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4. O CONCEITO DE DIREITO NA VISAO DE HANS KELSEN Segundo Hans Kelsen, 0 Direito é uma ordem de conduta humana, ou seja, é um conjunto de normas. Argumenta o Mestre de Viena que 0 Direito nao é, como se costuma pensar, uma norma. E mais do que isso: 0 Direito é um conjunto de normas que possui uma unidade, que forma um sistema. Em suas préprias. palavras, assim Kelsen formula 0 seu conceito inicial de Direito: *(...) 0 Direito (...) é uma ordem normativa da conduta humana, ou seja, um sistema de normas que regulam 0 comportamento humano.” ® Para Kelsen, O Direito é constituide essencialmente de normas juridicas estas formam parte de um sistema, de uma ordem normativa. Prosseguindo o seu raciocinio, Kelsen nos dé uma definigao irretocavel: “Uma ordem é um sistema de normas cuja unidade € constituida pelo fato de todas elas terem o mesmo fundamento de validade” °. Nesse sentido, pode-se afirmar inicialmente que, na viséo kelseniana, 0 Direito — a Ordem Jui ica ~ 6 um sistema de normas juridicas positivas ou, 0 que é a mesma coisa, um ordenamento juridico positive detentor de um Unico fundamento de validade. Sobre a questo de qual seria o fundamento de validade dessa ordem normativa de conduta, Kelsen assevera que (...) 0 fundamento de validade de uma ordem normativa 6 (...) uma norme fundamental da qual se retira a validade de todas as normas pertencentes a essa ordem. Uma norma singular é uma norma juridica enquanto pertence a uma determinada ordem juridica, e pertence a uma determinade ordem Juridica quando @ sua validade se funda na norma fundamental dessa ‘order. A teoria kelseniana € conhecida como sendo a mais refinada teoria positivista, ou seja, para ela o conhecimento do Direito, isto é, a Ciéncia do Direito, tem por objeto exclusivo as normas juridicas. Nesse sentido, 6 uma teoria normativista. Hans Kelsen, desde os seus primeiros escritos, tenta sempre situar a ciéncia do Direito no campo do Direito Positive, em contraposigéo as doutrines § KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. p. 5; * Idem. p. 33, Como veremos mais adiante, para Kelsen somente existe um tnico Direito: o Dreito Positiva: "KELSEN, Hans, Teoria Pura do Direito. p. 33; jusnaturalistas, que admitem a existéncia de um outro Direito além do Direito Positivo: 0 Direito Natural. Nesse sentido, a teoria pura do direito 6 uma toria monista do direito: somente existe um direito: 0 direito positive. E as palavras de Kelsen nao deixam margem a diividas A Jurisprudéncia como ciéncia do Direito tem normas positivas por objeto. Apenas © Direito Positivo pode ser objeto de uma ciéncia do Direito, Eo principio do positivisma juridico, em oposi¢ao @ doutrina do Direito natural, que pretende apresentar normas juridicas nao criadas por atos de seres humanos, mas deduzidas a partir da natureza, Portanto, o Mestre da Escola Juridica de Viena pretende construir uma teoria do Direito positivo ®, porém, esta nao é uma teoria de algum Direito Nacional, @ nem sequer internacional. A teoria kelseniana 6, ou pretende ser, uma genuina teoria geral do Direito. Ent&o, 0 que se conhece como Teoria Pura do Direito pretende ser uma teoria geral do Direito, ou seja, possui uma finalidade explicativa universal. Nesse sentido, a teoria pura do Direito no tem qualquer conteido empirico, isto é, diretamente extraido da experiéneia juridica concreta ou, em outras ica ou da palavras, como teoria, no tem por objeto a analise da dogmatica juri jurisprudéncia de algum pais em particular. Ela visa especificamente 0 estudo da estrutura légica ¢ formal das categorias juridicas, isto ¢, dos conceitos juri abstratos e universais. Alcangar esse objetivo — construir uma teoria geral do direito — nao é algo que Kelsen considere uma tarefa facil, pois a teoria juridica necessita, antes, passar por um processo de purificagdio ou depuragao metodolégica. Em suma, Kelsen quer delimitar adequadamente 0 objeto do direito, pois, para ele, essa é @ Unica possibilidade de transformar o saber juridico numa verdadeira ciéncia. 0 objeto da ciéncia ¢ a realidade e os enunciados cientificos séio enunciados sobre a realidade, entdo, primeiramente, é necessério delimitar, através do uso de um método especifico e adequado ao objeto, que tipo de realidade ¢ essa constituida pelo Direito. ® KELSEN, Hans. O que 6 justiga?: A Justica, 0 Dirsito @ a Politica no espelho de cléncia. p. 369; 8 Confer. KELSEN, Hans. Critica del Derecho Netural. Madrid: Taurus, 1966. p. 162: KELSEN, Hans. O que éjusti¢a?: A Justia, o Direito e a Politica no espeiho de ciéncia. p. 367: M1 Na opinio de Kelsen, a ciéncia do Direito deve aproximar tanto quanto possivel os seus resultados do ideal de toda a ciéncia: objetividade exatidao. O que ele quer evitar a todo custo € 0 “sincretismio metodolégico que obscurece a esséncia da ciéncia juridica e dilui os limites que Ihe so impostos pela natureza do seu objeto”.'® plenamente consciente desse desafio, pois observa que a ciéncia juridica tradicional, Entéo, Kelsen quer construir uma teoria “pura’ do Direito e esta em seu percurso histérico, demonstra abundantemente quao longe ela esté de satisfazer essa exigéncia da "pureza”. E com esse intuito que Kelsen estabelece 0 principio metodoldgico fundamental de uma verdadeira ciéncia do Direito: a “pureza’. E logo no inicio de sua Teoria Pura do Direito, o Mestre vienense procura alertar os leitores de sua obra acerca do significado deste principio. Assim ele justifica: Quando a si propria se designa como ‘pura’ teoria do Direlto, isto significa ‘que ela se propde garantir um conhecimento apenas dirigido 20 Direito excluir deste conhecimento tudo quanto nao pertenca ao seu objeto, tudo quanto nao se possa, rigorosamente, determinar como Direito. Quer isto dizer que ela pretende libertar a ciéncia juridica de todos os elementos que Ine séo estranhos. Esse é 0 seu principio metodolégico fundamental. * Ainda com relago ao principio metodolégico fundamental por ele adotado, Kelsen esclarece, em outra obra sua, em que consiste o postulado metodolégico da “pureza”: ‘A ‘pureza’ de uma teoria do Direito que se propde uma andlise estrutural de ordens juridicas consiste em nada mais que eliminar de sua esfera problemas que exjam um metodo diferente do que ¢ adequado ao seu problema especifico. O postulado da ‘pureza’ ¢ a exigéncia indispensavel de evitar 0 sincretismo de métodos, um postulado que, a jurisprudéncia tradicional n3o respeita ou no respelta suficientemente, "* Kelsen insiste em que € necessério realizar a depuragao metédica da ciéncia juridica de todos os elementos estranhos a seu objeto porque esse é 0 Unico caminho que ele visiumbra para afirmar a autonomia do Direito enquanto objeto do conhecimento cientifico. Desde a sua primeira obra relevante como jurista — os KELSEN, Hans, Teoria Pura do Direito. p. XI: ® Idem. p. 2 Idem. p. 1 KELSEN, Hans. 0 que 6 ustica?: A Justica, o Dreito e @ Politica no espelho da ciéncia. p. 291; 12 Hauptprobleme der Staatsrechtslehre °° definidas e tradicionais na teoria juridica. A primeira @ a perspectiva “sociolégica’, Kelsen combate duas posigses bem que compreende o Direito como um fragmento da realidade natural, isto é, da “natureza’, e que utiliza 0 método cientifico-causal, o método proprio das ciéncias que estudam a realidade fisico-natural. Outra posigao tedrica combatida por Kelsen de forma incansavel ao longo de muitas décadas é a chamada doutrina do Direito Natural, @ qual se esforga por transladar a teoria do Direito do campo das normas juridicas positivas para o campo dos postulados ético-politicos. Com relagéo a este ultimo aspecto, Kelsen considera imprescindivel separar a ciéncia juridica dos chamados postulados ético-politico-ideolégicos, isto é das chamadas tendéncias politico-partidérias, como um passo fundamental para aleangar a denominada “pureza’. Nessa perspectiva kelseniana, separar a ciéncia do Direito da Politica implica, ineludivelmente, distinguir a ciéncia da ideologia, Com relagao @ distingdo entre ciéncia e ideologia, assim Kelsen se pronunciou {...) a ciéncia tem, como conhecimento, a intengao imanente de desvendar 0 30U objeto. A ‘ideologia’, porém, encobre a realidade enquanto, com a intencdo de a conservar, de a defender, 2 obscurece ou, com a intengao de a alacar, de a destruir e de a substituir por uma outra, 2 desfigura. Tal ideologia tem a sue raiz ra vontade, ndo no conhecimento, nasce de certos, interesses, methor. nasce de outros interesses que nao 0 interesse pela verdade. Para Kelsen, a distingao entre Natureza e Direito e, conseguintemente, a distingo entre ciéncia natural e ciéncia do Direito ¢ fundamental. A autonomia epistemoldgica da ciéncia do Direito tem o seu fundamento na distingao existente entre 0 mundo do ser — a natureza — e 0 mundo do dever ser ~ as normas. AS ciéncias da natureza so ciéncias descritivas causais, sao ciéncias que estudam o ‘ser’. A ciéncia do direito é uma ciéncia normativa, ou seja, é uma ciéncia que estuda, quer dizer, que tem por objeto as normas juridicas. E as normas juridicas no integram o mundo do ser, mas o mundo dodever ser. "© KELSEN, Hans. Problemas Capitales de la Teoria Juridica del Estado: Desarrollados con base en la doctrina de la proposicién juridica, México: Editorial Porria, 1987. LV + 621 p.; ® KELSEN, Hans. Teoria Pura do Delo. p. 118 e119, 1B Gianluigi Palombella, comentando a teoria kelseniana em sua obra “Filosofia do Direito", fez oportunos comentarios acerca desse fundamento epistemolégico da ciéncia do Direito, isto ¢, da necessidade de situar 0 Direito no mundo do dever ser: ‘A autonomie epistemolégica de ciéncia do Direito depende da iredutibilidade do seu objeto (0 Direito} aos fatos sociais que ele disciplina: a ciéncia sé pode ser ‘pura’ e pertinente ao fenémeno ideal e normative que © Direito &; a separagao entre fatos e normas decorre de uma duplica¢ao ontolégica do mundo, ou seja, de pertencerem eles, respectivamente, a0 mundo do ser (Sein) @ ao mundo do dever-ser (Sollen). ”* Esse dualismo, entre o mundo do ser e 0 do dever ser 72, 6 percebido por Kelsen como um dado it ediato da nossa consciéncia. Nas palavras de Kelsen A distingdo entre o sere deverser nao pode ser mais aprofundada, & um ddado imediato da nossa consciéncia, Ninguém pede negar que o enunciado’ tal coisa — ou seja, 0 enunciado através do qual descrevemos um ser fético ~ se distingue essencialmente do enunciado: algo deve ser — com 0 qual descrevemos uma norma ~ @ que da circunstancia de algo ser nao se segue que algo deva ser, assim como da circunstancia de algo deve ser se no segue que algo seja Entdo, a norma é a expressdo de un dever ser. Isso significa que a conduta hipotética positivada na norma nao é uma conduta real e concreta, mas uma realidade abstrata, ideal. A propria norma, em si mesma considerada, é um objeto do mundo da cultura, um portador de sentido, uma forma da linguagem e meio de expresso da comunicagéo humana, portanto, um objeto cultural. ® PALOMBELLA, Gianluigi Filosofia do Direito.p. 161 Os pressuposios floséficos da teorla kelseniana So de matiz kantiana, ou mais rigorosamente, eokantiana. Vern originalmente de Kant essa oposigao entre ser e dever ser, um dos lundamentos, epistemolégicos da divisdo das ciénclas em caussis © normativas (ou, conforme se prefirs, ciéncias da atureza e ciéncias da cultura). Wiliam Ebenstein, um comentador da Teoria Pura’ do Diretto, escreveu em obra de sua lavra signifcalivos comentarios que aqui transcrevemos: “(..) Kelsen lleva el dualismo kantiano a una fase superior. Hace del ser y el deber ser un antagonismo formal-gico, insoluble, que tiene como consecuencia uma inevitable division de las cioncias. Segin ol objeto de la investigacién esté, 0 el ser de hechos reales ~ osto es, realidad ~, 0 un deber ser ético-uridico estético, etc. - esto es, idealidad ~, y asi nuesto conocimiento se divide em dos grupos fundamentaimente distintos, el mundo en dos reinos que no une ningun sendero. En consecuencia, las Ciencias se dividen en ciencias causales y ciencias normativas." Cf. EBENSTEIN, William. La Teoria Pura de! Derecho, México: Fonde de Cultura Econémica, 1947. p. 18: ® KELSEN, Hans, Teoria Pura do Direito. 0.6; 14 Tendo uma natureza abstrata e ideal, a conduta estatuida na norma como a que deve ser, isto é, a conduta hipotética que foi posta como contetido da norma juridica, pode nao ser de fato. Embora essa coincidéncia entre o conteudo do sere © contetido do dever ser possa efetivamente se verificar no mundo fenoménico, no sentido de @ conduta concretizada factualmente corresponder aquela conduta descrita como sendo a hipétese que serve de contetido normativo, entretanto, isso no é necessario que assim seja Na verdade, 0 contetido fatico da norma é sempre uma hipétese — e ele nunca deixa de ter esse carater hipotético!_** -, ou seja, essa hipdtese factual que serve de contetide normative nao se confunde com a conduta factual, isto é, com a conduta que se realiza concretamente no mundo dos fatos, quer dizer, na vida e na realidade social. A norma juridica, pertencendo ao mundo do dever ser, eis que 0 seu contetido pode até, inclusive, jamais se concretizar de fato, 0 que, sem embargo, nao desqualifica a hipétese factual em sua fungao de servir de conteuido de uma norma juridica. Em suma, a existéncia da conduta-hipdtese ou hipétese factual descrita como o antecedente para o qual a norma estipula uma conseqiéncia © que serve de contetido normative nao exige, em absoluto, que tal conduta hipotética se concretize no mundo fenoménico, ou seja, nao exige que venha a ocorrer de fato algum evento da ordem do ser. A ciéncia do Direito nao estuda fendmenos da ordem do ser, isso pela tazao de que o Direito estipula prescrigées direcionadas para o futuro, com a finalidade de dar um sentido & conduta dos homens em sociedade, objetivando que estes se comportem desta ou daquela maneira. Essa é a finalidade do Direito: ordenar a conduta humana, dar um determinado sentido a essa conduta Em suma, a ciéncia do Direito é sempre uma ciéncia que tem por objeto as normas juridicas, as quais tém em seu conteido hipdteses de conduta que sdo consideradas juridicamente relevantes, precisamente, por fazerem parte da estrutura % “1 deber ser del Derecho positive no puede ser nunca sino hipotétice.” KELSEN, Hans. Le idea de! derecho natural y otros ensayos. Buenos Aires: Losada, 1946. p. 27; de uma determinada norma juridica, como condigao hipotética para algo que deve ocorrer como conseqiiéncia. Descrever o sentido objetivo, especificamente juridico, da conduta humana, 0 qual é veiculado através do dever ser contido nas normas juridicas: eis a fungao da ciéncia juridica. E por essa razdo que a Ciéncia do Direito deve voltar-se para as normas juridicas: 0 seu verdadeiro objeto. Fazemos aqui uma pequena ressalva: nao somente condutas humanas podem fazer parte do contetido de uma norma mas, também, fatos que néo podem ser considerados, de maneira alguma, como sendo conduta humana podem ter essa finalidade. © que importa observar, neste caso, ¢ que esses fatos devem estar relacionados de alguma maneira com uma conduta humana. Sobre este ponto, Kelsen assim se manifestou: (...)0s fates que no so fatos da conduta humana tendem a fazer parte do conteido de uma regra juridica. No entanto, eles podem sé-lo apenas na medida em que estejam relacionados com a conduta humana, como sua condigao ou como seu efeito Mais adiante vamos tecer novos comentérios acerca do princi metodolégico fundamental da Teoria Pura do Direito, assim como de outras distingdes amplamente utilizadas por Kelsen, porém, antes, convém fazermos um esclarecimento acerca de certos outros conceitos, sem os quais se perde a compreensao de boa parte da doutrina kelseniana. Esses conceitos se revelaréo muito significativos, conforme poderemos observar nas linhas que seguem Nés haviamos dito anteriormente que o Direito era uma ordem da conduta humana. Entretanto, para Kelsen essa definigao ainda incompleta e inteiramente insuficiente para definir adequadamente o que é © Direito. Segundo Kelsen, uma caracteristica fundamental das ordens sociais a que chamamos Direito ¢ que elas so ordens coercitivas au coativas. Em suas préprias palavras: 5 KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito @ do Estado. p. 11. E 0 caso da formagao de ilhas, do aluvigo,

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