Você está na página 1de 51
Questées da Nossa Epoca Emili ; milia Ferreiro Volume 6 REFLEXOES SOBRE ALFABETIZAGAO ‘Dados internacionais de Catalogagéo na Publicagao (CIP) (Camara Brasileira do Livro , SP, Brasil) Tereieo, Emilia TReflexdes sobre alfbetizacao / Emilia Ferreiro. ~ 26. ed — sto Paulo : Cortez, 2011 — (Coleco questOes da nossa épo- cay.) Varios tradutores ibliografia ISBN §70-05-240-1597-1 1. alfabetizagli 2, Allabetizago - Métodos 3. Leitura Titulo. I, Série 26° edicéo 1° reimpressao 02898 oppsraat | indices para catélogo sistemético: 1. alfabetizago : Métodos ¢ tenicas: Ensino fundamental 372.414 2, AlfabetizacSo = Processos : Ensino Fondamental 372.414 4. Aprendizagem de Teitura: Método e teeicas Ensino fundamental 972.414 4. Metodologia :Alfabetizagdo : Ensino fundamental 372414 Sesiena [REFLEXOES SOBRE ALFABBTTZAGAO Bonilla Ferreiro ‘Tradugae: Horio Gonzales, Maria Amélia de Azevedo Goldberg, Maria Antonia Cruz Costa Magelldcs, Mania do Noacimonto Paro e Sara Cunha Lima apa: acroestiio Preparago dos orginais Nair Kayo Revisio: Maria de Lourdes de Almeida Composigo: Linea Raltora Lida, Ccoordenaeo editorial: Danilo A. Q, Morales Nenunna parte desta obra pode ser reprodurida on duplicada seam. autorizagdio expressa do autor ¢ do editor © 1901 by Avtora Direitos para esta edigao (CORT#Z EDITORA ua Monte Alegre, 1074 ~ Perdizes 5014001 — Sio Paulos? ‘el: (1) 30640111 Fax: (31) 39614280 Email: corte2@oortezoditora.com.br sewve.cortezeditora.com br Impresso no Brasil — fevereio de 2013, Sas 5 Sumario Prefiicio ..... Apresentagio. A representagdo da linguagem 0 proceso de alfabetizagao..... 13 A esorita como sistema de representagao.. uM 2. As concepgies das criangas a respeito do sistema de escrita .. 19 3. As concepgdes sobre a lingua subjacentes & pratica docente 31 Conclusoes, 4 A compreensio do sistema de escrita: construgdes originais da crianga ¢ informagao especifica dos adultos... 43 1, Construgbes originais das criangas 46 2. Informagbes CSPeCifiCAS.. icecream 55 3. Algumas implicagbes pedag6gicas... 59 . RUA FeRRERO Processos de aquisicao da lingua escrita no contexto escolar 63 0 espago da Ieitura ¢ da escrita na educacgao pré-escolar 93 Bibliografia 101 Sein , Prefacio Este 6 um livro sobre alfabetizagao que, contrariando habitos e expectativas, ndo traz para o leitor nem um novo método, nem novos testes, nem nada que se parega com uma solugzo pronta. ‘O que a autora nos oferece sao ideias a partir das quais torna-se possivel o que ja era necessario: repensar a pratica escolar da alfabetizagao. Sao reflexdes — as vezes apaixona- das — sobre os resultados de suas pesquisas cientificas. Emilia Ferreiro ¢ doutora pela Universidade de Gene- bra, onde teve 0 privilégio de ser orientanda e colaborado- rade Jean Piaget. Suas pesquisas sobre a alfabetizagao foram realizadas principalmente na Argentina, onde nasceu, ¢ no ico, pais que a recebeu ¢ onde 6, atualmente, professo- ra titular do Centro de Investigagdo Estudos Avancados do Instituto Politécnico Nacional. ‘Tyadicionalmente a investigacdo sobre as questées da alfabetizagao tem girado em torno de uma pergunta: “como A crenca impl de que o processo de alfabetizacio comegava e acabava se deve ensinar a ler e escrever’ ita era a entre as quatro paredes da sala de aula e que a aplicago 8 EMAFERREIRO correta do método adequado garantia ao professor 0 con- trole do processo de alfabetizacao dos alunos. A medida que um contingente maior de criangas passou a ter acesso a educagilo, os ntimeros do fracasso foram se tornando mais alarmantes. Diante da derrota impés-se a necessidade de mudangas radicais. Uma unanimidade na- cional que — na auséncia de instrumentos para repensar a pritica falida — converteu-se em caga aos culpados. Ninguém escapou do banco dos réus: os alunos, por serem subnutridos, carentes, deficientes, A escola, por ser uma inexoravel m- quina de reproducao das relagdes de poder. O professor, por ser mal pago, malformado, incompetente. Neste momento o cfrculo parece ter se fechado ¢ tudo indica que as contradig6es alcangaram um nivel realmente desestabilizador. Como diz Emilia Ferreiro: "Em alguns momentos da historia faz falta uma revolugao conceitual. Acreditamos ter chegado 0 momento de fazé-la a respeito da alfabetizagio." Nao foi certamente obra do acaso que um avango tao significativo na compreensio do processo de alfabetizagao como a contribuigao de Emilia Ferreiro tenha acontecido na América Latina, onde o fracasso escolar ja ultrapassou os limites de um problema educacional; onde os indices chegaram a niveis politica e socialmente inaceitaveis. ‘As pesquisas de Emilia Ferreiro e colaboradores rom peram o imobilismo lamuriento ¢ acusatério e deflagraram um esforgo coletivo de busca de novos caminhos. Deslocan- do a investigacdo do “como se ensina” para 0 “como se aprende’, Emilia Ferreiro descobriu ¢ desoreveu a psicoge- nese da lingua escrita e abriu espago — agora sim — para REFLENOES SOBRE ALFABETIZAGKO ° um novo tipo de pesquisa em pedagogia. Uma pedagogia onde a compreensao do papel de cada um dos envolvidos no processo educativo muda radicalmente. Suas ideias, quando levadas a pratica, produzem muéangas to profin- das na propria natureza das relagdes do poder pedagogico que, sonho ou ndo, é inevitavel acalentar a ideia de que esta revolugiio conceitual sobre a alfabetizagaio acabe levando a mudangas profundas na propria estrutura escolar Mas nfo vamos colocar 0 carro adiante dos bois. 0 importante neste momento é que, através deste livro, che- guem as mdos dos educadores as ferramentas que Emilia Ferreiro nos oferece. Com as quais, quem sabe, vamos con- seguir descobrir os caminhos para romper o circulo vicioso da reproducao do analfabetismo. ‘Telma Weisz Apresentagao Neste volume estilo reunidos quatro trabalhos produ- zidos em momentos diferentes, porém dentro da mesma linha de preocupacao: contribuir para uma reflexdo sobre a interven¢do educativa alfabetizadora a partir dos novos dados oriundos das investigagées sobre a psicogénese da esorita na crianga. Estas investigagSes (que hé dez anos vimos realizando ininterruptamente) evidenciam que 0 processo de alfabetizacdo nada tem de mecanico, do ponto de vista da crianga que aprende, Essa crianga se coloca problemas, constréi sistemas interpretativos, pensa, raciocina e inventa, buscando com- preender esse objeto social particularmente complexo que € a escrita, tal como ela existe em sociedade. Os dados a que nos referimos nestes quatro trabalhos provém de investigagdes realizadas em castelhano (com criangas da Argentina e do México). Os dados colhidos re- centemente no Brasil por Telma Weisz (Sao Paulo), Esther Pilar Grossi (Porto Alegre), Terezinha Nunes Carraher Liicia Browne Rego (Recife), mostram que os processos de conceitualizagao da escrita seguem uma linha evolutiva similar em portugues. 2 MUA FERRERO Esperamos, no entanto, que novas pesquisas brasileiras contribuam para precisar melhor os aspectos especificos de portugués, aspectos esses relevantes para compreender 0 que ocorre quando se inicia 0 periodo de fonetizagio da escrita Julho, 1985, Este livro, até sua 22" edigdo, continha quatro trabalhos. Um deles intitulava-se "Deve-se ou ndo se deve ensinar a ler ¢ escrever na pré-escola? Um problema mal colocado” Fase texto, escrito em 1982, exigia ser revisado, em fungao dos muiltiplos comentarios que recebi de educadoras durante esses anos. Em margo de 1994, a pedido da Unidad de Publicaciones da Secretaria de Educacién Pablica do México, procedi a esta nova versao, que agora passa a de- nominar-se “O espaco da leitura e da escrita na educacio Emilia Ferreiro México, marco de 1994. A representagao da linguagem e o processo de alfabetizacao* recente a tomada de consciéncia sobre a importancia da alfabetizacao inicial como a tmica solugao real para 0 problema da alfabetizacao remediativa (de adolescentes ¢ adultos) ‘Tradicionalmente, a alfabetizacao inicial é considerada em fungao da relacao entre 0 método utilizado ¢ 0 estado de “maturidade” ou de "prontidao” da crianga. Os dois polos do processo de aprendizagem (quem ensina e quem apren- de) tém sido caracterizados sem que s¢ leve em conta 0 terceiro elemento da relagdo: a natureza do objeto de co- nhecimento envolvendo esta aprendizagem, Tentaremos demonstrar de que maneira este objeto de conhecimento intervém no proceso, nao como uma entidade tinica, mas como uma triade: temos, por um lado, o sistema de repre- sentagao alfabética da linguagem, com suas caracteristicas Texto publicado no Caderso de Fesquisa,n, 82, p. 7-17, fev. 1905. Traduca {de Horicia Gonzales. “ NAA renmn© especificas;! por outro lado, as concepgées que tanto os que aprendem (as criangas) como os que ensinam (os professo- res) tém sobre este objeto. 1. Aescrita como sistema de representagio A escrita pode ser concebida de duas formas muito diferentes ¢ conforme o modo de considerd-la as consi quéncias pedagégicas mudam drasticamente. A escrita pode ser considerada como uma representagao da lingua- gem ou como um cédigo de transcrigao gréfica das unida- des sonoras. Tratemos de precisar em que consistem as diferencas. A construgao de qualquer sistema de representagao envolve um processo de diferenciagzio dos elementos ¢ relagdes reconhecidas no objeto a ser apresentado ¢ uma selego daqueles elementos ¢ relagdes que serao retidos na representagao. Uma representacao X nao € igual 8 realida- de R que representa (se assim for, nao seria uma represen- tagdo mas uma outra insténcia de R). Portanto, se um sis- tema X é uma representagao adequada de certa realidade R, retine duas condigbes aparentemente contraditorias: a) X possui algumas das propriedades e relagdes pro- prias a R; b) X exclui algumas das propriedades e relagdes pro- prias a R. 1. Trataremos aqui exclusivamente do sistema alfabitico de excita EFLENOES Soone ALTABETZAGAO 1s vinculo entre X eR pode ser de tipo analégico ou totalmente arbitrério. Por exemplo, se os elementos de R so formas, distancias e cores, X pode conservar essas pro- priedades ¢ representar formas por formas, disténcias por distincias e cores por cores. E 0 que acontece no caso dos mapas modernos: a costa ndo é uma linha, mas a linha do mapa conserva as relacdes de proximidade entre dois pon- tos quaisquer, situados nessa costa; as diferengas de altura do relevo nao se exprimem necessariamente por diferengas de coloragdo em R, mas podem se exprimir por diferengas de cores em X etc. Embora um mapa seja basicamente um sistema de representacdo analdgico, contém também ele- mentos arbitrérios; as fronteiras politicas podem ser indi- cadas por uma série de pontos, por uma linha continua ou por qualquer outro recurso; as cidades nao sao formas circulares nem quadradas e, no entanto, so estas duas formas geométricas as que habitualmente representam — na escala do mapa de um pais — as cidade: ‘A constragao de um sistema de representagao X ade- quado a R é um problema completamente diferente da construgao de sistemas alternativos de representacdo (X1, X2, X3 ...) construidos a partir de um X original: Reservamos a expresso codificar para a construgao desses sistemas al- ternativos. A transcrigdo das letras do alfabeto em c6digo telegrafico, a transcrigao dos digitos em cédigo binario computacional, a produgdo de cédigos secretos para uso 2. As diferencas em nimeros de habitantes das populagtes, ou na importan- cia politica das mesmas, pode se exprimir por diferencas de forma tais coma ‘quadrados versus cireulos, on sentio por variacGes de tamanho dentro da mesma forma, Neste caso se rstabelece 0 analégico no interior do arbitratio. 6 Un FERRERO militar etc., sao todos exemplos de construgzo de cédigos de transcricao alternativa baseados em uma representagao ja constitufda (0 sistema alfabético para a linguagem ou 0 sistema ideogratico para 08 nimeros). A diferenca essencial é a seguinte: no caso da codifica- ¢fo, tanto os elementos como as relagbes ja estéio predetermi- nados; 0 novo cédigo nao faz sendo encontrar uma repre- sentagao diferente para os mesmos elementos e as mesmas relages. No caso da criagéio de uma representagdo, nem os elementos nem as relagdes esto predeterminados. Por exemplo, na transorigao da escrita em cédigo Morse todas as configu- rages grafic sequéncias de pontos ¢ tacos, mas a cada letra do primeiro sistema corresponde uma configuragao diferente de pontos € tragos, em correspondéncia biunivoca, Nao aparecem “Jetras novas" nem se omitem distingdes anteriores. Ao \s que caracterizam as letras se convertem em. contratio, a construgio de uma primeira forma de repre- sentagio adequada costuma ser um longo proceso histori: 0, até se obter uma forma final de uso coletivo. A invengao da escrita foi um processo histérico de construgaio de um sistema de cesso de codificagao, Uma vez construido, poder-se-ia pen- sar qué o sistema de representagao é aprendido pelos novos spresentacdo, ndo um pro- usuarios como um sistema de codificagdo, Entretanto, néo é assim. No caso dos dois sistemas envolvidos no inicio da escolarizagao (0 sistema de representagio dos niimeros ¢ 0 sistema de representagao da linguagem), as dificuldades que as criangas enfrentam sio dificuldades conceituais semelhantes as da construcao do sistema ¢ por isso pod dizer, em ambos os casos, que a crianca reinventa esses REFLENOES SOBRE ALFABETZAGHO wv sistemas, Bem entendido: nao se trata de que as criangas reinventem as letras nem os niimeros, mas que, para pode- rem se servir desses elementos como elementos de um sistema, devem compreender seu processo de construgao coloca o problema episte~ e suas regras de produgao, o que mol6gico fundamental: qual é a natureza da relagao entre o real ¢ a sua representagao? No caso particular da linguagem escrita, a natureza complexa do signo linguistico torna dificil a escoTha dos parametros privilegiados na representacdo. A partir dos tra- balhos definidores de Ferdinand de Saussure estamos habi- tuados a conceber o signo linguistico como a unio indisso- Iivel de um significante com um significado, mas nao avaliamos suficientemente o que isto pressupde para a cons trugdo da escrita como sistema de representagao. Bo carater biffisico do signo linguistico, a natureza complexa que ele tem e a relagao de referéncia o que esta em jogo. Mas, o que a escrita realmente representa? Por acaso representa dife- reneas nos significados? Ou diferencas nos significados com relagdo a propriedade dos referentes? representa por acaso diferencas entre significantes? Ou diferengas entre os signi- ficantes com relac3o aos significados? As esctitas de tipo alfabético (tanto quanto as escritas silabicas) poderiam ser caracterizadas como sistemas de representagdo cujo intuito original — e primordial — ¢ repre- sentar as diferencas entre os significantes, Ao contrario, as escritas de tipo ideografico poderiam ser caracterizadas como sistemas de representagao cuja intengao primeira — ou pri- mordial — 6 representar diferengas nos significados. No entanto, também se pode afirmar que nenhum sistema de escrita conseguiu representar de maneira equilibrada a na- EAA FERRERO tureza bifasica do signo linguistioo. Apesar de que alguns deles (como o sistema alfabético) privilegiam a representagao de diferengas entre os significantes, ¢ outros (como 0s ideo- graficos) privilegiam a representacao de chferengas nos sig- nificados, nenhum deles € *puro’: os sistemas alfabéticos incluem — através da utilizagéio de recursos ortograficos — componentes ideograficos (Blanche-Benveniste ¢ Chervel, 1974), tanto quanto os sistemas ideogréficos (ou logograficos) incluem componentes fonéticos (Cohen, 1958; Gelb, 1976), A distingdo que estabelecemos entre sistema de codi- ficago e sistema de representagio ndo é apenas termino- logica. Suas consequéncias para a agao alfabetizadora mar- cam uma nitida linha divis6ria. Ao conecbermos a escrita como um cédigo de transcri¢ao que converte as unidades sonoras em unidades graficas, coloca-se em primeiro plano a discriminagao perceptiva nas modalidades envolvidas (visual e auditiva). Os programas de preparagio para a lei- tura ¢ a escrita que derivam desta concepgao centram-se, assim, na exercitagdo da discriminagao, sem se questiona- rem jamais sobre a natureza das unidades utilizadas. A Tinguagem, como tal, € colocada de certa forma ‘entre pa- rénteses", ou melhor, reduzida a uma série de sons (con- trastes sonoros a nivel do significante). O problema é que, ao dissociar o significante sonoro do significado, destruimos osigno linguistico. O pressuposto que existe por tras destas praticas é quase que transparente: se no hd dificuldades para discriminar entre duas formas visuais préximas, nem entre duas formas auditivas proximas, nem também para desenhé-las, nZo deveria existir dificuldade para aprender aller, jd que se trata de uma simples transcrigao do sonoro para um cédigo visual. REFLOXOES SOBRE ALFADEMZAGAO 1° Mas se se concebe a aprendizagem da lingna escrita como a compreensao do modo de construgio de um sistema de representacao, o problema se coloca em termos comple- tamemte diferentes. Embora se saiba falar adequadamente, € se fagam todas as discriminacdes perceptivas aparente. mente necessérias, isso ndo resolve o problema central; compreender a natureza desse sistema de representacao. Isto significa, por exemplo, compreender por que alguns elementos essenciais da lingua oral (a entonagio, entre outros) nao sao retidos na representagao; por que todas as palavras sdo tratadas como equivalentes na representago, apesar de pertencerem a “classes” diferentes; por que se ignoram as semelhangas no significado ¢ se privilegiam as, semelhangas sonoras; por que se introduzem diferengas na representagdo por conta das semelhangas conceituais etc, A consequéncia tiltima desta dicotomia se exprime em termos ainda mais draméticos: se a escrita é concebida como um cédigo de transcrigdo, sua aprendizagem ¢ concebida ‘como a aquisigéio de uma técnica; se a escrita 6 concebida como um sistema de representagao, sua aprendizagem se converte na apropriagao de um novo objeto de conhecimen- to, ou seja, em uma aprendizagem conceitual 2. As concepedes das criangas a respeito do sistema de escrita Os indicadores mais claros das exploragées que as criangas realizam para compreender a natureza da escrita sdo suas produgdes espontaneas, entendendo como tal as 2 ENUA FERRERO que nao sao o resultado de uma copia (imediata ou posterior).’ Quando uma crianga escreve tal como acredita que poderia ou deveria escrever certo conjunto de palavras,1 est nos oferecondo um valiosissimo documen- to que necessita ser interpretado para poder ser avaliado. Bssas escritas infantis tém sido consideradas, displicente- mente, como garatujas, “puro jogo", o resultado de fazer — isto é, a las “como se" soubesse escrever. Aprender a | interpreti-las — 6 um longo aprendizado que requer uma atitude te6rica definida. Se pensarmos que a crianga apren- de s6 quando é submetida a um ensino sistematico, ¢ que a sua ignorancia esta garantida até que receba tal tipo de ensino, nada poderemos enxergar. Mas se pensarmos que as criangas sao seres que ignoram que devem pedir permis- sdo para comogar a aprender, talvez comecemos a aceitar que podem saber, embora nao tenha sido dada a elas a au- torizagao institucional para tanto, Saber algo a tespeito de certo objeto nfo quer dizer, necessariamente, saber algo socialmente aceito camo “conhecimento’, “Saber” quer dize: ter construido alguma concepgao que explica certo conjun- tode fendmenos ou de objetos da realidade. Que esse “saber” coincida com 0 ‘saber" socialmente valido é um outro pro- blema (embora seja esse, precisamente, o problema do “saber” escolarmente teconhecido). Uma crianga pode co- 3, Mencionaremos aqui apenas os processos de produce de texto (eserit) [Em naaio da limitacdo do espaco, no iemos nes ocupar dos processos de inter pretagio de textos (leturs), embora ambos se encontrem perfeitamente relac narlas (0 que nio significa paraleismo completo) 4, Bimportante sublinkar “conjunto de palavras’ Uma escitaisolada 6 ge ralmente impossivel de se interorear & precisa tex um conjunto de expressdes| ceseritas para poder avaliar 08 contrastes a se levar em conta na construao da representacto. EFLEXOeS SOONE ALFABENZACAO 2 nhecer 0 nome (ou valor sonoro convencional) das letras, e ndo compreender exaustivamente o sistema de escrita. Inversamente, outras criangas realizam avangos substanciais no que diz respeito A compreensio do sistema, sem ter recebido informagao sobre a denorninagao de letras par- ticulares. Aqui mencionaremos brevemente alguns aspec- tos fundamentais desta evolugao psicogenética, que tem sido apresentada e discutida com maior detalhe em outras publicagoes.> As primeiras escritas infantis aparecem, do ponto de vista grafico, como linhas onduladas ou quebradas (zigue- -zague), continuas ou fragmentadas, ou entdo como uma série de elementos discretos repetidos (séries de linhas verticais, ou de bolinhas). A aparéncia grafica nao é garan- tia de escrita, a menos que se conhecam as condigdes de producao. O modo tradicional de s¢ considerar a escrita infantil consiste em se prestar atencZo apenas nos aspectos graficos dessas produgGes, ignorando 0s aspectos construtivos. Os aspectos grdficos tém a ver com a qualidade do trago, a dis- ‘ribuicao espacial das formas, a orientagao predominante (da esquerda para a direita, de cima para baixo), a orienta- (ao dos caracteres individuais (inversdes, rotagdes etc.). Os aspectos construtivos tém a ver com o que se quis represen- tar ¢ os meios utilizados para criar diferenciagdes entre as representagdes. Do ponto de vista construtivo, a escrita infantil segue uma linha de evolugo surpreendentemente regular, através 5, Conforme: E, Ferrero e A. Teberosky (1979 ¢ 1981}; £, Femeito (1982); E, Ferre etal, (1882) E, Heese (1 Ferreiro (no prelo). a nLinreaaeigo de diversos meios culturais, de diversas situagdes educativas e de diversas linguas. Ai, podem ser distinguidos trés gran- des periodos no interior dos quais cabem multiplas subdi- * distingdo entre 0 modo de representacdo icnico 0 nao icdnico; * aconstrugao de formas de diferenciagao (controle progressivo das variagdes sobre os eixos qualitativo e quantitativo); * a fonetizagio da escrita (que se inicia com um pe- riodo silabico ¢ culmina no periodo alfabético). No primeiro periodo se conseguem as duas distinges basicas que sustentardo as construgdes subsequente: diferenciagao entre as marcas grificas figurativas ¢ as nao figurativas, por um lado, e a constituicao da escrita como objeto substituto, por outros." A distingao entre “desenhar" e“esorever" é de fundamental importincia (quaisquer que sejam os vocdbulos com que se designam especificamente essas ages). Ao desenhar se esté no dominio do iconico; as formas dos grafismos importam porque reproduzem a forma dos objetos. Ao escrever se esta fora do icénico: as formas dos grafismos nao reproduzem a forma dos objetos, nem sua ordenagao espacial reproduz o contorno dos mes- mos. Por isso, tanto a arbitrariedade das formas utilizadas como a ordenacdo linear das mesmas sdo as primeiras ca- racteristicas manifestas da esorita pré-escolar, Arbitrarieda- de nao significa necessariamente convencionalidade. No 6, Para comproondor a passage das letras como dbjetos em sds Tetras como objetos substituies, ver Ferteieo (1982), eFLENOES Sour ALTARETAAGKO 2 entanto, também as formas convencionais costumam fazer a sua aparicdo com muita precocidade. As criangas nao ‘empregam seus esforcos intelectuais para inventar letras novas: recebem a forma das Tetras da sociedade e as adotam tal e qual Por outro lado, as criangas dedicam um grande esforgo intelectual na construgao de formas de diferenciacao entre as escritas e 6 isso que caracteriza o periodo seguinte. Esses critérios de diferenciagio sao, inicialmente, intrafigurais ¢ consistem no estabelecimento das propriedades que um texto escrito deve possuir para poder ser interpretavel (ou seja, para que seja possivel atribuir-The uma significacao). Esses critérios intrajigurais se expressam, sobre o eixo quan- titativo, como a quantidade minima de letras — geralmen- te trés — que uma escrita deve ter para que ‘diga algo" ¢, sobre o eixo qualitativo, como a variagao interna necessaria para que uma série de grafias possa ser interpretada (se 0 escrito tem “o tempo todo a mesma letra", ndo se pode ler, 0u seja, nao ¢ interpretavel). © passo seguinte se caracteriza pela busca de diferen- ciagdes entre as escritas produzidas, precisamente para “dizer coisas diferentes’. Comega entao uma busca dificil e muito elaborada de modos de diferenciacao, que resultam ser interfigurais; as condigdes de legibilidade intrafigurais se mantém, mas agora 6 necessario criar modos sistema- ticos de diferenciagao entre uma escrita ¢ a seguinte, pre- cisamente para garantir a diferenga de interpretagdo que seré atribuida, As criangas exploram entdo eritérios que Thes permitem, as vezes, variacdes sobre o eixo quantitati- vo (variar a quantidade de letras de uma escrita para outra, para obter escritas diferentes), e, as vezes, sobre 0 eixo vLAFeRREIRO TLUSTRAGAO 10 Eserita sem diferenciagdes interfigurais (Adriana, 4, 5). ta osha wht * aw aw * 0 que voce desenhou? ‘Adana ‘Um Doneco, (Onde diz Advina? (Assinata ora 0 nome, (Rabisco,) (2) slobalmente.) O que woes pés? Por que tem quatro pedacinhos? ‘Ale ( seu irmi), porque sim, Desene uma casita (Deseshe)— 6 gue die ag’? (1°). Adana, — Eaqui? 2"), = Alberto (- seu pai — B aqui (3). Ale ( seu iran), O que isso? Uma casinha, Ponkha © nome, (Rabisce.) (2) O que voed pbs? casinha. ood sake colocaro seu nome? (Quatro rabiscos separades.) (0) = Baqui? (4°). DO que 6 isso? — Ta Fecha, FEFLEXOES SOBRE ALFABETZACKO 3 mLusTRAgho 18 scrita com letras convencionais mas sem diferenciagies Interfigurais (Domingo, 6 anos). 5 Ee 5 Ea ee S Ew : ALS & © A aA (2) pixe (4 franguinho (2) gato bebe tete (9) pao (2) galinha (6) pator 26 ‘MUA FRR TLUSTRAGAO 2 scrita com diferenciagées interfigurals (Carmelo, 6:2). Ake de Pe (heb iN Fe « | iS he C) Sie (4) Carmelo Ensique Castillo Avllano (una letra para cada nome), (vee, () nossa 4) borboleta, ©) cavalo. (©) mami come tacns (comida tpica mexicana). EFLEXDS SOBRE ALFABETZAGEO 2 qualitativo (variar o repertorio de letras que se utiliza de uma escrita para outra; variar a posigao das mesmas letras sem modificar a quantidade). A coordenagao dos dois mo- dos de diferenciacio (quantitativos e qualitativos) é tio dificil aqui como em qualquer outro dominio da atividade cognitiva. Nestes dois primeiros perfodos, 0 escrito no est regu- lado por diferengas ou semelhancas entre os significantes sonoros. fa atencao as propriedades sonoras do significan- te que marca o ingresso no terceiro grande periodo desta evolugao, A crianga comega por descobrir que as partes da escrita (suas letras) podem corresponder a outras tantas partes da palavra escrita (suas sflabas). Sobre 0 eixo quanti- tativo, isto se exprime na descoberta de que a quantidade de letras com que se vai escrever uma palavra pode ter cor- respondéncia com a quantidade de partes que se reconhece na emissio oral, Essas “partes” da palavra so inicialmente as suas silabas, Inicia-se assim 0 periodo silabico, que evolui até chegar a uma exigéncia rigorosa: uma silaba por letra, sem omitir silabas ¢ sem repetir letras, Esta hipdtese sildbi- ca é da maior importancia, por duas razbes: permite obter um critério geral para regular as variagdes na quantidade de letras que devem ser escritas, ¢ centra a atengio da crianga nas variagdes sonoras entre as palavras, No entanto, a hipé- tese silbica cria suas proprias condig&es de contradigao: contradigao entre o controle silébico ¢ a quantidade minima de letras que uma escrita deve possuir para ser “interpreté- vel’ (por exemplo, 0 monossilabo deveria se escrever com uma tinica letra, mas se se coloca uma letra s6, 0 escrito "nao se pode ler’, ou seja, nao ¢ interpretavel); além disso, contradigao entre a interpretagao silébica ¢ as escritas pro- 2 AMA FARRER musteacio 34 scrtasilabica (letras de forma utilizadas sem sou valor sonoro «conveacional: cada letra vale por uma silaba (Jorge, 6 anos). CKiA\Ins © () ga-to (ato) @)ma-ti-po-sa (orboteta) @) caballo (cavalo) (pez (ize) (5) mar (mar) (el-ga-to-be-be-le-che (0 gato ete lite) (As palavras foram mantidas no original espanol para que o processo aqui Slustrado fara sentido.) EFLEXOES SOBRE ALFABETZAGAO » duzidas pelos adultos (que sempre terdio mais letras do que as que a hipétese silébica permite antecipar). No mesmo periodo — emibora nao necessariamente ao mesmo tempo — as letras padem camecar a adquirir valo- res sonoros (sildbicos) relativamente estaveis, o que leva a se estabelecer correspondéncia com 0 eixo qualitativo: as partes sonoras semelhantes entre as palavras comecam a se exprimir porletras semelhantes, E isto também gera suas formas particulares de conflito. Os conflitos antes mencionados (aos que se acrescen- ta as vezes a aco educativa, conforme a idade que tenha a crianga nesse momento) vao desestabilizando progressiva- mente a hipétese silabica, até que a orianga tem coragem suficionte para se comprometer em um novo proceso de construgio.’ 0 periodo silabico-alfabético marca a transi¢ao entre os esquemas prévios em via de serem abandonados 08 esquemas futuros em vias de serem construidos. Quan- do a crianga descobre que a silaba nao pode ser considera- da como uma unidade, mas que ela é, por sua vez, reanali- savel em elementos menores, ingressa no tiltimo passo da compreenstio do sistema socialmente estabelecido. E, a partir dai, descobre novos problemas: pelo lado quantitati- yo, que se por um lado no basta uma letra por silaba, também nao se pode estabelecer nenhuma regularidade duplicando a quantidade de letras por sflaba (jé que ha si- Jabas que se escrevem com uma, duas, trés ou mais letra pelo lado qualitativo, enfrentaré os problemas ortograficos (a identidade de som nao garante identidade de letras, nem a identidade de letras a de sons). 7. Anlizamos aqui o modelo piagetiano da equilibracao (Piaget, 1975). =u MUAFERRERO Lustragio 3B scritasitabiea (vogais com valor sonoro convencional): cada letra vale por uma silaba (Francisco, 6 anos). FR j Qg ® (1) Fran cis - co Grancisco) (2) ma ri - po - 8a orboteta) @) ya-to-ma (eomba) (@)7a-ja-r0 (péssar0) (6) a-to (Gato) ()ra-to eae () pee (oeize) (8) per (2 tentativa) (Qeize 2 tentative) REFLEXOES SOBRE ALABETIZACKO 3 TLUSTRAGAO 4 Eserita silabico-alfabética (Jtlio Cesar, 6 anos). (1) gato (gato) (2) mariposa. (borboleta) (3) caballo (cavalo) (4) pez (peixe) (5) el gato bebe leche {0 gato bebe teite) (As palavras foram mantidas no original espanhol para que o processo aqui ilustrado faga sentido.) 3. As concep¢ées sobre a lingua subjacentes a pratica docente ‘radicionalmente, as discussdes sobre a prética alfabe- tizadora tém se contrado na polémica sobre os métodos utilizados: métodos analiticos versus métodos sintéticos; fonético versus global etc. Nenhuma dessas discussdes levou 2 MUA FERREIO em conta o que agora conhecemos: as concepgdes das crian- cas sobre o sistema de escrita, Dai a necessidade imperiosa de recolocar a discussio sobre novas bases, Se aceitarmos que a crianga nao é uma tébula rasa onde se inscrevem as letras ¢ as palavras segundo determinado método; se acei- tarmos que o “facil" eo “dificil” nao podem ser definidos a partir da perspectiva do adulto mas da de quern aprendo; 8¢ aceitarmos que qualquer informagao deve ser assimilada (¢ portanto transformada) para ser operante, entao deve- riamos também aceitar que os métodos (como sequéncia de pasos ordenados para chegar a um fim) nao oferecem mais do que sugestées, incitagdes, quando nao priticas Tituais ou conjunto de proibigdes. O método nao pode criar conhecimento. Anossa compreensio dos problemas tal como as crian- as 08 colocam, ¢ da sequéncia de solugbes que elas consi- deram aceitaveis (e que dao origem a novos problemas), é, em ditvida, essencial para poder ao menos imaginar um tipo de intervengao adequada & natureza do processo real de aprendizagem, Mas reduzir evta intervengao ao que tra- dicionalmente denominou-se ‘o método utilizado” 6 limitar demais nossa indagagao. £ Util se perguntar através de que tipo de praticas a crianga é introduzida na lingua escrita, e como se apresen- ta este objeto no contexto escolar’ Ha praticas que levam a crianga a convicgao de que o conhecimenta é algo que os outros possuem que 86 se pode obter da boca dos outros, sem nunca ser participante na construgao do conhecimen- 8. Um estudo de uma destas priticas — 0 dtado — encontrase em Ferreiro (1904) EFLENOES SOBRE ALAETZAGKO 2 to, Ha préticas que levam a pensar que “o que existe para se conhecer" ja foi estabelecido, como um conjunto de coi- sas fechado, sagrado, imutavel ¢ ndo modificavel. Ha pré- cas que Ievarn a que 0 sujeito (a crlanga neste caso) fique de “fora” do conhecimento, como espectador passive ou receptor mecanico, sem nunca encontrar respostas aos ‘porqués" ¢ aos "para qués", que jé nem sequer se atreve a formular em voz alta. Nenhuma pratica pedagégica é neutra. ‘Todas estdo apoiadas em certo modo de conceber o processo de apren- dizagem e 0 objeto dessa aprendizagem. Sao provavelmen- te essas priticas (mais do que os métodos em si) que tem efeitos mais duréveis a longo prazo, no dominio da lingua ita como em todos os outros. Conforme se coloque a relagio entre 0 sujeito e o objeto de conhecimento, e con- forme se caracterize a ambos, certas praticas aparecerao como “normais’ ou como “aberrantes". & aqui que a refle- xao psicopedagogica necesita se apoiar em uma reflexao epistemolégica, Em diferentes experiéncias que tivemos com profissio- nais de ensino" apareceram trés dificuldades principais que precisam ser inicialmente colocadas: em primeiro lugar, a visio que um adult, jé alfabetizado, tem do siste- ma de escrita; em segundo lugar, a confusio entre escrever e desenhar letras; finalmente, a redugdo do conhecimento 8. Varias apses de capacitaco de professores da 1 série do 1° grau e da pré-escola no México (Secretaria de Educacdo Publica), Experiénctassemelhantes foram realizadas por Ana Teberasky em Barcelona, por Delia Leener em Caracas, por Liliana Tolchinsky om Telavive, pela autora deste artigo (com logopeaistas) ‘na Suga, assim como também por viris pessoas que trahalham nestes tentss em Buenos Aires e no México UA FERRERO do leitor ao conhecimento das letras € seu valor sonoro convencional. Mencionaremos brevemente as duas primeiras, ¢ i mos nos deter mais na texceira Nao hé forma de recuperar por introspecgao a visao do sistema de escrita que tivemos quando éramos analfa- betos (porque todos fomos analfabetos em algum momen- to). Somente 0 conhemento da evolucao psicogenética pode nos obrigar a abandonar uma visdo adultocéntrica do processo. Por outro lado, a confusdio entre escrever e desenhar letras (Ferreiro ¢ Teberosky, 1979, cap. VIII) é relativamen- te dificil de se esclarecer, porque se apoia em uma visao do processo de aprendizagem segundo a qual a cépia ¢ a repe- ticdo dos modelos apresentados sao os procedimentos prin- cipais para se obter bons resultados. A andlise detalhada de algumas das muitas criangas que sao ‘copistas” experientes mas que nao compreendem 0 modo de construgio do que copiam é 0 melhor recurso para problematizar a origem desta confusdo entre escrever ¢ desenhar letras, s adultos jé alfabetizados tém tendéncia a reduzir 0 conhecimento do leitor a0 conhecimento das letras ¢ seu valor sonoro convencional, Para problematizar tal redugio utilizamos, reiteradas vezes, uma situagao que favorece uma tomada de consciéncia quase que imediata: formamos pe- quenos grupos (por volta de cinco pessoas em cada um) € entregamos materiais impressos em escritas desconhecidas para eles (arabe, hebraico, chines ete.) coma orientacao de tratar de lé-los. A primeira reagdo — obviamente — 6 de rejeigdo: como ler se nao conhecem essas letras? Insistimos FEFLEXOES SOBRE ALAETIZAGHO 2» em que tratassem de Jer. Quando afinal decidem explorar os materiais impressos comegam, de imediato, os intercam- bios nos grupos. Primeiro, a respeito da categorizagio do n entre as mds: isso é umn livro (de que tipo?), objeto que t um jornal, uma revista, um folheto etc. Conforme a catego- rizacdo combinada, apresenta-se de imediato a antecipagao sobre a organizagao do seu contetido: se é um jornal, tem de ter segdes (politica, esportes ete.); se é um livro, tem de ter o titulo no inicio, o nome do autor, a editora, o indice no inicio ou no final etc. Em todos os casos se supde que as, paginas esto numeradas, o que permite encontrar a dif renga grdfica entre ntimeros e letras. Em alguns casos, a orientacdo da escrita nao esta clara (vai da esquerda a di- reita ou da direita & esquerda?) e se buscam indicadores para poder decidir (por exemplo, ver onde acaba um paré- grafo ¢ comega o seguinte). Supde-se que haja letras maitis- culas e mintisculas ¢ sinais de pontuacdo, Supde-se que no Jornal apareca a data completa (dia, més e ano), enquanto que em um livro se busca apenas 0 ano de impressdo, Se ha fotografias ou desenhos, antecipase que o texto mais proximo tem a ver com o desenhado ou fotografado e, em se tratando de uma personagem publica (homem politico, ator, esportista ete.), pressupde-se que seu nome esteja escrito, Se a mesma personagem aparece em duas fotogra- fias, procura-se de imediato, nos textos que se supdem ser legendas das fotografias, alguma parte em comum: caso seja encontrada, se supde que ai esta escrito o nome da perso- nagem em questo. E assim se prossegue. No final de certo tempo de exploracao (uma hora aproximadamente), 08 grupos confrontam suas conclusdes. Todos conseguiram chegar a conclusdes do tipo ‘aqui deve dizer..", ‘pensamos eMUAFERREIO. que aqui diz... porque..." Os que mais avangaram nas suas tentativas de interpretagdo so os que encontraram fotos, desenhos ou diagramas sobre os quais apoiar a interpretacao dos textos. Foi explicado a eles que as oriangas pequenas fazem a mesma coisa. Todos se sentiram muito desorienta- dos ao explorar esses caracteres desconhecidos, e, em par- ticular, descobriram como pode ser dificil encontrar dois caracteres iguais quando nao se conhece quais sao as varia- Ges irrelevantes ¢ quais as variagdes importantes. Explica- mos a eles, entéo, que as criangas também se sentem assim no inicio da aprendizagem. Mas todos puderam fazer ante- cipagao sobre o significado porque sabem o que é um livro, como esta organizado ¢ que tipo de coisa pode nele (0 mesmo vale para os jornais, revistas etc.). Esse tipo de conhecimento geralmente as criangas nfo tém. Desco- briram que construir antecipagdes sobre o significado e tratar depois de encontrar indicacdes que permitam justi- ficar ou rejeitar a antecipagao é uma atividade intelectual complexa, bem diferente da pura adivinhagio ou da imag nagdo nao controlada, Assim descobrem que o conhecimen- to da lingua escrita que eles possuem, por serem leitores, se reduz ao conhecimento das letras. Uma vez esclarecidas es € pos diferentes do metodologico. A titulo de exemplo realizare- mos a seguir a anéllise das concepgdes sobre a lingua escri- ta subjacentes a algumas dessas praticas. A) Existe uma polémica tradicional sobre a ordem em que devem ser introduzidas as atividades de leitura e as de escrita. Na tradi¢ao pedagégica norte-americana, a leitura precede regularmente a escrita. Na América Latina, a tra- REFLENOES SOBRE ALFABETZAGKO a” digdo tende a utilizar uma introdugao conjunta das duas atividades (¢ por isso tem se imposto a expresso lecto- escritura)."° No entanto, espera-se habitualmente que a crianga possa ler antes de saber escrever porsi mesma (sem copiar). A inquietacao dos professores subsiste: esta é uma das perguntas que formulam frequentemente (as criancas devem ler antes de escrever?). Se pensarmos que 0 ensino da lingua escrita tem por objetivo o aprendizado de um codigo de transcricao, é possivel dissociar 0 ensino da lei- tura ¢ da escrita enquanto aprendizagem de duas técnicas diferentes, embora complementares. Mas esta diferenciagio carece totalmente de sentido quando sabemos que, para a crianca, trata-se de compreender a estrutura do sistema de escrita, ¢ que, para conseguir compreender o nosso sistema, realiza tanto atividades de interpretagzio como de produgao. A propria ideia da possibilidade de dissociar as duas ati dades é inerente a visdo do ensino da escrita como o ensino de técnica de transcrigao, B) Nas decisdes metodoldgicas a forma de se apre- sentar as letras individuais ocupa um lugar importante (é preciso dar o nome ou 0 som?), bem como a ordem de apresentagao tanto de letras quanto de palavras, 0 que implica uma sequéncia do “facil” ao “dificil”. Nao vamos considerar aqui a questao da definicao de “facil” ou *di- ficil” que se esta utilizando, ainda que seja um problema fundamental," fonte dos primeiros fracassos na comu- 10. Lecto-escrituva, em castellano: leitura-e-escrita(N, do), 1, Em varias publicagdes anteriores enfatizei que nada pode definirse em. como fill ou difcl. Que algo 6 fill quando eocresponde aos exaemas ass miladores disponiveis¢difeil quando cbriga a modifier ais exquemas, Por iso bh cofsas que slo ficeis em um momento e dillcels poucos meses depois, Por # LA FERRERO nicagao entre aquele que ensina e aquele que aprende. Me permito reproduzir aqui uma ilustragao que sintetiza maravilhosamente esta ruptura inicial da comunicagao!? (traduza-se a diferenga entre os animais como diferenga entre 08 “sistemas” dispon! is para ambos € a relagio de jo que essa diferenga encerra). Vamos considerar unicamente as suposigées no que diz respeito a informacao disponivel. A lingua escrita 6 um objeto de uso social, com uma existéncia social (e ndo apenas escolar). Quando as criancas vivem em um ambiente urbano, encontram escri- dominac tas por toda parte (letreiros da rua, vasilhames comerciais, ‘xrmplo, 0 teconhecimento de certa Tetra como ainicial do préprio nome é fic ‘quando ela interpretada como “a minha Jota” ou "a letra do Ramén' sas no momento em que se constrbia hipétose silabiea¢ ko comoga a dar a essa letra {nicial o valor da primeira silaba do nome, aparecem novos problemas: Ramin, por exemplo, itezpretara a primeira letra do seu nome (R) como ra" e entio ‘nfo compreende por que sua colega Rosa usa a mesma letra iniclal quanco de- 12, Traiase de ume propaganda que circulou hé multos anos na Europa, como parte de uma promogo de cursos de linguas estrangeiras, FEFLEXOES SOBRE ALFABETI2NGNO 2 ‘propagandas, antincios da tevé etc.). No mundo circundante esto todas as letras, nJo em uma ordem preestabelecida, mas com a frequéncia que cada uma delas tem na escrita da lingua. Todas as letras em uma grande quantidade de estilos ¢ tipos graficos. Ninguém pode impedir a crianga de vé-las ¢ se ocupar delas. Como também ninguém pode ‘honestamente pedir & crianga que apenas peca informagao a sua professora, sem jamais pedir informacao a outras pessoas alfabetizadas que possa ter a sua volta (irmaos, amigos, tios...). Quando no ambito escolar se toma alguma deciso sobre 0 modo de apresentagao das letras costuma-se tentar wultaneamente — controlar 0 comportamento dos pais a tespeito disso (0s classicos pedidos de colaboragao dos pais em termos de proibicdes, com autorizagdo expressa de fazer exclusivamente 0 mesmo que se faz na escola, de modo a nao criar conflitos no processo de aprendizagem). Pode-se talvez controlar os pais, mas ¢ ilusério pretender controlar a conduta de todos os informantes em potencial (irmaos, amigos, tios, avés...), ¢ 6 totalmente impossivel controlar a presenga do material escrito no ambiente urbano. Muitas vezes tem se enfatizado a nevessidade de abrir aescola para a comunidade circundante. Curiosamente, no caso onde é mais facil abri-la é onde a fechamos. A crianga vé mais letras fora do que dentro da escola: a crianga pode produzir textos fora da escola enquanto na escola sé é au- torizada a copiar, mas nunca a produzir de forma pessoal. A crianga recebe informago dentro mas também fora da escola, ¢ essa informagao extraescolar se parece & informa- ao linguistica geral que utilizou quando aprendeu a falar. £ informacao variada, aparentemente desordenada, as vezes = LEMIUA FERREIRO | contraditéria, mas é informagao sobre a lingua escrita em Contextos sociais de uso, enquanto que a informagao esco- lar € frequentemente informagao descontextualizada. Por tre das discussdcs subre a ordem de apresentacdo Gas letras ¢ das sequéncias de letras reaparece a concepedo da escrita como técnica de transcric&o de sons, mas também algo mais sério ¢ carregado dé consequéncias: a transfor. magio da escritaemum objeto escolar e, por consequéncia, 4 conversio do professor no tnico informante autorizado. Poderiamos continuar desta maneira com a andilise de Outras préticas, que so reveladoras da concepefio que os que ensinam tém acerca do objeto e do processo de apren- Gizagem. A transformacao destas priticas é que é realmen- te dificil, ja que obriga a redefinir o papel do professor ¢ a dinamica das relacdes sociais dentro ¢ fora da sala de aula, £ importante indicar que de maneira al: Iguma podemos: Concluir do que foi dito anteriormente que 0 professor de- Yeria se limitar a ser simples espectador de um proceso espontineo, Foi Ana Teberosky, em Barcelona, a primeira ase atrever a fazer uma experiencia pedagégica baseada, a ‘meu ver, em trés ideias simples mas fandamentais: a) de: colar dispo- nivel, com todas as consequéncias disso; b) 0 professor nao € mais o tinico que sabe ler ¢ escrever na sala de aula; todos Podem ler ¢ escrever, cada um ao seu nivel; ) as criangas due ainda ndo esto alfabetizadas podem contribuir com Proveito na propria alfabetizacdo e na dos seus companhei- 15, Ist € mut diferente do que acontece-com algamas propostas nas qvais © professor se toma ‘csi da rma’, mas continua eendo 0 énica que pode REFLEXOES SOBRE ALFABETZAGAO 10s, quando a discussao a respeito da representagao esorita da linguagem se torna pratica escolar." Conclusées Do que foi dito fica claro, do nosso ponto de vista, que as mudangas necessarias para enfrentar sobre bases novas aalfabetizagao inicial nao se resolvem com um novo méto- do de ensino, nem com novos testes de prontidao nem com novos materiais didaticos (particularmente novos livros de leitura), B preciso mudar os pontos por onde nés fazemos pas- sar 0 eixo central das nossas discussdes. Temos uma ima- gem empobrecida da lingua escrita: é preciso reintroduzi, quando consideramos a alfabetizacdo, a escrita como sis- tema de representagdo da linguagem. Temos uma imagem janga que aprende: a reduzimos a um empobrecida da par de olhos, um par de ouvidos, uma mao que pega um instrumento para marcar ¢ um aparelho fonador que emi- te sons.” Atras disso ha um sujeito cognoscente, alguém que pensa, que constréi interpretagSes, que age sobre 0 real para fazé-lo seu, 14. Of. sobre eat tikimo ponto, Teherosky (1082), 15, Falando da leitura, 08 Goodman disseram com particular éntase: i rocessamento de informa magneton gins sktaxtoiiy ionamin mamas Goodman, 197), o EMA FERRERO Um novo método nao resolve os problemas. I preciso reanalisar as praticas de introdugao da lingua escrita, tra- tando de ver os pressupostos subjacentes a elas, ¢ até que Ponto funcionam como filtros de transformacao seletiva ¢ deformante de qualquer proposta inovadora. Os testes de prontidao também nao sao neutros, A andlise de suas Pressuposigées mereceria um estudo em particular, que escapa aos limites deste trabalho. E suficiente apontar que a “prontidao" que tais testes dizem avaliar é uma nocao ‘40 pouco cientifica como a “inteligencia’ que outros pre: tendem medi Em alguns momentos da histéria faz falta uma revolu- 40 conceitual. Acreditamos ter chegado 0 momento de fazé-la a respeito da alfabetizacao, 16. Em uma discussio sobre este tema, Hermine Sinclair empregoa wma feliz expressdo para nos aletar contra os perigs da nocio de “prontidao para a tara” (reading readiness): “Uma das coisas que tratamios de dizer nesta conte. ronoia € que nao estamos (ciantificamente) preparudos para falar da prontidio Dara a leitura, e, até que isso acontega, seria melhor supor que todas as cians ‘que temos na sala estio maduras para.aleitura, ao invés de supor que podemos Slassificar aqueles que nio tem o que supomos que sabemos que devem te (In Ferreiro ¢ Gomez Palacio onge, 1982, p. 340), A compreensdo do sistema de escrita: construgées originais da crianca e informacao especifica dos adultos* Emilia Ferreiro** Ana Teberosky*** A leitura ¢ a escrita tém sido tradicionalmente consi- deradas como objeto de uma instrucao sistematica, como algo que deva ser ‘ensinado’ e cuja “aprendizagem” suporia © exercicio de uma série de habilidades especificas. Multi- plos trabalhos de psicélogos ¢ educadores tém se orientado neste sentido. Nao obstante, nossas pesquisas sobre os pro- cessos de compreensio da linguagem escrita nos obrigam aabandonar estas duas ideias: as atividades de interpretacao e de producao de escrita comecam antes da escolarizacao, * Publicado em Lectura y Vida, ano 2, m. 1, 1961, ‘TRadugio de Marisa do ‘Nascimento Paro. ** Professora titular do Departamento de Investigacionas Educativas del Contto de Investigaciones y Bstudios Avanzados (GINVESTAV}, México. *** Licenciada em Ciéncias da Pdncaglo, Pesquisadora de Instituto Munict pal de Educacién (IME), Barcelona x MUAFEAREIRO como parte da atividade propria da idade pré-escolar; a aprendizagem se insere (embora nao se separe dele) em um sistema de concepgdes previamente elaboradas, ¢ nao pode ser reduzido & um conjunto de tecnicas perceptivo- -motoras. A escrita no € um produto escolar, mas sim um obje- to cultural, resultado do esforco coletivo da humanidade. Como objeto cultural, a escrita cumpre diversas fangdes sociais e tem meios concretos de existéncia (especialmente nas concentragdes urbanas). O escrito aparece, para a crian- 4, como objeto com propriedades especificas e como su Porte de ages e intercémbios sociais, Existem imimeras amostras de insorigées nos mais variados contextos (letre!- Tos, embalagens, tevé, roupas, periddicos etc.). Os adultos fazem anotagdes, leem cartas, comentam os periédicos, Procuram um niimezo de telefone etc. Isto é, produzem ¢ interpretam a escrita nos mais variados contextos. £ evi- dente que, por sis6, a presenga isolada do objeto e das acoes Sociais pertinentes nao transmitem conhecimento, mas amas exercem uma influéncia, criando as condigoes den- tro das quais isto é possivel. Imersa em um mundo onde ha a presenga de sistemas simbélicos socialmente elaborados, @ crianga procura compreender a natureza destas marcas especiais. Para tanto, ndo exercita uma técnica especifica de aprendizagem. Como ja fez antes, com outros tipos de objeto, vai descobrindo as propriedades dos sistemas sim- bolicos por meio de um prolongado processo construtivo, AS caracteristicas dos processos cognitivos tém sido expos. tas pelas bem conhecidas pesquisas de J. Piaget ¢ seus co- laboradores. Utilizamos 0 marco conceitual da teoria psico- genética de Piaget para compreender os processos de Si aig Li EFLEXOES SOBRE ALFABENZACAD s construgao do conhecimento no caso particular da lingua- gem escrita. Para descobrir como a crianca consegue interpretar Produzir escritas muito antes de chegar a escrever ou ler (no sentido convencional do termo), criamos situagdes experimentais ¢ utilizamos 0 ‘método clinico" ou de “explo- taco critica” proprio dos estudos piagetianos. Depois de uma série de pesquisas realizadas em caste- Ihano ¢ em francés, em Buenos Aires, Cidade do México, Monterrey, Barcelona e Genebra, com criangas que moram em cidades ¢ sio provenientes de diferentes meios sociais (de classe média e da periferia urbana marginalizada), es- ‘tamos em condigoes de afirmar que existe um proceso de aquisicao da linguagem escrita que precede e excede os li- mites escolares. Precede-os na origem; ¢ os excede em natureza, ao diferir de maneira notavel do que tem sido considerado até agora como 0 caminho “normal” da apren- dizagem (¢, portanto, do ensino). Através dos dados cothidos com populagdes infantis de diferentes meios sociais, pode-se estabelecer uma progres- sio regular nos problemas que clas enfrentam e nas solugoe: que as criangas ensaiam para descobrir a natureza da escri- ta, A ordem de progressio de condutas nao impoe efetiva- mente um ritmo determinado na evolugao. Aqui, como em outros campos do desenvolvimento cognitivo, encontramos grandes diferengas individuais: algumas criangas chegam a descobrir os principios fundamentais do sistema antes de iniciarem a escola, ao passo que outras, estio longe de con- lo. seguir faz F dificil resumir a multiplicidade de dados que possui- ‘mos no momento, dados estes que sustentam nossas hipé- Mua FeRReRO teses. Mencionaremos alguns deles para exemplificar de- terminados aspectos de toda esta evolugao.! 1. Construcées originais das criancas Entre 8 resultados mais surpreendentes que obtive- mos (por meio de diferentes situagdes experimentais) se situam aqueles que demonstram que as oriancas elaboram ideias proprias a respeito dos sinais esctitos, ideias estas que no podem ser atribuidas a influéncia do meio am- Diente. Desde aproximadamente os quatro anos, as criancas Possuem sélidos critérios para admitir que uma marca grafica possa ou nio ser lida, antes de serem capares de ler os textos apresentados. O primeiro critério organizador de um material composto por varias marcas graficas é 0 de fazer uma dicotomia entre 0 “figurativo’, por tim lado, ¢ 0 “no figurativo’, pelo outro. Isto é, aquilo que é “uma figu- ra! nao ¢ para se ler (embora possa ser interpretado). Para que se possa ler, sdo necessarios outros tipos de marcas, dcfinidos inicialmente por pura oposigio ao figurativo ¢, as vezes, na auséncia de qualquer termo genérico (“letras" ou "nlimeros") Uma ver realizada esta primeira distincao entre “o que € uma figura” e “o que néo é uma figura", comeca um tra- balho cognitivo em relacao a este segundo conjunto, ¢ Surge 0 critério que temos chamado de “quantidade minima 1. Para uma exposicdo pormenorizada, consulte-t nosso livro Las sistemas de esaritura en el desarrollo de! nso. México: Silo XXI, 1876 FEFLEXOES Sonne arABETZAGKO a de caracteres", critério este que perdura por muito tempo € que tem uma influéncia decisiva em toda a evolugao. Nao basta que haja letras: € preciso uma certa quantidade mini- ma (que em geral osolla por volta de tres) para que se pos- sa ler, j que “com pouecas nao se pode ler" © critério seguinte refere-se a “variedade interna de caracteres", Nao basta um certo mimero de grafias conven- cionais: para que se possa ler, 6 necessério que essas grafias variem, que nao se repitam sempre as mesmas. Estas exigéncias aparecem diante de escritas descon- textuadas (isto 6, simples cartoes escritos), mas também surgem nas escritas feitas pelas criangas (em oposicao a cépia de escritas produzidas por terceiros). De onde vem a ideia infantil de que nao se pode ler com poucas letras? Os adultos nao podem transmitir esta ideia, ja que qualquer adulto alfabetizado 1é correntemente palavras tais como “a” (artigo), *o", "em, “a" (preposicao), "e" “ou" “de” etc. Ambas as hipoteses, a da quantidade ¢ a da variedade, silo constru- ses proprias da crianga, no sentido de elaboragdes internas que nao dependem do ensino do adulto e nem da presenga de amostras de escrita onde podem aparecer anotagées de uma ou duas letras, com reduzida variedade interna, Sao construgées préprias da crianga que tampouco podem ser perceptivas, Em vez de confusao explicadas por confusé: trata-se de uma conviecao: nao ha aqui um problema per- ceptivo, mas sim um problema conceitual. Exigir trés letras como minimo, além da variedade de caracteres, so exigén- cias puramente formais, sistematizagdes feitas pelas crian- as ao operarem com base no proprio raciocinio. Assinale- mos também quanto a pratica escolar pode afastarse das ‘ideias infantis ao decidir a priori que os artigos “o" e “a” sao ~ MUA FERRERO “faceis" precisamente por terem poucas letras, ¢ que os substantivos “ovo" ¢ “asa” sao “ficeis" precisamente por terem letras repetidas. Cabe aqui a pergunta: ficeis para quem?, com que definicao de facilidade? Quando 0 adulto fornece informagoes especificas sobre um texto, elas também sao processadas de acordo com o sistema de concepgdes infantis. Por exemplo, ao apresen- tarmos uma oragio esorita a crianga ¢ ao Iéla em voz alta (acompanhados de um assinalar continuo do texto), cremos que estamos dando informagées acerca daquilo que esta escrito, ‘Mas, para a crianga, no é isto que ocorre, porque ela faz, uma distingio — que nao estamos habituados a fazer — entre “o que esta escrito” ¢ “o que se pode ler" Por volta dos quatro ou cinco anos as criangas pensam que se pode escrever apenas os substantivos. Com uma série de subs- tantivos relacionados podemos ler uma oragao, sem que necessariamente todas as palavras que a compoem estejam representadas no papel. Consideremos um exemplo concreto para esclarecer isto. Apresentamos ¢ lemos para a crianga a oragio: a me- nina comprou um caramelo. A crianca a repete corretamen- te (repetindo inclusive 0 assinalar continuo que acabamos de fazer). Se Ihe perguntarmos onde esté escrito “menina’ ou ‘caramelo’, nao tera dificuldades em assinalar alguma das palavras escritas (nao importa, no momento, saber se a indicagao é ou nao correta), mas nao The ocorrera que 0 verbo, ¢ muito menos 0s artigos, estejam escritos. De acor- do com a anilise realizada pelas criangas deste nivel, exis- tem partes escritas em demasia, ¢ bastaria apenas duas palavras: “menina' ¢ "caramelo’ para se poder ler uma ora- EFLEXOES SOBRE ALFARETZAGhO ° do completa. O que falta nao 6 a memoria imediata (j4 que a crianga consegue repetir a oragdo quando Ihe pergunta- mos: “o que dizia 0 texto todo”), E um problema de con- traste de concepcdes. Para poder utilizar a informacao fornecida pelo adulto, a crianga deveria partir das suposigdes basicas de nosso sistema escrito: que todas as palavras ditas esto escritas, © que a ordem da escrita corresponde * a ordem da enunciagaio. Com estas duas suposigdes — sem conseguirem ainda decifrar o texto — as criangas de outros niveis conseguem localizar corretamente: todas as palavras da oragao nas partes do texto. Mas estas suposigdes — que silo evidentes para um adulto ja alfabetizado — nao so as primeiras, do ponto de vista genético. Sao 0 produto de uma ampla evolugio# ‘Vejamos um exemplo de tipos extremos de conduta de diferentes criangas ante uma mesma oragdo escrita. Erick (6 anos) ainda nao sabe decifrar o texto, mas jé trabalha com as § s que acabamos de mencionar. Para encontrar a posicao de cada uma das palavras do texto, repete a oracdio para si, desde 0 comego, enquanto vai mos- trando uma palavra escrita para cada palavra dita. Este & um procedimento muito eficay, utilizado por varias criangas, quando ja supdem que todas as palavras ditas estejam e critas na mesma ordem em que foram emitidas. A oragdo que nos servird de exemplo é: Papai martelou a tdbua.? 2, Para uma andlise pormenorizada das técnicas e dos resultados f. Capit: lo 1¥ do livroJ8 cada, € E, Ferreiro, What is written in a veritten sentence? A developmental answer Jeurnal oF Etwcaton, 160, n, 4, 1978 (tadugko para o case telhano: inanca y Aprons, m6, 1978. 8. Exemplos tomados de Fereite, Géme2 Palacio, Guajardo, Rodriguez, Vega Canta, BT nit preescolar y su comprension del sistema de eseiaura. Mexico: D- reccién General de Haucacisn Especial, 1979, 0 ‘aun reRReIto Experimentador Erick (6 anos) (L2 a oragio.) 0 que diz? Papai martelou a tabua. (Repassa o Diz tabua em algum lugar? texto com o dedo indicador, repetindo para si a oragao ¢ logo mostra tébua). Diz papai om algum lugar? 0 que diz aqui? (martelou.) (Mostra papai, sem pestanejar.) (Repassa 0 texto deste a comeco, - como antes.) Martelou. E aqui? (a) (Repete 0 mesmo procedimento.) A Em um outro exemplo, uma menina da mesma idade ndo concebe que o artigo ‘a possa estar escrito — apesar de repetir corretamente a oragio: Experimentador ‘Silvia (6 anos) (U0. oragio,) 0 que diz? Papai martelou tabua. Onde esta escrito papai? Aqui (papai) E aqui? (martelou) Martelou. B aqui? (tdbua) Tébua. E aqui? (a) T. Eu escrevi: papai martelou a taba _ Sim, papai martelou a tébua. Entao, o que diz aqui? (papai) Popai. Aqui? (tdbua) Tébua. E aqui? (a) Ta, Esta claro que Silvia nao tem problemas para reter a oragaio na memdria imediata. Simplesmente ndo encontra razes validas para pensar que possa estar escrito "a" entio, 4. La, em castelhano, escrito portanto com dias letras. Em portugues, a, ceserito portanto com uma letra (N. da‘T}, FEFLEXOES SOBRE ALFABETIZACAO a como muitas outras criangas, que tentam compreender 0 que pode estar representado neste ‘negécio” escrito com apenas uma letra, chega a seguinte conclusio: a uma eseri- ta incompleta (j4 que tem menos letras do que as necessa- tias) s6 pode corresponder uma parte incompleta de um nome (isto é, uma parte sildbica: "ta" de “tabua"). No caso especifico da oragao que tomamos como exemplo, as crian- as que nao pensam que o verbo possa estar escrito encon- tram uma solugao imediata: transformar “martelou" no substantivo correspondente, "martelo’. Assim raciocina Laura (também de 6 anos), para quem somente os nomes podem estar representados: Experimentador Laura (6 anos) (Lé a oragao.) 0 que diz? Papai martelou a tabua. Diz papai em algum lugar? Aqui (papai) Diz tabua em algum ugar? ‘Aqui (tdbua). 0 que diz aqui? (martelou) Martelo. E aqul? (a) que diz aqui? (tdbua) Tabua, ‘Aqui? (papai) Papal. E aqui? (martelou Martelo, E nesse pedaco? (a) 0 que diz o texto todo? Papai martelou a tabua. Onde esta escrito tabua? (Mostra tdbua).. O que diz ai? Tabua, E aqui? (a) Diz algo ou nao diz nada? Nao, nao diz nada. Por qua? Tem uma letra 6. 3 Ea FemReRO Citamos explicitamente criangas da mesma idade oro- nolégica, para que fique claro que a evolucao a que estamos nos referindo nao se expressa diretamente em termos de idade. Ainda que as respostas de Laura aparegam com mui- to mais frequéncia em criancas de 4 a5 anos, os niveis de conceitualizagao expressam uma sequéncia psicogenetica- rie cronologica. mente ordenada ¢ nao uma Estas respostas, sustentadas pela suposigao de que somente os substantivos esto escritos, so completamente alheias a0 pensamento de um adulto alfabetizado. Entre- tanto, por mais estranho que nos pareca, no so as respos- tas mais primitivas, j4 que supdem que as letras possam “dizer’ algo, fora de qualquer contexto significativo. A difi- culdade de se interpretar essas letras sem outro apoio sim- bélico ou material esta claramente indicada no seguinte exemplo: dizemos a Héctor (de 5 anos) que acabamos de screver: Um pdssaro voa, ¢ Héctor diz: Pois faca o peissaro. Perguntamos-lhe s¢ assim nao se pode dizer a oragao e cle responde: ‘nao, porque nao tem nenhum passaro voando. Faga um passaro e uma arvore’, Héctor esta nos indicando que nao bastam as condigoes do didlogo: se quisermos que ele aceite 0 que dissemos, devemos oferecer-The algo mais do que simples letras sobre um papel: pelo menos o desenho de um passaro, para que ele *possa dizer’ o que acabamos de ler. Héctor, como outras criangas do mesmo nivel, j4 sabe que se Ié nas letras, mas para que se possa ler nas letras ¢ necessdrio algo mais precisamente aquilo que nao é para se ler, mas que poss bilita interpretar o que é para ler Eo que nos expressa claramente Ramiro, quando folheamos juntos um livro de historias: REFLEWOES SOBRE ALEARET2AGHO s Experimentador Ramiro (5 anos) (Pagina com texto e figuras) Hé algo aqui que se possa ler? Mostre tudo o que se pode ler. (Pagina apenas com texto) (Qwustea alguns textos). (Mostra todos os textos.) Pode-se ler aqui? Mio. Por qué? No tem nada, Nada? Nao. Por qué? ass 0 que falta? © que devera ter. 0 que deveria ter? Cosas. Coisas como estas? (texto) Neo. Como quais? Como estas (mostra figuras de coutras paginas) # possvel ter aqui? (figuras) Nao, Por que? Nao tem letras, Para que foram colocadas aqui? Para que as vissemos. Dificilmente se poderia ter, considerando tratar-se de uma crianga de 5 anos, uma definigao mais precisa do que é, em linguagem légica, condigao necessaria porém ni suficiente: pode-se ler somente nas letras (as figuras so somente "para se ver’, e néo podem ser lidas porque “no tém letras"); mas no se pode ler um texto sem imagens, porque nao tem “o que deveria ter’ para se poder interpre- tar as letras. Até agora vimos como aparecem ideias propriamente infantis, construgdes originais ¢ nao meras cpias das in- formagoes adultas, quando se trata de estabelecer as “con- digdes de legibilidade* ou de utilizar a informacao forneci- EMUAFERRERO da por um adulto em um ato de Ieitura. Mas também nas produgées escritas das criangas aparecem estas construgdes originais> ‘Tais construgdes aparecem antes € depois que as letras se vinculem a representagao de aspectos parciais e formais da fala. Antes, porque em determinado momento as crian- as procuram estabelecer a correspondéncia entre a quan- tidade de letras da palavra escrita ¢ certas propriedades quantificaveis do objeto (assim, por exemplo, Antonio, de 4 anos, nos diz que se deve escrever ‘elefante” com mais letras do que *borboleta’, porque “ele pesa uns mil quilos"). Depois, porque a primeira vinculagao clara entre a escrita € 08 aspectos formais da fala leva a crianga a elaborar 0 que chamamos de *hip6tese silabica’, segundo a qual cada letra representa uma sflaba da palavra (momento no qual, por exemplo a letra p vale pela sflaba pa porque 6 0 *pa de pa- pai’, € servird entdio para escrever “pato’, mas nao para escrever “pipoca’, porque "6 necessdrio 0 pi", ¢ assim por diante). Como outros sistemas de escrita, o sistema alfabético 6 © produto do esforgo coletivo para representar 0 que se quer simbolizar: a linguagem. Como toda representagao, bascia-se em uma construcdo mental que cria suas préprias regras. Sabemos, desde Luquet, que desenhar nao é reproduzir 0 5. preciso nlo confundir constragdes originals com produedes idiossincré- ‘eas, no sentido de produgbes individualmente originals O que falamos aq foi do construgdes contuns a todas as criangan estudadae, em corto nivel de desen= volvimento de suas conceitualizapdese, neste sentide, emelhantes as constragies oviginas estudadas por Piaget em outras dominios cognitivos, Para uma andlise do desenvolvimento da escrita da crianga, consulte-se 0 Capitulo 1V do live jt estado na nota 1 EFLEWDES SOBRE ALFARETIZAGRO 5 que se vé, mas sim o que se sabe. Se este principio é verda- deiro para o desenho, com mais razdo o é para a escrita. Escrever ndo é transformar o que se ouve em formas grafi- cas, assim como ler também no cquivale a reproduzir com a boca 0 que o olho reconhece visualmente. A tao famosa correspondéncia fonema-grafema deixa de ser simples quan- do se passa a analisar a complexidade do sistema alfabético. Nao € surpreendente, portanto, que sua aprendizagem su- ponha um grande esforco por parte das criangas, além de um grande periodo de tempo e muitas dificuldades. Informagées especificas No desenvolvimento que temos estudado aparece, pois, uma série de concepgdes que nao podem ser atribuidas a uma influéncia direta do meio. Certamente sao concepges acerca das propriedades, estrutura e modo de funcionamen- to de certo objeto, ¢ é preciso que o chjeto como tal (a es- crita em sua existéncia material) esteja presente no mundo externo para se poder fazer consideragées a seu respeito. Entretanto, o que indubitavelmente ocorre é que esta refle- xdo comporta uma construgao interna, cuja progressio nao 6 aleatoria. Ao contrario, existem conhecimentos especificos sobre a linguagem escrita que sé podem ser adquiridos por meio de outros informantes (leitores adultos ou criangas maiores) Por exemplo, 0 fato de se saber que cada letra tem um nome especifico; que todas elas tem um nome genérico; que na jo entre os nomes genéricos das marcas, a diferenca EMUIFERREIRO entre “letras” ¢ “ntimeros’ é fundamental; que convencio- nalmente escrevemos de cima para baixo e da esquerda para a direita; que junto com as letras aparecem sinais que nao sao letras (sinais de pontuagao); que utilizamos as maitisculas para nomes préprios, para titulos ¢ depois de um ponto etc, etc. Em todos estes casos trata-se da apren- dizagem de convengdes que nao afetam a estrutura do sistema (0 sistema pode continuar a ser alfabético embora nao utilize sinais de pontuagao, embora se escreva da direi- ta para a esquerda, embora denominemos as letras de outra maneira, embora utilizemos as maiisculas com outro fim ete.). B no caso destas aprendizagens que, conforme a pro- cedéncia sacial das criangas, hé maior variabilidade indivi- dual e maiores diferengas. ‘Tomemos, para exemplificar, o problema da orientagao da leitura. A fim de averiguar quantas criangas conheciam esta diregao convencional, apresentamos-lhes um livro de histérias (com gravuras ¢ textos), solicitando-Ihes que mos- trassem com o dedo onde se comegava a ler, que diregio se tomava e onde se terminava, Aos 4 ou 5 anos a orientagao convencional (da esquerda para a direita de cima para baixo) raramente esta presente; ou melhor, quando aparece, combina com outras, com uma acentuada tendéncia para a alternancia, Esta alternancia consiste em dar uma conti- nuidade ao ato de assinalar; continuar do ponto onde se Parou, originando assim uma combinagao de diregdio alter- nativa em cada linha ou coluna, Ocorrem atos de assinalar na direcdo de cima para baixo, seguidos por outros de baixo Para cima ¢ em sentido vertical, ao passar de uma pagina para outra ou de uma coluna para outra; e da esquerda para a direita, seguidos por outros da diteita para a esquerda e ERLEXOES SOBRE ALFARENZECKO sr em sentido horizontal, ao se passar de uma linha para outra. Em contrapartida, por volta dos 5 anos e meio ou 6 as duas orientagdes ja sao conhecidas. Por outro lado, existe uma acentuada diferenga na distribuigao das respostas de acorde com a procedéncia social dos sujeitos. Enquanto todas as criangas do grupo de 6 anos, pertencentes 4 classe média, conhecem as duas orientagdes convencionais, s6 algumas com a mesma idade, mas pertencentes & ciasse baixa, tém critérios claros a seu respeito. Para orientar-se dentro do texto é preciso saber que 86 sobre ele pode-se realizar um ato de leitura e este conhecimento nao é manifestado por todas as criangas de 4 anos estudadas por nds. Algumas delas, pertencentes grupos socialmente marginalizados, demonstram ter difi- culdades para diferenciar atividades tao proximas: ler ¢ escrever. Quando thes perguntamos: ‘onde ha algo para se ler?” (também em relagdo a um livro de hist6rias), respon- dem ‘com um lapis" ou “anotando’, Esté claro que, nos momentos iniciais desta evolucdo, a atividade de escrita privilegiada. Enquanto escrever é uma ago com resultado (marcas sobre uma superficie), modificadora do objeto, a leitura nao produz resultados observaveis em relagao ao objeto. Como se escreve sobre o papel, este nao serd ‘o mesmo" antes ¢ depois do ato da escrita; no entanto, como © que se lé ja é algo escrito sobre um papel, o papel conti- nuard a ser 0 mesmo antes € depois do ato de leitura. Pro- vavelmente bastam poucos exemplos para se entender que classe de atos chamamos de ‘escrever" (embora no se en- tenda para que server estas marcas e nem o que signilfi- cam); contudo, so necessarios intimeros exemplos para se entender que classe de atos denominamos ‘ler’: Nao apenas se MUA FERRERO porque existe leitura em vor alta ¢ leitura silenciosa, leitu- ra para terceiros e leitura para si mesmo, mas também porque é preciso, no caso especifico da leitura em voz alta, lazer-se a diferenciayay deste ato de fala de outros atos de fala que também podem ser realizados diante de um texto (comentar, contar, perguntar etc.) A distancia da informagao que separa um grupo social de outro nao pode ser atribuida a fatores puramente cogni- tivos, Esta distancia diminui quando 0 que esta em jogo é © raciocinio da crianga; aumenta quando se necessita con- tar com informagées precisas do meio. Na verdade, o siste- ma de escrita tem um modo social de existéncia. Se bem que nao seja necessario contar com uma informacao espe- cial para se aprender uma atividade t@o natural como ade marcar (deixar tragos sobre qualquer tipo de superficie), e embora estas marcas estejam longe de constituir escritas em sentido exato, 6 imprescindivel que a informago seja socialmente transmitida para chegar a compreender agoes tdo pouco “resultativas’ quanto a leitura, A crianga que cresce em um meio “letrado” est exposta a influéncia de uma série de agbes. E quando dizemos ages, neste contex- to, queremos dizer interagdes. Através das interagSes adulto- -adulto, adulto-crianga e criangas entre si, criam-se as condigoes para a inteligibilidade dos simbolos. A experién- cia com leitores datextos informa sobre a possibilidade de interpretagao dos mesmos, sobre as exigéncias desta inter- pretagiio ¢ sobre as ages pertinentes, convencionalmente estabelecidas. Aqueles que conhecem a fiungao social da escrita dao-Ihe forma explicita ¢ existéncia objetiva através, de agées interindividuais. A crianga se vé continuamente envolvida, como agente e observador, no mundo “letrado’” EFLEXDES SOBRE ALFARETIZAGHO 8 0s adultos Ihe dao a possibilidade de agir como se fosse leitor — ou escritor —, oferecendo miiltiplas oportunidades para sua realizagiio (livros de historias, periddicos, papel e lapis, tintas ete.). 0 fato de poder comportarse como leitor antes de sé-lo, faz com que se aprenda precocemente 0 essencial das praticas sociais ligadas a escrita. 3. Algumas implicagdes pedagégicas A dimensio das questdes levantadas pode suscitar de imediato uma pergunta: se a compreensio da escrita come- ca ase desenvolver antes de ser ensinada, qual é 0 papel dos adultos, especialmente dos professores, no que s¢ rofe~ re a aprendizagem? Nao se deve deduzir de nossos estudos que subestimamos a importincia da escola. Ao contrario, cremos que ela pode cumprir um papel importante ¢ in- substituivel. No entanto, este nfo deveria ser o de dar ini- cialmente todas as chaves secretas do sistema alfabstico, amas 0 de eriar condigGes para que a crianga as descubra por si mesma. Esperamos que os dados aqui apresentados sirvam para sustentar nossas assergdes e para abrir caminhos para re- flexdes sobre suas implicades pedagégicas. 0s estudos comparativos com populagdes de diversas procedéncias sociais e nacionais nos permitem afirmar que € muito 0 que a escola pode fazer para ajudar as criancas, especialmente aquelas cujos pais, analfabetos ou semianal- fabetos, ndo possam transmiti-Ihes um conhecimento que eles mesmos ndo possuem. O professor 6 quem pode mi- o Ma FERRERO norar esta caréncia, evitando porém ficar prisioneiro de suas proprias convicgdes: as de um adulto ja alfabetizado. Para ser eficaz, tera que adaptar seu ponto de vista ao da Uianga, Tarefa nada facil, ja que poderia parecer impossivel reconstruir introspectivamente o estatlo de analfabetismo pelo qual todos jé passamos. E aqui que os dados anteriores podem ajudar fazendo ver a nacionalidade do que aparen- temente é irracional, a cocréncia do que é aparentemente incoerente ¢ a dificuldade do que é aparentemente dbvio. Decidimos, a titulo de conclusdo, assinalar alguns aspec- tos sobre os quais os profissionais deveriam estar alertas: ) Se pensarmos que a escrita remete de maneira obvia e natural & linguagem, estaremos supervalorizando as capacidades da crianga, que pode estar longe de ter descoberto sua natureza fonética. b) Em contrapartida, poderiamos menosprezar sous conhecimentos ao trabalhar exclusivamente com base na escrita cépia e sonorizagiio dos grafemas. Enquanto a crianga ‘sabe” que a escrita é significa- tiva, o adulto a esconde atras do tracado de formas graficas ou da repeticao de fonemas isolados, ambos sem sentido. ©) Ao tratarmos como ininteligivel a producdo escrita da crianga, na medida em que esta ndo se aproxima da escrita convencional, estaremos desvalorizando seus esforgos para compreender as leis do sistema. Imitando a mae que age “como se” o bebe estivesse falando quando produz seus primeiros balbucios, 0 professor teria que aceitar as primeiras escritas in- fantis como amostras reais de escrita e nao como puros ‘rabiscos’, [EFLENDES SOBRE ALFABETZAGKO a 4) Interpretar em termos de certo ou errado (em rela- Go a0 modelo adulto) os esforgos iniciais para compreender, é negar-se a ver os processos e inten- Ges que possibilitam a avaliagio dos resultados. ©) A énfase na reprodugio de tracados reduz. a escrita a um objeto “em si", de natureza exclusivamente ‘grafica: insistir na correspondéncia fonema-grafema € apresentar a escrita como “espelho" dos aspectos sonoros da linguagem. Ela nem “reflete” apenas os fonemas e nem é um objeto “opaco", E um produto de uma construcéo mental da humanidade, a partir de uma tomada de consciéncia das propriedades da linguagem. Como todo sistema simbélico, impoe regras de representacao que tém sentido dentro do sistema (pensemos na diregdo convencional da es- querda para a direita, na utilizagao de maidsculas, na separacdo de palavras, ¢ assim por diante). f) Os problemas que a crianca enfrenta em sua evolu- Ho nao esto sujeitos a qualificativos em termos de “simples” ou “complexos". So os problemas que ela pode resolver em uma ordem nao aleatéria, mas, te. internamente coe: g) Finalmente, se s6 nos dirigirmos as criangas que compartilhem alguns de nossos conhecimentos (ou seja, a quem ja tenha percorrido praticamente sozi- nho grande parte do caminho), deixaremos de lado uma grande porcentagem da populacdo infantil es- tacionada em niveis anteriores a esta evolugao, condenando-a — involuntariamente — ao fracasso. Sais 8 Processos de aquisicao da lingua escrita no contexto escolar* Estamos to acostumados a considerar a aprendizagem da leitura ¢ escrita como um processo de aprendizagem escolar que se torna dificil reconhecermos que o desenvol- vimento da leitura ¢ da escrita comega muito antes da escolarizag . Os educadores so os que tém maior difi- culdade em accitar isto. Ndo se trata simplesmente de aceitar, mas também de nao ter medo de que seja assim, Lembro-me de ter ouvido de uma professora que, infeliz- mente, sett proprio filho aprendeu a ler sozinho, antes de entrar na escola de 1° grau. Infelizmente, ela dizia, porque aprendeu fora de todo controle sistematico. no tem qualquer problema especifico de leitura; a unica dificuldade aparente que apresenta (nfo tragar as letras crianga * Procesos de adquisicion de la lengua esorita dentro del contexto escolat. Lectura y Vida (revista latino-americana de lectura), v4, n, 2, p. 1-16, jn. 1903. (A versio original fot apresentada pela autora na XXVIT Rexniéo Anual da ter national Reading Association, Chicago, EUA, em abril de 1992, sb otiulo *Lite- racy development: the construction of a new object of knowledge") Traduzido por Maria Amelia de Azevedo Goldberg o An FERRERO com a clareza ¢ a perfeigao esperadas por sua mie) ¢ atri- buida a este fato horrivel: aprendeu sozinha, sem estar autorizada a fazé-lo A ideta subjacente a esse modo de raciocinar ¢ aida muito difundida 6 a seguinte: necessitamos controlar processo de aprendizagem, pois, caso contrario, algo de mau vai ocorrer, A instituicdo social criada para controlar o pro- cesso de aprendizagem é a escola, Logo, a aprendizagem deve realizar-se na escola. Felizmente, as criangas de todas as épocas e de todos 08 paises ignoram esta restric, Nunca esperaram comple- ‘tar 6 anos ¢ ter uma professota a sua frente para comegarem a aprender: Desde que nascem so construtoras de conhe- cimento. No esforgo de compreendero mundo que as rodeia, levantam problemas muito dificeis ¢ abstratos e tratam, por si préprias, de descobrir respostas para eles. Esttio cons- truindo objetos complexos de conhecimento eo sistema de escrita é um deles. Aqui é preciso estabelecer duas distingdes. A primeira remete a um problema epistemologico fundamental. A segunda diz, respeito a relagao entre processos epistemol6s- gicos ¢ 08 métodos ou procedimentos de ensino. Vejamos a primeira. A distingdo a ser estabelecida é entre a construgao de um objeto de conhecimento ¢ a ma- neira pela qual fragmentos de informagao fornecidos ao sujeito sto incorporados ou ndio como conhecimento, Em- bora estreitamente relacionados, trata-se de processos dife rentes, Em ambiente urbano, as criancas estéo, desde seu nascimento, expostas a material escrito ¢ a aoes sociais vinculadas a esse tipo de material. Podem obte formagao AEFLENOES SOBRE ALFABETZACAO 6 acerca de alguns tipos de relagdes entre ages ¢ objetos (por exemplo, que enviar uma carta pressupde escrever algo em uma folha de papel, coloca-la num envelope ¢ ir ao correio depois, tudo isso sem sabrer exatamente 0 que significa “escrever", que classe de objeto é uma carta e, menos ainda, que tipo de instituicao é 0 correio ou qual é o vinculo entre o carteiro e o destinatario da carta). ‘A construgao de um objeto de conhecimento implics muito mais que mera colecdo de informagées. Implica a construgao de um esquema conceitual que permita inter- pretar dados prévios ¢ novos dados (isto 6, que possa rece- ber informagio e transformé-la em conhecimento); um esquema conceitual que permita processos de inferéncia acerca de propriedades nao observadas de um determinado objeto ¢ a construgio de novos observaveis, na base do que se antecipou ¢ do que foi verificado. Frequentemente se aceita que 0 desenvolvimento da lecto-escritura’ comece antes da escola; todavia, considera-se apenas como a aprendigazem de diferentes informagées nao relacionadas entre si, que logo serdio reunidas por algum tipo de mecanismo nao especificado. Porém, a aprendiza- gem da leitura-c-esorita 6 muito mais que aprender a con- duzir-se de modo apropriado com este tipo de objeto cultu- ral (inclusive, quando se define culturalmente 0 termo “apropriado”, ou seja, quando o relativizamos). & muito mais do que isto, exatamente porque envolve a construgao de um novo objeto de conhecimento que, como tal, nao pode ser diretamente observado de fora. 1, Lecto-eserituo em castelhano: leiturs-cescrita (N. da. “ MUA FERRERO A distingao anterior esta em intima relagao com a que se segue: a distingao entre métodos ou procedimentos de ensino ¢ 0 processo de aprendizagem. O propésito de man- ler o process de aprendizagem sob controle traz implicita asuposi¢ao de que os procedimentos de ensino determinam 0 passos na progressio da aprendizagem. Por sua vez, este ponto de vista baseia-se na convicgaio de que “nada esta dentro da mente se néo esteve antes fora dela’, Toda pe: quisa psicolégica ou psicopedagégica orientada por esta suposigaio implicita pareceria comprovar que assim ocorre efetivamente, No entanto, isto 86 se verifica quando as res- postas do sujeito s4o analisadas apenas em termos de ‘ci tas" ou “erradas", isto é, respostas esperadas, “boas” por oposicao as outras, que sao consideradas tinica ¢ exclusiva- mente em termos negativos. Todavia, quando a pesquisa ¢ conduzida na base de outro tipo de pressupostos, ou seja, que as respostas do sujeito sao apenas a manifestagao externa de mecanismos internos de organizacao e que as respostas podem ser clas- sificadas em termos de “corretas ou incorretas” somente quando 0 ponto de vista do observador ¢ tomado como sendo o tinico legitimo — pode-se encontrar uma porcao de coisas muito estranhas, Foi Jean Piaget quem nos obrigou a reconhecer a importéncia destas “coisas muito estranhas" que ocorrem no desenvolvimento cognitivo. Por essa mé ma razio obrigou-nos a abandonar esta manifestacao par- ticular do “egocentrismo" que pode ser chamada ‘adulto- centrismo" (a egocentrismo nao esté restrito apenas a um perioco da vida: reaparece, em niveis muito diferentes, tal como se pode ver claramente na histéria das Ciéncias So- ciais). Jean Piaget obrigou-nos a abandonar a ideia de que EFLEXOES SOBRE ALEABENTZAGAD o nosso modo de pensar € 0 tinico legitimo e obrigou-nos a adotar o ponto de vista do sujeito em desenvolvimento, Isto 6 facil de dizer, mas muito dificil de aplicar coerente ¢ sis- tematicamente. No caso do desenvolvimento da leitura-e-escrita, a di- ficuldade para adotar 0 ponto de vista da crianga foi to grande que ignoramos completamente as manifestagoes mais evidentes das tentativas infantis para compreender 0 ian- sistema de escrita: as produgdes escritas das proprias ‘cas, Até ha poucos anos as primeiras tentativas de escrever feitas pelas criangas eram consideradas meras garatujas, como se a escrita devesse comegar diretamente com letras convencionais bem tragadas. Tudo 0 que o simplesmente considerado como tentativas de escrever ¢ no como escrita real. Na melhor das hipsteses, era consi- derada como atividade puramente gréfica, relevante para a verdadeira escrita apenas na medida em que conduzia a uum crescente controle dos instrumentos e espago graficos. Nao se supunha que a execucdo de tais garatujas ocorresse tia antes era simultaneamente com algum tipo de atividade cognitiva, Essas estranhas marcas graficas pareciam estar dispostas a0 acaso. Mais ainda: quando as criangas comegavam a tragar letras convencionais, porém em uma ordem nao convencional, o resultado era considerado uma “ma’ repro- dugao de alguma escrita que, por certo, teriam observado nalgum outro lugar. Mesmo agora, quando a expressio invented spelling? (escrita inventada) tornou-se popular (pelo menos nos Es- 2. Invented speling em inglés: ontografia inventada (N. dt).

Você também pode gostar