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Quem tem medo de Gramsci?

Diferente do que setores da extrema-direita brasileira tem difundido, o


pensamento de Antonio Gramsci não tem nada a ver com uma dominação
maquiavélica da cultura e da política. Quando Gramsci fala em hegemonia, ele
está descrevendo o funcionamento da política em nosso tempo. Neste contexto,
todos os grupos políticos e ideológicos estão disputando hegemonia, mas
sempre de forma clara. Não se trata de um plano diabólico.

Produzidas na maioria no cárcere fascista entre 1929 e 1935, as primeiras publicações das
obras do pensador italiano Antonio Gramsci desembarcaram no Brasil somente no final dos
anos 1960, em meio à Ditadura Civil-Militar. No início, as publicações foram um fracasso
editorial e encalharam nas prateleiras. No entanto, nas duas décadas seguintes, no contexto da
abertura política e da redemocratização brasileiras, o pensamento de Gramsci adquiriu
notoriedade entre diversos intelectuais. Intelectuais como Fernando Henrique Cardoso,
Carlos Nelson Coutinho e Luiz Werneck Vianna utilizavam as reflexões do político italiano
para pensar formas de superar do autoritarismo e de construir de uma sociedade democrática.

Mas, apesar de ter estimulado importantes análises no período, Gramsci jamais se tornou
conhecido pelo público. Nos anos 2010, isso começou a mudar graças ao crescimento da
extrema-direita no Brasil. Gramsci passou a ser apresentado como um dos responsáveis pelo
avanço do “esquerdismo” e do “comunismo” no país. Olavo de Carvalho (1947-2022), um
dos principais intelectuais vinculados à extrema-direita brasileira, afirmou que Gramsci teria
proporcionado uma mudança nos métodos dos comunistas para atingir a revolução.

Para Carvalho, diferentemente dos líderes comunistas tradicionais, como Lenin, que
defendiam a via armada para a construção da revolução comunista, Gramsci teria
estabelecido a cultura como elemento central para a transformação da sociedade. Assim,
abandonando as armas, os comunistas deveriam se infiltrar nos meios de comunicação,
universidades e escolas e, a partir desses espaços, dominar a cultura da nação, produzindo
uma revolução silenciosa e inconsciente.

Essa concepção, além de equivocada, é também autoritária. A afirmação de que o Brasil


estaria vivendo a proximidade de uma revolução comunista parte da ideia de que os militares
durante a Ditadura não teriam cumprido sua principal função, isto é, eliminar os comunistas.
Ao eliminar apenas aqueles que pegaram em armas para enfrentar o regime, os militares
teriam permitido o crescimento da esquerda na cultura brasileira. Essa visão violenta da
política é uma excrescência da cultura anticomunista dos anos 1930 e 1960, que escolheu
Gramsci como a grande ameaça aos valores da sociedade Ocidental. Suas teorias, associadas
sempre a uma dimensão diabólica, representariam a continuidade da ameaça comunista
mesmo após o fim da União Soviética. Ou seja, o perigo comunista ainda deveria ser
extirpado da sociedade, hoje.

Mais que nos livros de Olavo de Carvalho, a visão demoníaca de Gramsci espalhou-se pelas
redes sociais, grupos de Whatsapp e até mesmo em cultos religiosos. Além de contribuir para
o crescimento de discursos autoritários, essa compreensão errônea desqualifica um dos
maiores intelectuais do século 20.

Afinal, quem foi Antonio Gramsci?

Filho de uma família modesta com inclinações políticas à esquerda, Gramsci nasceu em 1891
na Sardenha, uma ilha situada no sul da Itália. Ainda garoto, Gramsci começou a se interessar
por política e conseguiu uma bolsa de estudos para cursar universidade em Milão, no norte do
país. Essa mudança foi muito importante para que Gramsci percebesse as desigualdades
sociais e geográficas de seu país. Enquanto o sul era marcado por uma economia
predominantemente agrária, o norte sediava as principais indústrias da Itália naquele
momento.

Apesar de não conseguir terminar seus estudos universitários em virtude de problemas


financeiros, Gramsci se aproximou ainda mais da política, se filiou ao Partido Socialista
Italiano e começou a escrever artigos para diversos jornais da época. Esses artigos abordavam
as questões políticas do cotidiano italiano e mundial. Por isso, como afirmou o próprio
Gramsci, eram textos que serviriam para “embalar peixes na feira do dia seguinte”.

A Revolução Bolchevique de 1917 fascinou Gramsci, que começou a pensar em formas para
traduzir a política dos bolcheviques para a Itália. Nesse sentido, os Conselhos de Fábrica,
mais que um agrupamento de trabalhadores para gerenciar a produção nas fábricas, eram os
embriões de um novo Estado Operário. Na transição para os de 1920, o movimento dos
conselhos avançou fortemente na Itália e produziu importantes greves nas principais
empresas italianas.
Apesar do avanço, o movimento foi derrotado. Para Gramsci, as razões da derrota estavam na
fraqueza revolucionária dos socialistas italianos. Diante disso, em conjunto com outros
membros do partido, Gramsci contribui para a fundação do Partido Comunista Italiano em
1921. Todavia, no contexto da derrota dos conselhos, houve o fortalecimento do fascismo e
ascensão de Benito Mussolini ao poder em 1922. Nesse momento, Gramsci passa alguns anos
na Áustria e na Rússia como dirigente partidário e retorna para a Itália, elegendo-se deputado.
Mesmo como deputado, Gramsci foi vítima das arbitrariedades e da violência fascista. Em
setembro de 1926, poucos meses antes da prisão de Gramsci, o ditador italiano Benito
Mussolini foi vítima de uma tentativa de assassinato. O atentado serviu como justificativa
para um aumento da violência e para a perseguição dos comunistas. Em meio as
perseguições, Gramsci foi condenado a mais de 20 anos de prisão. Com o crescimento da
repressão, Gramsci foi preso em 1926 e condenado a mais de 20 anos de prisão.

Privado de sua liberdade e com poucas formas de contato com o exterior, exceto por cartas,
jornais e livros que recebia em sua cela, os artigos jornalísticos que escrevia anteriormente
não faziam mais sentido. Por isso, Gramsci iniciou a redação de trinta e três cadernos
escolares que, posteriormente, seriam publicados e conhecidos como os Cadernos do
Cárcere. A ideia, diferentemente dos textos escritos em liberdade, era produzir uma reflexão
de maior fôlego.

A produção desses textos, que tratavam de diversos temas de história e política, ocorreu entre
1929, momento em que ele recebeu autorização para escrever em sua cela, até 1935, período
em que sua saúde se deteriorou. Com uma pena que duraria até praticamente o final dos anos
1940, Gramsci foi liberto em 1937. A libertação, distante de ser um ato de humanidade, fazia
parte de uma jogada política de Mussolini. Como a saúde do prisioneiro piorava cada vez
mais, Mussolini temia que Gramsci falecesse no cárcere e se tornasse uma espécie de mártir.

Assim, quando da morte de Gramsci, Mussolini publicou um artigo no jornal Corriere della
Sera, afirmando que, diferentemente da União Soviética de Stálin, onde os presos eram
assassinados, Gramsci morrera em liberdade. Cinismo que revela a perversidade do regime
fascista.

O que pensava Antonio Gramsci?


Apesar de dispostas em 33 cadernos escolares e tratarem de diversos temas, as reflexões de
Gramsci eram orientadas por alguns fios condutores. Como marxista e comunista, Gramsci
procurou rever os principais conceitos de Marx e Lenin diante das várias transformações
históricas que ocorreram na transição entre os séculos 19 e 20. Nesse sentido, o intelectual
italiano pretendeu demonstrar que as ideias desses líderes comunistas foram elaboradas a
partir de uma realidade que não mais existia no século 20.

A revolução explosiva, tal qual fizeram os franceses na queda da Bastilha em 1789, não fazia
mais sentido nessa nova etapa da modernidade. Com o surgimento dos partidos políticos, dos
sindicatos e das diversas formas de associação política, o poder político não estava centrado
no Estado, mas na sociedade civil. Assim, qualquer grupo que pretendesse governar a
sociedade deveria mobilizar suas ideias e conquistar o consenso dessa sociedade. Para
Gramsci, as mudanças sociais passam a ser pensadas a partir da disputa política pela
hegemonia na sociedade.

Desta forma, a visão da extrema-direita brasileira sobre Gramsci é equivocada. Ela costuma
dizer que o comunismo tem uma estratégia de dominação totalitária que passa pelo controle
maquiavélico da cultura e que isso é sempre feito às escondidas, manipulando as pessoas,
como uma teoria da conspiração. Esse controle seria uma forma de se chegar à revolução.
Mas isso é uma simplificação (ou melhor, uma manipulação) do conceito de Gramsci.
Quando o pensador italiano fala em hegemonia, ele não está falando de nenhum plano
maquiavélico, de nada feito às escondidas, e nem de nada específico do comunismo. Pelo
contrário: o conceito de hegemonia de Gramsci pretende mostrar como funciona essa nova
política que passa a ser feita nas primeiras décadas do século 20. A disputa pela hegemonia,
isto é, pelo consenso da sociedade civil, não é feita às sombras e nem visa à revolução. Todos
os grupos sociais e todas as ideologias políticas manifestam seus interesses e projetos por
meio de diversos veículos. Nesse sentido, apesar de terem posições completamente
diferentes, organizações de direita, centro e esquerda, nas suas mais variadas formas, estão
todas disputando a hegemonia.

Além de não ser uma prática diabólica, a teoria da hegemonia procura demonstrar como o
poder político é criado e legitimado no nosso tempo. As pessoas, a partir do contato com as
ideias e projetos diversos, criam suas visões de mundo e passam a apoiar determinadas
causas, lideranças ou partidos. Essa formação das visões de mundo dos indivíduos não é
manipulação. As pessoas, afinal, não são meros receptores de ideias. A partir de suas
culturas, os diferentes indivíduos podem concordar ou discordar, aderir ou rejeitar, ou até
mesmo compreender à sua própria maneira as ideias apresentadas por uma elite intelectual e
política.

A política, assim como a disputa pelo consenso, depende de como a sociedade encara em
determinados momentos os diferentes projetos políticos em disputa. Dependendo da
correlação de forças políticas, a sociedade pode caminhar para a direita ou para à esquerda.

Diante da disseminação de visões totalmente equivocadas, com claras intenções políticas


autoritárias, é importante afirmar a importância de autores como Antonio Gramsci.
Aprisionado no cárcere fascista, Gramsci jamais pensou em uma doutrinação comunista, mas
compreendeu o funcionamento da política e apontou a democracia como uma finalidade.
Qualquer um que deseje transformar ou conservar aspectos da sociedade sem o recurso ao
autoritarismo e à ditadura, precisa, necessariamente, disputar a hegemonia. Eis a grandeza do
pensamento de Antonio Gramsci.

Como citar este artigo

OLIVEIRA, Marcus Vinícius Furtado da Silva. Quem tem medo de Gramsci? In: Café
História. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/quem-tem-medo-de-antonio-
gramsci/. Publicado em: 6 fev. 2023. ISSN: 2674-5917.
Marcus Vinícius Furtado da Silva Oliveira é professor de História do colégio de aplicação da
Universidade Federal de Uberlândia e pós-doutorando em História pela Universidade de
Brasília. É autor do livro A arquitetura fractal de Antonio Gramsci: história e política nos
Cadernos do Cárcere e produtor de conteúdo no Instagram @marcusfsoliveira e no
@pahistoria

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