Você está na página 1de 3
‘Mis Cote — Bite dgua, doutor — declarou, enforico, Damito. — Esta dgua 0 noss re. ‘As pessoas cantaram e dangaram usando as cemzadas para marcar o compasso. Puxaram pelos ‘bragos do arquedlogo e fizeram com que ele p Thasse daquelacelebragio. Aos poucos, o cientista foi-se deixando possuir pela alegria geral. Afinal, ‘pensou o historiador, einava ali uma outra visio do mundo. Uma visio mais poética, mais pura ‘mais profunda. Naquele mundo,os mortos perma- necem vivos. E nada pode ser mais vivo do que ‘gua. "No dia seguinteohistoriador fez as malas, arru- mou a tenda na bagageira do car ¢ jf acenava tum vasto adeus quando foi interpelado pelos dois chefes. = Mio se exquesa da promessa, meu boss — disse um deles. “Afinah,ctamastados flies cm o resultado de rosa eva — declarou o outro. Ezequiel Nicolau colocou 0 chapéu e os 6culos cscuros. Enterrava no rosto uma sombra que nem ‘omnis atento dos arqueélogos seria capa. de dete~ tar. E havia um rei que nascera e morrera dentro dele naquele dia. ™ A borboleta [No excrtério da multinacional, num décimo aquinto andar da capital, surgiu uma borbolet. Tstava pousada no microfone da sala de reunies. ‘A secretiia Marlene aproximou-se com infinita cautela sentou-se numa das caderas da sala vazia fe permaneced imével durante longos minutos. Obhou em conta para a asus colordase chow aque estava na presenga de uma mensageira. Usou ‘eimara do su telefone para fotografro sero, fditou a imagem para realgaras cores e emviou-a ‘amas tantas amigas, PA enqusou no Google 0 ocalo sentido daquls sparigio. Havia uma longa lista dos signifcados espiritais das borboletas:renovaso e anncag%o tram os mais comuns. Noutra pagina, o texto era Ia apeativo: Vcd sabia que os anos se cman a puetonent coat las? Marlene filmou agueleanjo que permaneciahirto 6 no poleiro metilico quando foi sacudida por uma vor interior. Aquela borboletatrazia o recado da fertlidade, H anos que Marlene esperava engra- vidat. E ali se apresentava, delcada einesperada,a boa-nova hi tantos anos esperada “Marlene inspirou fundo ¢ voltou & sua postura profssonal. Na qualidade de secretiria da diregao comunicou a aparigao a seu superior 0 ditetor de Recursos Humanos. O marido de Marlene, o Os6- rio, meses desempregado,rrta-se sempre que ela Ihe fala do seu local de trabalho. Recess Humana, pergunta 0 marido, Prefir © desempreg a ser tra~ ‘ado come erecursox, Ono reage assim por despeito, ‘pensa Marlene, La em casa ela € a chefe de fafa, diretor nao levantou os olhos do computa- dor. E assim manteve Marlene na habitual inisi- bilidade. Nao seisereparou, Marlene, que tratames de Recursos Humanos. Foi o que murmurou. E sempre de olhos bainos, vincow 0 qualifcativo: — Humanos, esté a pereber? Borboetas mio me parece que ria da nossa compeléncia ‘Mandou que se pulverizasse «sala com um ise ticida. Desesinaderes,acrescentou. Em pinico, Mar ene fingi acatar a ordem. Ja fechava a porta quando ‘odiretorseergueu, atacado por site preocupasio. = Onde €que etd a mariposa? —E uma borboleta. Esté na sata de reunites. ‘Marlene acompanhou a acelerada marcha do hefe ao longo do corredor. As borboletasfecham as asas por cima do corpo, foi explcando enguanto 1% aed lft iste caminhava, As mariposasalinham as ass a0 lado do corpo, como um svito. ddiretor irompeu aparatosamente pela sala de reunidese espeitou de longe impivida bor- boleta. Caminbou em redor da mess, trou foro- as de diversos Angulos. Ligou-se & internet © Sects Does evs or Brel Em poucos segundos, sentenciou: She meintomante apostle DHS. —Quent =O Departamento de Health and Safty! “Marlene sabia:naempresn,em momentos dec- ‘vos, as pessoas eram designadas em inglés. Como seyem portugues, valessem menos. — Va chamd-l, agora. “Mesmo em portugués, a ondem era sumiria e rerentéria, Suspeitando da gravidade do que se ‘epuiria, Marlene ainda ousou contestar. ree gue ac porn doutor? Ema simples borboleta = Pousada no micrafone onde as pessoas fala? “Marlene foi para 0 seu gabinetee ligow para © DHS, Depoisabriu 0 computador e consult 1 Google. Procurou «Os mas belos vesos sobre horboletase, E absiu um poema chamado «Jar- dim» E lew em vor bai: Se eu tivesse jardin seria para semear borboletas. Desas de impestoeis cores (Desa que faze var fers. 7 Mu Cote Eaegou as palperasajustou ovestido a0 veo- tre, que jéaivinbava em redondea nat. De volta sala de reunides encontrou Elisa, a coordenadora do Departamento de Saide © Seguranga, ree ‘endo instrugdes do dretor de Recursos Humanos. — Ono falar da doenga da borblea? — per- untou 0 dzetor. — Nunca oui falar die, dowter — comentou Elisa, — Fica-se com a pele to fii como as asas de orboleta — absmou o diretor E acrescentou: Pro cure na internct:daenga da borblets, epidermdlive bolboca — Gostava deter asas de Borboleta — confessou Elisa, — Amarelas como esa que a etd pousada. — Nao bringue com sias arias, deutora Elisa Com esa doonga, at pesoas deixam de poder wsar suptoseprecisam de rupasepeiis A pele rompe-ie (0 manor atta, Morre se ante das inte — Que horror! — disse Elisa. — Proved a uma rigoocaavaliao de reat — ondenou o ditetor.— Connulte 9 manual, procure 0 procediments ABA. Mas, dirt, a tal deny... tm a certeza de ue & tranamitida por borboletas? —E o que dizem — afiemou odieetor.— sua fingioconfirmar ist, deutera. ‘Marlene interrompeu a conversa, entrando na sala acompanhada por uma empregada de lim- eva. O que ute fer, perguntou o dretor, Vanes 7" ape Eon tse abrir a janela ¢ ensotd-la,respondeu a empregada de limpeza. Nada dise,angumentou 0 ditetor. Vi é buscar 9 aspirador, ¢ fazemo-la desaparecer enquanto 2 diaboesfrega wm obo. “Marlene levou as mos ao peito angustiada a imaginar o seu Arcanjo Gabriel a desaparecer no ventze escuro de um aspirador. Deu um safantio no microfone ¢ a borbolets vou em diregio 3s paredes envidragadas da sala. Marlene entrea- briu a grande videasa para que o bicho pudesse cescapar, Mas a borboleta deu meia volte e voou nna diresio oposta. Pousou num quadro pendurado ‘na parede do lado oposto. O quadro chamava-se (0 Céu da Cidade. Flavia naquela tela uma nesga de saul sobre prédios, antenas e famos. Mas era um azul vindo de dento, uma cor que apenas o pintor sabia existi. A borboleta tinha escolhido essa cor como o seu pouso definitive. O ofu que restava li ora era demasiado excatto para voae.E demasiada sujo para morrer. ‘esse final de tarde, Marlene regressou a casa sem peto, como se no houvesse chio. E cami- shou como se tivesse asas. Talver fosse a tempo de surpreender Osério acordado. Talvez 0 marido descobrisse nela 0 mesmo céu que a borboleta cencontrara na tela da parede.

Você também pode gostar