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14 Depressio quanto metéfora primitiva da psique que seria 0 vazio criativo do intervalo, do tempo da linguagem e do brincar, Esta visdo, da qual fornecemos um desenho sucinto apenas, e que reflete tao-somente a concepeao do autor dessas linhas‘, é devedora do pensamento de Fédida acerca da depressio desenvolvida nesta série de ensaios que séo, além de muito atuais, a base e a fonte de suas reflexées recentes sobre o tema. Para coneluir, gostaria de enfatizar que 0 caminho que tracamos para a depresséo configura um aparelho psiquico cujo cardter e fungdo primarias sao defensivas por exceléncia: visam a contencdo, 0 espagamento e o dar forma aos afluxos internos e externos. B para onde o proprio Freud é levado a partir da segunda tépica. Neste sentido, os desenvolvimentos de Fédida nao me parecem alheios & posigao depressiva de Melanie Klein e da sua contribuigao em geral, e so, a meu ver, especialmente préximos aos de Bion, além de ser manifestamente ins- pirados em Lacan e em Winnicott e apoiados nas correlatas contribuigdes de Lewin e Khan, entre outros. Entretanto, Fédida insiste, neste trajeto, sobre algo que © torna bastante critica de quem desrespeita a distancia que a linguagem impée, de quem transforma a metafora em modelo ficcional ou numa ficgao de um modelo (“O vazio da metéfora...”). A violéncia feita a linguagem, neste caso, se associa a da depressao, ndo dando tempo para a constituigéo do tempo da psique. Daniel Delouya 4. Para o desenvolvimento e a elaboracto desta, “Topica, o negativo da depressto priméri veja 0 nosso trabalho, ", Percurso 21; $15, 1998. O AGIR DEPRESSIVO Se ele anda, é com lentiddo e cautela, como se houvesse algum perigo a evitar, ou entéo com precipitacdo e sempre na mesma diregao, como se seu espirito estivesse profundamente ocupado, ‘atormentado pela tristeza ou temor, 0 olkar e a escuia sempre vigilantes... . para 0 liperaaniaco, o dia nao tem repouso, 4 noite o sono néo ver... Por vezes, a sensibilidade concentrada em um tinico objeto parece ter abandonado todos os érgéos: 0 corpo é impassivel a qualquer impressao, enquanto 0 espirito se atém a um tema tinico, que absorve toda a atengao e suspende o exercicio de todas as fungoes intelectuais. A imobilidade do corpo, a fixidez dos tracos da face, 0 siléncio obstinado revelam a concentragao dolorosa, da inteligéncia ¢ das afeigoes. Nao é mais uma dor que se agita, se queixa, grita e chora, € uma dor que se cala, que nao tem lagrimas, que € impossivel «a lentidao, a repeticdo monétona dos movimentos, as agées e falas do lipemanéaco, 0 abatimento no qual se encontra merguthado ‘pareceriam soberanos, se julgdssemos que seu espiito esta inativo ‘como 0 corpo. A atengdo do melancélico é de grande atividade, dirigida para um objeto particular, com uma forga de tensdo quase insuperdvel; inteiramente concentrado no objeto que o feta, o doente nndo consegue desviar sua atencao, nem dirigi-la a outros objetos alheios & sua afecgao. Esquirol Sobre as doengas mentais, consideradas ‘sob as perspectivas mental, higiénica @ médico-legal (1838) Digitalizacio com CamScanner 16 Depressao A depressio € uma figura do corpo. Figura cuja expressividade é desenhada ao vivo na impressao de um rosto, sensivel como um espelho, no peso estirado ou tenso dos membros, na visibilidade aguda e dolorosa da pele... Essa figura do corpo assim abandonada a expressividade transparente de um trago € considerada como o limite que define a vigiléncia de um vazio chamado psique.| Estranha inversao paradoxal, que nos faz escutar que a psique ~ metafora primitiva de toda depressao — poderia ser 0 vazio do qual o corpo é a figura imével de trans. paréncia. A impressao é expressiva desde que 0 corpo desenhe co vivo ~ com toda a massa de sua imobilidade — 08 incessantes movimentos daquilo que af se age. E a imobilidade do corpo, como se a auséncia fizesse dela 0 signo de seu lugar, é a posicao ~ talvez mesmo a postura ~ de uma situagao de vigilancia no siléncio de uma noite que se agita. Durante meses um homem conta, em cada uma das sessées, 0 “tédio” que aprisiona sua vida desde que sua mulher 0 deixou — ha dois anos, assim que ele completa- ra cingiienta anos. No inicio foi como se sua existéncia, bruscamente “desmontada”, tivesse se “langado furiosa- mente” numa atividade louca, como um desafio a perda “Minha mulher era, quando estava junto a mim, uma pessoa tao ativa que eu me sentia angustiado e quase nao conseguia seguir seu ritmo.” O abandono por sua mulher fez com que ele logo iniciasse multiplos projetos até entdo “impedidos’. E, como se ele desposasse a repe- ti¢ao da ausente para que na realidade a perda néo te- nha lugar, langa-se em aventurosos negécios comerciais, audaciosas operagdes bancérias e, também, estranhas conquistas amorosas: “Eu acreditava ter todas as chan- ces ao meu lado, sentia-me numa boa forma que nunca conhecera antes. Sentia-me inebriado de atividade... E, no entantc, hoje penso que isso era parecido com um sui- cidio ou um assassinato...”\Sentir-se “numa forma” que ele nao conhecia: essa forma designa a repetigéo do ou- O ncin pepnessivo 17 tro em sua auséncia, tal como ele poderia té-la desposa- do por empréstimo e, certamente, é também a sua pr pria, Suicidio ou assassinato? Qual seria aqui a diferen- ga, pois - nesse “luto” impossivel da mulher amada - 0 matar concerne ~ na repetigdo — a prépria repeticao? Uma psicopatologia do luto depressive - decerto dis- tinto do luto “normal” e do luto melancélico - deve levar em conta a estranha sedugao imaginaria exercida pela repetigao do ausente. Ou ainda, seria melhor dizer: a fas- cinagdo interna por uma repeti¢do imagindria & qual o ‘ausente dé poder. A amentia, de Meynert, ou ainda psi- cose alucinatoria de desejo de Freud parecem-me aqui nogdes fundamentais para se compreender intrinseca- mente (e de modo disjuntivo) a depressdo (especialmen- te em relagdo & melancolia) e para se reconhecer uma unidade estrutural significante entre a depressao e a mania. O luto depressivo teria a particularidade subjeti- va de uma morte impossivel, como se a “cura” da depres- 80, concebida como cumprimento de um luto, pudesse se dar no paradoxo escandaloso de um suicidio ou um as- sassinato. O homem ~ nosso paciente - sabia perfeita- mente, em alguma parte sua, que ele agia e se agitava numa forma — corpo da auséncia ~ que o “carregava”, enquanto uma vigilante imobilidade interior o “aterrori- zava”. “Imaginava a mim mesmo como um incéndio gi- gantesco enjas cinzas eu nao deixava, nem por um ins- tante, de vigiar”. Essa observagao incidente foi para mim muito preciosa: ela me indicava a “chance” terapéutica de nosso trabalho analitico. Esse ponte de imobilidade interna ~ mesmo que de terror ~ significava a atengdo denunciando ‘a “forma”, e assim sua impossibilidade de deixar o delirio apossar-se inteiramente de si.! Em “O grande enigma do luto, Depressao e melancolia, O belo objeto”, neste volume pp. 37-49, coloquei o acento na morte impossivel na depressao. A sedugio pela repetigéo - como se a repetigao fosse 0 corpo da auséncia — ple em jogo 0 belo objeto {por comparagao com © bom-objeto na melancolia). Digitalizacio com CamScanner 18 DepressAo Um incidente aparentemente menor coloce’ brus- camente um fim a essa “forma” que, no espaco de algumas horas, esvaziou-se como uma bexiga: uma prostituta que ele tinha seguido até um hotel rouba-lhe sua carteira com dinheiro e “documentos de identidade”, Tendo voltado ao hotel, quando percebeu o que Ihe “faltava”, ele se defronta com as negagées obstinadas da jovem mulher, ao ponto de chegar a duvidar se ela tinha mesmo roubado seus “documentos de identidade”. Apés esse incidente, ele tem o sentimento “penoso” de “nao conseguir agir nem em um sentido, nem em outro”, e faz com que “zombem” dele quando, envergonhado, quer contar sua desgraca numa delegacia de policia. Ele diz que “sua vergonha o impede de dar queixa”. E entao “tomado de uma continua vontade de chorar”, desin- teressa-se de tudo e expressa seu temor de ser atingido por uma doenga venérea que o levaria a uma paralisia geral ou que se transformaria numa doenga incuravel. Pensa que nunca mais vao Ihe dar novos “documentos de identidade” e se considera, de todo modo, indigno de qualquer cuidado ou interesse que seus préximos pudessem lhe prodigar. E nesse estado — que podemos qualificar de inicio de melancolia delirante com certos pensamentos paranéides — que ele aceita, entretanto, ser hospitalizado numa clinica psiquiatrica. O psiquiatra (que encaminhara a mim na saida de sua hospitaliza¢ao) descreve ainda nesse doente uma evolugao tipica da fase melancélica (sentimento de indignidade completa, remoer doloroso dos erros passados, queixa angustiada relativa a todo o mal que ele diz ter cometido desde sua infancia ete.); diversos medicamentos farmacoldgicos Ihe s40 administrados (especialmente sais de Iftio) e apés sete semanas 0 acesso melaneélico encontra-se — assim parece = completamente dominado. Quando vem me ver na saida da clinica, o doente est de fato totalmente calmo, e em suas palavras nao se encontram quaisquer traos das idéias melancélicas anteriormente expressas. Fala-me O acta vernessivo 19 das condigées nas quais se desencadeara “sua doenga” e diz no compreender muito bem o que pode entao ter acontecido com ele; reconhece estar hoje muito melhor, mas também confessa nao se sentir capaz de retomar atualmente uma atividade profissional. Sente-se “inferior”. “Sinto-me vazio, como se tivesse sido es- yaziado”, ele repete, “e nao tenho qualquer gosto por nada’. Conta-me entao sobre sua impressao cotidiana de tédio, onde aquilo que ele vé néo Ihe diz nada*. “Minha vida é, atualmente, sempre a mesma. Nao sinto mais angustia, mas tampouco tenho mais pensamentos. S6 tenho vontade de dormir. Como muito, e engordei. Fumo um cigarro apés o outro. Bebo...”. E ele acrescenta’ “Sinto-me um monte de cinzas frias. Fico horas sentado na beira da cama e em minha poltrona e nao consigo pensar em nada. Espero, mas nao sei o que...”. Esse leitmotiv estara presente em suas falas durante varios meses durante o tratamento: faz dele a expressdo de uma boa vontade que poderia ser escutada como uma total desesperanca quanto as possibilidades terapéuticas do tratamento. E é apenas quando, aps um sonho, ele consegue comecar a falar de sua mulher, que percebe 0 que poderia desperté-lo. Nesse sonho (ele tinha o costume de dizer — como se desculpando - que nunca sonhava), vé sua mulher jogar-se da janela e, no momento em que ele se aproxima, angustiado, do corpo estendido no cho, embaixo, percebe que era apenas “um velho vestido usado” ~'vestido que Ihe servia normalmente para tirar © pé da lataria de seu carro. Acordando de manha com a lembranga do sonho, ele se surpreendeu sorrindo e, na sesso, evocara a idéia de que esse vestido-despojo encontrado embaixo bem poderia assemelhar-se a uma pele de cobra, “que se acreditava ser uma cobra!”. E entéio por que — se pensarmos no espirito “em vigilia”, 2 Ck mou artigo inttuade “La suivante” Bulletin de psycho XXIX, 922, 1975, 1976). mm Digitalizacio com CamScanner 20 Depressao num “corpo imével’, prisioneiro de uma espera de objet desconhecido — esse espirito néo poderia ser aquilo ea, “forma” pode té-lo abandonado, para, finalmente, nao ser mais que isso: um velho vestido gasto! Mas escutemos ainda: “Sentado durante horas na beira de minha cama eem minha poltrona, meu corpo é a imagem grotesca de meu espirito que 0 olka, Penso em minha mulher, nao consigo mais imagind-la e ndo sofro mais por ela ter ido embora. E, as vezes, me vem a idéia que estou gravido dela, ou ainda que foi ela quem me paralisou assim e me encheu de gordura. Desde que ela foi embora, estou envolvido numa massa estagnante. Observo a mim mesmo. Se consigo, num dia, mudar um detalhe de minha vida, me felicito. Ontem, lavei minhas meias e hoje preenchi um formulario da Previdéncia Social”. Esse esforco consideravel que representa, na depressao, 0 ato mais anddino, mais cotidiano, mais costumeiro e familiar é, no entanto, uma indicagao técnica muito preciosa no desenvolvimento do tra- tamento. Aqui, seria preciso ter 0 tempo de anotar 0 fio associative desses atos que marcam, a cada vez, a evolugao de uma liberagao — 0 que se encontra em projeto numa elaboragao consciente do agir no desejo de se libertar dessa auséncia que tornou-se corpo invasor - imével - do outro excessivamente presente por ter partido. Como se 0 ato ~ por mais banal que seja, como “lavar as meias’, “preencher um formulério”, deslocar um objeto sobre a mesa etc. ~ 86 se tornasse possivel no momento em que 0 homem reencontra a temporalidade de um projeto, desde que nele silencie o intermindvel soliléquio com o ausente. + © caso - cuja hist6ria patolégica relatei breve € parcialmente aqui - permite esclarecer varios aspectos relativos ao agir depressivo, O soir pepressivo 21 1.0 primeiro problema que ele levanta é, poderia- mos dizer, de ordem nosografica. Poderia ser assim for- mulado: como se articulam estrutural e dinamicamente 0 par mania-melancolia eo par mania-depressao? (Nao designo como um par a relagdo melancolia-depressio) Seguindo 0 fio da observacao, percebemos que a fase de hiperatividade comportava - segundo as préprias indi- cagdes do doente — um ponto interior de fixidez atenta (“as cinzas”), de terror subjetivo colocando 0 si na imo- bilidade de um pensamento tinico: esse pensamento tinico interpreta — ou denuncia ~ 0 agir maniaco como se ele ocupasse 0 lugar silencioso do ausente. Durante seu tra- tamento 0 paciente iré se lembrar de ter entao vivido a impressdo seno de um desdobramento interno, pelo me- nos de alguém, nele mesmo, silencioso, olhando-o agir fre- neticamente — alguém ulteriormente identificado num sonho como sendo “uma mulher”, depois concebido como um duplo ¢ finalmente assimilado ao analista. entao muito importante ressaltar aqui essa fungao de um si atento, imével e silencioso representando a auséncia. A dimensao melancélica do olhar, substituindo aquela da escuta no tratamento, néo diminui em nada o que consi- dero ser a figuracdo subjetiva imagindria do psicanalista na mania (cf. as representagdes grotescas do superego), seu estatuto t6pico onirico, e sua pseudo-atualizagao in- trapersecutéria na fase melancélica. Vimos que o desen- cadeamento “manifesto” do acesso melancélico deu-se nes~ se doente em favor de uma ameaga contra a integridade de seu sexo, e contra o resgate de sua identidade. Nao posso me deter nesse ponto, no entanto essencial. Con- vém apenas notar que a aparente inversao do “humor” no corresponde unicamente & determinagao emocional ou timica. Com o acesso melancélico assistimos — segun- do uma posi¢do estruturalmente isomérfica @ fase mania- ca’- a uma atuagao e a um retorno persecutorio do si re- Presentando 0 ausente. As auto-acusagées mortiferas, nas quais o doente sofre e se queixa, assemelham-se a um Digitalizacio com CamScanner 22 DepressAo luto interminavel - insone - ou ainda & tentativa encar: nigada de exumar a infancia que o homem carrega om si. Nessas condigdes, nao poderia nos escapar que 0 agir melancélico ~ frequentemente concebido como parado- xalmente inexistente — encontra-se envolvido no tempo de uma culpabilidade, que representa a atuagao perse- cutéria do ausente. Apés a cura do acesso melancélico, vemos se instalar um longo periodo depressivo tratado na andlise. A imobilidade corporal do paciente designa — como dissemos - a presenga invasora e envolvente da auséncia. Buscando expressar os pensamentos que lhe vem quando esta sentado beira de sua cama, nosso pa- ciente evoca, um dia, a presenca lancinante de uma cena que se impée a ele e onde ele imagina sua mulher numa atividade intensa de conquistas amorosas e sexuais, numa boate, ou ainda passeando em uma cidade desco- nhecida e seduzindo todos os homens por quem passa Essa atividade da auséncia na depressdo permite com- preender melhor o que se passa em termos de uma pas- sividade depressiva. Mas limitemo-nos a notar como en- contramos na depressao - num modo inverso, mas tema- ticamente identico - a atividade da forma maniaca. 2. Assim, o isomorfismo dos pares ~ ditos cfclicos ou intermitentes ou ainda circulares ~ de “contrarios” (ma- nia-melancolia e mania-depressdo) nao poderia ser con- cebido apenas segundo 0 modo descritivo semiologicu. Encontramo-nos diante de um duplo isomorfismo cuja compreensao, tanto fenomenoldgica e existencial quanto metapsicolégica (psicanalitica), envolve complementar- mente 0 desvelamento dos modos de ruptura da intersub- jetividade (cf. Binswanger, Kuhn) e, por isso mesmo, da subjetividade’, assim como a elucidagao da organizagao topica - dinamica e econdmica ~ das relagdes do id com 0 eu-ideal, do eu com 0 si, do id com o superego. Esse i 3. CF. “Perception et comprehénsion cliniques en psychologie” (Bulletin de Psychologie, 270, XXI, 1968, 15-19) e Le huit clos ou le couple en transparence (Paris, La Nef, 1971). O ain pepressive 23. morfismo estrutural aparentemente ganharia caso fosse concebido a partir da nocdo de uma psicose unitédria (ef. ‘a nogao de monomania ou de Wahn*), desde que esta nao velasse nem mascarasse os deslocamentos e trans- formacdes da estrutura no desenvolvimento da historia do sujeito. No caso que relatei, é inteiramente evidente - para nos atermos apenas a um aspecto singular e parcial - que a depressao intervém na cura sintomatica do acesso melancélico e tem uma funcao de suspensao: ela corresponde a uma nova organizacao econdmica de-— fensiva (a depresséo como defesa tanto contra a melan- colia quanto contra a mania). Mas esse ponto de vista - cujo sucesso hoje conhecemos na teoria psicanalitica - é insuficiente no principio de sua explicagao caso nao se funde numa compreensao do que chamamos de intersubjetividade, subjetividade, temporalizacao sub- jetiva do corpo no interior mesmo da histéria da vida (Lebengeschichte) e, intrinsecamente a esta, a histéria da doenga (Krankheitsgeschichte). 3, A depressdo pode ao mesmo tempo ser compara- da (ou mesmo assimilada) a um trabalho de luto e ser coneebida como uma organizagdo narcisica priméria pro- tetora de um luto e defensiva contra um luto. Esses as- pectos — aparentemente contraditérios ~ fazem a comple- xidade do fendmeno depressivo. No caso de nosso pa- ciente, podemos dizer, certamente, que sua depressio ¢ terapeuticamente posta em a¢ao como um verdadeiro tra- balho de luto em relacao a sua mulher, que o deixou, Mas seria isso um luto? Pois a morte nao envolve a mesma auséncia ~ a mesma temporalidade da auséncia - que uma ruptura amorosa ou um abandono sentimental. E na depressdo acontece muitas vezes, durante o tratamen- 10, que o paciente evoque precisamente um luto para sair de seu estado’. Vimos que, para nosso paciente, a inibi- Cf mou trabalho sobre Cf. “Le conte et la zone dé de aéance, op. cit \uirol, col. Rhadamante. Paris, Privat. \dormissement", em Corps du vide, espace Digitalizacio com CamScanner 24 Depressio a0 a agir encontrava-se dominada pela invasao de uma auséncia onde 0 ausente - vindo figurar a atividade psi. quica e representando-a completamente - era uma cena quase alucinatéria de intensa atividade sedutora. Iden- tificando-se a essa cena, a atividade psiquica extrema- mente mével faz do corpo uma figuragao imével ~ como atento a uma espera, inteiramente impressionavel e ao vivo em todos os seus tragos. A impossibilidade de fazer © menor gesto, de agir 0 menor ato, 0 peso com que 0 co- tidiano 6 aqui sentido, a pesada lentiddo de uma repre- sentacao corporal desenhando o limite de um recinto em sentinela ete., correspondem a uma significagao da vigi- lia, onde 0 tempo do ausente é precisamente aquele de um Luto impossivel: o corpo é menos aterrorizado pela se- dugao de uma cena imaginéria onde uma repeticao se- ria ativamente agida, do que é, por sua imobilidade si- lenciosa, a sentinela imediatamente impressiondvel de tudo o que se passa. De modo totalmente sutil e preciso, nosso paciente — varios meses mais tarde, quando safra de sua depressao — pode falar nos seguintes termos do gue ocorrera em sua imobilidade e incapacidade de agir: “Quando eu ficava sentado por horas em minha poltro- na ou-na beirada da cama, sentia-me como que permed- vel e transparente & menor impressao do exterior. Quan- do me vinha a idéia voluntéria de me mexer, de sair dali com minha vontade, logo percebia que o gesto que eu en- contrava era o gesto de minha mulher, e que eu realiza- va esse gesto porque ele era carregado pela lembranga presente do gesto de minha mulher. Se eu agisse, era numa imitagao imaginaria, e a facilidade de fazé-lo tor- nava-se ainda mais penosa para mim... Nao fazer nada, permanecer imével, comer, dormir, me protegia pelo me- nos da ilusdo de fazé-la voltar para nosso apartamento”. Acrescentemos que 0 sono ~ regulando tecnicamente de alguma maneira o encaminhamento do tratamento ~ mantém aqui com a depressao uma relagdo de natureza terapéutica. De forma que o sonho, assim como sua lem- O acir pepressivo 25, branga e depois seu relato na sesséo podem ser com- preendidos como as condicdes de elaboragao de um luto = luto de si investido da forma do ausente e da lenta descoberta da capacidade de ficar sozinho e da simboli- zagao da auséncia. Quando nosso paciente encontra um gesto e depois outro que parecem ser extraidos da imobi- lidade tensa e silenciosa de seu corpo, ele os recohece como pertencentes a ele mesmo, e criados por si préprio - “lavar suas meias”, deslocar um objeto, preencher um formulério... depois “consertar seu abajur”... ou enfim “plantar uma drvore em seu jardim” - através de um lon- go e penoso encaminhamento subterraneo. O agir refe- re-se aqui a afirmagao fundadora de um ato num dito. 0 ato - em relaco ao que chamamos de “passagem ao ato” ou ainda acting — é compreendido como uma ruptu- ra com a repeticdo e, portanto, como o poder temporal de um projeto. Essa transformacéo — que supde um verda- deiro trabalho elaborativo do corpo, onde 0 menor dos gestos € entendido como “elemento” dinamico da associa go ~ diz respeito, no final das contas, a restauragio de uma comunicagao intersubjetiva e correlativamente a re constituigao de uma subjetividade. 4, Desenvolvi a idéia segundo a qual a confrontagao metapsicolégica entre luto e melancolia me parecia ser menos pertinente que aquelas entre luto e sono e sonho e melancolia. A idéia de esclarecer a depressao pelo luto e vice-versa, poderia ser mais fecunda, precisamente em razio daquilo que o sono nos ajuda a compreender da depressao. Mas é conveniente - devo lembrar - nao assimilar levianamente a morte a auséncia eo luto a Perda (ligada a uma ruptura amorosa ou a um “aban- dono”). Numa conferéncia consagrada a Depressdo nervosa Roland Kuhn lé algumas frases retiradas de um romance de Jeremias Gotthelf intitulado Hansjogelli 0 Primo por heranga. Esse texto € interessante, espe- 8. Bm Revue de psychologie et des sciences de l’education, vol. IV, ni 2, 1969, Louvain, . Digitalizacio com CamScanner 26 Depressio cialmente pela simplicidade bastante prosaica na qual 0 luto ¢ dito: ‘Um sentimento estranho abate-se sobre os habitantes de uma casa onde repousa um cadaver; todos tém a impressdo que hé na casa alguém que dorme suavemente apés uma longa doenga, e cujo sono no pode ser perturbado. Fala-se mais baixo, anda-se mais silencio- samente e, apesar de tudo, um sentimento de vazio e de desolagao atrai novamente em diregao ao defunto; tem- a impressao de que seria preciso desperté-lo, ou entdo que ele vai ser encontrado acordado em sua cama. Além do mais, ninguém tem vontade de trabalhar, e em tudo que se faz tem-se que pensar nele, perguntar-lIhe: “Assim esté mesmo bom para vocé, ou vocé queria que fosse de outro jeito?” A impressao é de que, como a vida se apagou, nos- sas vidas também ficaram paralisadas, que nossas me- Ihores forgas se esquivaram. Nao se tem coragem ou desejo de nada, mal se comega algo e se desiste novamente, olha- se a0 longe, vai-se até o cadaver. Enfim, Babeli volta a si, toma nas maos as rédeas da casa, mas com seus membros pesados, de maneira que muitas vezes sentia como se tudo devesse naufragar na ter- ra, muito antes que os sinos chamem para o enterro do de- funto, e lagrimas corriam irresistivelmente de seus olhos. .. Babeli tinha obedecido a vontade do homem de lei, tinha preparado ume refeigao, mas ninguém desfrutava disso. A comida permanecia na garganta. Todos tinham a impressao de ter que se despedir para sempre da casu paterna, do pais. Uma despedida assim tira a fome. Sao outras as forcas que preenchem a alma e comandam até 0s corpos para que contraiam os misculos e abram as fontes da dor. Ninguém mais falava, ninguém queria expor sua inguietagao ao olhar. Sem duvida, é uma espécie de depressdéo que designa esse “sentimento estranho” que “se abate sobre 08 habitantes de uma casa onde repousa um cadaver”. Mas nao seria necessério perguntar se aqui, precisamente, @ depresséo ndo conservaria o cadaver, ao mesmo tempo protegendo da morte que ele realiza? Quanto ao luto O acta pernessivo 27 propriamente dito, ele é, de fato, o acontecimento do estranho no coracao do familiar, do que 6 heimlich, e diz respeito & inquietante intimidade do segredo (cf. Das unheimliche, de Freud). Como se o familiar ~ feito de um entrelagamento de gestos e de falas que pertencem a um pensar e habitar, ligando numa relacao temporal seres, coisas ¢ lugares ~ se distendesse de repente ¢ se que- brasse, para liberar o que escondia em si: a fascinagéo de si na morte do outro. As falas e os gestos nao pegam mais: eles se arrastam, definham, alongam-se numa distancia que trazem em si préprios. Eles caem sobre sua propria lassiddo, desistem de serem captados pelo pensamento do defunto. O escritor conseguiu, nessa pagina, restituir as expressoes significativas de uma depressao no luto. O que pesa sobre a casa é 0 vazio que ai se abre, mas 0 caddver ainda mora Id. A vida se torna enta e surda, e todos sentem-se impelidos a voltar a0 cadaver. A imobilidade suscitada pelo morto é correlativa a uma espera cinestésica do cadaver (pensar té-lo visto mexer-se). Espera-se vé-lo “acordado em sua cama”. O siléncio se move, como dissemos. E, nesse momento, a morte, onipotente, torna ftiteis os gestos, faz com que lembrangas e pensamentos afluam, concede as falas um estranho eco de suas palavras. Se cada um retira todo apetite das coisas que ¢ rodeiam e encontra um tempo que aprofunda a historia, o olhar recebe uma nova violéncia. Vergonha, luto, pudor sio momentos histéricos constitutivos de uma temporalidade subjetiva do corpo, onde a imobilidade silenciosa e retirada retoma 0 poder de re-engendrar o projeto de um agir. E na experiéncia de um luto, o olhar forma um espago especular pelo qual se compreende o reforgo dos limites protetores do si. Nao vou prosseguir nessa descrigao da experiéncia do luto. Penso que sua fenomenologia permitiria melhor compreender 0 que diferencia o luto depressivo, do luto ‘melancélico ou ainda do luto manfaco, Ela também con- vida a encontrar as relagdes mantidas entre 0 luto, 0 jogo, Digitalizacio com CamScanner 28 Depressio a festa, a alegria. Digamos que essas aproximagoes fenomenolégicas ajudam a melhor precisar e especificar o fenémeno psicopatolégico da depressdo - especialmente do ponto de vista da criagao onde o agir toma sentido.” * 0 problema que abordamos e formulamos aqui numa primeira aproximagao corresponde, historicamente, a uma dupla conjuntura. Os trabalhos fenomenologicos de lingua alema, as- sim como posteriormente os de lingua inglesa e france- sa, hé muito tempo ja se interessaram pela depressdo me- lancélica, e nao poderiamos deixar de reconhecer af uma surpreendente tradicdo de pensamento, onde as aborda- gens descritivas e genéticas da depressio melancélica parecem encontrar uma adequagao com o proprio proce- dimento fenomenolégico’. Nao podemos entao falar de 7. Cf. “Lobjew’. Objet, jeu et enfance. Liespace psychothérapeutique”, em L’absence, op. cit., p. 97. 8. Num trabalho dedicado a La phénoménologie de la dépression, Arthur Tatossian retragou muito bem e com grande precisao 0 istérico que conduz de uma “fenomenologia estética da von Gebsattel) & “patogénese da Segundo Tellenbach” e finalmente & “genese da subjetividade melancélica eagundo Binswanger” (Peychiatries, n* 21, ‘maio-junho, 1975). Especialmente, ele escreve: “A génese pro- priamente fenomenolégica da melancolia s6 ¢ francamente abordada fem 1960, com o livro de Binswanger Melancholia und Manie. E esse longo intervalo (os trabalhos de Minkowski, Straus e von Gebsattel datam dos anos 1923 e 1928) nao é sem significagao. A fenomenol dos anos 1920 certamente nao tinha os meios conceituais adequados ' abordagem histérica do ser humano. Ela pensou encontré-los em ‘uma antropslogia desenvolvida, bem ou mal, a partir de Ser e ¢empo de Martin Heidegger (1927) e tendendo para a anélise existencial (Daseinsanalyse) de Binswanger, ligou-se & mais “histérica” dat psicoses, a esquizofrenia |...) E a propésito da melancolia que, em 1960, Binswanger volta a uma abordagem mais propriamente fenomenolégica, melhor compreendida entretempo em seu alcance ‘genético gracas & publicagéo dos inéditos de Husser! e também gra a reinterpretacio de seu pensamento por Szilasi..” O acin vepressive 29 ‘uma “aplicagao” qualquer da teoria fenomenologica a psi- copatologia: o desvelamento das estruturas de existéncia e, através delas, a descrigéo dos modes constitutivos da subjetividade e da intersubjetividade efetuam-se num movimento sincrdnico ao que se inicion com a fenomeno- logia da depressdo. Eu poderia, talvez, ousar formular a seguinte hipétese: a depressdo solicita a fenomenologia em seus atos de compreensao do fundamento temporal da subjetividade. Se compararmos esse desenvolvimento histérico das pesquisas fenomenolégicas sobre a melancolia e a depressio com o da teoria psicanalitica no mesmo campo tematico, ficamos de inicio um pouco surpresos pela raridade das trocas entre fenomenologia e psicandlise. Anzieu estabeleceu claramente em quais condigdes Freud realizou sua auto-andlise: “..Foi para lutar contra suas tendéncias depressivas que Freud realizou sua auto- anélise ¢ que a elaboracao da teoria psicanalitica, e mais particularmente de seus aspectos dinamicos e econémicos, correspondeu ao estabelecimento das defesas obsessivas contra a angustia depressiva”. O vinculo entre a depressao e 0 processo analitico, segundo Anzieu, é com certeza dominado pela problematica do luto ¢ da perda do objeto. Nao vou aqui retracar a interessante historia das claboragdes tedricas da depressdo™. $6 quero ressaltar que 0 retorno do tema da depressao na atualidade psicanalitica coloca, em condicdes completamente novas, © sentido de uma contribuigdo fenomenolégica & técnica © & teoria psicanalitica das depressées. Desse ponto de vista, é notavel_que, em seu préprio movimento de interrogagées sobre os casos-limite e sobre os limites do 9. D. Antieu. L’auto-analyse de Freud et le découverte de la psy- chanalyse. Paris, P.ULF., 1975 10. Ver especialmente André Haynal, Le sens du désespoir. La pro- blématique de la dépression dans la théorie psychanalytique (Rapport au XXXVI Congrés des psychanalystes de langues romanes, Genave, junho, 1976). Digitalizacio com CamScanner 30 DepressAo analis4vel, a psicandlise desperte seu interesse por conceitos ha muito tempo colocados em marcha pelo pensamento fenomenolégico (como, por exemplo, 0 Si, 0 vazio, 0 espago subjetivo, a temporalidade depressiva etc.) e que podem assim, na fenomenologia, encontrar seu verdadeiro fundamento. A especificagao técnica psica- nalitiea de conceitos descobertos numa pratica nao poderia desconhecer a contribuigdo extremamente rica desse pensamento fenomenolégico. Irei concluir esta exposigao tentando precisar 0 estatuto do ato em psicanilise. Como sabemos, comumente o psicanalista tem a reputagaio de submeter o corpo fala e assim privilegiar a fala sobre o agir. A suspensao de qualquer mobilidade no enquadre protocolar do tratamento refere-se a regra de verbalizagao dos contetidos que emergem & consciéncia nas livres associagoes. E, 6 verdade, uma certa tradigao da literatura psicanalitica considera suspeitas as passagens ao agir, quaisquer que sejam suas formas de expressao: “passagens ao ato”, é claro; mas também ‘actings out ou in, até mesmo colocagdes em ato, ¢ todas decisdes de agéo que assumem como Alibi uma “escolha consciente”. Daf sustenta-se a idéia de que o tratamento analitico é “abstrato” e “artificial” e que, reprimindo a expresso ativa pelo corpo, colocaria o paciente numa espécie de isolacdo sensorial e de dependéncia absoluta em relagdo a uma onipoténcia da fala. Dito de outra maneira, a psicgndlise seria uma figura da imobilidade deitada ou sentada, e nao dessa upright posture pela qual Erwin Straus define a condigao existencial humana. Se existir significa literalmente um movimento fora de sitigh-sistere), a subjetividade do si é afirmada nao como um Setraimento monédico, mas como um movimento vindo do fundo e o jorro de um salto. Pelo menos ¢ essa O acts pePressivo 31 a articulagdo ressaltada por Francis Ponge no termo de sub-jetividade, A dimensao existencial da subjetividade é ainda marcada pela antecipacao de si, da presenga (praesse) temporalizada pelo projeto (Ent-wurf) que implica 0 ato de langar e de destacar. E claro, nessas condigdes, que o existir sustenta-se em uma tempora- lidade subjetiva do corpo, a partir da qual se concebe a propria fala - assim como a mao, articulando porque articulada — em contato direto e vivo com a realidade das coisas que Ihe é imanente. Em seu texto sobre “O recalque” (Metapsicologia), Freud lembra, de modo liminar, que “no caso da pulsao, fugit de nada adianta, pois o eu nao pode escapar dele mesmo”. Essa observacao intervém a partir de seu desenvolvimento‘em “Pulsées e destino das pulsdes”, onde as tentativas’pulsionais do eu pela ago em diregao ao mundo exterior s4o destinadas a retornar num modo alucinatério, tornando ento 0 eu prisioneiro do logro de assim se liberar. As fontes pulsionais do agir fazem, portanto, com que este seja uma fuga, que sé consegue aprisionar 0 eu e manté-lo tao mais acorrentado quanto mais ele tiver tentado escapar de si mesmo buscando liberar-se da pulsao. Essa lei rigorosa da pulsao iria receber, é verdade, miltiplas confirmagées da clinica psicanalitica. Pude comprovar esse fato levando em conta o que se passa durante certos tratamentos. Serd necessario lembrar que os perigos de fuga (especialmente interrupgao pelo Paciente de sua andlise) sempre ocorrem em momentos eruciais onde o pulsional faz sentir ao sujeito sua solicitagao exigente e choca-se contra uma dificuldade ou impedimento da fala? A nogao de acting - conotativa de uma passagem ou um deslizamento agido da pulsdo no real - assume aqui toda sua evidéncia dinamica; é claro que, nesse caso, 0 paciente age um contetido recalcado segundo um roteiro inconsciente que ele nao foi capaz de tornar consciente pela fala em sessio. Longe de serem Digitalizacio com CamScanner 32 Depressao liberatérios, esses agires histerizam, por assim dizer, o retorno do recaleado, e aumentam seu impacto aluci- natorio. Da mesma forma, é claramente estabelecido que 0 acting - concebido como “colocagao em ato” de uma mogao pulsional — deixa-se compreender e interpretar com referéncia transferéncia (por exemplo: uma forma assumida por seu desconhecimento) e, portanto, & “area de ilusao” (Winnicott, Masud Khan) cuja economia e dinamica sao reguladas pela lei (interdi¢ao ou tabu) que da a fala um lugar para o desejo e sua transgressio. ‘Nao 6 de forma alguma desejavel” - escreve Freud ~ “que 0 paciente, fora da transferéncia, coloque em ato (agiert) em vez de se lembrar; 0 ideal, para nossa meta, seria que ele se comportasse to normalmente quanto possivel fora do tratamento e s6 manifestasse suas reagdes anormais na transferéncia” (Compéndio de psicandlise). No mesmo sentido vao as classicas recomendagées quanto as indicacdes do tratamento analitico: este sé pode ser desaconselhado no caso dos pacientes sobre os quais se possa pressentir que o tratamento faré com que ajam suas mogdes pulsionais aumentando, assim, sua impulsividade violenta e sua impaciéncia. A compreensao psicanalitica do acting enriqueceu- se clinicamente sobretudo com a experiéncia adquirida na pratica junto a psicéticos e casos-limite, e também gracas a uma evolugao da técnica, tomando em consideragdo o carter, de alguma maneira inevitdvel, dos atos: Constatamos com freqiiéncia que o uso do acting pelo paciente ¢ de composico complexa no funcionamento de um tratamento e que 0 analista pode dele se servir como escansdes maiores terapeuticamente favordveis, desde, no entanto, que a fala af encontre seu direito. Assim, 0 acting merece ser escutado no fio associativo no interior “do processo de elaboragdo: ele tem por vezes o poder de restabelecer uma fala momentaneamente bloqueada ov ainda de colocar o paciente interiormente em contato com suas proprias resisténcias, fazendo-o dessa maneira O acin vernessivo 33 pressentir as formagdes fantasmaticas sob as quais se manifesta o retorno do recalcado: Bstou pensando aqui numa paciente com actings — principalmente sexuais - durante uma fase do trata- mento (apés um longo periodo em que, para ela, aparentemente “nada acontecia”) que colocavam em ato mogées homossexuais cujos roteiros - uma vez ou outra diferentes ~ expressavam um processo de sua “busca”, com 0 cuidado preciso de escutar, em sessdo, 0 que neles estaria em jogo. A denominagao das situagdes e dos personagens que 0 acting tomava como contexto res- tabelecia, na fala de sessdo, as cadeias associativas anteriormente ocultas e modificava, aprés coup, a economia pulsional do ato. Aliés, devemos perguntar se nao pertence a dinamica dos actings o fato de agir no sentido da reorganizacao econdmica dos investimentos do eu. Esse caso - que evoco rapidamente ~ colocava também uma questao determinante sobre o funcionamento concéntrico dos “deslocamentos” transferenciais: como se, em relagéo a uma centricidade (mais que centralidade) da transferéncia, os circulos formados pelos actings funcionassem como telas projetivas desempenhando 0 papel extremamente composto de para-excitagoes. Colocando-se fora-da-sessao, mas no entanto rela- cionando-se a esta e deslocando-se, a area de ilusao dos actings seguia as reorganizagdes que se davam nos sonhos, cuja rememoracao era possivel consecutivamente a0 acting. Escolhi voluntariamente esse caso “exemplar” para ilustrar_minha _argumentagdo sobre _uma_fungao Psicoterapéutica do acting durante a andlise. Qualquer generalizagdo seria imediatamente abusiva e certamente nao deixaria de provocar graves erros de apreciagao Scus limites sao, portanto, fixados pela adverténcia de uma consideragao da técnica — tao exata quanto possivel Digitalizacio com CamScanner ae Depressao -da fungao dinamica do acting no tratamento, evitando- se o princfpio normativo da alternativa entre agir e falar. w* Essas consideragées permitem precisar, agora, sob quais condigdes se coloca, em psicanalise, o problema do agir. 1. Se dizemos que 0 acting intervém como um res. surgimento do recalcado no modo de uma pulsao em ato, nao podemos nos satisfazer com a equacdo simplificada “imaginario” - “real” - “simbélico” para sustentar a no- a0 de deslizamento do fantasma no real por falta de sig- nificante simbélico. O acting é sem divida um apelo ao real para que ele seja restituido numa espécie de verda- de originaria (necessariamente com ganho de prazer para © eu). Também nao temos qualquer divida sobre o fato de que esse apelo encobre a escuta do desejo: 0 acting faz parte de um nao-dito ou inescutado e a fala é a tini- ca a poder - em e pela andlise — dar ao desejo incons- ciente o lugar e tempo de sua escuta no dito. 2. O agido do acting possui com certeza uma retidao pulsional que diz respeito, em alguma parte do sujeito, a uma verdade de sua “escolha”. Dirfamos entao que 0 acting prefigura - sob uma forma nao elaborada e subtraida a simbolizacao ~ e antecipa 0 objeto de um ato livre supondo 0 tempo de sua efetuagao. 3. O que chamamos de ato (néo mais uma coloca¢do em ato ou um acting) concerne um gesto que pode fundar, por ter 0 poder de romper e separar. A dynamis desse ato diz respeito necessariamente a um tempo pulsional, cujas dimensées estao presentes no verbo conjugado, e cujas significagoes existenciais sdo as das tensées timicas da presenca (Tempus = tender). O préprio ato € ruptura temporal (kairos) de decisao por en- gajamento do projeto: 0 projeto é tomada do tempo n0 presente da presenga. E assim, portanto, que se pode distinguir 0 ato do agir do ato do acting: o acting se job O acir pepressivo 35 numa repetigéo ~ joga uma repeticdo — em instancia de desvelamento de seu sentido e assim de liberagao de seu projeto. 4. 0 ato do agir tem uma relacao co-essencial com a determinagao do dizer e também do escutado: 0 ato esté engajado no dito que se significa a partir de uma perda, de uma separagdo, de um desligamento. Aquilo de que 0 homem tem horror é perder ao falar, quando escuta aquilo que diz. Esse dito do ato é fundador, pela ruptura a partir da qual se institui: ele é 0 acontecimento da negatividade — seja da linguagem, seja da historicidade. A anélise nos pde @ escuta de uma fala que — para aquém de seu dito mas, por isso mesmo, marcada de nao-dito — pode fazer de seu contar seu proprio acting: ela é entao uma fala onde as representagées do real, as inten- cionalidades de realidade estado presentes como uma realizagao de natureza alucinatéria. Essa palavra falsamente psicoterapéutica é, nela mesma, solicitagao a actings, especialmente se a escuta do analista deixa contratransferencialmente passar uma espécie de crédito de realidade (aqui encontramos toda a ambigiidade do compreender em anélise por parte do analista, comparado a estrita neutralidade do escutar). O dito deve ser essencialmente considerado como um ato: 0 ato do dito acolhe na fala a pré-genitalidade do fazer, que permanece a fonte viva e criativa do analisando. Sobre o dizer e subre 0 agir podemos pensar que eles designam ~ como a genitalidade do amor e nado sem relagdes com ela — um ideal por assim dizer assintético de todo comportamento. Talvez possamos perguntar se, nessas condigées, o genital seria um conceito sexual. E com essa questao que vou encerrar, levantando a hipétese dessa genitalidade do ato do dito (do ato como dito e do dito como ato) cujo poder de fundamento pode ser concebido a partir da negatividade que a castracao faz escutar. Digitalizacio com CamScanner

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