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“A edigds (020) ©) e receba no seu feed y os novos textos 7 #PandemiaCritica o direito universal a respira¢ao Achille Mbembe Tradugdo Ana Luiza Braga H4& quem evoque, desde j4, o “pés-COVID-19”. Por que no? Para a maioria de nés, no entanto, e especialmente nas partes do mundo onde os sistemas de satde foram devastados por anos de abandono organizado, o pior ainda esta por vir. Na auséncia de leitos hospitalares, respiradores, exames em massa, mscaras, desinfetantes A base de Alcool e outros dispositivos de quarentena para as pessoas j4 afetadas, serdo muitos aqueles que, infelizmente, n&o passar&o pelo buraco da agulha. die Algumas semanas atrés, diante do tumulto © da consternacaéo que se apromimavam, alguns de nés tentavam descrever esses nossos tempos. Tempos sem garantia nem promessa, diziamos, em um mundo cada vez mais dominado pela assombracdo de seu préprio fim. Mas também tempos catacterizados por “uma redistribuicso desigual da vulnerabilidade” ¢ por “compromissos novos © ruinosos com formas de violéncia tao futuristas quanto arcaicas”, agregavamos'. ou ainda: tempos de brutalismo®. Para além das suas origens no movimento arquiteténico de meados do século xx, definiamos brutalismo como o processo contempordéneo “pelo qual o poder agora se constitui, se expressa, se reconfigura, age e se reproduz como for¢a geomérfica”. Isto se dé através de processos de “fraturagao e fissuragao”, de “enxugemento das veias”, de “perfurac&o” © “esvaziamento das substancias organicas”. Em suma, pelo que chamamos de “deplecao”. Nés cham&vamos a atengdo, justificadamente, para a dimens&o molecular, quimica e até radioativa desses processos: “Ndo seria a toxicidade, isto é, a multiplicagao de substancias quimicas e residuos perigosos, uma dimensao estrutural do presente? Tais 4 Achille Mbenbe © Felvine Sarz, Politique dea temps. Paria + Philipre Rey, 2018. 2 Achille Mbenbe, Zeutalisme. Paris: La Deccuverve, 2020, a sez publicads en breve pele a-ledigées, en traducéo brasileira. substancias e residuos nfo atacam apenas a natureza e © meio ambiente {0 ar, os solos, as Aguas, as cadeias alimentares), mas também os corpos expostos ao chumbo, ao fésforo, ao merctirio, ao berilio e aos fluidos frigorificos.” Nos referiamos, justamente, aos “carpos vivos expostos ao esgotamento fisico e a todo tipo de risco biolégico, por vezes invisivel”. N&o nomeavamos, entretanto, os virus (sé quase 600.000, transportades por todo tipo de mamiferos); exceto metaforicamente, no capitulo dedicado aos “corpos de fronteira”. De resto, era a propria politica do vivo como um todo que estava, mais uma vez, em questao®. B é dela que o coronavirus constitui o nome. 2. Nesses tempos piirpuras - supondo que a caracteristica distintiva de qualquer tempo seja a sua cor - talvez devamos comegar nos debrugando sobre todos agueles aquelas que j4 nos deixaram. Uma vez wltrapassada a barreira dos alvéolos pulmonares, © virus infiltrou sua circulac&o sanguinea. Em seguida, atacou os érgaos e outros tecidos, comegando pelos mais expostos. A isto se seguiu uma inflamacao sistémica. Aqueles que apresentavam anteriormente problemas cardiovasculares, neurolégicos ou metabélicos, ou que sofriam de patologias ligadas A poluicao, sofreram 05 ataques mais furiosos. Sem f6lego e privados de aparelhos respiratérios, eles partiram subitamente, como sé as escondidas, sem qualquer possibilidade de se despedir. Seus restos foram imediatamente cremados ou enterrados. Em solidéo. Era preciso, nos disseram, desfazermo-nos deles o mais répido possivel. Mas j4 que estamos nisso, por que ndo somar a estes todos os demais, e les se contem as dezenas de milhdes 2 Achille Meembe, Necropolitics, n-1, 2019. de vitimas de aids, célera, malaria, Ebola, Nipah, febre de Lassa, febre amarela, zika, chikungunya, cancer de todos os tipos, epizootias e outras pandemias animais, como a peste suina ou a febre catarral ovina; todas as epidemias imaginéveis ¢ inimagindveis que, durante séculos, devastaram povos sem nome em terras remotas? Sem contar as subst4ncias explosivas e outras guerras predatérias © de ocupagao que mutilam e dizimam dezenas de milhares, langando as rotas do éxodo centenas de milnares de outros, a humanidade errante. Como esquecer, alias, o desmatamento intensivo, os mega-incéndios e a destruig&o dos ecossistemas, ou a ag&o nefasta de empresas poluidoras e destruidoras da biodiversidade? A propésito, j4 que o confinamento passou a fazer parte de nossa condic&o atual, como esquecer as multidées que povoam as prisées do mundo, e também aqueles outros cujas vidas foram despedacadas face aos muros e outras técnicas de fronteirizagao, como os imfmeros postos de controle que pontilham territérios, mares, oceanos, desertos € todo o resto? Até outro dia, tratava-se apenas de uma questéo de aceleragao, de redes de conexéo tentaculares que abrangiam a totalidade do planeta, da inexorével mecanica da velocidade e da desmaterializacéo. 8 na esfera digital que parecia residir o destino dos conjuntos humanos ¢ da produco material, bem como o dos seres vivos. Légica onipresente, circulacéo de alta velocidade e memoria de massa auxiliar, bastava “transferir o conjunto das aptiddes do ser vivo para um duplo digital”! que tudo estaria resolvido. Bstagio supremo de nossa breve historia na Terra, o ser humano poderia, enfim, ser transformado em um dispositivo pldstico. © caminho estava aberto para a realizacao do yelho projeto de extensdo infinita do mercado. 4 Alexandre Frisderich, , Vora une civiliestion 0.0. Paris : Editions Alia, 2020. Em meio A embriaguez generalizada, é esta corrida dionisiaca, também descrita em Brutalisme, que o virus vem frear - sem, no entanto, a interromper definitivamente - enquanto tudo permanece como estava. Agora, no entanto, o momento é de asfixia e putrefagaéo, de amontoamento e cremac&o de cadaveres, em uma palavra, de ressurreicdo de corpos vestidos, ocasionalmente, com suas mais belas mdscares funerérias virais. Sera que a Terra, para os humanos, estaria em vias de se transformar em uma roda de despedacamento, uma Necrépole universal? até onde ir& 2 propagacao de bactérias de animais silvestres em direcéo aos humanos se, a cada vinte anos, guase 100 milhées de hectares de floresta tropical (os pulmbes da terra) forem cortados? Desde o inicio da revolug&o industrial no Ocidente, quas= 85% das 4reas Gmidas foram drenadas. A destruigdéo de habitats prossegue, inabalavel, e populacdes humanas em estado de satide precdrio séo quase que diariamente expostas a novos agentes patdégenos. Antes da colonizacéo, os animais silvestres, principais reservatérios de patégenos, estavam circunscritos a ambientes nos quais apenas populactes isoladas viviam Foi o caso, por exemplo, dos ultimos paises florestais do mundo, na Bacia do Congo. Atualmente, as comunidades que viviam e dependiam dos recursos naturais desses territérios foram expropriadas. Expulsas pela venda de terras por regimes tiranicos © corruptos e pelas vastas concessdes estatais feitas aos consércios agroalimentares, essas comunidades 34 nao podem mais manter as formas de autonomia alimentar e energética que lhes permitiram viver, durante séculos, em equiliprio com a mata. 2 Nessas condicées, uma coisa é se preocupar, 4 distancia, com a morte de outrem. outra é tomar consciéncia, repentinamente, da propria putrescibilidade, © ter de viver na vizinhanga da prépria morte, a contempla-la como uma possibilidade real. Sste €, em parte, o terror que’o confinamento suscita em muitos: a obrigac&o de finalmente ter de responder por sua vida e por seu nome. Responder, aqui e agora, por nossa vida com outros (3ncluinds 05 virus) nesta Terra e por nosso nome em comum: esta , efetivamente, a injungéo que esse momento patogénico enderega 4 espécie humana. Momento patogénico, mas também catabélico por exceléncia: o da decomposic&o de corpos, da triagem e da eliminacao de todo tipo de lixo-humano - a “grande separacao” € © grande confinamento, em resposta a propagac&o desconcertante do virus = em consequéncia da extensiva digitalizag&o do mundo. Mas néo importa o quanto tentemos nos livrar disso, tudo nos remete, por fim, ao corpo. Tentamos enxerta— lo em outros suportes, fazer dele um corpo-objeto, um corpo-maquina, um corpo-digital, um corpo ontofanico. & ele retorna para nés na forma espantosa de uma enorme mandibula, veiculo de contaminagao e vetor de pélen, esporas € bolor. Saber que ndo estamos a sOs nesta provagéo, ou que talvez sejamos muitos a escapar, nfo oferecem senfo um vao consolo. Na realidade, nunca aprendemos a viver com os vivos, a nos importar verdadeiramente com os danos causados pelo homem nos pulmies da Terra e em seu organismo. Portanto, jamais aprendemos a morre: Com o advento do Novo Mundo e, alguns séculos depois, © surgimento das “ragas industrializadas”, optamos, essencialmente, por uma espécie de vicariato_ontolégico: delegar nossa morte a outros < fazer da propria existéncia um grande banguete sacrificial. Bm breve, contudo, néo seré mais possivel delegar a propria morte a outras pessoas. Blas nfo morrerao mais em nosso lugar. Seremos simplesmente condenados a assumir, sem mediag&o, nosso préprio falecimenta Haveré cada vez menos oportunidades de dizer adeus. A hora da autofagia esta se aproximando e, com ela, o fim da comunidade - porque dificilmente haveré comunidade digna desse nome quando dizer adeus, isto é, recordar os vivos; nado for mais possivel. Pois a comunidade, ou melhor, o em-comum, nado se assenta somente na possibilidade de dizer adeus, isto é, em poder ter um encontro com outros que seja tmico, 4 ser honrado novamente, a cada vez. 0 em-comum depende também da possibilidade, sempre retomada, da partilna sem condigées de algo absolutamente intrinseco, isto é, incontével, incalculavel, ¢ portanto inestimével. 4. © horizonte, visivelmente, esta cada vez mais sombrio. Presa em um cerco de injustica e desigualdade, boa parte da humanidade est4 ameacada pela grande asfixia, e a sensagao de gue nosso mundo esté em suspenso néo para de se espalhar. Se, nessas condigées, ainda houver um dia seguinte, ele nao podera ocorrer as custas de alguns, sempre os mesmos, como na Antiga Economia. Ble dependerd, necessariamente, de todos os habitantes da terra, sem distincao de espécie, raga, género, cidadania, religiao ou qualquer outro marcador de diferenciagao. Bm outras palavras, ele s6 poderé ocorrer ao custo de uma rupture gigantesca, produto de uma imaginacao radical. Um mero remendo nao serd suficiente. No meio da cratera, sera preciso reinventar literalmente tudo, comecando pelo social. Quando trabalhar, se abastecer, se informar, manter contato, nutrir e conservar os lagos, se falar e trocar, beber junto, celebrar cultos e organizer funerais s6 puder acontecer por intermédio de telas, € hora de nos darmos conta de que estamos cercados, de todos os lados, por anéis de fogo. Em grande medida, o digital é 0 novo buraco escavado no chéo pela explosdo. Ble é o bunker onde o homeme a mulher isolados sao convidados a se esconder, ao mesmo tempo trincheira, entranhas e paisagem lunar. Acredita-se que, por meio do digital, o corpo de carne © oss0, 0 corpo fisico © mortal, seré aliviado de seu peso e de sua inércia. Ao final desta transfiguragdo, ele poderé finalmente atravessar o espelho, subtraido a corrupgao biclégica e restituido ac universo sintético dos fluxos. Isto é uma ilusdo: assim como dificilmente havera humanidade sem corpo, a humanidade também nao poder conhecer a liberdade sozinha, fora da sociedade ou as custas da biosfera. ie Precisamos recomegar de outro lugar, jé que, para nossa propria sobrevivéncia, € imperativo restituir a todo vivo (incluindo a biosfera) o espago e a energia de que precisa. Em sua vertente noturna, a modernidade teré sido, do comeco ao fim, uma guerra interminavel travada contra o vivo. B ela est4 longe de terminar. A sujeicac ao digital constitui uma das modalidades desta guerra, que conduz diretamente ao empobrecimento do mundo © & dessecagdo de grande parte do planeta. Lamentavelmente, € de se temer que, na sequéncia desta calamidade, longe de sacralizar todas as espécies de seres vivos, o mundo entre em um novo periodo de tenséo ¢ brutalidade. No plano geopolitico, a légica da forca © do poder continuaré a prevalecer. Na auséncia de uma infraestrutura comum, a diviséo feroz do globo seré acentuada < as linhas de segmentacao serao intensificadas. Muitos estados buscarao reforcar suas fronteiras, na esperanga de protec#o contra a exterioridade. Bles terdo dificuldade em recalcar a violéncia constitutiva que, como de costume, descarregam sobre os mais vulneraveis. a vida por tras das telas © nos enclaves protegidos por empresas de seguranca priyada se tornara a norma. Na Africa, em particular, como em muitas partes do Sul do mundo, 2 extragdo intensiva de energia, a pulverizagao agricola, a predag&o em contextos de venda de terras ¢ a destruicdo das florestas sequirgo com ainda mais vigor. A proviséo © a produgao dos chips © dos supercomputadores dependem disso. 0 fornecimento © a distribuigaéo de recursos e de energia necessérios para a infraestrotura da computag&o global se dardo em prejuizo da mobilidade humana, que seré ainda mais restringida. Manter o mundo & distancia se tornaré a norma, © sera comum expulsar toda sorte de riscos ao exterior. Por nao atacar nossa precariedade ecolégica, contudo, esta visio catabélica de mundo, inspirada nas teorias da imunizacao © contdgio, dificilmente nos permitiré sair do impasse planetario em que nos encontramos. 6. Das guerras travadas contra o vivo, pode-se dizer que seu traco fundamental tera sido o de tirar o félego. Enquanto entrave maior & respiracéo © a reanimacao de corpos e tecidos humanos, a COVID-19 segue = mesma trajetéria. Em que consiste respirar, efetivamente, sendo na absorcéo de oxigénio e na expulsao de diéxido de carbono, ou ainda em uma troca dindmica entre sanque e tecidos? Mas, no compasso em que anda a vida na Terra, e em vista do pouco que resta da riqueza do planeta, estaremos tao distantes assim do tempo em que haveré mais diéxido de carbono para inalar do que oxigénio para aspirar? Antes deste virus, a humanidade j4 estava ameacada de asfixia. Se houver guerra, portanto, ela néo sera contra um virus em particular, mas contra tudo o que condena a maior parte da humanidade a cessag&o premature da respiragéo, tudo o que ataca sobretudo as vias respiratérias, tudo que, durante a longa dura¢ao do capitalismo, tera reservado a segmentos de populagdes ou racas inteiras, submetidas a uma respirac&o dificil e ofegante, uma vida penosa. Para escapar disso, contudo, @ preciso compreender a respiracéo para além de seus aspectos puramente biolégicos, como algo que € comum a nés © que, por definicdo, escapa a todo célculo. Estamos falando, portanto, de um direito universal a respiracao. Como aquilo que é a um sé tempo fora do solo 2 nosso solo comum, o direito universal a respirag&o nao € guantificavel. N&o pode ser apropridvel. & um direito em relagdo a universalidade nao s6 de cada membro da espécie humana, mas do vivo como um todo. Deve, portanto, ser entendido como um direito fundamental & existéncia. Como tal, nao pode ser objeto de confisco, e escapa @ toda soberanie porque sintetiza o principio da soberania em si mesmo. Trata-se, ademais, de um direito originario de habitar a Terra, proprio da comunidade universal de seus habitantes, humanos e outros*. Coda 0 processo tera sido instaurado milnares de vezes. Podemos recitar as principais acusagtes de olhos fechados. Quer se trate da destruicéo da biosfera, do aprisionamento de mentes pela tecnociéncia, da desintegragdo da resisténcia, de ataques repetidos contra @ razéo, de cretinizagéo dos espiritos ou da ascensdo de determinismos (genéticos, neurcnais, piolégicos, ambientais), os perigos para a humanidade sdo cada vez mais existenciais. Dentre todos esses perigos, o maior € que toda forma de vida seja inviabilizada. Entre agueles que sonham em transferir nossa consciéncia para as maquinas e aqueles que est80 convencidos que 4 préxima mutag&o da espécie consiste na emancipacéo em relac&o 4 nossa ganga piolégica, a distancia é insignificante. A tentacao da eugenia ndo desapareceu. Ao contrario, ela esta na base dos recentes avangos na ciéncia © na tecnologia. Bm meio a tudo isso, sobrevém esta parada brusca - no da historia, mas de algo que ainda é dificil apreender. Por ser forcada, esta interrupcao nao resulta da nossa vontade. Sob varios aspectos, € imprevista e imprevisivel. No entanto, € de uma interrupcdo 5 Sarah Vanuxen, Ia propriété do 1a Terre. Wildproject, 2013 ; @ Marin Schaffne:, Un s¢2 commun. iutter, habiter, penser, Wildproject, 2019 yoluntéria, consciente e plenamente consentida que precisamos, caso contrério, mal haver4 um depois Havera apenas uma série ininterrupta de acontecimentos imprevistos. Se a COVID-19 é, de fato, a expressao espetacular do impasse planetério em que a humanidade se encontra, entéo ndo se trata simplesmente de recompor uma Terra habitavel, para que ela ofereca a todos a possibilidade de uma vida respiravel. Trata-se, na realidade, de recuperar as fontes do nosso mundo, a fim de forjar novas terras. A humanidade e a biosfera estéo ligadas. uma ndo tem futuro algum sem a outra. Seremos capazes de redescobrir nosso pertencimento a prépria espécie e nosso vinculo inquebrével com o conjunto do vivente? Esta talvez seja a pergunta derradeira, antes que a porta se feche de uma vez por todas. Achille Mbembe é historiador. & autor, entre outros, de Critica da razo negra, de Necropolitica = de Brutalismo (no prelo), todos pela n-ledigdes.

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