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TS do real, trazendo novos dados e informagSes “objetivos" (novos “achados", novos entrecruzamentos, novas articulagdes), € granjear um apreciével consenso inter subjetivo, sem que seja preciso tentar escamotear 0s préprios valdres. Estes devem, pelo contrétio, ser explicitados ~ mas com comedimento e serenidade, para que nio se confunda a assun¢ao destes com panfletarismo € excesso vulgar de arrebatamento. E dessa forma, e nao na base de uma presumida Wertfreiheit, {que se pode melhor colaborar para alimentar um debate ptiblico fecundo e franco,” ‘capacidade de colaboragdo essa que € a virtude méxima de uma ciéncia compro- ._ metida com valores genuinamente democriticos.#8 Diante disso tudo chega a hora | de formular a deticada questio: planejamento ¢ gestao urbanos, saberes/prética genic ) ou politicos? fe -xercicio de erudigao, mas pagando tributo a um pensamento que, como nenhum outro, modelou e serviu de matriz mais essencial para a cultu- ra ocidental, serd essa discussio sobre as dimenses politica e técnica do planeja~ mento e da gestio urbanos encaminhada coma ajuda de referenciais extrafdosda smocratica da Grécia cldssica. Pela inspiragao, sobretudo, a analogia pode revelar-se itil, em que pese o fato de serem as nossas condigées atuais tio distintas em varios sentidos. E preciso, antes de qualquer outra coisa, ter clareza para distinguir entre, de uma parte, 9 planejamento ¢ a gestiio como préticas, no momento da tomada de decisio, ¢, de outra, o planejamento e a gestio como conhecimentos que podem vir a auxiliar a balizar c informar o processo de tomada e implementagao das deci- ses. Sd duas instancias distintas. De um ponto de vista radicalmente antitecno- crético, as decisdes sobre o planejamento e a gestZio cabem aos cidadaos, e nio a0 “Estado” ou aos “representantes do povo", municiados estes por técnicos embebi- dos em ideologias elitistas e que atuam como maquiavélicos “conselheiros do t Principe”. Nesse sentido, enquanto préticas sociais sobre as quais se debate e deli- yr%,, bea livremente, o planejamento e a gestio so, essencialmente, politicos, © per- ~ _ tencem nfo s6 a0 dominio do politico (isto €, do poder explicito, presente em UP) dualguersociedade), mas igualmente da poltica (ou seja, da discussio transp2- “© Simplificando e resumindo, para Para © pesquisador consciencioso a tarefa ndo 6, 0 contrdrio do que ‘eabelee a Pudi heal © posivita~ cla propria um posiionamente chcio de mpicagbes~ transforma qualquer observa com sabor normativo em anétema ou tabu, mas sim imped que a8 saree ess Spatn/nipatisstapalheme emipobregam oestidoaponto deo ganto anal caps aber gv engem urna cet dose dedstaniamento do objeto, serem claramentepejica wersio ou rebaixamento do trabalho a umn pesa de doutrinagao ou proselitisn0. Yow tioe + ¥ rente ¢ livre, vale dizer, verdadeiramente democratica, sobre os neg6cios de inte- resse coletivo). No momento da discussio entre os cidadaos e da tomada de deci- sées, em uma arena onde os cidadios sao, de direito, iguais (como o eram na assembléia de cidados da antiga Grécia, reunidos na dgora ou no ekklesiaste- rion), 0 planejamento, seja lé do que for (de uma guerra, da cidade...) pertence — como, de resto, a politica em geral ~ a0 dominio do confronto livre de opinises. Todas essas opiniGes se situam, a priori, no mesmo patamar de legitimidade poli- tica, cabendo ao préprio corpo politico soberano estipular quais sao, para ele, as mais apropriadas e convenientes e, eventualmente, aquelas eticamente inaceit4- veis. Ou seja, o planejamento urbano, no momento do processo efetivamente decisério e, portanto, politico, pertence ao dominio da déxa (que significa opi- rfifo, conjectura, suposig&o; deriva do verbo dokéo, que possui, entre outras acep- ges, as de “escolher, decidir, deliberar ¢ julgar segundo os dados oferecidos pela situagiio e segundo a regra ou norma estabelecida pelo grupo” (CHAUI, 2002a:498-9]). Por essa via, o planejamento mostra-se e faz-se préxis, na qualida- de de prética humana clarament onto de jolftica e que, ainda por cima — de um ponto de vista autonomista, mas também no contexto da pdlis radicalmente democratica da Antigtidade -, visa, explicitamente, contribuir para a autonomia dos homens © mulheres, por meio de uma melhor qualidade de vida ¢ uma maior justica soci na cidade. —“"KGimensio de déxa e praxis nfo elide, contudo,-a dimensao técnica (ou téonico-cientifica) presente no planejamento e na gestio — ou, para dizé-lo de_ irr Torna, Fepresentadarpelo planejamento e pela gest na qualidade de asun- tos que podem ser objeto de estudo e reflexio sisteméticos por individuos que para isso revelem aptido e apetite, em que o pesquisador, éenico ou estudioso procure confrontar conceitos e abordagens, criicar, aperfeigoare desenvolveri trumentos, recuperar a histria das priticas de planejamento ete. Essa dimensio referee ob taba de pessoas que, nfo na base de um argumento de autoridade cu “discurso competente” que se vale de um pretenso monop6lio para se pronun~ ciar sobre tal ou qual tema (por forga de uma formagio universitria ou reserva de legislagao profissional), mas, legitima e mercado garantida corporativamente em ‘ de comprovada exceléncia intelectual substantivamente, sobre o fundamento ovad “v toa de experisucia; dlicém-ieyeprofundadac sstematicaments 2 reflexio “bre as priticas de planejamento € z gestio. Essa dimensio comporta wma ceria dase de epistéme (entre os gregos, 0 “conhecimento te6rico das coisas por meio fnigs, provas e demonsrag6es” [CHAUT, 20022500), ainda que no de raci seja o caso de postular, a esse respeito, um “conhecimento verdadeiro ¢ objetivo” no estilo das ciénciasnaturais. Na verdade,irata-se de um conhecimento cientifi co com as mesmas caracteristicas do que é tipico das ciéncias sociais, em geral (esse caso, enquanto “pesquisa social aplicada’’), as quais lidam, essencialmen- te, com a realidade do nédmos (no sentido de convengio, de algo acordado entre individuos, de criagdo social), ndo com a phfsis (com a natureza, com aquilo que independe dos homens e de sua vontade). ‘Além disso, possui também caracteris- -ticas daquilo que os gregos chamavam de 1ékine (habilidade para fabricar, com- (» Por ou constuir alguma cosa) e empeiraGabedoria adquitida pela experincia), designando, com isso, os saberes dos artesaos, dos arquitetos, dos médicos em sua época e em seu mundo, Seguramente, o planejamento urbano contemporaneo, devem colaborar de arquitetos-urbanistas a cientistas socias, passando por ristas versados em Direito Urbano, congrega profissionais © afividades que tanto Se podem ligar, preferencial ou circunstancialmente, a uma reflexao de tipo teérico (potencialidades ¢ limitagées de estratégias, “ligdes" da historia do plane- __Jamento, arcabougo epistemol6gico, polticefiloséfico e ético) quanto a ativide- U des propriamente técnicas (como a adaptagdo de instrumentos, a revisao de leis ¢ a elaboracio cartografica visando a preparagdo de um plano). Se os cidadios dlevem poder debater e deliberar liveemente sobre os fins concretos do planeja- mento e da gestio — debate esse que é, a0 fim e ao cabo, um debate politico -. assim como, em itima andlise, também decidir sobre tais ou quais meios, conve- niente e mesmo necessério se faz.que pessoas com experitncia e comprovada pro- ficiéncia estejam dispontveis para, atuando como “‘consultores populares” (SOUZA, 2002:14, 518-9, 531-3), auxiliar na selegdo dos meios e, eventualmen- te, também na propria discussio de fins especificos. A prevaléncia, no plaiieja- ‘mento e na gestio, de um amiigama de epistéme, ékle e empeirta ou da déxa, « possibilidade de vé-1os ora como “teoria’/“téenica”, ora como pratis, ora ainda | ‘como execugéo mais ou menos rotineira de procedimentos técnicos, depende,| Portanto, em primeiro lugar, daguilo a que o observador se refere se a0 cultivo de-um tipo de saber tecnico-ientfcaespectico, se ao momento do debate pb «da tomada de decisdo‘ou se &implementacéo das decisbes. — A Um ditimo paralelo com a Atenas demoerética. L4, a guerra era uma ativida- de politica ou, como toda guerra, parairaseando Clausewitz, 0 prolongamento da Politica por outros meios; no entanto,a “arte da guerra” tinha o seu lado de habi- Hidade (de rékhne), 0 que fazia com que 0 comando militar ndo fosse entregue & qualquer um por sorteio (como ocorria com a maioria dos cargos piiblicos), mas confiado por eleigdo ao melhor dentre os melhores, a0 mais apto dentre os aptos. Isso néo impedia que os cidadios criticassem e questionassem as decisoes dos comandantes militares, ¢ que estes fossem severamente punidos se fracassassem. ‘Trazendo para o terreno do planejamento e da gestio urbanos e radicalizando 0 raciocinio dos pardgrafos anteriores, nio basta, para superar 0 “discurso compe- tente”, fazer uma apologia do primado politico da deliberagao pablica, livre € transparente sobre 0 conhecimento técnico-cientifico, pois sempre haveria a sus- peita de que os conselhos ¢ as recomendagdes dos técnicos e pesquisadores, ‘mesmo podendo ser apenas parcialmente aproveitadas e até mesmo rejeitadas in totum, seriam manifestagdes de um saber fechado e, em si mesmo, nio maculado pela déxa, Ainda que a ciéncia no se construa sem afrontar 0 senso comum e seus preconceitos, sem duvidar das certezas estabelecidas e sem descontiat @ 4s aarentemente Obvio, a déxa e 0 “saber local” podem e devem fecundar 0 saber The 0, inclusive no momento da confrontago pablica e democritica 4, de opinides (apenas muito imperfeitamente possfvel em uma Sociedade heteréno- ma). E af que, sem se confundir uma com a outra, a teoria se abre plenamente para a prévis, e nfo somente a alimenta como é retroalimentada por ela, relativizando- ;da um pouco mais as Fronteiras entre saber técnico-cientifico e déxa._ —Bsclarega-se que no se quer, com essa maneira de formular as coisas, pasar Az) ‘a impressio de que a interagao entre os cidadaos leigos e os técnicos ¢ pesquisa- — “/2/ dores hé de se desenrolar completamente sem conflitos e idilicamente. A colabo- g ragio, em uma sociedade heterénoma, entre técnicos e pesquisadores, ainda que imbufdos de genuinas convicg6es dial6gicas e autogestionérias, de um lado, ¢ ati~ vistas que ni dispem de formagio téenico-centfia e que reeorrem ao asesso- nfo seré imune a tenses. Mesmo nos marcos de ir algum tipo de atrto entre éndo permitir leigos eo saber ramento dos primeiros, de outro, uma hipotética sociedade auténoma haveria de subsi saberes nfo exatamente simétricos, porque distintos. que as diferencas de natureza entre o “saber local” dos cida téenico-cientffico venham a nutrir. hierarquias eum discurso hierdrquico. os ‘Agora, a pergunta: quem si0 08. ‘gestores” (¢ aqueles que executam o plane- 6 E45, jamento) em uma sociedade capitalista? Decerto que nfo € o corpo de cidadaos. Nao se trata de aufogestdo, com os cidaddos (consumidores e produtores) sendo gestores de seus espagos, de modo radicalmente democritico. Diria Joo BER- NARDO (1987) que é a “classe dos gestores”, que para ele no se confunde nem nem com a dos trabalhadores, pois, conquanto nao sejam. slo assalariados muito ou muitissimo bem ‘com a dos capitalistas, proprietatios dos meios de produgao, 171 ae pagos, servindo ao capitalism tanto na iniciativa privade, como consultores ¢ “executives”, quanto no aparelho de Estado, onde gerenciam, por “mandato popular”, seleglo por mérito ou indicagao politica, aparatos tecnoburocriticos. 34 CASTORIADIS (19836, 1985b), de um ponto de vista aparentado, preferiu 0 termo “burocracia”, por contextualizado tedrica e politicamente de maneira dis- tinta tanto de Weber quanto de Trotsky. A “burocracia” de Castoriadis ou os “ges- tores” de Bernardo sio crucialmente relevantes ndio apenas na produgo econémi- cacem geral, para a qual esses dois autores voltaram suas atengdes, mas também na produedo do espaco, em sentido material e no que concerne & sua viabilizagéo @ facilitagdo mediante zoneamentos, alteragGes de zoneamento etc., criando e recriando segregacio, valorizacao diferer 1o-€ reservas de valor. Valen- do-se do saber técnico, os "gestores” simultaneamente encobrem e negam a

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