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ZZE7AINVENGAD E “> AEXCLUSAO DA ALTERIDADE “DEFICIENTE” A PARTIR DOS SIGNIFICADOS DA NORMALIDADE Carlos Skliar RESUMO — 4 invengdo ¢ a exctusdo da alteridade “deficiente” a partir dos signi- ficades da normalidade. Este texto pretende abordar a questio da alteridade deficiemte ‘em relacdo as miltiplas formas de invengdo ¢ de exclusiio que produz.a normalidade no. mundo atual. Invengiies que constroem exclustes culturais e lingtifsticas, diferentes da- quelas estratégias de separacdo, isolamento e reclus4o que caracterizaram os séculos XVIII eXIX e boa parte do século XX. Analisaa wilizagdio— perversa— de fronteiras de inclusdo/exclusao por parte da normalidade, para administrar a alteridade deticiente. Sugere, finalmente, que existe uma alteridade surda independente e auténoma do reco- nhecimento ¢ do respeito da normalidade ouvinte, Pataveas-chave: alteridade deficiente, significados da normalidade, surdos. ABSTRACT — The invention and exclusion of the “other disabled” from the meanings of normality. This vext attempts to approach the question of the other disabled in relation to the multiple forms of invention and exclusion that produce nonmality in the modem, ‘world. Inventions that create cultural and linguistic exclusion, different from those stategies of separation, isolation and reclusion that characterized the 18th and 15th and a significant part of the 2th centuries. it analizes the use (perverse) of frontiers of inclusion/exclusion in the name of normality, in order to manage the other disabled. Finally, it suggests the existence of the other Deaf, independent and autonomous of the recognition and respect of the hearing norm(ality), Key words: other disabled, the meanings of normality, deaf. Pensar a alteridade deficiente: a exclusio de uma teoria critica sobre a normalidade éQuién ve? {Qué ve? {Qué es la visto? {De que lado del espeja? Ruben Vela, Antologia Postica (1982) Esta & uma époea de guerras virtuais ¢ de pobrezas reais, onde o discurso sobre os outros, sabre a ahteridade, adquire novos significados e perspectives politicas As fromteiras da exclusio aparecem, desaparecem ¢ volcam a aparecer, se muhiplicam, se disfargam; seus limites se ampliam, mudam de cor, de corpo, de nome ¢ de linguagem. E este o mundo das solucdes para um mundo moderno’, onde milhdes de pessoas se desfazem em matancas étnicas, morrem por faltadeé gua parével, se destro- em diante da desintepracdo do emprego, porém sereafirmam a partir de noves identi- dades, se nutrem de novos mavimentos sociais. Curiosemente, governos ¢ ‘govemnantes, instituigBes oficiais ¢ organismos no governamentais insistem cam obses- sto em que ninguém tem direito de desistir da aldeia global, de viver em supostas margens ou periferies. Ninguém pode negar-se a estar dentro do mundo global, ainda que seja de uma forma percial, incompleta, ineficiente ou deficiente. E este o tempo do maltrato a vida cotidiana, de fazer publica a vide privada ¢ de fazer do artificial algo natural. As reformas pedagagicas estéo a venda e, 0 que ¢ pior ainda, os que pouco tém as compram em pacotes fechados. A globalizacio transformou o mundo em um terceiro mundo (Chomsky, 1996) cao mesmo tempo, como um fendmeno aparentemente paradoxo, condu- ziu a produgio ¢ a fragmentagio das identidades de diferentes grupos sociais (Hall, 1997). Nesse contexto, as perguntas que mais inquietam sia: estio desa- parecendo as culturas? As comunidades estio cedendo suas identidades? Dissi- param-se as diferengas ¢ se acabaram as resistencias ante a logica depredadora do global? Como so representadas hoje aqueles sujeitos € grupos que no co- incidem, que estio descentrados do projeto de homogeneizas40? Coma é possi- vel pensar sobre os surdos, indigenas, mulheres, meninos € meninas de tua, negtos, mestias, desempregados, cegos, etc., sem esconder-se detras da mas- cara discursiva da natural pluralidade, da natural diversidade, da natural demo- cravia, onde vivem também esses outros? A altetidade deficiente ¢ um exemplo da voracidade com que 0 mundo moderna, sem solugGes, inventa ¢ exclui a esses outros. O lugar no mundo dos outros deficientes tem sido permanentemente relacionade € confundido com seu luger institucional, e sew lugar institucional foi freqientemente profenad pela perversidade de pensé-lo todo nos termos estreitos de inclusda/exclusio, A educagiio especial, suas instituigies toralitdrias (Castel, citado por Alvarez-Uria, 19974) ¢ 0s sujeitos que sfio/estia forgados a incluir-se nessa for- ma particular de pedagogia, nio formam parte, de fato, das agendas politicas, sociais, culturais ¢ educativas contemporineas. 16 Existe, geralmente, uma profunda desconfianga frente a teorizago critica neste ambiente, pois a educagio especial continua senda considerada como uma sub-area da educagio. Representada por uma boa parte dos tedricos como um problema menor, que trata exclusivamente sobre aquelas pessoas que tiveram a desgraga de adquirir algum tipo de deficiéneia, sabre suas infelizes familias sobre os sacrificados profissionais — os especialistas — que trabalham com cles. ‘Mas ainda, a alteridade deficiente raras vezes é vista como pertencendo a uma nago, sendo cidadios e sujeitos politicos, articulando-se em movimentos soci- ais, possuidores de sexualidade, religiio, etnia, classe social, idade, género e atores/produtores de narrativas propries. No entanto, a educacdo especial ¢ a alteridade deficiente nao se constitu- em, necessariamente, como reciprocidade, dominio e/ou simetria. A educagio especial nfo € 0 ambiente énico, natural e excludente, para entender a questo das identidades ¢ as narrativas* dos outros deficientes*. A educagio especial, como disciplina formal, em seu discurso e suas préti- cas hegem@nicas, é descontinua em seus paradigmas tedricos; anacrnica em seus principios e finalidades; relacionada mais com a caridade, a beneficéncia e amedicalizagio que com a pedagogia; determinada por técnicas discriminatorias e segregacionistas; distanciada do debate educacional geral e produtora! reprodutora, também ela, deuma falsa oposigio entre inclusito e exclusio (Skliar, 1997, a, b,c). De todos modos, a educagio especial e a alteridade deficiente comparti- Tham de um mesmo problema: ambos tém sido € sio todavia tratados como. topicos sub-teorizados. E isso ocorre, curiosamente, em uma época onde os acontecimentos mais triviais como o dormir, o furar, user brincos, olhar ao vazio, comprar objetas supérfluos ou fazer dieta, slo hiper-teorizados. E em virtude dessa sub-teorizagio, conseqiigncia de uma tradigiio historica de controle do sujeito deficiente por expertos ¢ aficionados da medicina, que a populagio em geral néo vishumbra a conexio possivel entre a alteridade defici- ente e seu status quo, do mesmo modo em que muitos estio compreendendo hoje, por exemplo, as relagdes entre raga e género, ¢ as estruturas contemporé~ neas de poder e conkecimento. Aqueles outros que sio, sempre, os outros O tia Ernest (..) que vivia com eles, que eva completamente surdo e se expres- Sava sd por onomatopbias ¢ gestos e pelas cem palavras de que dispunka. Mas Emest, que néo pudera trabalhar quando jovem, tiaka fregiientado va- gamente a escola e aprendido a decifrar as letras. Ja ds vezes ao cinema e voltava com resumos espantosos para os que jé tinkam visto o filme, pois a riqueza de sua imaginacio compensava sua ignordncia, No mais, esperto ardiloso, uma espécie de inteligéncia instintiva permitia que se movesse mum 17 mundo e no meio de seres que na entanto eram para ele obstinadamente silen- ciosos. A mesma inteligéncia permitia-the mergudhar todas os dias no jornal, onde decifrava as manchetes, 0 que the ao menas algumas luces sobre as assuntos do mundo, (Albert Camus, O Primeiro Homem, 1994). O problema da alteridade deficiente supée uma aproximagio educative, como também sucede com as meninas e meninos de rua, os/as sem terra, as negras e os negros, os/as indigenas, os homossexuais, os/analfabetas/as, etc. Os outros deficientes constituem um grupo particular de excluidos, parém isso no deve significer que essa excluso seja subordinade c/ou inferiorizeda e/ou desa- tendida em relagio a outras exclusdes, como de fata acontece com freqiiéncia. ‘Negar uma ebordagem social, politica, histérica ¢ cultural neste tertitério cons- titui o primeira nivel de discriminagio, 0 mais sutil, sobre o qual depois se tramam todas as demais exclusdes de cidadania, lingliistica, comunitéria, etc. A liste da alteridade excluida ¢ cada vez mais extensa, inacabével, majori- taria, A alteridade resulta de uma produgao histérica ¢ lingtiistica, da invengio desses Outros que no somos, em aperéncia, nés mesmos. Porém, que utiliza- imios pare poder ser nos mesmas. Nas palavras de Larrasa e Perez de Lara (1998, p. 08): A alteridade do outro permanece como que reabsorvida em nossa identidade € a reforca ainda mais; tomna-a, se passivel , mais arrogante, mais segura e mais satisfeita de si mesma. A partir deste ponto de vista, 9 fouco confirma e reforca nossa racio; a crianga, nossa maturidade: o selvagem, nossa civiliza- 80, o marginal, nossa integracao: o estrangeiro, nasso pais; eo deficiente, a nossa normalidade A presungio de que a deficigncia €, simplesmente, um fato biolégico e com caracteristicas universais, deveria ser problematizade epistemologicamente. Nesse sentido, é necessirio inverter aquilo que foi construido como norma, como regime de verdade e como problema habitual: compreender o discurso da deficiéncia, para logo revelar que 0 objeto desse discurso nfo é 2 pessoa que estd em uma cadeira de rodas ov o que usa um gparelho auditivo ou 0 que nio aprende segundo o ritmo e a forma camo a norma espera, senio os processos sociais, histéricos, econdmicos e culturais que regulam e controlam a forma, acerce de como sio pensados ¢ inventados os corpos ¢ as mentes dos outros. Para explica-lo mais detalhadamente: a deficiéncia ndo é uma questio biolgice ¢ sim uma retotica social, histérica ¢ cultural. A deficiéncia no é um problema, dos deficientes ou de suas families ou dos especialistas. A deficiéncia esté rela- cionada com 2 prépria idéia dz normalidade ¢ com sua historicidade. McLaren (1997, p. 213), em uma interpretagao dos significados culturais que regulam o discurso da deficigncia ¢ da educagdo especial, afirme que: 18 {o-) El flancionamiento de las politicas de significacién (,) lo podemos ver en Ja educacion especial, en la que una gran proporcién de estudiantes negras y latinos se considera que presentan “problemas de conducta”, mientras que a Ja mayor pane de tos estudiantes blancos de clase media se les proporciona ta edmoda etiqueta de tener “problemas de aprendizaje”. Até bem pouco tempo, os sujeitos da educagio especial foram narrados, julgados, pensados e construidos pelos profissionais que trabalbam com eles, ‘como objetos de estudo deniro de um discurso de controle (Foucault, 1966). Essa pratica, fortemente medicalizada e orientada para o cuidado eo tratamento —uma ortopedia dos corpos ¢ das mentes — serviu ao seu proposito institucional de fronteira de inclusio/exclusio, porém fracassou na compreensiio e justifica- gio de sua propria histéria, seus saberes, mediagdes e mecanismos de poder. Os valores e as normas praticadas sobre as deficiéncias formam parte de um discurso historicemente construido, onde a deficiéneia no é simplesmente um objeto, um favo natural, uma fatelidade. Esse discurso, assim construido, niio afeta somente as pessoas com deficiéncia: regula também as vidas das pes- soas consideradas normais. Deficigncia e normalidade, em conseqiéncia, for- ‘mam parte de um mesmo sistema derepresentagdese de significagdes politicas; fortam parte de uma mesma matriz de poder (Silva, 1998). A educecdo especial conserva para si um olhar iluminista sobre a identida- de de seus sujcitos, isto é, se vale das oposigées de normelidade/enormelidade, de racionalidade/irracionalidade ¢ de completude/incompletde, como clemen- tos centrais na produgio de discursos e priticas pedagdgicas. Os sujeitos sito homogeneizados, infantilizados e, a0 mesmo tempo naturalizados, valendo-se de representagdes sobre aquilo que esta faltando em seus corpos, em suas men- tes e em sua linguagem Desse modo, um neacolonialismo se fez vigente dentro e fora da educagéo especial, através de discursos ¢ de préticas normativas ao referir-se, por exem- plo, aos sujeitos com auséncia de linguagem, inteligéncia primitiva, imaturida- de afetiva e cognitiva, comportamentos agressivos ¢ perigosos, ritmos lentos de aprendizagem, labilidade emocional, problemas nas relagdes interpessoais, etc. Podera o leitor discernit, mais além dos titulos ¢ das aparéncias, os textos dos colonialistas europeus que se referem anatureza dos afficanos ou das tribos indigenas ou dos hispanos, dequeles tratados sobre 2 psicologie dos surdos ow da inteligéncia dos deficientes mentais, ou da linguegem dos autistas? Ou esse paternalisme forma parte € é indissociavel de um discurso colonialista comum? {Lane, 1992). Se bem que nz stuzlidade a epistemologia tradicional da educagao especial cedeu espago a algumas representagées sociais das identidades dos sujeitos de- ficientes; nelas os cegos, os surdos, as crigngas com problemas de uprendiza- gem, sio percebidos como totalidades, como um conjunto de sujeitos homogé- neos, centredos, estiveis, locelizedos no mesmo continuo discursive. Assim, 0 19 ser deficiente auditivo, 0 ser deficiente visual, 0 ser deficiente mental, constitu- em todavia 2 matriz representacional, 2 raiz do significado identitario, a fonte ‘tmica de caracterizagiio — biolégica — desses outros. Os estudas eutodenominados como etnogréjicos em educagiio especial, que tentam quebrar o olhar microseépico posto sobre os individuos deficientes para interpretar as cenérios familiarese escolates onde esto localizedas, continuam reproduzindo a suspeita de que elgo equivocado ha neles, algo equivocado que merece ¢ deve ser investigado: sua sexualidade, sua linguagem, seus hibitos alimentares, seus jogos, suas estratégias de pensamento, etc. Por isso, 0 cemi- tho que vai desde a normatizacio da medicina até a curiosidade da emografia em educagio especial néo conduz, necessariamente, a uma ruptura da hegemo- nia do homem normal —branco, masculino, bem alimentado, letrado, profissio- nal, sandavel, etc. Trata-se de um mesmo caminho, de uma mesma légica, de uum mesmo campo representacional. Pois, se fosse 0 contrério: Quais sio os discursos ¢ as préticas que representam os cegos afro-americanos, analfabetos ¢ desempregados? Coma o modelo da deficigncia constréi seu imaginario acerca das mulheres surdas, mies soltciras? Que significados circulam, a partir dessa perspectiva, em torno dos superdotados das classes populares? Que emografia sobrevive as criangas deficientes mentais sem terra? Exclusdes dentro e fora da educaco especial: a medicalizacao, a caridade, a religiosidade e a beneficéncia Abordar a questio da medicalizago na educagao especial no é uma tarefa simples. A medicalizagao nio é um discurso ¢ uma pritica que derivam direta- mente da medicine ¢ que se relaciona com o progresso ine vitivel de sue ciéncia, A medicalizagao tem se infiltrado de uma forma muito suril em outras dis ciplinas do conhecimento, governando-as, debilitando-as ¢ descerecterizando- as. Existe, € claro, uma pratica de medicalizagao diretamente orientada para 0 corpo (do) deficiente, porém existe, sobre tudo, uma medicalizagio de sua vida cotidiane, da pedagogia, de sue escolarizaao, de sua sexualidade. Assim, a medicalizacdo pode ser interpretada em termos de ume ideologia dominante. Como tal, criow um sentido comum e cumplicidedes dentro e fora de seu campo especifico. Uma dessas estratégias foi 2 de encepsular a pedagogia, obcecando- 2 com a corregdo e, nesias iiltimas duas décadas, aventurando, prometendo € experimentando 2 solugio final das deficigncias’. A alianga da medicelizagao com a caridade € beneficénciz tambem consti- tui um proceso complexo e multifacético. Se trate da legitimidade moral com que a atividede missiondria e 0 auxilio caritativo sio aceitas como respostas validas na educago especial, com o objetivo de humanizer — e naturalizar — aos sujeitos 20 Ocxemplo dos surdos é, neste sentido, particularmente claro: para a maio~ ria dos ouvintes, 2 surdez representa uma perda da comunicagio, um protétipo de auto-exclusao, de solidao, de siléncio, obscuridade ¢ isolamento. Em nome dessa representagdo se praticaram e se praticam as mais inconcebiveis formas de controle de seus corpos, mentes e linguagem. Entre os controles mais signi- ficativos, pode mencionar-se: a violenta obsessio para fazé-los falar: o locali- zar na orelidade 0 eixo essencial e Unico de todo projeto pedagégico; a tendén- cia a preparar esses sujeitos como mio de obra barata; a experiéncia bidnicaem. seus oérebros; 2 formagio paramédice e psendo-religiosa dos professores; 2 proibigio de sua lingua —2 lingua de sinais — e suz perseguigio e vigilincia em todos os lugares de uma boa parte das instituigdes especizis; o desmembramento, a dissociagio, a separagio, o isolamento comunitirio entre criangas ¢ adultos sutdos. Diversidade, igualdade e diferenga quando se narra pelos outros surdos. O discursoe a pritica da deficigncia oculta, com sna eparente cientificidade ¢ neutralidade, a problema da identidade, da alteridade ¢, em resumo, a questio do Outro, de sua complexidade. O discurso de deficiéncia tende a mascarar a questio politica da diferenga; nesse discurso a diferenga passa 2 ser definida como diversidade que ¢ entendida quase sempre como a/s veriante/s aceitaveis € respeitiveis do projeto hegeménico da normalidade. As normas ¢ valores sobre corpos ¢ mentes completos, auto-suficientes, disciplinados ¢ belos, constituem 2 base dos discursos, des priticas ¢ dz organi- zagio das instituiges especiais. Em geral a normna tende a ser implicita, invisi- vel e é esse cariter de invisibilidade que a tornz inquestionade. ‘Nos documentos oficiais € nos discursos das instituigdes da educegao espe- cial, € freqiiente encontrar a utilizagao do termo diversidade; diversidade, neste ¢ em outros contextos mais amplos, retrata uma estratégia conservadora que contém, obscurece, significado politico das diferengas culturais, a ambigilida- de — ea hipocrisia — com que se pensa e se constréi a diversidade, gera como conseqiigncia, no melhor dos casos, 2 aceitagio de um certo pluralismo que se refere sempre a uma norma ideal. A questio da denominagio — sujeitos deficientes, com deficigncie, porta- dores de necessidades educativas especiais, alunos especiais, etc. — constitu, em minha opiniéio, apenas um debate sobre melhores e piores eufernismos para denominar 2 alteridade e que no caracteriza, por si mesma, nenhume mudanga Politics, epistemologica e/on pedagdgica. Porém isso néo implica minimizar 0 isco de sua utilizagio para a vide cotidiena dos outros: trata-se de novas ¢ velhas acepgdes que sirvam para tragar novas ¢ velhas fronteiras referidas 20 estar fora, 20 ester do outro Indo, ao definirmo-nos em oposigio 21 Desse modo, o problema das definigées sobre os outros nio se resolve a encontrar termos politicamente corretos para descrever a esses ¢/ou a outros sujeitos, senda em: + desconstruir a suposta ordem natural dos significados® que os localizam em certos discursas ¢ priticas de poder, ¢ + produzir mpturesne légica binéria de oposigdes (Bhabha, 1994) especifi- cas da educacio especial’ (Skliar, 19976, ob. cit. As oposicdes binarias supdem que o primeira termo define @ norma ¢ 0 segundo no existe fore do dominio daquele. No entanto, o ser surdo, por exem- plo, nao supde o oposto — e negative — do ser ouvinte, nem o ser cego 0 oposto de ser vidente; sto experiéncias singulares que constituem uma diferenga espe- cifica, Nesta mesma perspective, é possivel penser em aquilo que Sendoval (1996) denominon come consciéncia oposicional, isto é uma nogio de identi- dade propria daqueles que se narram a si mesmos ¢ se opdem e/ou resistem as pressdes etnocéntricas de normalizagao e de igueldade. Oconceito de diferenga nao substitui, simplesmente, o de diversidade, ou de pluralidade, ¢ nmaito menos o de deticiéncia ow necessidades especiais: tam- bém ndo ocupa o mesmo espace discursive. Homi Bhabhe (1990) propés ume distingdo significative entre a idéie de diferenga ¢ diversidade e criticou o uso deste ultimo termo, quando é utilizedo —em wm discurso liberal - pere denotar # importancia de uma sociedade “plural edemocrética”, Bhabhe alertou sobre a existéncia de uma “norma ‘ransparen- te” que se instala sempre na diversidade, construide pele sociedade que hospe- da os outros € que crie e supde um falso consenso de igualdade. Assim, 2 estru- jura normativa produz uma contengio, uma obstrugdo e uma falsificag3o da diferenga cultural. Neste mesma linha de raciacinio, Scott (1995) afirma que: (J a diversidade se refere a uma pluralidade de identidades ¢ é vista como uma condicdo da existéncia humana e nao como o efeito de um enunciado da diferenga que constitid as hierarquias ¢ as assimetrias de poder. ‘Algumas marcas que possibilitam a compreensiio das diferengus seriam: + as diferengas no sio uma obviedade cultural nem uma marca de “pluralidade”; + 28 diferengus se constroem histbricg, social e politicamente; + nfo podem caracterizar-se como totalidades fixas, essenciais e inalteri- veis; + a8 diferengas silo sempre diferengas; + no devem ser entendidas como um estado no desejével, improprio, de algo que cedo ou tarde voltari a normalidade; 22 + as diferengas dentro de uma cultura devem ser definides come diferengas Politicas — ¢ nfo simplesmente como diferencas formais, textuais ou lin- gilisticas; + as diferenges, ainda que vistas como totalidades ou colocadas em relagao com outras diferengas, ndo sio facilmente permeéveis nem perdem de vista suas proprias fronteiras; + 2 existéncia de diferengas existe independentemente da autorizacio, da aceitagio, do respeito ou da permissio outorgado dz normalidade. Esse tltimo aspecto acerca do sentido das diferengas adquire um valor ide- olégico essencial, que pode ser lida do seguinte modo: a pretensdo — neocolonial?— de outorgar 20s outros 2 legitimidade necessiria para ser 0 que sdo, de autorizar oficialmente aquilo que jé existe nos outros desde milgnios — como, por exemplo, 2 linguz de sinais, a comunidade eas produgdes culturais ¢ artisticas dos surdos.. Assim delineados desde os significados de normalidade, a autorizagao ¢ 0 respeito sdo anteriores 4 construgiio e 4 existéncia de diferenga. Constituem-se como pré-requisitos inevitaveis. B esse respeito e essa distincia que faz que, de acordo com Zizek (1995, p. 172): Gn) la forma ideal de ta ideotogia de este capitalismo global (.,) trata a cada cultura focal como et cotonizador trata al pueblo colonizado: como ‘natives’, cuya mayoria debe ser estudiada y ‘respetada' cuidadosamente (...) existe una distancia eurocentrista consdescendiente y/o respetuosa para com tas cul- turas locales (,) una forma de racismo negada, invertida autorreferencial, un ‘racismo com distancia’: ‘respeta’ la identidad det Otro, concibiendo a éste comouna comunidad autértica’ cerrada, haciata cual é, elmulticadnwalista, mantiene una distancia que se hace posible gracias a su posicién universal privilegiada Os surdos e a surdez: uma marca de deficiéncia, diversidade, pluralidade ou uma diferenga politica? De acordo com virios autores (por exemplo Davis, 1996, ob. cit; Lane, Hoffmeister & Bahon, 1997; Wrigley, 1997, etc.) asurdez nio € uma questio de andiologia senio de epistemologia. B nesse sentido que a surdez, as surdos, podem servistos como eriando e constituindo uma diferenga politica. ‘Ume aproximagiio com a questio de surdez de tal natureza, nos leva a problematizar a normalidade ouvinte ¢ nfo a alteridade surda; ou seja, nos leva a inverter o problema: em vez de entender a surdez como uma exclusio ¢ um isolamento no mundo do siléncio, defini-la como uma experiéncia e uma repre- sentagao visual em vez de representa-la através de formatos médicos ¢ terapéuticos, quebrar essa tradigéo por meio de concep¢des sociais, lingihisticas 23 eantropoligicas; em vez. de submeter aos surdos a uma etiqueta de deficientes da linguagem, compreendé-los como formando parte de uma minoria lingiisti- ca; em vez de atirmar que sto deficientes, dizer que estio localizados no discur- so da deficigncia. De um lado estariam as formas de narrer 20s surdos por parte dos ouvintes, 2 invengio ouvinte da surdez. De outro lado, as narragées dos surdos sobre eles mesmos. Der lugar as narragies surdas sobre a surdez constitui, dessa forma, um processo de desouvintizagio". O processo de desouvintizagio mencionado supde, entre outras coisas, ume dentineia acerca das priticas colonialistas dos ouvintes sobre os surdos ¢, a0 mesmo tempo, uma desmistificaciio das narrati- vas ouvintes hegemdnicas sobre a lingua de sinais, 2 comunidade e as produ- gdes culturais dos surdos. A alteridade surda pode ser melhor compreendids 2 partir da rupture de significados referidos a deficigncia auditiva ¢ suas remificagdes ¢ rerificagées discursivas. Ao compreender 2os surdos como sujeitos visuzis, nenhuma das narratives habituais sobre os surdos permanece encerrade na tredigo dos ouvi- dos incompletos ¢ limitados. Ceracterizar aos surdos como sujcitos visuais, ou como sujeitos que vive uma experiéncia visual, ndo supde biologiza-los por outros meios, etravés de outros sentidos naturais. Refiro-me a tipice formule mitolégica que se estabelece ne educagdo especial, segundo a quel toda limita- go de um sentido corresponde necesseriamente 2 uma compensagio qualitati- vae ampliada de outro sentido. Nao € 0 caso, entio, que os surdos substituem haturalmente a falta ou a limitagio da audicio com a presenea hierérquice de visio. Desse modo, se estaria impondo, uma vez mais, uma estratégia denatura- lizegao. Representer 20s surdos como sujcitos visusis, num sentido ontolégico, permite reinterpretar suas tradigées comunitirias como constragdes histéricas, culurais, lingiisticas e nfo simplesmente como um efeito de supostos mecanis- mos de compensacéo biologicos e/ou cognitivos. A exclus&o dentro da inclusao’: os surdos na escola regular (All together. How?"”) Decidi ndo fazer mais nada em classe. Nao suportava mais aquelas autas, ndo suportava ler os idbios, no suportava hur para produzir os ruidos de minha voz, ndo suportava a histéria, a geografia, até mesmo o francés, ndo suporiava os professores desanimados, que constantemente me repreendiam, me diminuiam diante dos outros. A realidade me desgostava. Entio dectdi ndo encari-la mais de frente. Fiz minha vevolueda. Bra idiculo passar minka vida em uma escola. As horas mais importantes de minha vida se perdiam em tuna pnsio. Titha a impressao de que nda me amavam, que no conseguiria prosseguir adiante. Tudo aquito no servia para nada. ¢..) Tika a impressio de ser manipulado, queriam apagar a minha identidade de sweda. {Emmanuelle Laborit, O vo da Gaivota, 1995). 24 ‘A ofensiva neoliberel pode ser caracterizada, 20 mesmo tempo, como uma nova pedagogia de exclusio ¢ de inclusdo, que instala mais uma veza perversio da idéia de existéncia de uma fronteira, que separa hipotéticos excluidos de hipotéticos incluidos, de acordo com sua capacidade ou incapacidade individu- al de petmanecer dentro ou fora das instituigdes, deseu saber, poder, er, ser, etc. Em todas as definigdes ¢ indetinigdes sobre inclusio/exc usio aparece sem- pre @ idéie de que se trata de ume propriedede ou caréncia do individuo, de ser possuidor cu ndo de alguns dos etributos fundamentais considerados necesséri- os para a escolarizagio, a profissionalizagao, a insergio no mercado de traba- no, etc. Os documentos oficizis treduzem muitas vezes 2s relagdes entre inclu- sio ¢ exclusio em termos de irresponsabilidade/responsabilidade individual e no como um proceso cultural, social erelacional. Nas palavres de Sonia Fleury (1999) La exclusion es un proceso cultural que implica el establecimiento de una nora que prohibe ta inclusion de individuas y de grupos en una comunidad socio-politica (.) Un proceso historico a traves del cual una cultura, mediante el discurso de verdad, crea la interdiecién y ta rechaza. 'Na educaco especial, seguindo coma linha de raciocinio de Perez de Lara (1998) os processos de exclusio foram estrategicamente subdivididos como exclusées de razio e do corpo, no somente em um sentido conceptual se nfo meterial, crizndo uma grende reclusio. Essa grande rechusio foi se realizando em pequenas reclusdes em fungo das categorias ¢ texonomias das classifica ges da deficigncia, E € paradoxal, como afirma 2 autora, que a interpretagdo da grande reclusao possa ser feita a partir da circularidade discursive de inclusio/ exclusio: interpreta-se assim que a reclusdo dos sujeitos deficientes foi uma estratégia histOrica necesséria de exclusio pare poder conseguir, em um futuro indefinido, sua incluso posterior definitiva. Ao mesmo tempo que ja se tem faledo de desintegragdo dz promessa integradora (Gentile, 1996), a educag3o especial tm adotado hoje, como paradigma dominante, 2 promessa de inclusio, a promessa integradora. Ne América Latina, a partir da Declaragdo de Salamance", é cada vez mais fregtiente a idéia da incluso da alteridade deficiente na escola regular. Através dos documentos oficiais, 0 discurso da escola inclusiva parece operar, pelo menos, em dois niveis diferenciados: por um lado, um nivel supostamente pro- gressista, w partir do qual se denunciam as formas terriveis e temiveis de dis minagao ¢ exclusio das escolas especiais; descrevem-se as priticas pedagsgi cas absurdas —2o menos agora assim consideradas ~; mencione-se o direito dos sujeitos deficientes de assistir as aulasnas escoles piiblicas junto com as demais oriangas: fala-se da obrigacio da escolz piblica de aceitar, conter ¢ trabalhar com 2 diversidade, etc. Porém, por outro Indo, parece surgir um nivel totaliti- rio, através do qual continua reproduzindo-se o continuo de sujeitos deficientes 25 — sem deixar espago para uma andlise diferenciada dos processos e dos efeitos de tais priticas para/sobre cada um deles; todo e qualquer ergumento critico — inclusive dos que se originam dentro das comunidades interessadas, de puis, de professores, dos proprios sujeitos deficientes — ¢ rapidamente censurado, consi- derado politicamente incorreto, interpretado como segregacionista e como es- tando a favor da formagiio de guetos, ete. Como seja, mais além das divergéncias em relagio 20 significado que possa ter 0 processo de inclusio, adverte-se nos discursos dominantes sobre a intengdo de reduzir esse complexo e multifacética proceso a uma experiéncia escolar, a contigitidade fisica das diferengas com aqueles chamados normais, no contexto de sala de aula. A inclusio é, outra vez, 2 caracterizacao de uma fron- teira institucional. A ctitica a0 discurso dominante de incluso nada tem que ver com uma cega afinidade ou com ume defesa desnecesséria das escolas ¢ das pedagogies especiais. Ndo ¢ essa a interpretagdo que se deve fazer. A aparente oposigio entre escola especial ¢ escola comm somente remete a um aspecto, que € 0 da institucionalizagao ou, dito de outro modo, o da localizacao — melhor ou pior — dos deficientes nos sistemas de ensino oficiais ¢ nio oficiais. ‘Nao se vislumbra, entretanto, um olbar critico para ambos os sistemas de escolarizagio. A pergunta “para que serve a escola?”, assim, permanece. Em minba opinido, a questo das relages entre diferengas ndo pode ester mascarando a inten¢do mais ou menos velada de ume redugo de custos'’, nem ser somente um problema de burocracia on de administragio escolar'’, nem abandonar 2 educag&o especial nas maos de organizagdes ¢/ou findagdes priva- das — uma transformacdo do Estado absoluto em Estado desinteressado —, nem produzir, como conseqtiéncia, a assimilagao das minorias ¢ das diferengas den- sro da escola comum, Aquila que deve ser posto em discussio é, por uma parte, quais sio osargumentos que fundamentam as propostas de inclusio e, por outro lado, qual é a politica de significados ¢ as representagdes que se produzem € reproduzem nessa proposta. Em referéncia ao primeiro, um dos argumentos centrais da idéia de inclu sio, no sistema regular de educacio, € o de maior compromisso do sistema oficial com @ educagdo de todos. Porém, ¢ de noter que os estados ne maioria dos paises do terceiro mundo estéo retrocedendo inexorevelmente em relagdo a essas obrigegdes. ‘No recente informe da UNICEF, chamado de Educzgio para Todos (1999), se pode ler, entre os dados mais relevantes, que: mil milhdes de pessoas entra- rio no século XI sem os conhecimentos necessirios para ler um livro ou para assinar seu proprio nome; 855 milhdes de pessoas sero analfabetas nas véspe- res do novo milénio; 130 milhdes de criangas em idade escolar crescem sem poder receber educagio basica; um professor em Bangladesh tem queatender 267 alunos, enquanto que # relago professor/ahmno na Guiné Equatorial aumenta para $09. 26 E 6bvio que, nessas circunstincias, falar de escola para todos significa uma brutal ironia ou, no melhor dos casos, uma metéfora ofensiva por parte de mui- tos governos € muitos governantes. Em relagio ao probleme dasrepresentagdes, nada melhor que analisar uma das publicidades televisives oficiais que estimulam a inclusio/integragdo. No ano passado os educadores brasileiros assistiram, com certa perplexidade, a uma publicidade apresentada por uma famosa centore de musica popular. Ela. representava uma professora da escola regular que apresentava os novos com- panheiros deficientes a seus alunos normais. As ctiangas deficientes eram re- presentadas através de bonecos —nio podiam ser de carne ¢ osso, ou nao so de carne ¢ osso?—¢ apresentava a cada um mencionando o que se supunba ser sua, caracteristica mais importante. Por exemplo: “Ele é deficiente mental, porém aprende tudo perfzitamente”. Ou bem: “Ela é deficiente auditiva, porém the encanta comtnicar-se”. Ao tentar compreender a proposta de incluso das crizngas surdes na escola comum nos reencontramos, mais uma vez, com um probleme de significados politicos ¢ de representagdes. Qual é teoria que justifica esse pratica? Como. fazem as criangas surdas, sds ¢ isoledas no mundo dos ouvintes, para desenvol- ver sua identidade, sua lingua’* ¢ uma vide comunitéria entre pares? Qual é a participagfo que se imaging para a crianga surda nas discusses ¢ nas constru- ges pedagégicas coletives? Com quem discutiré a criznga surda? Qual seri a formagao de professores que suponha o dominio de lingua de sinzis? Onde esto os intérpretes da lingua de sinais que garantam o fluxo da informagio? E possivel intuir como a pratice ¢ 0 discurso da inclusio se transformem, paraas criangas surdas, em ume experigncia sistematica de exclusio ou, melhor dito, de incluso excludente, As investigagies realizadas nos iltimos anos em diferentes paises ressel- tam um conjunte de fatos que merecem ser epontados: ~ Nio existe uma teoria, lingilistica, diditica ou pedagégica, que possa ustificar a pritica da incluso de criancas surdas na escola regular (Kyle, 1995, ob. cit), ~ Uina significativa quantidade de surdos jé viveram, naquelas regides, paises ou cidades onde ndo existiam nem existem escolas especiais, experiéncias de inclusio. De suas narrades (Pertin, 1098) se percebe com jregiténcia a utilizagao de expressées tais como isolamento, dor, angiistia, falta/crises de lidentidade, deficiéncia, exilio, solidéo, incompreensio, medo, ser&ensirfparecer estrangeiro, etc. ~ Os professores ouvintes com criancas swrdas incluidas em suas aulas tersem @ wna abreviacdo, ou a uma simplificagdo, ou uma redusio em altissima porcentagem de todas os contetidos escotares (Caselli y Rampelli, 1989); 27 ~ Osprofessores que atuam em salas/classes especiais para surdos dentro da escola comum, no estéa formados nem no dominio da lingua de sinais, nem ha convivéncia comunitéria com as surdos, nem no dominio de teorias cognitivas ¢ diditicas que se relacionem com as competéncias visuais de seus alunos (Fernandez, 1937). A iltima invengiio da alteridade deficiente (Os surdos, como tode a alteridede deficiente, tém sido permanentemente inventados ¢ excluidos. Seus corpos forem moldados a partir do ouvido incom- pleto ¢ da fala insuficiente. Suas identidades, pensadas como pedagos desfeitos. Suas mentes, como obscuras ¢ silenciosas cavernas. A inwengao ea exclusio as quais tenho referido neste artigo, deixam claro que elas no possuem um carater de obviedade nem de neutrelidede. E assim que, por exemplo, a “novidade” do reconhecimento da lingua de sinais, como lingua oficial, resulta ser uma forma historicamente original de olar com adistancia necessécia —a0s surdos e sua lingue—etrayer ume frontei- yana qual anormelidade ouvinte sempre mosira sua disponibilidade, sua capa- cidade de hospedar 20s outros As natrativas surdas, como, por outro lado, todas as narrativas dos outros, comegam agora a set objeto de curiosidade. Os surdos sempre se tém narrado 2 si mesmos € tém nztrado, também, como tem sido inventados ¢ excluidos pelos ouvintes. Porém, igualmente, essas netretives estio sendo observadas, 4 distancia, com suspeite e receio. Muitos especialistas se interrogam, ainda, se aquilo que esthali é uma lingua, ume culture. Enquanto se perguntam a simesmos, olhando para a ponte de seus pés, se excluem 2 si mesmos de conhecer aos outros, de viver com 0s outros, de escutar os outros. Excluem os outros. Assim, se profa- nam as linguas ¢ es cultures da alteridade: acreditando que aquilo que tem so- brevivide a todas.s formas imaginaveis de controle, invengio e exclusio desde a normelidede, simplesmente, nio existe. Notas 1. A forma de denominagao que assumo neste trabalho (deficientes, deficiéncia, os outros deficientes, a alteridade deficient, etc.) pode ser considerada como politica- mente incorreta, porém forina parte do problema e da luta em tomo dos significados politicos. Aomencionar deficientes, deficiéncia, outros deficientes, alteridade defici- ente, etc., nao estou referindo-me aos sujeitos individuais, concretos, sendo a uma representagao bastante difundida ehegem@nicana Europa, Estados Unidos e América Latina: omodelobioldgico da deficiéneia (ver Franklin, 1997). As sucessivas tmudan- 28 ‘gas de nomes neste territério educacional nfo é novo e muito menos ingénuo: supdem uma pretendida posigdo politicamentecorreta, que consisteem sugerir 0 uso de cufe- ‘mismos para nomear a estes ¢ outros grupos raciais, lingiisticos, etc. e para exercer um controle discursive sobre eles. Nao utilizar, neste contexto, 0 termo deficiéncia para utilizar outros mais corretos ou mais modemos ou mais aceitiveis, seria restituir uma vez mais a eficacia retorica do discurso da normalidade. 2. Solugdes para um mundo moderno & a mensagem publicitaria atual da IBM perma- nentementedivulgada nos meios de commicagao, ¢ que se refere estritamentea solu- es informéticas, cibeméticas. 3, Iwarez-Uria (1997) assinala que oconceito de Goffman de instituiego total foi tradu- zido ao francés por Robert Castel como instituigdo totalitéria, 4, Nao me refiro quelas narrativas —na literatura, no teatro, no cinema, ete, — sobre os deficientes oprimidos, pobres e/ ou indefensos, nem sobre aqueles super-herdis — 20 estilo, por exemplo, de Hellen Keller. Existe uma significativa produgo da propria alteridade, cujas natrativas invertem problema acerca de quem sao, na realidade, os Outros. Um texto fundamental, nesse sentido, é a autobiografia da atriz, surda Emmanuelle Laborit, Le Cride la Mouette (Ov6oda gaivola), Editions Robert Laffont, Paris, 1994), 5. Vé-se aeste respeito um campo frutifero de investigagdes e teorizagdes provenientes daquilo que em inglés ¢ chamado de Disabilities Studies e de Deaf Studies (ver, neste sentido, por exemplo, a excelente obra de Lennard Davis: Enforcing Normalcy. Disability, Deafness and the Bady. New York: Verso, 1997; e 0 livro, também organi- zado por Davis: The Disability Studies Reader, New York: Routledge, 1997. 6. Nao é casual que a pedagogia corretiva, cujos inicios remontam ao inicio do século XX, estivesse vinculada estreitamente 4 noodo da infincia anormal (Alvarez-Uria, 1997; Varela, 1996). 7. Refiro-me asexperiéncias ‘biGnicas” de implantes de retinas pata 0s cegose de eécleas para os surdos, e as experiéncias “estéticas” de cirurgia de rostos para sujeitos com Sindroma de Down. 8. A ordem tradicional dos significados no discurso dominante da educagao especial pode ser lido como: sujeitos deficientes / outros deficientes / medicalizacao / institucionalizagao / escola especial / segregayao-exclusio / comesdo-reeducagao / normalizacao ! inclusdo-integragao, 9. Comopor exemplo: normalidade/patologia, ouvinte/surdo, educacfo/reeducacao, sait- de/enfermidade, inteligéncia/deficiéneia, grupos hegembnicos/grupos de excluidos, identidade/deficiéncia, maioria/minoria, eficiéncia/deficiéncia, inclusdofexclusao, oralidade/gestualidade, etc. 10, Desouvintizar ouvintismo, ouvintizazao constituem neologismios para descrever pra- ticas colonialistas dos ouvintes que fazem que 0s surdos sejam obrigados a narrar-se, ‘julgar-se pensar-se como se fossem ouvintes. E nessa pratica, justamente, que mui- tos surdos se véem a si mesmos como deficientes, incompletos, pseudo-ouvintes, etc, (Skliar, 1998). 29 11. A palavra incluso provéem do latim includere ¢ se deriva da composigio do prefixo inco claudere, e significaclausurar, fechar por dentro. Segundo The Heritage Illustrated Dictionary of the English Language (New York: McGraw-Hill, 1973, p. 665}, inclu- so pode ser entendida como “ier como membro, conter como elemento secundario ‘ou menor” (Souza y Goes, 1999} 12, Fodosjuntos. Como? éum jogo de palavras em inglés, proposto por Jim Kyle (1995) partir da cane dos Beatles““Ali together now”, para referit-se an que 0 autor supiie ‘uma insustentével proposta de incluso dos surdos na escola regular. 13. A Declaragdo de Salamanca constitu’ o resultado final de uma reuniao organizada pela Unesco eo Ministério de Educagao e Ciéncia da Espanhaem junho de 1994,com representantes de noventa e dois governos. Seu objetivo foi o de estabelecer linhas de aso para uma escola integradora, uma escola para todos, onde os servigos educativos especiais “devem formar parte de uma estratégia global de educacio e, naturalmen- 1, de novas politicas sociais e econdmicas”, 14, © custo de uma crianga deficiemte, para o sistema public de educagdo, é infinita- ‘mente maior que 0 de uma crianga sem deficiéncias. Isto constitui um argumento de Peso, junto com 0 do chamado fracasso quantitative da escola especial — que, na verdade, pode ser melhor compreendido, como o fracasso de um modelo, o modelo da deficiéncia-, como paraentender por que muitos dos organismos intemnacionais sus- tentam enfaticamente a idéia da inclusao nos termos estritamente econdnicos. 15. Nao & possivel esquecer que grande parte do movimento de incluso, ao menos em alguns paises europeus ¢ nos Estados Unidos, foi otiginado no como uma decisio tenica de Ministérios, sendo a partir dos movimentos sociais de professores e associ- aces de pais, ede denuncias realizadas contra Estados pelas familias de deticientes, para denunciar as praticas segregacionistas e discriminatérias das escolas regulares. 16, A Declaragio de Salamanca, em seu artigo 21, afirma que deve ser assegurado para todos os surdos o acesso a lingua de sinais de seu pais. Referéneias Biblingréticas ALVAREZ-URIA, Fernando. La configuracién del campo de la infancia anormal. En B. Franklin (Comp.): Znterpretacién de la discapacidad. Teoria e historia de ia educacién especial. Barcelona: Ediciones Pomares — Corredor, 90-120, 1997. BHABHA, HOMI. Race, time, and the revision of modemity. Oxford Literary Review 13 (1-2): 193-219, 1991. The location of Culture. 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