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Joaoumm RIBEIRO. O padre Joseph de Anchieta (1), aos 17 anos entrava para a Companhia de Jesus e tres anos mais tarde, em 1553, chegava ao Brasil na comitiva do segundo governador geral D. Duarte da Costa, onde tambem viajavam outros jesuitas, entre os quais o padre Luis da Gra. Foi mandado para o Brasil nfo s6 porque, como diria Vi- eira no sermao da Sexagesima, amava a Companhia Mais os “passos” nas Missdes mais distantes do que “Pagos” da Europa — como ainda por ser franzino, de eompleicao fraca, doentia e ser o Brasil a terra em que a primavera era perpétua. Razoes de £6 e razOes medicas trouxeram 0 moco jesuita 4s terras brasilicas. Aqui ja ser a ptimeira figura da_ literatura que, nestas praias, ia florescer. Antes dele apenas o que existia era uma literatura de exotismo, diarios, eartas e informagoes sobre a terra e sobre og selvagens, que a povoavam. i’, na.verdade, algo ingenuo descobrir em tais documen- tos meramente informativos e, sem duvida, interessantes, os ca- racteristicos fundamentais, as tendencias definidas de nossa li- teratura: a descrigao da paisagem e a pintura dos selvagens. Esta afirmativa, que.anda espalhada em nossas historias rarias, 6 positivamente falsa. Erre repetido de Silvio. Romero. Tais documentos no refletem earacteristico aleum de nossas letras; 0 que cles indicam é apenas o exotismo de nossa regiao. FE isso é wma feieio geral nao s6 em Portugal como nos demais paises navegadores. E’ a literatura das viagens e narra- lite 1 — Deve-se pronunciar Anxieta (com x) e nio Anquieta que, por italianismo injustificavel, se ouve, algumas yezes entre nos. Conforme elu- cida Capistrano de Abreu nos documentos antigos e coeyos apareciam as duas grafias seguintes: Anxieta e Anxeta. Acha Afranio Peixoto que esta ultima (Anxeta, sem o i) representava fiehnente a prosodia basea, E’ uma conjectura ao que parece. RNB. 18-19—2 } 18 Revista NACIONAL DE Epucacao tivas, que polularam durante a era dos descobrimentos e das conquistas ultramarinas. E’ a literatura do exotismo colonial, com todas as suas pinturas reais e, nfo raro, com as mentiras 4 Fernio Mendes Pinto. Nao ha duvida que todos esses diariog e roteiros epistola- res sdo manifestagdes em que surgem, ora os deliciosos rabiscos de um Pero Vaas de Caminha, ora os quadros incolores de um Pero Lopes. Mas, nao sao literatura no verdadeiro sentido, isto é, num sentido estético inegavel. Joseph de Anchieta foi o iniciador, foi o Pero Vaas de Ca- minha da poesia brasileira, e nada exprime melhor uma literatu- ya do que a poesia, centro nuclear da estetica antiga. Aliés, procurando esclarecer a verdadeira significagaio in- teleetual do veneravel apostolo, os nossos historiadores litera- rios, a meu ver, nao acertaram com a verdade. Ha quem tenha visto em Anchieta' o perfil de uma figura da Renascenca. Parece-me, todavia, um erro de definigao. Ronald de Carvalho, quando assim no pincelou na sua “Pequena Historia da literatura brasileira” (que melhor intitu- Jar-se-ia “Historia da pequena literatura”) nao reproduziu 0 co- lorido verdadeiro. Na mesma trilha o padre Leonel Franca na ofall ravel apo- Jogia que fez no Instituto Historico, por ocasiao do quarto cen- tenario do nascimento do grande apostolo, procura ver em Joseph de Anchieta o desabrochar de uma flér do humanismo do seculo XVI e avanca mesmo uma afirmativa algo contestavel quando sugere haver no poema da Virgem, do humilde missionario, re- miniscencias de Virgilio, Horacio, Tibullo, ete. Nao quero contestar o esteta diplomata nem a maior figu- ya do clero brasileiro. Apenas me parece que ambos escritores deformaram o perfil de Anchieta nos riscos essenciais. Anchieta foi, na verdade, um espirito medievel. A sua atitude psicolégica nada demonstra que se possa aproximar dos tipos caracteristicos da Renascenca. O que ele procura imitar 6 a tradigio pura dos monges e ascetas do Medievo. Ele, nesse ponto, reflete apenas a finalidade da companhia de Jesus, que REVISTA NACIONAL DE EDUCcACAO _ procurava restaurar a religido - catélica, retemperando-a nas fontes cristas dos primeiros séculos medievais. : Tudo nele vem dessa tradicéo longinqua e esquecida na Re- mascenga. Nao 6 tao somente a sua atitude mistica de religioso. A sua estetica tambem de 1a. O POEMA Nenhuma outra composic¢ao anchietana revela tao bem o seu espirito, embuido de idéas medievais, como 0 poema que ele dedicou 4 Virgem. Esse poema, que, segundo relata Simfio de Vasconcellos - na Cronica da Cowipanhia de Jesus e na Vida do veneravel pa- dre, Anchieta escreveu nas areias da praia de Iperoig, quando esteve, em 1563, juntamente com Nobrega, pacificando os tamoi- os enfurecidos — serve para evidenciar nitidamente o espririto medieval do Poeta. « Imagens e metdforas vulgares na Idade-Media se encon- tram iguais ou levemente modificadas no poema da Virgem. Hste poema “De Beata Virgine Dei Matre Maria”, escrito em latim, compde-se de 2086 disticos. Foi publicado anexo 4 Cronica da Companhia de Jesus do padre Simao de Vasconcellos ena Vida do Veneravel Padre Joseph de Anchieta do mesmo autor. Segundo o mais autorizado conhecedor da_ bibliografia jesuitica, 0 erudito padre Carlos Sommervogel S. J. na Biblio- théque de la Companhie de Jesus (tomo 1), encontra-se referen- cia ao mesmo poema latino com denominagées diferentes da que se encontra em Simao de Vasconeellos, assim: “Vila Beatissimae Virginis Mariae” (manuserito do seculo XVII) e “Poema Mari- anum” (ano de MDCCCXXXVII, Tenerife). Tais batismos sio variantes sem importancia. Deve-se, to- davia, preferir a que se encontra em Simao de Vasconeellos (De Beata Virgine Dei Matre Maria). Ainda nio se fez a desejada edic&o critica do poema, apontando os erros de metrica (que sio numerosos) e as varian- tes de acordo com os varios textos. 20 REVISTA NACIONAL DE EDUCACAO Em lounor da Wirgem, 481 IOS VERSOS QVE SE SEGVEM SAO OS QVE prometi no linro 3,fol 3:0.defta Obra, por nko interromper aleitura , €5 fab 0s queoVenerauel Padre lofeph de An- chieta compos,quando: efteue emrefens entre 05 Indios bar baros,com ajuda da Virgem,cferewendoos na praia em lu ar de papel que alli naotinha,nemtinta. JESVS MARIA. DE BEATA VIRGINE DEI MATRE MARIA Lapua amfilci(an fom dae | jE T4jem fume comet mente Paros, Sham fil ilovteseagaer aneeent|| Cys nize Dra eenaprrsrs1, PRS) ssneveeta py fas Ure care || Que fess mantem prgares[oatesoesemy ee fier pages vera meds me a Qualses Farge peat dls GAN) Sed ter omperd ta Arcs esr ingd, “Taseaars [alae prima pom patents, (Que larder mule setemerers eli, (Que Virum ea nore ms fre Sather ey qa clo fit ene Tonentom [Raver lst Lingus profane lagu en Sopa fag guia ass epee 8g tam atid cece cof ae. am tf Labeda fot sane epeniy ‘Cajas capt fst femina pra ds, uae pf tua concep oh entre paretia (vd macilat cons ermine ole cathe conunmat gd capa four cave Dia ig eprftas feb pe coe tes 0 fciefzaimusrieuta compa ie, Que per sngica exuprae st great nfl Vrge immacuals eevee cane fom Sasi as agroscapibat ferns Propet i tecarminbes precmae fe reste fee. 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As demais devem ser interpolacées, sem duvida, do pro- prio Anchieta, enxertadas ou antes acrescentadas, mais tarde, — pelo poeta missionario. ‘ ste poema latino, estudado em suas fontes, revela ime meras aproximacées e vestigios de poesias sacras e hinos da Idade-Media. ( E argumento a minha assereio com algumas comparacées _ Shee + eas) por exemplo, a passagem de “De partu Virgi- nis Mariae”, do mencionado poema. Ai nessa parte sao inumeras Sas ialaeenoae de textos mediaveis. + Vejamos o seguinte trecho: Nascitur humano vestitum corpore Vérbum Et tua virginitas intemerat manet Ut viridis profert nitidum virguncula florem : Nee trusufloris loeditur ipsa sui. * Ora, esses dois ultimos versos nada mais sao do que um reflexo dos celebres Hortulus, poemas sobre o ventre da Virgem Santissima, que foram muito vulgares na Tdade-Media. Conrad de Haimbourg, morto em 1360, assim, por exem- plo, poctava no seu Horiulus: Ave, virgo, cujus hortum Dum descendens Dominus Per se visitavit Inde tollens quam plasmavit Vestem carnis fragilom Clausum dereliquit...- 22 ReEvisTA NACIONAL DE EpucAcAo Logo. adiante nessa mesma passagem vem esta compara- Ut sol subtili penetrans specularia luce Illoeso radians itque reditque vitro. Ora, essa imagem, nada mais 6 do que uma velhissima comparacgao, popularissima na Idade-Media, que se encontra em Pedro Lombardo (seculo XIT) em prosa: “Sol penetrat vitrum, nec frangitur aut violatur si Virgo peperit nec maculata fuit.” 1 g 0 popular foi essa comparacdo que ficou até petrifica- da no folclore (#). : Na parte mnemonica, que ja aludi, comeca o poeta a lou- var a Virgem em ordem alfabetica e justamente o primeiro sim- bolo que ele busca para louvar a Virgem é a arvore, chamando-a de “arvore da vida eterna”, trecho que foi traduzido assim pelo » Dr. Afonso José de Carvalho: Ah, se bem considero és tu, 6 Virgem Santa, A aryore da vida eternal, abundante Que aprofunda a raiz na pobre terra humitde E roca pelos ares a fronde de gigante. f Ora, essa comparacio ja se encontra nas sequencias “De Sancta Maria”, da autoria de Santa Hildegarda, que morreu em’ 170. La esta: © virga... quae es in clausura tua sicut lorica Tu frodens floruisti in alta vicissitudine quam Adam omne genus humanum producerat ~~ Vide o meu estudo Literatura e Folclore (Revista Nova, n.° 2, 1931, S. Paulo). Como se vé fotne essas passagens do poema da Virg de Anchieta, em vez de reminiscencias da Antiguidade classics como supoz o eminentissimo Leonel LCG sd0_ reminiscencias — medicyais, nitidamente medievais. : E nao se pode opor a objecdo de que Anchieta nao tinha: meios de conhecer tais textos medievais (*), pois, na epoca era yvezo correrem, em manuseritos, mumerosos cancionciros, verda- deiras antologias feitas 4 pena de pato. A mesma dificuldade, alids, poderia se ‘levantar a respei- to dos classicos latinos (Virgilio, Horacio, ete.), que, alem de tudo, eram autores profanos.. 2 = Tudo, pois, s6 favorece a minha tese. Essa exegése ligeira e breve, feita a respeito a6 poema, da Virgem, ainda se confirma com o exame das fontes de nume- Tosas poesias vernaculas de Anchieta, que tambem nao escon- dem o modo medieval. Ja alhures (4) demonstrei que o poema ao Santissimo Sa- cramento do yenerayel apostolo nada mais 6 do que uma para- frase da poesia Panis angelicum de Santo Thomas de Aquino, que, alem de filosofo, foi poeta tambem. Tudo isso s6 prestigia.a minha critica do poema latino, que infelizmente ainda nao encontrou o latinista que o pudesse ‘editar ¢ comentar minuciosamente, esclarecendo as obscurida- des e salientando os enganos, que, aliés, nao sAo poucos. 3 — Os textos medievais citados, busquei-os na admiravel obra de Remy de Gourmont — Le latin mystique, 4 — Jornal do Comercio, 26 de mar¢o de 1924.

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