam, trocavam e alugavam pianos ingleses ¢ franceses, fazendo destes ventos musicais um must do Segundo Reinado, Na mesma 10ca, 0s pianos passam a ter partes ternas fabricadas em liga ca e resistem melhor a calor dos trépicos. (Jornal do Commércio, dez. i851 eoveeara BI pyar de Corl « Soyuh mil, RUA DOS OURIVES Riodeilancire — &y : ANNI IGUTIEY OM ROOGS OF WHINIOS, (COM KOTAVEIS MELHORAMENTAS E DE PAECCS AeOUZIDOS. ta francés, num despacho para 0 governo parisiense: “Nao houve nada disso, e as reunides entre estrangeiros ¢ nacio- nais, os bailes e as festas de todo o tipo sucederam-se com entusiasmo’ A mercadoria-fetiche dessa fase econdmica e cultural seré o piano. Aquela altura, o progresso da tecnologia indus- trial levara a substituicao, no corpo interno do instrumento, dos quadros de madeira por quadros de liga metilica, os quais, permitindo uma tragao maior nas cordas de aco, aper- feigoavam o som ¢ tornavam as afinacdes menos necessarias. Mais s6lidos e menos sujeitos a reparos, os pianos podiam viajar para os tropicos, servindo de frete para os navios es- trangeiros que respondiam a explosio da demanda de merca- dorias inertes no Império, depois de cessada a importagao de mercadorias vivas. As duas pequenas fabricas de pianos exis- tentes no Recife e na corte nao eram péreo para as grandes marcas que desembarcam a partir de 1850. Ao contririo dos outros instrumentos musicais até entéo correntes no pais, suscetiveis de serem aqui copiados por habeis artesios, o pia- VIDA PRIVADA E CRDEM no dos meados do século passado ja ganhara as caracteristi- cas de produto industrial sofisticado. Desenvolve-se um importante mercado para esse ins- trumento, Possufam-se pianos de todo jeito. Comprados a vista, em segunda mao, por meio de credidrio, no qual o vendedor aceitava 0 modelo antigo de entrada para a com- pra de um novo, ou alugados. Além dos pianos de cauda e de armério, havia um modelo mais modesto, uma grande caixa contendo 0 corpo ¢ 0 teclado do instrumento, mas sem pedal, que devia ser colocada em cima de uma mesa. Nos modelos mais sofisticados, ricos candeeiros completa- vam o mével. Logo surgem os primeitos sinais do assanha- mento consumista: “Aluga-se um lindo piano inglés, por nao se precisar dele”, anuncia, j4 em 1851, um morador da corte.** Se nao precisava, por que comprou? Porque dava status, porque era moda, a moda, anunciando os 25 anos, a maioridade efetiva de d. Pedro u, 0 fim da africanizagao do pais e da vexaminosa pirataria brasileira, 0 prentincio de outros tempos e dos novos europeus que iriam imigrar para ocidentalizar de vez o pais. Porque o Império iria dancar ao som de outras misicas. De alto valor agregado e de imediato efeito ostentat6rio — as duas caracteristicas que fazem desde entao a felicidade respectiva dos importadores e dos consumidores brasileiros de renda concentrada —, 0 piano apresentava-se como 0 ob- jeto de desejo dos lares patriarcais. Comprando um piano, as familias introduziam um mével aristocratico no meio de um mobilidrio doméstico incaracteristico e inauguravam — no sobrado urbano ou nas sedes das fazendas — o saléo: um espaco privado de sociabilidade que tornara visivel, para ob- servadores selecionados, a representagao da vida familiar. Sa- raus, bailes ¢ serées musicais tomavam um novo ritmo. Ven- dendo um piano, os importadores comercializavam — pela primeira vez desde 1808 — um produto caro, prestigioso, de larga demanda, capaz de drenar para a Europa e os Estados Unidos uma parte da renda local antes reservada ao comércio com a Africa, ao trato negreiro. No embalo do piano entra, nos sobrados ¢ nas fazendas, © papel de parede importado. Reproduzindo ornamentos, desenhos ¢ cores da moda, o papel de parede muda o visual acanhado do interior das residéncias imperiais. ADA NO WPERO + 47 AB + HISTORIA DA V 30. Os progressos téonicos das ‘rificas européias ¢ americanes trazem ao Império a meda do papel de parede pintado que m 0 interior das moradias brasileias. ‘A partir de 1837, navios americancs trazern gelo diretamente do inverno nova-iorquino para 0 verao carioca. No Rio, aparecem as prim sorveterias que vendiamt raspadinha de diverses sabores. O sorvete reconfortou 0 desejo de cosmepolitismo da corte. (29. Jornal do Commeércio, fev. 185: 30. Jorna! do Commeércio, ago. 1852) 64A RUADOOUVIDOR 64A DIFRONTE DO JORNL DO COMMERCIO. soe gata ms meee sae ac oon oe ames SORVETES E GELO eros os dies depois das 11 horas, na confeitaria do Leao, ra do Curidor n. 30. c Os efeitos dessa mudanga no consumo e nos costumes sao considerdveis e repercutem em varios planos. Reflexo do potencial do consumo brasileiro de mercado- rias caras e ostentatérias, instalou-se na corte uma viva con- corréncia entre os importadores dos pianos franceses (das marcas Erard, Pleyel) e ingleses (Broadwood, Towns & Pa- cker). Nas estatisticas inglesas, a exportagao de “instrumentos musicais” para o Império atinge na década de 1850 0 seu patamar mais alto.” Erard, 0 maior fabricante de pianos da Franca, abre uma filial no Rio e publica na imprensa um comunicado redigido sob medida para bajular a auto-estima do consumidor imperial: “Apreciando devidamente a impor- tancia deste grande mercado, o estado adiantado da arte musical nesta corte, 0 sr. Erard nao duvidou fundar nesta capital um grande depésito [...] convidando assim todos os artistas, tanto brasileiros como estrangeiros, e todos os curio- sos da corte pira virem por si mesmos apreciar os seus ins- trumentos”.* Sem compromissos com a venda de pianos, outro fran- cés, Charles Epilly, pinta, alguns anos mais tarde, um retrato menos lisonjeiro do estado das artes na corte. “O Rio possui hoje um teatto lirico [...] suas ruas s4o iluminadas a gés ¢ ha um piano emcada casa. £ verdade que esse teatro est situa do no meio de uma praca infecta [...] que as ruas, sem pas- seios, sao mal calcadas de pedra bruta, e que afinal, nos tais PIANOS INGLEZES Legitimos afiancados e por precos commodos, 61. RUA DOS OURIVE: 61. muaed DEPOIIO LEOINMO Nua do Ouvinbr 0, Jose. alagde-se € trocsonne lems sao proprios para_o Beaail, redtar il. sem diseriminar, seria INGLEZES 66 MEME KEUEE, 66 “0s pianos Lexes sii St vel clin tena oF ves sorte is opi snariavel| Pianos [...] nao se tocam sendo miisicas de danga, romangas e€ 31. Uma viva concorréncia polcas”” © poeta e critico de arte Aratijo Porto Alegre chama _ instalou-se no Rio entre os © Rio de 1856 de “cidade dos pianos”. Bronqueado com a _ i”Portadores de piano: ingleses moda imperial de tocar piano, Mario de Andrade assinala que nessa época viajantes estrangeiros comecam a toparcom de publicade de cade un deles eva os instrumentos em fazendas situadas “cem léguas, interior 0 de maior resisténcia de seu produio adentro, transportados a ombro de negro”.® E Machado de [ao calor topical. (Joraal do Assis compée a charada que se coloca aos compositores im- Commé*i0. set 1851) Periais pelo fato de o piano estar fora do lugar. No seu conto “Um homem célebre”, ele narra o drama artistico de Pestana, pianista na corte e apaixonado de Mozart, Beethoven e Bach. Dia apés dia, Pestana sentava diante do seu piano, olhava 0 Tetrato de Beethoven e dedilhava o teclado, tentando compor Broadwood e os vendedores de pianos franceses E 50 + HISTORIA DA VIDA 32. A privatizagao da festa piblica: 0 Carnaval de saldo se torra marca de status, enquanto o entre, 0 Carnaval de rua, é alvo dda repress policial. (A Semana Mustrada, 1863) RVADA NO BRASIL 2 sonatas. Tocava Haydn, tomava café sem parar e, quando des- cia a inspiragao, s6 compunha polcas, Do piano, instrumento nobre, capaz de alg4-lo aos pincaros da arte ocidental, Pesta~ na s6 conseguia tirar polcas. Musiquinhas populares que seu editor, baixamente mercendrio, intitulava “Senhora dona, guarde o seu balaio” ou “Nao bula comigo, nhonhé”.*" Pestana sofria assim porque queria dar & sua atividade um cariter ptblico. Queria transformar-se num grande artis- ta. Mas o piano permitia exercitar pendores privados no am- Dito dos saraus familiares. Por isso, as modinhas para piano continuaram sendo difundidas em meio a esfuziante impren- sa musical do Segundo Reinado. Menos atormentado que Pestana, Paula Brito, o agitador cultural do Império, compos um lundu para piano que estourou na corte e nas provincias, “A marrequinha de iaié” (1853). “Marrequinha” era um lago do vestido amarrado na altura das nidegas, mas também, como sugere Tinhorao, “alguma outra particularidade anato- mica sexualmente apetecivel”. Quem quer que tenha sido a iaid, e fosse de quem fosse a marrequinha, os versos do lundu continuam guardando um encanto arrebatador: Jaid, nao teime, Solte a marreca. Se nao eu morro, Leva-me a breca.? Novidades nacionais e estrangeiras recebiam a aprovagao da sociedade e da imprensa da corte — transformando-se em moda imperial —, e dai irradiavai para o resto do pais. Sedia- VIDA PRIVADA E ORDEM PREVADA NO IMPERIO. + 51 dos no Rio, na rua do Ouvidor, os italianos Filippone e Torna- ghi, editores de O Brasil Musical, revista quinzenal que publi- cava pecas para canto ¢ piano, anunciavam possuir filiais na Bahia, Pernambuco, Porto Alegre e Buenos Aires. Tomando a modinha a sério, Emesto Nazareth (1863-1934) e, mais tarde, Villa-Lobos, iriam por o piano no seu devido lugar, resolvendo o impasse que atribulava Pestana. BARRADOS NO BAILE: A PRIVATIZACAO DO CARNAVAL Além das noves misicas, havia a 6pera. O casamento, em 1843, de d. Pedro 1 com d. Teresa Cristina, irma de Fer- nando 1, rei das Duas Sicilias, traz de Napoles e outras cida- des mtisicos e cantores italianos. Numa de suas resenhas, Martins Pena critica os altos salarios que 0 teatro imperial Sao Pedro de Alcantara — financiado por José Bernardino de $A, grande negreiro e amante do bel canto — oferecia aos cantores de Gpera, atraindo cantores italianos que chegavam “em cardumes as nossas praias”. Numa de suas pegas, O dile- tante, ele parodia a mania da 6pera e a falsa cultura musical na corte. Outras pecas satfricas nacionais, representadas nos teatros no intervalo das pecas mais célebres, assumiam sem complexos 0 grotesco do sadismo escravocrata. Na opereta A vara mdgica, anuncia-se que “o ator J. M. Ramos cantaré a muito aplaudida ari pres “Meu idid vocé me mata”: Nos bailes puiblicos e privados dangava-se a “cachucha’ danga andaluza que fez grande sucesso na primeira metade do século, como o lund. Depois veio a polca, o fandango, a valsa, a quadrilha e 0 schottisch, mais tarde conhecido como “xote”. A partir dos anos 1870 aparece 0 maxixe, que Ernesto Nazareth, por razes de marketing, chamaré de “tango brasileiro”, Partitu- ras musicais de piano estavam sendo constantemente postas a venda ¢ anunciadas nos jornais. Também apareciam reclames de demonstracées, nos teatros e salées da corte, sobre a maneira de dangar os novos ritmos. Assim, a imprensa anunciava uma apresenta¢ao paga, num dos teatros da cidade, da danga schot- tisch, por dois casais franceses “vestidos a crater”. Informava-se ainda a venda de uma partitura de schottisch em quadrilha de contradangas, dedicada “as sociedades de bailes da corte”. Qua- drilha “muito recomendavel as senhoras pianistas, nao s6 pela graciosidade do estilo, como pela facilidade de exegy PROVISORIO. cowrasmy fret do Eatrio em son as primas-denas i seppina Zeechin: ¢ Aupusta Candiaai, Recents ba ope NORMA Mesa de Bin F Austere A.camtan exeatad # pate ain 3 Te Passe 4 DSI5. [0 esto carat eles aes re aemed serpin vee Cnet fake ma ers 33. Un grande sucesso no Segundo Reinado, a 6pera Norma, de Bellini, que a Companhia Lirica Italiana ‘apresentava pela 83: vez no Rio, ‘em 1853, com as divas Giuseppina Zecchini ¢ Augusta Candiani, Foi essa trupe italiana que inventou 0 Carnaval de salao carioca em meados dos anos 1840. (Jornal do Commércio, mar. 1853) f 52 * HISTORIA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL 2 3. Arlequim de canoa zomba des _grifinos cariocas durante a enchenie do Carnaval de 1867. Pierré, Colonibina, Arlequir, personagens da commedia dellarte italiana e estranhas ao foiclore lusitano © afro-brasileire, incorporam-se acs carnavais do Rio por influéncia dos atores de épera italianos. (O Arlequim, 1867, Rio de Janeiro) Entretanto, nos bailes maiores, mais piblicos, ocorreu ume ruptura fundamental. Separou-se a festa da rua, popular e negra, embora de origem portuguesa — o entrudo —, da festa do saléo branco e segregado, 0 Carnaval. Tudo comecou em meados dos anos 1840, quando uma trupe italiana, falida na corte, resolveu se virar e organizou no teatro Sao Januari “um carnaval veneziano de miscaras’. Alguns anos depois, um edi- torial do Jornal do Commércio, sob o titulo “O nosso Carnaval’, satida 0 éxito da nova festa: “O Carnaval [...] é mil vezes prefe- rivel ao entrudo de nossos pais, porque € mais proprio de um povo civilizado ¢ menos perigoso a satide”, Civilizado porque mais europeu. Mears perigoso a satide porque, no entrudo, além dos limoes-de-cheiro, podia-se receber na cabeca 0 con- tetido dos penicos dos sobrados eas pauladas dos capoeiristas. ‘Ao contrario, no novo Carnaval havia entrada paga e des- file compassado de carros alegoricos, no modelo italiano, co- mo 0 carro do Congreso das Sumidades Carnavalescas. No verio de 1856, anunciava-se que «elite paulista também havia aderido ao “carnaval veneziano” repudiando “o entrudo mole- que’® Clubes privados passam 2 preparar 0 Carnaval para seus sdcios. Um rechme da loja As 10000 Mascaras, da rua do Ouvidor, prevenia, is vésperas do Carnaval: “Convidamos os ilmos. srs. s6cios do Club Fluminense, e aos mais apreciadores dos bailes mascarados, a virem visitar e examinar os nossos costumes 4 fantasia, onde acharao riquissimos ¢ novos ‘domi- nés’ de seda”. Figuras carnavalescas da commedia dell’arte ita- liana, desconhecidas no Brasil —Pierré, Arlequim, Colombi- na —, incorporam-e ao folclore urbano e literario nacional. Duas décadas mais tarde, Joao Romio, o taverneiro agiota de O cortico, arrepende-se de sua sovinice e da vida pouco aten- ta a promogao social: “Fora uma besta! [...] Por que [...] ndo aprendera a dangar? e freqiientar as sociedades carnavalescas? nao fora de vez em quando & rua do Ouvidor e aos teatros e bailes, e a corridas ¢ a passeios? [...]”* Os bailes carnavalescos de sakio — privatizando um divertimento publico para os s6- cios dos clubes e os que podiam adquirir ingresso —haviam se tornado marca de distingdo, coisa de gente fina. Em oposi ao “entrudo moleque’, festa publica para o grande publico, evento de rua e alvo designado das cacetadas da policia, Arle- quim, Pierrd, Colombina séo alguns dos novos nomes popu- larizados no Brasil durante 0 Império. DAR NOME AOS BRASILEIROS: JOAQUINS, LYCURGOS, ROSALINDAS, CAIOS, JEFFERSONS E BISMARCKS F sabido que a Independéncia desencadeou um movi- mento lus6fobo e nativista de troca de nomes de batismo. Hé casos conhecidos de “tupinizacio” de sobrenomes. Como 0 de um ramo da familia pernambucana Galvao, que passou a chamar-se Carapeba. Porém, 0 exemplo mais célebre, se nao © mais radical, € 0 do visconde de Jequitinhonha (1794- 1870), baiano, fundador da oas e estadista do Império, cujo nome de batismo era Francisco Gomes Brandao. Herdeiro de um negreiro da Bahia e homem de cor — como dois ter¢os dos habitantes de sua provincia —, 0 futuro visconde diplo- mou-se em direito ¢ filosofia na Universidade de Coimbra, onde ganhou, segundo Katia Mattoso, “brilhante reputagao nos estudos e péssima nos costumes”. De retorno a Salvador, 35. No sibado, dia 25 de fevereiro, ras do Carnaval de 185: via As 10000 Mascaras aniuncia a Jantasias, “tudo feito expressamente para este Carnaval”, (Jornal do Commércio, fev. 1854) 5d. * HISTOR DA VDA PRWADA NC BRASIL 2 ingressou na nilitancia independentista e, em 1823, trocou seus nomes portugueses por uma onomastica esdréixula, um verdadeiro manifesto nativista: passou a chamar-se Francisco Gé Acaiaba de Montezuma. Gé, ou jé, é sindnimo de tapuia, Acaiaba vem do tupi, e Montezuma era o imperador asteca capturado por Cortez durante a conquista do México.” Havia na dite imperial um fascinio pelos astecas, os quais, aparecendo como a sociedade mais civilizada da Amé- rica pré-colombana, inspiravam a maneira mais civilizada de declarar-se pré-americano. O proprio regente d. Pedro, futu- ro Pedro 1, tomao nome de Guatimozin, o ultimo imperador asteca, ao aderit, em 1822, a loja macénica Grande Oriente do Brasil. D. Redro entrara na maconaria guiado por José Bonifacio, ele mesmo introduzido no Grande Oriente de Portugal, em Lisboa, pelo conde de Linhares. Por meio da magonaria, criaram-se laos de sociabilidade entre a elite rei- nole a elite colonial. Contudo, na transferéncia da corte, as lojas mudam 0 seu referencial simbélico, aderindo ao india- nismo postico da elite brasileira. Uma das trés segdes mag6- nicas do Rio de Janeiro afiliadas ao Grande Oriente Brasil ro, toma o nome de Esperanca de Nictheroy. Aquela altura, Niter6i nao tinha ainda virado nome de cidade, e lembrava 0 nome primitivoda bafa de Guanabara. Os excesses da imagem indigena que se pretendia colar ao Império susitaram, anos mais tarde, uma reacio do his- toriador, médic, militante homeopata e poligrafo alagoano Mello Moraes, iscendente do poeta Vinicius de Moraes. Ir- ritado com a estatua eqiiestre de d. Pedro 1, inaugurada na praca da Consituicao, na atual praca Tiradentes, onde esta até hoje, ele esceveu no seu jornal Brasil Histérico: “O impe- rador esta a cavalo, com a Constituigao aberta na mao. No pedestal se achim jacarés, alguns outros bichos e também enormes e exagradas figuras de indios. Tudo isto [...] parece uma cacoada. Pois o imperador proclama a Constituigao aos indios e aos jaarés? [...] Que parte tiveram estes indios e aqueles jacarés aa Independéncia do Brasil?”.”! Para além da moda indianista, a mudanca de nomes € sobrenomes deixa de ser incomum apés 1822 e toma outro significado durante as lutas civis da Regéncia. VIDA PRIVADA E CR ———____. MANOEL José de Araujs far sctente a0 respeitavel publico que por haver ontros igual nome, jd Anuncio, «agora rectifica ques assigna Manvel José Nibviro de 4 raujo. SS ee ees Conforme a tradicio portuguesa, nao havia no Império nenhuma lei civil fixando normas a respeito da matéria. Qualquer um podia batizar seus filhos com os nomes da mae ou dos avés. Irmaos tinham as vezes sobrenomes diferentes e as mulheres nao adotavam os nomes dos maridos. Também parecia ser relativamente facil trocar de sobrenome. Pritica derivada da circunstancia de haver um estoque reduzido de prenomes tradicionais portugueses, ¢ do raro habito de se anexar “Filho”, “Junior” ou “Neto” aos sobrenomes. As regras atualmente em vigor nessa matéria s6 foram fixadas em nos- So pais pelo Cédigo Civil de 1916.” Gilberto Freyre observou a mudanga dos nomes cristaos Para prenomes gregos e romanos, ¢ depois ingleses e france- ses, na seqiiéncia da desruralizagao das classes dominantes no século xix” Segundo ele, teria havido certa cronologia tematica nessa evolugo. Nao é a impressio que se recolhe lendo O Carapuceiro do ano de 1837. Nele, 0 padre Lopes Gama escrevia que diferentes géneros de novos prenomes se Propagavam numa mesma onda, desde aquela época. Aban- donavam-se os nomes tradicionais portugueses em proveito de outros, tirados da mitologia, da histéria, dos romances e até da geografia. Como de habito, o editor de O Carapuceiro caricaturava a nova moda: “hoje quase ninguém se batiza se nao por Seneca, Fociao, Socrates, Epaminondas, Lycurgo, Mitrades ou por Jupiter, Marte, Saturno, Vénus, Diana, Mi- nerva, ou por Antuérpia, Philadelphia, Marilandia, ou final- mente, 0 que € 0 bom-tom, por Clélia, Adelaide, Getilia, Eufrogina, Clarissa (...] alguns pais tém levado 0 bom gosto a ponto de inventar, e engendrar nomes compostos de flores, batizando as filhinhas por Jasmilindas, Perpetulinas, Beme- querinda: O fendmeno parece estar ligado a0 contexto as vezes na- tivista, as vezes simplesmente deslusitanizante, da Regéncia. PRIVADA NO IMPERIO. + 55 36. O estoque reducido de nomes Portugueses usados no Império levava @ traca de nomes ¢ de sobrenomes, pritica relativamente corrente e facil de ser realizada, (Jornal do Commércio, maio 1852) 56 + xIsTORAD 37. O pintor abolicionista Harro-Harring registra wnt momento crucial de opressio escravisia sobre a seciedade: qualquer negro ou sulatolnre podia ser conjundido com ue cativo em fuga. As veces 0 escrav» fugido, misturado & populapao da cidade do Rio, traia-se ao respond: quando 0 chamavam por seu artigo nome. (Paul Harro-itarring, Brasikiro acreditando haver reconbecdo seu escravo fugido, 1840) Antes disso predominavam os nomes tradicionais: 0s réis de centenas de individuos citados nos inquéritos sobre as revo- lugées mineira (1842) ¢ pernambucana (1848-9) — e por- tanto nascidos no Primeiro Reinado ou em data anterior — mostram uma esmagadora maioria de nomes tirados ainda da onoméstica portuguesa. VIDA PRIYADA E Jé na década de 1880, num quadro bem diferente — na cidade de S40 Paulo, onde despontava a vaga de imigracéo européia —, Ina von Binzer trata do mesmo assunto, numa de suas cartas para a Alemanha. Depois de ironizar a mistura de nomes, a penca de sobrenomes, a batelada de apelidos (“imagine os seguintes irmaos enfileirados: Sinhazinha, Nho- nhé, Nhanha, Sinhara, Nené, Nhonhozinho, Bebé”) e a facili- dade com que se trocava o patronimico, ela fica indignada com uma dentincia de um jornal alemao de Sao Paulo: ao ser preso na cidade, um vigarista brasileiro afirmou chamar-se Joao Leao Bismarck! Se o imperador tolerava os “pseudos” Pedros de Alcantara que corriam as ruas e os bardes do Im- pério deixavam seus ex-escravos adotarem seus nomes, tudo bem, era problema dos brasileiros. Mas Ina pensava que 0 governo alemao devia reagir, proibindo o uso dos grandes nomes de seu pais em nossas plagas.” Ao contririo do que escrevia a perspicaz governanta alema, nem sempre a classe dominante manifestava olimpica indiferenca sobre as home- nagens que incidiam sobre seu patriménio patronimico. Joao Ramos, militante do Club do Cupim, agremiagao pernambucana de abolicionistas radicais, reage mal quando descobre que um ex-escravo, ao qual dera fuga em 1887, assi- nava-se “Joo Ramos’. Este escrevera ao seu benfeitor uma singela carta de gratidao, informando que se encontrava em seguranga no Ceara, onde a escravidao ja havia sido abolida. No entanto, o insuspeito abolicionista anotou azedamente & margem da carta: “tomou para si o meu nome e tem a petu- lancia de escrever-me, divertindo-se comigo””* ‘A propaganda republicana do final do Império traz os novos nomes americanos — Jefferson, Franklin, Washing- ton — e relanca os classicos da reptiblica romana (de 509 a 29 a. C.) — Muicio, Mario, Cornélia, Caio. De Marco Auré- lio, Julio César, imperadores de Roma, mas também de Ani- bal, Amilcar, Viriato — os dois cartagineses e o lusitano que combateram as legides da Roma republicana —, pode-se pensar que representassem, as vezes, uma reagdo monar- quista ao proselitismo onoméstico dos republicanos. Na mesma vaga, apareceram os Augustos, as Clotildes e outros titulares do panteao positivista. De tado modo, o troca-tro- ca de nomes parece ter sido pautado pela evolugao das dife- rentes camadas sociais. mare “7

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