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A CONTRIBUIÇÃO AFRICANA À CULTURA BRASILEIRA E A SITUAÇÃO DO

AFRODESCENDENTE NA CONTEMPORANEIDADE: UM RELATO DE EXPERIÊNCIA


Laércio Queiroz

Introdução
Segundo Vaz (2014), as relações entre o continente africano e o Brasil
aconteceram intensamente por mais de três séculos. Mas, por várias razões, com o fim
do tráfico de africanos, houve significativas mudanças na dinâmica desse vínculo.
Ainda que a história da chegada dos lusitanos tenha sido, durante anos, mal
contada nos diversos livros de história e nas salas de aulas, segundo o autor, havia
estudos que se ocupavam de apontar a importância da contribuição do africano na
cultura brasileira. E, na contemporaneidade, existe, por parte de alguns pesquisadores,
um interesse de resgatar tal discussão, consolidando algumas observações anteriores.
Sob o aspecto legal, somos orientados a incentivar os estudantes a

[...] valorizar a pluralidade do patrimônio sociocultural brasileiro, bem como


aspectos socioculturais de outros povos e nações, posicionando-se contra
qualquer discriminação baseada em diferenças culturais, de classe social, de
crenças, de sexo, de etnia ou outras características individuais e sociais [...]
(PCN, p. 7).

Contudo, mais importante do que a lei, deve-se criar situações que desvendem
a contribuição do povo africano para a cultura brasileira, a fim de que os estudantes,
além de compreenderem essa importância, disseminem essa verdade incontestável,
repeitem e aceitem-na.
Anterior à orientação dos PCN, a cultura afro era invisível nos currículos
escolares, e apenas era revisitada quanto elemento do folclore brasileiro, durante o
mês de agosto. Porém, essa utilização longe de valorizar a cultura daquele continente,
salientava, não raro, aspectos reducionistas que a marginalizava.

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A formação cultural do Brasil é fusão de etnias que juntas criaram uma nação
específica, particular. Nesse sentido, não reconhecer, discriminar ou encobrir o aporte
africano na cultura brasileira é incorrer em um erro irreparável.
Benjamin (2006) nos aponta que a presença africana na nossa cultura se mostra
de maneira concreta ao observarmos a culinária, a dança, a religiosidade, a música o
artesanato, as brincadeiras e brinquedos infantis, a linguagem etc.
Cabe à escola desmistificar a visão eurocêntrica que a sociedade tem do
africano e afrodescendente, revelando as razões do preconceito e distinguindo os
diversos traços culturais existentes na cultura brasileira.
O relato abaixo versa sobre as aulas de Língua Portuguesa que aconteceram,
durante o primeiro semestre do ano de 2016, como parte do projeto interdisciplinar
intitulado “A Cultura Afro-brasileira e Indígena”, proposto pela supervisão educacional
do Sesc (Serviço Social do Comercio), unidade Santo Amaro localizado no município do
Recife, Estado de Pernambuco. A ação aqui apresentada foi realizada em uma turma
da EJA (Educação de Jovens e Adultos) do Ensino Médio noturno e cada encontro
durou, aproximadamente, três horas.

De conversa em conversa
Para realizar a proposta, iniciamos explorando a oralidade dos discentes,
interrogando suas informações sobre aspectos relacionados à africanidade. A fim de
colaborar com a reflexão, perguntamos o que entendiam sobre assunto e qual a
contribuição do africano para a nossa cultura. Sem exceção, traziam conhecimentos a
respeito desse particular, sempre relacionados ao folclórico. Para eles, entendido
como inferior, exótico, risível ou de valor duvidoso.
Ao se lembrarem da contribuição dos africanos para a cultura brasileira, os
estudantes citavam algumas iguarias, tais como o acarajé e a feijoada, além de
manifestações como a capoeira, o samba, e o candomblé, que denominavam
macumba e se referiam ao ritual como algo primitivo e violento sem nenhuma
importância para o contexto contemporâneo.

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Após a diagnose, apresentamos dois curtas cujo afrodescendente era
protagonista. Do ficcional, projetamos “O Xadrez das Cores”, de Marco Schiavon. O
filme apresenta a relação entre uma anciã branca e uma empregada doméstica que
mesmo honesta e digna é execrada e humilhada pela patroa apenas por ser negra.
O outro curta, “O Dia em que Dorival encarou a guarda”, de Jorge Furtado,
apresenta uma reflexão sobre a burocracia institucional, além de apontar o
preconceito contra o afrodescendente. No filme, o personagem Dorival questiona o
motivo pelo qual não lhe é permitido tomar banho. E, ao longo da narrativa, percebe-
se a discriminação específica sofrida por ele.
Após a projeção dos curtas, houve debate sobre eles, relacionando-os ao nosso
cotidiano e refletindo sobre a postura das personagens, tanto as que entendiam os
afrodescendentes como inferiores quanto à posição assumida por estes para se
contraporem à discriminação sofrida. Durante a discussão, foi possível perceber o
descontentamento dos estudantes com as ações discriminatórias apresentadas nos
curtas.
No encontro seguinte, assistimos ao documentário “África Brasil: semente, raiz
e tempo”. O documentário apresenta a chegada dos africanos ao Brasil, suas auguras e
a sua contribuição para a cultura brasileira. Por fim, assistimos a um episódio do
programa de debate intitulado “Repórter Brasil” cuja temática, na ocasião, foi a cultura
africana. Ainda uma vez, realizamos debate sobre o que foi projetado e nesse
momento, talvez por estarem mais instrumentalizados pelo que viram anteriormente,
as argumentações estavam mais reflexivas e fundamentadas.
Na aula consequente, realizamos a leitura de textos de dois gêneros
discursivos: um poema intitulado “Carta de um contratado”, do poeta angolano
Antonio Jacinto, que versa sobre o amor entre um casal de analfabetos; e dois artigos
cujo assunto era a condição do afrodescendente na sociedade. O primeiro defendia
que havia um racismo disfarçado no Brasil e o outro acudia ser o racismo realidade do
passado. Além destes textos, realizamos a leitura de fragmento da intitulada Lei Áurea.

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Novamente, discutimos sobre os gêneros e os estudantes se posicionaram
concordando com a tese de que a chaga do racismo ainda é presente na
contemporaneidade, e que a argumentação do segundo texto não condizia com a
realidade. Na ocasião, aproveitamos para explicar sobre o tipo textual argumentação e
o gênero poema, apontando características particulares do texto ficcional e do não
ficcional.
Ao final do encontro, solicitamos que assistissem, em determinada página do
facebook, ao vídeo “Sábados azuis”, de Márcio Moreira Alves, que retrata a trajetória
dos maracatus de baque solto, e apresentassem suas impressões sobre a manifestação
e o papel dos integrantes do brinquedo para a manutenção daquela cultura.
No quarto encontro, alguns estudantes apresentaram suas opiniões sobre o
vídeo e se surpreenderam com a existência de outra modalidade de maracatu.
Aproveitamos para explicar um pouco sobre a presença dos rituais religiosos no
brinquedo e a importância da manifestação para os integrantes.
No quinto momento, sugerimos que cada estudante observasse, no bairro onde
morava, afrodescendente que desenvolvia uma função social de relevo na própria
comunidade, e realizasse uma entrevista que tratasse tanto da importância da
preservação da tradição africana quanto da condição do afrodescendente na
contemporaneidade. A entrevista seria, posteriormente, além de socializada com a
turma, postada na internet para contribuir com a disseminação de um olhar mais
distinto e necessário sobre o assunto.

Chegando ao fim ou do que dele se aproxima


Com o objetivo de cimentar o que foi discutido para aplicar no texto que seria
proposto, no último encontro relembramos algumas questões vivenciadas nas aulas
anteriores, em seguida explicamos sobre o gênero folheto, entregamos cópias de dois
folhetos para ajudar no conhecimento da estrutura e solicitamos que se organizassem
em dupla, para confeccionarem um texto coletivo, apresentando a temática do projeto
com base no formato do gênero citado acima.

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Enquanto criavam o poema, visitamos as duplas e fizemos sugestões de
vocábulos ou de mudança de versos, ajustando-os ao estilo e a sonoridade das
estrofes.
Quando, finalmente, todos concluíram, o texto foi revisado, digitado e montado
no formato de um folheto que foi, durante a culminância do projeto, lido por alguns
voluntários. Eis o texto:

O Negro na cultura brasileira


[ Estudantes da EJA – SESC]
No dia treze de maio,
Do ano de oitenta e oito,
A princesa Isabel
Assinou com muito gosto
A Lei que libertaria
O escravo do seu posto.

Naquele momento a alegria


Foi grande para o africano
Acostumado a servir,
Nas quatro festas do ano,
Agora seria livre,
Acabou-se o desengano.

Mas o negro africano,


Antes da Abolição
Foi tratado como escravo
Perante a nossa nação,
Ele foi trazido à força

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Por meio de embarcação.

Mesmo sofrendo açoite,


O negro por sua vez
Muito aqui contribuiu
Foi responsável talvez
Por heranças culturais,
Que aqui ficaram de vez.

Quanta riqueza nos trouxe,


Com sua grande influência,
Espalhou conhecimento,
Fez crescer a nossa crença,
Ganhou a nossa nação
Viva a nossa diferença!

À linguagem o africano
Deu contribuição até,
Palavras suas são várias,
Caxambu, mingau, cafuné,
xepa, xará, trambique,
cachaça, fuxico, acarajé.

Da cultura popular,
Muito se deve ao negro,
Maracatu, afoxé, alfaia,
Capoeira e outro folguedo,
Bombo, tambores de mina,
Coco, calunga, samba enredo.

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O fato é que mesmo com isso,
O negro era discriminado,
Trabalhava muito duro,
Era chamado de escravo.
Na vida, não tinha trégua,
E era sempre humilhado.

A história do Brasil
Não se importa com guerreiros,
Que sempre foram contrários
Ao açoite dos companheiros,
Não valoriza os costumes
De valentes altaneiros.

Não fala das grandes lutas


Que os negros aqui travavam,
Da união que havia,
Quando juntos aprimoravam,
Nem dos negros dos Palmares
Que por liberdade lutavam.

No Quilombo dos Palmares


Nasceu a libertação,
Graças a dois grandes heróis
Lutando contra a opressão
Gangazumba e Zumbi
Enaltecem a nação.

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Hoje o negro é livre?
Mudou a situação,
Da senzala pra favela
É essa a nova posição,
Quebraram-se as correntes,
Mas o preconceito não.

Nas faculdades ainda


O negro é minoria,
Mesmo com as cotas justas,
Ainda à revelia,
E no mercado de trabalho
Ganha uma mixaria.

Nos presídios os negros


São a grande maioria,
Também morando nas ruas
Sofrendo com a carestia,
passando fome e sede,
sem trégua nem calmaria.

Vê se negro no cinema,
No teatro, na ficção,
Desempenhando papel
De pobre, e de ladrão,
de empregada doméstica,
desordeiro e beberrão.

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Mesmo hoje, ainda existe
Ignorante que acredita
Que o negro é inferior,
Oh! Que herança maldita
O preconceito existe
Contra o negro e o semita.

A vida do negro é árdua,


Mas ele não esmorece,
Ele luta todo dia,
Disso ele não se esquece
De defender seus direitos
O negro não se enfraquece.

Acabar com preconceito,


Só mesmo com educação
Educando as crianças
Mudaremos a situação,
Preconceito se aprende
Se aponta a direção.

Se a escola quisesse,
Os preconceitos diminuiriam,
Educaria as crianças
Que logo se tornariam
Cidadãos Conscientes
E as diferenças aceitariam.

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Considerações finais
Entendemos o ensino de Língua Portuguesa como aporte da construção da
linguagem oral e escrita. Por esse prisma, o projeto se norteou pela reflexão e debate,
para tentar contribuir com a análise crítica dos estudantes e instigá-los na organização
do discurso oral, refletindo sobre a contribuição e situação do afrodescendente na
atualidade.
Para a culminância do projeto, optamos pelo gênero folheto por duas razões
particulares: primeiro porque é um gênero que, durante muitos anos, foi visto como
literatura menor por alguns educadores. Assim, cremos ser apropriado trazê-lo para
um contexto cujo tema, de certo modo, respinga na discriminação. Além disso, a
estética do folheto, quase sempre, interessa aos estudantes de qualquer segmento.
A vivência exposta acima, ainda que tenha pretendido colaborar na
desconstrução que a sociedade internalizou sobre o afrodescendente, pode não ter
modificado valores arraigados ao longo de uma educação consolidada sob um olhar
etnocêntrico. Contudo, a permuta de experiências e opiniões pode ter colaborado para
fortalecer a identidade daqueles que se reconhecem como afrodescendentes, mas não
têm consciência do seu papel na sociedade.
O projeto, mesmo que não tenha diluído a discriminação contra o
afrodescendente, possivelmente, contribuiu para trazer à baila uma discussão atual e
necessária, e, certamente, denunciou preconceito e apontou valores de um grupo que
há muito sofre com a exclusão social. Assim, pode ter sido o início da reflexão da
contribuição africana à cultura brasileira e da situação do afrodescendente na
contemporaneidade.

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Referências
BENJAMIN, Roberto. A África Está em Nós – Historia e cultura afro-brasileira. João
Pessoa: Editora Grafset, 2006.
BRASIL. MEC. Parâmetros Curriculares Nacionais – Documento Introdutório. Versão
Preliminar. Brasília: MEC/SEF, nov., 1995.
JACINTO, Antonio. Poemas, Casa dos Estudantes do Império. Lisboa: 1961
Vaz, C. F. (2014). A representação social da África e dos africanos. Dissertação de
mestrado, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.

Documentários
O Dia em que Dorival encarou a guarda. Direção: Jorge Furtado, José Pedro Goulart.
Rio Grande do Sul: Giba Assis Brasil, 1986 [produção]. Curta (14 min) 35mm , NTSC,
color.
O Xadrez das cores. Direção: Marco Schiavon. Rio de Janeiro: Midmix
Entretenimento, 2004 [produção]. Curta (22 min) 35mm , NTSC, color.

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Laércio Queiroz
Doutorado em Linguística pela Universidade
Federal da Paraíba, mestrado em Literatura
pela Universidade Federal de Pernambuco,
licenciatura em Letras pela Faculdade de
Ciências Humanas de Olinda, pesquisador
da Comissão Pernambucana de Folclore.
Atualmente, está professor da Rede
Particular de Ensino.

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