Capitulo 6
O EMPIRISMO INGLES
Danilo Marcondess
1. Definigao
O empirismo 6, juntamente com o racionalismo, uma das grandes correntes formadoras da
filosofia moderna (séculos XVI-XIX). Enquanto que 0 racionalismo de Descartes explicava 0
conhecimento humano a partir da existéncia no individuo de ideias inatas que se originavam em
Ultima andlise de Deus, os empiristas pretenderam dar uma explicagio do conhecimento a partir
da experiéncia, eliminando assim a nogdo de ideia inata, considerada obscura e problematica.
Para os empiristas, todo 0 nosso conhecimento provém de nossa percepgdo do mundo externo,
ou do exame da atividade de nossa propria mente.
2. A filosofia empirista e seu contexto
Os principais fildsofos empiristas classicos foram Francis Bacon (1561-1626), Thomas Hobbes
(1588-1679), John Locke (1632-1704), George Berkeley (1685-1753) e David Hume (1711-
1776). O empirismo desenvolvew-se, inicialmente, sobretudo na Inglaterra, podendo ser
considerado como pensamento representativo da burguesia inglesa que, a partir do século XVII,
passou a deter ndo sé o poder econémico, mas também o politico, através da monarquia
parlamentar, fato que marca o nascimento do liberalismo. Essa nova ordem politica surge da
alianca entre a burguesia e a nobreza contra a monarquia absoluta. O interesse pelo mundo da
experiéncia concreta e uma filosofia politica baseada na teoria do contrato social e na submissao
a lei da maioria sio caracteristicas dessa visio.
E significativo que a maioria dos filésofos empiristas tenha ocupado posicao de destaque na
sociedade inglesa da época. Bacon, visconde de St. Albans, foi chanceler do Reino, Hobbes e
Locke foram conselheiros de politicos e nobres influentes; George Berkeley foi bispo da Igreja
Anglicana, e David Hume, apés tentar em vio a carreira académica, exerceu funcdes na
diplomacia e se tornou historiador,
O desenvolvimento da ciéncia na Inglaterra, com William Gilbert (1540-1603, fisica do
magnetismo), William Harvey (1578-1657, circulagao do sangue), Robert Boyle (1627-1691,
fisica e quimica) e principalmente Isaac Newton (1642-1727, leis da mec4nica), esta intimamente
ligado as concepgGes empiristas de método cientifico.
3. Temas centrais3.1. O conhecimento e a origem das ideias
Desde Bacon, o empirismo caracteriza-se pela defesa de uma ciéncia baseada em um método
experimental, Valorizando a observagio e a aplicagao pratica da ciéncia. As leis cientificas
seriam fundamentalmente resultado de generalizagdes com base na observacao da repeticao de
fendmenos com caracteristicas constantes. A esse procedimento chama-se indugdo, sendo uma
logica indutiva a base da concepgao empirista de ci€ncia.
Essa concepgao parte de uma teoria do conhecimento que explica a origem das ideias a partir
de um processo de abstragdo que se inicia com a percepcaio que temos das coisas através de
nossos sentidos. “Nada est no intelecto que nao tenha estado antes nos sentidos” — eis um dos
lemas do empirismo. E a partir dos dados de nossa sensibilidade que o entendimento produz, por
um processo de abstragao, as ideias. As ideias simples, provenientes das impressdes sensiveis,
dao origem, através do processo de associacao e combinagao, a ideias mais complexas. Quanto
mais préxima da impressdo sensivel que a causou, mais real — nitida e precisa — é a ideia;
quanto mais distante, menos real. E nesse sentido que a verificacao empirica é um dos critérios
basicos da validade do conhecimento. O conhecimento é, portanto, sempre probabilistico,
dependendo sua certeza das verificagdes a serem feitas e do acordo entre as experiéncias dos
individuos. A concepgao empirista é assim fortemente individualista, j4 que a experiéncia é
sempre individual.
1. A ideia € 0 objeto do pensamento. Todo homem tem consciéncia de que pensa e de que, quando esté pensando, sua
mente se ocupa de ideias que tem de si f indubitavel que os homens tém em suas mentes varias ideias, que podem ser
‘expressas pelos termos — brancura, dureza, docura, pensamento, movimento, homem, elefante, exército, embriaguez, e outros.
Deve-se examinar, entio, em primeiro lugar, como ele as apreende. Sei que ¢ aceita a doutrina segundo a qual os homens
{8m ideias inatas e caracteres originais impressos em suas mentes cesde o inicio, Jé examinei, em linhas gerais, essa opiniso, ¢
ssuponho que 0 que jt disse no livro anterior sera maito mais facilmente admitido quando tiver mostrado como o entenimento
‘obiém todas as ideias que possui, e de que modo e graus elas penetram na mente, e para tal farei apelo & observagio e
experiéncia de cada um.
2. Todas as ideias provém da sensagdo ou da reflexdio, Suponhamos, pois, que a mente é, como dissemos, um papel em
branco, vazio de todos os caracteres, sem qualsquer ideias. Como vem a ser preenchida? Como The vem esse vasto estoque
que a ativa e tlimitada fantasia humana pintou nela com uma variedade quase lnfinita? Como Ihe vem todo o material da raza0
@ do conhecimento? A isso respondo com uma palavra: pela experiéncia. £ na experiéncla que estd baseado todo 0 nosso
conhecimento, e & dela que, em titima anilise, 0 conhecimento é derivado. Aplicada tanto aos objetos sensiveis externos
quanto as operacées internas de nossa mente, que sio por nés mesmos perccbidas ¢ refletidas, nossa observagao sempre
stupre nosso entendimento com todo o material do pensament, Essas so as duas fontes de nosso conhecimento, das quais
jorram todas as ideias que temos ou que podemos naturalmente ter.
(John Locke, Ensaio sobre o entendimento humano, Livro Il, cap.1)
14... quando analisamos nossos pensamentos ou ideias, por mais complexos ¢ sublimes que sejam, sempre descobrimos que
se resolvem em ideias simples que so cépias de uma sensacao ou sentimento anterior, Mesmo as ideias que, & primeira vista,
parecem mais afastadas dessa origem mostram, a um exame mais atento, ser derivadas dela, A idela de Deus,
correspondendo a um Ser infnitamente inteligente, sdbio e bom, surge das reflexdes que fazemos sobre as operagies de nossa
propria mente, aumentando sem limites essas qualidades de bondade ¢ sabedoria. Podemos prosseguir esse exame tanto
‘quanto desejarmos, e sempre descobriremos que todas as ideias que examinamos so copiadas de uma impresso semelhante.
‘Aqueles que afirmam que essa posicao nao é universalmente verdadeira nem sem excegdes tm apenas um tinico e bastante
facil método de refuté-la: apresentar uma ideia que em sua opiniio nao seja derivada dessa fonte. Caberd entdo a nés, se
‘quisermos sustentar noss@ doutrina, indicar a impressio ou percepcao viva que lhe corresponda,
15.... se ocorre que, por um defeito de um drgio, um homem nao é suscetivel de determinada espécie de sensagao, sempre
escobrimos que é igualmente incapaz. de ter as ideias correspondentes. Um cego nao pode ter ideia de cores, nem um surdo
de sons. Se restituirmos a cada um deles o sentido que Ihe falta, abrindo caminho & entrada dessas sensagdes, abre-se
igualmente caminho as ideias, e ele ndo teré dificuldade em conceber esses objetos. O mesmo acontece quando o objetoadequado para provocar uma determinada sensago nunca foi aplicado ao érgio correspondent. Um lapo ou um negro no
tem nenhuma nogéo do gosto do vinho. E, embora sejam raros ou inexistentes 0s casos de uma deticiéncia desse género na
‘mente, casos de pessoas que nunca experimentaram ou que sejam incapazes de experimentar um sentimento ou paixio préprio
4 sua espécie, apesar disso encontramos a mesma observacao em grau mais atenuado, Um homem de comportamento timico
no pode fazer ideia de um inveterado espiito de vinganga ou crueldade; nem um coragao egoista pode faciimente conceber
(5 extremos da amizade e da generosidade. Admite-se facilmente que outros seres possam ser dotados de muitos sentidos que
sequer imaginamos, porque as ideias de tais coisas nunca foram inlroduzidas em nés da Gnica maneira pela qual uma ideia
pode ter acesso & mente, isto é, pela sensagiio efetivamente presente
(David Hume, Investigagdo sobre o entendimento humano, séc.II, 14 ¢ 15)
3.2. O problema da causalidade
Partindo dessa concepcao da origem das ideias e do conhecimento, Hume, 0 mais radical dos
empiristas, chegaré a negar validade universal ao principio de causalidade e & nogio de
necessidade a ele associada.
A causalidade no seria, assim, uma propriedade do real, mas simplesmente o resultado de nossa
forma habitual de perceber fendmenos, relacionando-os como causa e efeito, a partir de sua
repeticao constante.
60.... se ha alguma relagao entre objetos que nos importa conhecer perfeitamente ¢ a de causa ¢ efeito. Sobre ela se
fundamentam todos 0s nossos raciocinios sobre questdes de fato e de existéncia.... A inica utlidade imediata de todas as
cigncias & nos ensinar a regular e controlar os eventos futuros através de suas causas. Nossos pensamentos e nossas
investigaces sempre se dirigem, portanto, a essa relagio. Contudo, to imperfeitas sio as ideias que formamos a esse
respeito que é impossivel dar uma definigao correta de causa; exceto 0 que tiramos do que Ihe & estranho e exterior. Objetos
semelhantes sempre se encontram em conexio com objetas semelhantes. Disso temos experiéncia. De acordo com essa
experiéncia, podemos definir uma causa como um objeto seguido de outro de tal forma que todos os objetos semelhantes
a0 primeiro sdo sequidos de objetos semelhantes ao segundo. Ou, em outros termes, fal que, se o primeiro objeto néo
existisse, 0 segundo também ndo existiria. O aparecimento de wma causa sempre traz mente, por uma transigao
costumeira, a ideia de efeito, Disso também temos experincia. Podemos, assim, conforme essa experiéncia, formular uma
‘outra definigdo de causa que chamariamos de um objeto seguido de outro, e cuja aparigdo sempre conduz 0 pensamento
@ ideia desse outro objeto. ... Ouso assim afirmar como uma proposigao geral que no admite exceao que o conhecimento
dessa relagao nao se obtém em nenhum caso pelo raciocinio a priori, mas que ela nasce inceramente da experiéncia quando
descobrimos que objetos particulares esto em conjungo uns com os outros,
(David Hume, Investigagdo sobre 0 entendimento humano, séc.VI)
3.3. O problema da identidade individual
Da mesma forma em que coloca em questo o carater necessario da causalidade, Hume questiona
a concepcao de identidade individual da consciéncia. Vimos que o empirismo se caracteriza
como uma forma de idealismo, jd que afirma que s6 conhecemos da realidade aquilo que nos vem
através dos sentidos e da origem a ideias em nossa mente. Ora, segundo Hume, se as ideias se
originam da experiéncia sensivel e se nossa consciéncia é um “feixe de representagdes” formado
pelo conjunto de ideias que possuimos, podemos dizer que 0 contetido de nossa consciéncia varia
de um momento para outro de tal forma que ao longo do tempo essa consciéncia teria, em
momentos diferentes, um contetido diferente. Portanto, nao haveria uma identidade permanente da
consciéncia individual, como queriam os racionalistas.
HG alguns fildsofos9 que imaginam que estamos a todo momento conscientes de algo a que chamamos nosso eu [self] e que
sentimos sua existéncia continua, tendo certeza, para além de qualquer evidéncia ou demonstragéo, de sua perfeita identidade
simplicidade.... Infelizmente, todas essas afirmagées sio contrérias a essa mesma experiéncia a que esses filisofos
recorrem, nem temos qualquer ideia de eu do modo como a explicam. De que impressao poderia essa ideia ser derivada? A.
‘essa questo é impossivel responder sem absurdo e sem uma contradigio manifesta. E, entretanto, é uma questio que devenecessariamente ser respondida se quisermos que a ideia de eu passe por clara e inteligivel. Deve haver uma impressio