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PORTO ARTE [3 A Clinica do Corpo sem Orgaos: Esquizoandlise e Esquizodrama The Clinic of the Body without Organs: Schizoanalysis and Schizodrama Domenico Uhng Hur ‘oRcto:0000-0002-6700-7024 Universidade Federal de Goias, ras Resumo 0 objetivo deste artigo é investigar 0 conceito de Corpo sem Orgaos (Cs0), para discutir possiveis contribuigées para a clinica em esquizoandlise € no es- quizodrama. Como método, revisamos toda a obra de Deleuze e Guattari para conhecer como 0 conceito € tratado na esquizoandlise. Cartografamos as di- versas concepgies sobre 0 Cs ao longo de sua obra. Elaboramos um esque- ma para pensar como podemos operacionalizar a dindmica entre os quatro cor- pos (C50, Corpo Cheiv, Corpo Esvaziado e Corpo Canceroso) no campo da clinica. Palavras-chave Esquizoandlise. Esquizodrama. Clinica. Deleuze. Guattari Abstract The aim of this article is to investigate the concept of Body without Or gans (BwO), to discuss some contributions to the clinic in schizoanalysis and schizodrama. As a method, we reviewed the entire work of Deleuze and Guat- tari to know how the concept is treated in schizoanalysis. We mapped the di- Jferent conceptions about BwO throughout their work. We elaborated a sche- me fo think about how we can operationalize the dynamics between the four bodies (BwO, Full Body. Empty Body and Cancer Body) in the field of the clinic. Keywords Schizoanalysis. Schizodrama. Clinic. Deleuze. Guattari DOT: https: //do PORTO ARTE [4 Dame Ung Hr Cina do Cap sm ros: Fsquzoaase Esqodana 2 A esquizoanalise ¢ um campo de saberes e praticas que articula conhecimentos de diversas disciplinas e tem multiplas definicdes. Pragmatica Universal, Filosofia da diferenca, Micropolttica, Estratoanalise, Nomadologia, Utopia Ativa, Pop andlise, si0 alguns dos termos utilizados e ou cunhados por seus criadores (DELEUZE: GUATTARI, 1980a) e estudiosos. Nao se restringe a uma epistemologia e a uma ontologia tal como. 05 saberes académicos tradicionais, Atualiza um paradigma ético-estético-politico que visa potencializar e produzir vida em suas diversas atualizacoes. ‘Uma das criticas que recebe ¢ que por sua dificil conceituacao, pode se aproximar mais de um campo postico, do que pratico, como se restringisse mais ao campo da se- manticae nao da pragmatica. Entretanto, essa afirmacdo é equivocada, pois Deleuze Guattaricontinuamente afirmam 0 primado pragmatico de sua teoria, que sempre deve estar agenciada ao mundo e produzir efeitos, Nao ¢ mera ideologia, poesia, ou busca por adjetivacdes. Nao atua no campo da semantica, expressando metaforas, ou novos adjetivos, mas ¢ uma pragmatica. Busca incitar, agenciar, produzir processos, para in- tervir e transformar a vida. Por isso no se preocupa com uma suposta esséncia das coisas, ou 0 queas coisas sao, Sendo como os processos funcionam, maquinam, fluem, Deste modo, podemos afirmar que é um campo de saberes e pratticas que tem como finalidade a andlise da propagacdo de fluxos das diversas materialidades da vida. ES- tas podem ser de diferentes tipos: serniticas lingulsticas, afeccdes, intensidades, pro- cessos assignificantes, maquinicos, agenciamentos e composicGes entre os corpos etc. Ja 0 esquizodrama, campo criado por Gregorio Barembilt,hipertrofia a dimensao pragmatica da esquizoandlise. Criou distintos dispositivos de interveno que dramati- zam seus conceitos filoséficos. Elaborou diversas maquinas de raspagem e desterrito- rializacdo, algumas de intensidades mais baixas, outras com intensidades muito mais elevadas. Possui cinco klinicas principais: caos, cosmos, desordem; acontecer-devir: di ferenca-repeti¢ao; produco de produco, reproducao e antiproducao; e multiplicitacao dramatica (BAREMBLITT, 2019). Utiliza o termo klinica, e nao clinica, para diferenciar- -se da tradicional acepcao de clinica, a qual se refere ao inclinar-se sobre o leito de um acamado. Inspirado na definic&o de clinos e clinamen de filésofos atomistas, do movi- ‘mento das particulas subatomicas, que ao se chocarem produzem desvios em suas ro- tas, Baremblitt concebe a kiinica® como o espaco de encontro e producao de diferencas. Um dos conceitos mais utilizados e de diffcil compreensdo da esquizoanalise ¢ 0 de Corpo sem Orgs (Cs0). fenémeno que também é uma das principais finalidades do esquizodrama. Neste texto, para desenvolver a faceta pratica da esquizoandlise, bus- caremos trabalhar a dimensao pragmatica deste conceito para a clinica, nao ficando restritos a sua definicao e discussao filosofica, Dessa forma, o objetivo deste artigo ¢ investigar 0 conceito de Corpo sem Orgaos (C50), para discutir possivels contribuicoes pparaa teoria da técnica na dinica em esquizoandlise e no esquizodrama. Como metodo procedemos com uma anélise sobre toda a obra de Deleuze e Guat- tari para investigar como 0 conceito é tratado na esquizoanalise. Também realizamos uma revisdo bibliografica sobre a obra de sucessores de Deleuze e Guattari, como 7 questOes ditaticas, cntinuaremo: a erafia tradicional itt de Kime, eu nde encontroe produc “ PORTO ARTE [4 Dame Ung Hr Cina do Cap sm ros: Fsquzoaase Esqodana a Gregorio Baremblitt, entre outros. No entanto, em nossa discussao, privilegiamos as passagens trazidas pelos criadores da esquizoanilise, visto que ha um grande volume de produces sobre este conceito. A partir desta leitura, cartografamos as concepcdes sobre 0 C50 ¢ 0 figuramos num esquema para pensar como podemos operacionaliz4-1o no campo da clinica. C50: definicées O conceito de C50 € retratado de formas distintas na obra de Deleuze e Guattari E trabalhado primeiramente na Légica do Sentido (DELEUZE, 1969). Recebe um desen- volvimento no Anti-Edipo (DELEUZE; GUATTARI, 1972), mas posteriormente assume sua ‘forma final, e mais ‘popularizada’ nos Mil Plats (DELEUZE: GUATTARI, 1980c), a qual também é retomada em Francis Bacon - Légica da sensacao (DELEUZE, 1981a). Vale destacar que o conceito também ¢ citado em outras obras de Deleuze e Guattari No Brasil, 0 C50 6 tratado em dezenas de trabalhos nas mais distintas areas, como na Filosofia (RAMACCIOTTI, 2012; SCHOPKE, 2017), Psicologia (RESENDE, 2008; RAN- GEL, 2019), Medicina (TEIXEIRA, 2004), Educacdo (MOSSI; OLIVEIRA, 2015), Literatura (SANDRINI, 2017), Artes cénicas (CAETANO, 2012; MAOILEARCA, 2018), Danca (BOM- -TEMPO; SALMIN, 2018), Arquitetura (RODRIGUES, 2012), Educacao ambiental (GAU- THIER, 2013) etc. De forma geral estes trabalhos tratam da desterritorializacdo, rein- vencao e redefinicdo dos processos em seus distintos campos, proporclonando uma discussaio em que o conceito de C50 agencia e inspira suas reflexdes e fazeres. 0 Cs0 éum conceito que est na interface entre a arte e a clinica. Deleuze e Guat- tari, em seus escritos, tém 0 habito de citar autores da Literatura, da Arte, como forma de figurar e devir os seus conceitos e reflexGes. Inclusive alguns dos seus conceitos recebem até maior inspiracao da Arte do que da Ciéncia, ou da Filosofia. A famosa pro- posicdo de sociedade de controle (DELEUZE, 1992) ¢, por exemplo, mais tributéria da Literatura. Para sua constituicdo, Deleuze discute as alteragdes no trabalho, das ma- quinas técnicas, na histéria da filosofia, a transicAo de elementos na quimica (do carbo- no ao sillcio), mas 56 se convence da mudanca a um novo diagrama social, a0 ler sobre essa maquinaria de controle num artigo do escritor beatnik, marginal, drogado, queer, William Burroughs (DELEUZE, 1986a; HUR, 2018a). Para desenvolver 0 conceito de Cs0, Deleuze e Guattari se referenciam na obra do artista e diretor de teatro Antonin Artaud, mais especificamente na emissao radiofOnica “Para acabar com o julzo de Deus’ Nela Artaud, bem como em toda sua obra, faz uma cida critica a moral, América, dinheiro, Deus. Artaud costuma denunciar os grandes estratos que bloqueiam os movimentos, as forcas, ao que chama de caca. Flavia Soares (2018), em sua dissertacao de mestrado “O corpo andrquico na obra de Antonin Ar- taud: [des}encarceramento e crueldade na sociedade contemporanea’, identifica estes estratos bloqueadores nos escritos de Artaud como a consciéncia, a alma € 0 organis- mo. Estratos que encarceram 0 corpo, que diminuem a potencia da vida. Entao, Artaud, com seu C50, ndo combate o corpo, tampouco os érgdos, mas sim o que o bloqueia’ o organismo, a organizacdo estratificada dos objetos parciais, das maquinas-orgaos, do PORTO ARTE [4 Dame Ung Hr Cina do Cap sm ros: Fsquzoaase Esqodana corpo. Ha uma luta contra a organizacao e 0 organismo instituldo que bloqueiam as poténcias da vida. Por isso que clama por um corpo formado de “sangue, fogo € ossos (ARTAUD, 1947), que combata o Julgamento de Deus. Circulacao. intensidades e estru- tura. Energia e forca. Fogo que queima e brilha, que produz acontecimentos. Deleuze (1969), em Logica do Sentido, busca pensar esse corpo sem orgaos, in- tensivo, a partir da experiéncia esquizo. Hd nele uma modalidade de processamento que rompe com a superticie e que opera por um outro registro, que no é 0 significante: © triunfo nao pode ser obtido agora a nao ser pela instauracao de palavras-sopros, de palavras-gritos em que todos os valores literals, silabicos @ fonéticos sao substituidos por valores exclusivamente tonicos & nao escritos, aos quais corresponde um corpo glorioso. ‘como nova dimenso do corpo esquizofrénico, um organismo sem partes que faz tudo por insuflacao, inspiracao, evaporacio, trans ‘missio fluidica (0 corpo superior ou corpo sem érgfios de Antonin Artaud) (p. 91, itlico no original. Dessa forma, ao invés de valores significantes, simblicos, fonéticos, temos nes- se corpo os valores tOnicos, ou mesmo palavras sem articulacdo, que consideramos corresponder ao campo das intensidades e aos graus de potencia (DELEUZE, 1968), ou seja, ao Ambito do assignificante. Uma fluidificacéo, propagacdo, que se refere a uma deriva do movimento, que nesse momento, Deleuze denomina como a ruptura da superficie para uma queda no abismo. Obviamente, sem querer romantizar o proceso esquizo, Deleuze (1969) compre- ende que ha nele uma ambiguidade, um espaco paradoxal, que pode distinguir a pro- ducdo de diversos corpos dessa experiencia: do corpo do esquizo nao resulta apenas um corpo glorioso, mas também pode resultar um corpo coador (poroso), um corpo des- pedacado, ou mesmo um corpo dissociado. Entéo, antes de seu encontro com Guattari, ofildsofo apresenta brevemente uma tipologia de distintos corpos que podem decorrer do proceso esquizo e que entram em uma certa contraposicao a producao de um C50. Deleuze estipula que o corpo despedacado, ou os orgdos despedacados, situam-se no polo contrario ao CO. Assim ha uma dupla polaridade entre um corpo furado, o corpo do édio, e um corpo glorioso, 0 corpo da plenitude. Os orgdos sem corpo (ZIZEK, 2006) ‘so a antitese do corpo sem 6rgaos. Para desenvolver este conceito e discutir seu funcionamento, Deleuze (1969), ain- danessa obra, estabelece um didlogo com as posicdes esquizo-paranoide e depressiva da psicandlise de Melanie Klein, Mas vale destacar que 0 filésofo ndo alude & post (Gdo esquizo-paranside, sendio a uma posi¢o esquizoide, para tratar dos processos e do corpo esquizofrénico, Nesse sentido, diferentemente da tradicdo Kleiniana (KLEIN: HEINMAN; ISAACS; RIVIERE, 1969), ele trata do processo esquizo de forma separa- da do proceso paranoico. Compreende que a posicao esquizoide, em contraposicao a depressiva, nao se refere a introjecao de objetos parciais, senao a “(..) um organismo PORTO ARTE [4 Dame Ung Hr Cina do Cap sm ros: Fsquzoaase Esqodana 5 ‘sem partes, um corpo sem érgdios, sem boca e sem anus (..)" (DELEUZE, 1969, p. 193). Assim hi um corpo, um espaco, de indiferenciacdo, no qual os limites ndo sao precisos, com uma certa liquidez e viscosidade: “..) 0 corpo sem orgaos e a especificidade liquida esto ligados no sentido de que o principio mothado assegura a soldadura dos pedacos em um bloco, ainda que fosse um ‘bloco de mar” (p. 194). Deste modo, 0 Cs0 forma blocos de coexistencia entre distintos elementos, fendmeno que dara origem posterior- ‘mente ao conceito de plano de consisténcia, mais trabalhado nos Mil Plats (DELEUZE; GUATTARI, 1980) No Anti-Edipo (DELEUZE; GUATTARI, 1972), constata-se uma acepcao um potico distinta sobre 0 C50, que pode trazer certa confusdo ao leitor. 0 C50 é tratado por dois termos distintos: Corpo sem Orgaos e Corpo pleno sem Orgaos. Estes termos discrimi- nam processos distintos, mas que &s vezes so utlizados como sinénimos pelos pré- prios autores. Entdo, em diferentes passagens, pergunta-se qual seria o CsO de uma sociedade, bem como se afirma que ela tem um corpo pleno sem orgaos. No inicio da obra os autores defendem que: ‘O corpo pleno sem érgaos ¢ 0 improdutivo, o estéril, © inengendrado, o inconsumivel" (DELEUZE: GUATTARI, 1972, p. 20). Depois afirmam que 0 Cs0 “reinjeta 0 produzir no produto” (p. 100). Consideramos que este concetto apresenta uma dupla valencia, uma bipolaridade, em que de um lado, o corpo pleno ‘Sem Orgaos ¢ antiproducdo, mas no outro, o Cs0 ¢ producdo. Para contrapor estes dois processos, neste artigo, denominamos o Corpo pleno sem Orgaos, como Corpo Cheio (CO), que é a definicdo que Gregorio Barembiitt (1998) adota, Dessa forma, quando Deleuze e Guattari (1972) se questionam sobre qual é 0 CO de determinada formacdo social, entendemos que eles perguntam qual é 0 seu CC. Por- tanto, no capitulo Selvagens, Barbaros e Civilizados, compreendemos que eles esto cartografando qual ¢ 0 CC de cada formacao investigada: a maquina territorial primit va, a formacao imperial-despética, ¢ a maquina capitalista civilizada, ou sela, refletin- do sobre seus diagramas de forcas constituldos. Consideramos que. posteriormente, a ideia de CC traduzida por Deleuze (1986a, 1986) para a nocdo de diagrama, conceito criado por Michel Foucault. A utilizacao desse novo conceito inclusive o faz abdicar da proposicao de uma Historia Universal, para conjecturar a transicao entre distintos e di: versos diagramas de forcas indefinidamente (DELEUZE, 1886a), ndo havendo Historia Universal e tampouco Fim da historia. Nos Mil Platos, 0 Cs0 nao ¢ mais associado com o improdutivo, ou a antiprodu- 40, mas sim como uma pratica, uma produco. “O corpo sem érgaos ndo é um corpo morto, mas um corpo vivo, € to vivo e tao fervilhante que ele expulsou o organismo € sua organizacao” (DELEUZE; GUATTARI, 1980a, p. 43). 0 Cs traz um proceso fia- ‘mejante, produtivo, “que nao para de desfazer 0 organismo, de fazer passar e circular particulas a-significantes, intensidades puras, € nao para de atribuir-se os sujeitos 0s quais nao deixa seno um nome como rastro de uma intensidade” (DELEUZE: GUATTARI, 1980a, p. 12) No plato especitico sobre o Cs0, Deleuze e Guattari (1980) adotam uma narrati- va um tanto insélita para se iniciar um texto filosdfico, académico. Partem de um pro- grama masoquista repleto de chicotadas, costuras, agulhas, em que se visibiliza um PORTO ARTE [4 Dame Ung Hr Cina do Cap sm ros: Fsquzoaase Esqodana 6 contrato, um acordo, entre dois. Entao ja ha uma espécie de exercicio da crueldade, em trazer explicitamente algo que vislumbramos no senso comum como um tabu, uma perversao, ou até mesmo uma piada. Ha uma inversdo, uma torso, em que se derrete imagem de pensamento do que é um texto de Filosofia 0 tema do masoquismo no € novo na obra deleuzeana, Em 1967 ele publicou um livro de apresentacéo da obra de Leopold von Sacher-Masoch. Pelo contetido de suas narrativas, Sacher-Masoch teve seu nome associado & entidade clinica maso- quismo. Entre uma série de questGes desenvolvidas nessa obra, Deleuze denuncia 0 ‘mau tratamento dado ao masoquismo. Para ele, o masoquismo de forma alguma deve ser encarado como o negativo do sadismo. 0 masoquismo néo é seu contrario, pois possui a sua propria singularidade. Assim ¢ um contrassenso supor que exista uma entidade clinica denominada de sadomasoquismo, pois ambas tém uma estruturacSo bastante distinta. 0 masoquismo, derente do sadismo, ao invés de ter como primado a destruicao e transgressao da lei (SAFATLE, 2007), calca-se num contrato em que se faz as intensidades passarem. Um contrat no qual quem inclusive da as consignas a0 Par € 0 proprio masoquista e nao a dominatrix. O masoquismo opera pela associacao do contrato eno pela negacdo da lei, Nesse sentido, 0 masoquismo néo ¢ apreendido como uma doenca, ou pervers4o, como costumelramente tratamos. € um programa, um dispositivo, uma maquina que vai gerar algo. © masoquismo também néo deve ser apreendido como pulsAo de morte. 0 cor- po masoquista ndo deve ser tratado como um fantasma, uma metafora, interpretado como um conjunto de significancias e subjetivacées, mas sim como um programa de experimentacao. Ele nfo busca a dor, o retorno a um inorganico, nem é um prazer des viado, © masoquismo nao busca 0 sofrimento e a dor em si. Procura produzir um Cs0, 0 qual so podera ser preenchido por intensidades de dor. E como se o sofrimento fosse 0 preco a pagar nesse experimento, Ondas doloriferas que se comportam como matilnas, bandos, populacGes e que nao buscam o prazer, sendo colocar as forcas em circulacao. Ha af um desligamento do pseudo-liame do desejo com o prazer (DELEUZE; GUATTARI. 11980¢).Este programa ¢ constituldo por duas etapas: 1°- Fabricar 0 CSO, esvazié-lo, fazer 0s fluxos romperem os estratos e 2°- fazer as intensidades circularem, passarem, transitarem nesse corpo. Deleuze e Guattari (1980c) trazem outro exemplo, da construcdo de um agencia- mento masoquista que irrompe em duas séries distintas: do cavalo e do masoquista. Nesse programa, no qual ha o ato do masoquista ser atado, amarrado, tal como um cavalo, fabrica-se uma transmissao de energias, um processo de involucao. Ha 0 conta- gio do devir-animal do cavalo, de suas poténcias inatas domesticadas, ao masoquista, como forma de trabalhar (ou domesticar) suas prdprias poténcias inatas. Decorre-se dessa maquina, uma série explosiva, que resulta no aumento de sua poténcia e inten- sidades. E uma experimentacao de producao de poténcia, que néo deve ser reduzida ao prazer e tampouco & sexualidade. Entretanto o programa de producao do Cs0 nem sempre é bem-sucedido. Deleuze € Guattari (1980c) exemplificam o fracasso desse processo com um desfile de corpos lugubres, corpos sem drgaos que se cansaram de seus orgaos e tragaram uma linha de PORTO ARTE [4 Dame Ung Hr Cina do Cap sm ros: Fsquzoaase Esqodana esvaziamento de si. Corpos que realizaram apenas a primeira etapa da desterritoriali- Zacdo, mas que nao lograram éxito em cumprir a 2" etapa, de fazer as intensidades cit- Cularem, com que as populacbes ocupassem e migrassem pelo deserto do CsO. Narram toda uma atmosfera lovecraftiana. 0 corpo hipocondriaco, com seus orgs destruldos, (5 corpos paranoicos, com seus orgaos atacados, o corpo esquizo, que travou uma luta anterior com a catatonia, 0 corpo gélido do drogado, que é um corpo esquizo experi mental, que muitas vezes se afunda num buraco negro. Todos estes corpos Iligubres ‘so corpos fraturados e nao plenos, esvaziaram sem a prudéncia necessaria. Ao invés dese tornarem um C50 intensivo, viraram vazios ou cancerosos. Tracaram uma linha de fuga tdo intensa, que se converteu numa linha autoabolicionista, Deleuze e Guattari (1980c) afirmam que no Cs0 so as intensidades passam e cir- culam, ele as produz e as distribui numa zona continua de intensidades e ndio exten- sivas. 0 CsO no ¢ lugar, nem representacdo, é pratica, experimentaco e producdo. E uma materia intensa e nao formada, nao estratificada “e tudo 0 que escorria sobre tal corpo, particulas submoleculares e subatOmicas, intensidades puras, singularida- des livres pré-fisicas e pré-vitais' (DELEUZE; GUATTARI, 1980a, p. 58). £ 0 grau zero intensivo. “Ovo pleno anterior & extensdo do organismo e a organizacdo dos érgfios* (DELEUZE; GUATTARI, 1980c, p. 13).0 C50 é 0 desejo que produz um plano de consis- tencia apenas ao tracé-lo, ao propagar-se. Por isso que nunca se chega a ele: €o limiar de variacdo intensiva. E uma proposicdo dificil de se compreender, pois nao se define por suas exten- s6es, por estratos e materialidades, mas por aspectos que se referem as suas intenst dades, aos seus graus de poténcia, ‘se define por eixos e vetores, gradientes ¢ limiares, tendéncias dinamicas com mutac&o de energia, movimentos cinematicos com deslo- camento de grupos, migracdes, tudo isto independentemente de formas acessorias” (DELEUZE; GUATTARI, 1980c, p. 14), Portanto, é definido por intensidades e vetores de forcas. independente das extensdes que o recobrem. Nesse sentido, 0 C50 ¢ 0 movimento em fluxo, no qual os érgdos perdem toda constancia. Ele deve ser apreendido na légica da conexao de desejos, conjuncao de fluxos, continuo de intensidades, “O Cs0 ¢ o campo de imanéncia do desejo, o plano de consisténcia proprio do desejo. 0 desejo se define como processo de producao” (DE- LEUZE; GUATTARI, 1980c, p. 15). E 0 desejo magmatico que em sua propagacio produz ‘seu proprio plano de consisténcia. 0 C50 nao ¢ inimigo do corpo, sendo do organismo, daquilo que organiza e reduz potencialidade do corpo. 0 organismo, o juizo de Deus, 0 CC, é o antipoda do Cs0. E um “fendmeno de acumulacao, de coagulacao, de sedimentacao que Ihe impie formas, fungSes” (DELEUZE: GUATTARI, 1980¢, p.21).€ umestrato sobre o (sO. Estratos sobre as intensidades, camadas sobre os fluxos. Os estratos (e 0 Eu) se aferram ao C50, desace- lerando e diminuindo seu potencial de forcas. Deleuze e Guattarl (1980c) compreendem que ha 3 grandes estratos bloqueadores: 0 organismo, a significaco e a subjetivacéo. Nesse sentido, 0 C50 opde 0 organismo, a significacao e a subjetivacao a desarticulacao, A experimentacdo e ao nomadismo como movimento. Busca desfazer o organismo, abrir- ~Se a conexes, composicées e criagBes que resultem desses encontros. Visa instaurar PORTO ARTE [4 Dame Ung Hr Cina do Cap sm ros: Fsquzoaase Esqodana 8 um plano de consisténcia que surja das fissuras da superficie de estratificacdo. A atu- alizacao do fluxo da duracdo mediante o tempo estriado cronologico (DELEUZE, 1966). Por isso que 0 CsO nao deve ser interpretado e sim experimentado. E uma pratica endo uma metéfora. Nao deve ser pensado na légica do ser, nem da representacao, ‘mas sim na logica do bloco do devir. Ao invés de evolugao paralela entre homogeneos, evolucao a-paralela entre heterogéneos = Involucdo. A producao de um Cs0 é a propria propagacdo do desejo, em sua concomitante producao de um plano de consisténcia. Adiinica do Cso Consideramos que o conceito de C50 pode referenciar diretamente a pratica clinica ddo/a psicslogo a. Dessa forma, neste tépico desenvolvemos algumas tematicas para contribuir com a teorla da técnica esquizoanalltca e esquizodramatica. Um primeiro alerta é que nao se deve simplesmente dicotomizar 0 (s0 ao CC, como se a producao do C50 fosse necessariamente um programa postive de desteritoralizacao @ 0 CC fosse algo negativo. Por isso Deleuze e Guattari (1980c) nos alertam que nesse movimento 6 fundamental e indispensavel a atividade de prudéncia. A prudéncia so as ragées de territorio, um lécus de mantimentos e terra firme, para que se possa investigar oestrato e tracar novas linhas. Um territorio para que o corpo nao se esvazie desmedidamente @ nao se perca, pois a produco de um C50 pode tangenciar 0 falso, 0 alucinatério, 0 ilusorio e a morte psiquica (DELEUZE; GUATTARI, 1980c). Nesse sentido, citam varios exemplos de territérios de prudéncia na literatura com Artaud ¢ inclusive Carlos Cas- tafieda. Encontrar um lugar, compor com seus aliados. fazer correr os fluxos, produzir 0 devires-animais, descobrir e lidar com novos seres (tonal e nagual), toda uma pro- blematica que articula 0 CC ao C30, Deve-se assim realizar uma cartografia, uma ania- lise do que produz, do que circula e do que bloqueia nesse corpo. 0 que 0 povoa, 0 que passa, 0 que 0 obstaculariza? 0 que pode um corpo? Qual é a poténcia de um corpo? Destacamos que nos Mil Platés (DELEUZE: GUATTARI, 1980c) ha uma nova tipolo- ga entre distintos tipos de corpos, diferente do que é trabalhado na Légica do Sentido (DELEUZE, 1969) e no Anti-Edipo (DELEUZE; GUATTARI, 1972). Na Logica do Sentido havia 0 C50, 0 corpo poroso, 0 corpo despedacado eo corpo dissociado. No Anti-Edipo 0 Cs0 e 0 CC. Nos Mil Plat6s, sem contar os corpos Itigubres supracitados ha trés tipos dle corpos que se antagonizam ao C50: 0 CC, o corpo esvaziado e 0 corpo canceroso. Consideramos que 0 CC ¢ aquele que constitu um circuito desejante em tomo de si, Os vetores de forcas sao direcionados ao préprio corpo, de forma centripeta, isto é, dirigida a um centro. Com esse investimento desejante, em que tudo ¢ vetorizado para dentro desse corpo, passa-se a constitu um corpo voraz, um corpo inchado, um corpo cheio. Esse processo pode piorar quando as fronteiras desse CC se tornam rigidas, con- vertem-se em couracas, em que as trocas com o fora se tornam de certa forma obstrut- das, ou obstacularizadas. As forcas s6 circulam para o dentro, passam por um proceso de entropia e a se autossutocar nesse “interno. Assim, esse corpo cheio pode sofrer com os processos de retenco, ou mesmo adotar procedimentos de descarga violenta, com pouca metabolizacdo do conteido que esta sendo expelido. No Ambito concreto PORTO ARTE [4 Dame Ung Hr Cina do Cap sm ros: Fsquzoaase Esqodana ° e atualizado num individuo, esse CC faz com que continuamente queira ser alvo de re- conhecimento, ser legitimado, amado pelos outros, sempre absorvendo, mas muitas vezes nao dando nada em troca, pois os vetores de forcas sao apenas centripetos. AS figuras ‘rolicas’ pintadas e esculpidas por Fernando Botero so a expresso pictérica do Cra atualidade. Nao sao pessoas gordas, sendo enrijecidas, como se tudo girasse ern tomo do seu corpo e nao houvesse nada para mirar no ‘externo’ (HUR, 20188). Contudo, nao so produzidos apenas corpos chelos, mas também corpos esvazia~ dos. Ha a tentativa de producao de um corpo sem orgaos, mas que ficou apenas na sua primeira etapa: da desterritorializacao e esvaziamento do corpo. Nesse caso faltou a prudéncia, nao se preencheu esse corpo, nao se fez passar as forcas de preenchimento © propagacdo, atracao e repulsao, na producao de uma maquina miraculante. Fabri- cou-se um programa de rechaco de tudo que ¢ externo, com maximo de porosidade para as forcas centrifugas e o maximo de bloquelo para as forcas centripetas. Consti- tul-se um claustro em que se pretende um esvaziamento radical das intensidades. Uma politica da recusa ao que pode abalar seu corpo. “Criar um deserto inabitavel e vazio. Linha de fuga auto-abolicionista, autodestruicao. Grau de afeccao zero que gradativa- ‘mente leva ao esgotamento da vida" (HUR, 2018). Tal funcionamento pode ser visto, or exemplo, nos corpos bullmico e anoréxico. Ja 0 corpo canceroso € 0 apice da deterioragao proveniente seja do CC ou do cor- po esvariado. Na intensificacao do processo de Inchaco e enclausuramento do CC, ou de autoabolicionismo de um corpo esvaziado, “uma célula torna-se cancerosa, louca, prolifera e perde sua figura, apodera-se de tudo” (DELEUZE; GUATTARI, 1880c, p. 26). Ela, em conjunc&o com outras, pode promover processos de bloqueio da circulacdo dos fluxos, ou mesmo uma autoasfixia do corpo em si, um ataque As outras células e mo- leculas, Nos Mil Platos nao ha uma teorizacao extensa do que € esse corpo cancero- so, apenas alguns tracos. Deleuze e Guattari (1980c) também estipulam uma relacao desse quantum de bloqueio e destrutividade com o fascismo, que ¢ uma maquina de guerra que toma a propria guerra como tarefa final e traca uma linha de fuga autoabo- licionista, constituindo um Estado e vida suicidarios. Conjecturamos que 0 corpo canceroso atualiza as forcas reativas e de ressenti- mento, caracteristicas do niilismo. Ressentimento, ma-consciéncia, vontade de nada e abolicdo da vida, em seu limite autoabolicao (DELEUZE, 1962). Funcionamento reativo que se atualiza nas condutas destrutivas e de autoimolacdo na atualidade, édio, exter- minio e genocidio da diferenca, vontade de abolicao de si proprio. CC, corpo esvaziado, corpo canceroso. Constata-se que sao trés modalidades cor- orais que podem empobrecer e despotencializar os individuos e coletivos. Por isso que devem ser criados dispositives que possam transmutar esses corpos no caminho da producao de um C50, intensivo, dionisfaco e orgidstico. Corpos que sejam ocupados por forcas ativas de vida, Potencializados e nao autointoxicados, enclausurados. Pois: PORTO ARTE [4 Figura 1 ~ Produgdo de um corpo ‘om Org0s (C50) Domenico Ung HA Ctca do Cro sem Ogos: EspizandoeeEsquzcara 10 A arefa da esquizoanalise¢ desfazer incansavelmente 0s euse seus pressupostes, € libertar as singularidades pré-pessoais que eles ‘encerram e recalcam, 6 fazer correr 0s fluxos que eles seriam capa- es de emits, de receber ou de interceptar, de estabelecer as esquizas (205 cortes cada vez mais longe e de maneira mais fina, bem abao das condicbes de identidade, de montar as maquinas desejantes que recortam cada um e o agrupam com outros. (DELEUZE; GUATTARI. 1972, p. 480-483), Consideramos que a clinica esquizoanalitica deve mapear, cartogratar, 0s circul- tos desejantes constituldos, 0 funcionamento das distintas maquinas e fluxos de- sejantes, com a finalidade de producao de linhas de fuga e processos de potenciali- Taco e de criacdo. Deve analisar a propagacao dos vetores de forcas e desejantes, fazer um mapeamento dos diagramas, das maquinas abstratas, seja no consultério privado, ou no campo institucional, comunitario e das politicas publicas. A clinica es- quizoanalltica deve portar-se como uma maquina vibracional que buscar raspar os estratos coercitivos, para as intensidades circularem, e assim elevar os graus de po- tencia do corpo e de valencia social. Busca fomentar processos de raspagem e de cir- culacdo das intensidades que eliciem linhas de fuga, disrupcao e desterritorializacdo, para a producao de um Cs0. A partir dessa discussao e categorizacao em quatro corpos, elaboramos 0 esque- ma expresso na Figura 1 para visibilizar a dinamica entre eles, articulando aos pro- cessos de desterritorializacdo-territorializacao e produco-antiproducao. Destacamos que ¢ uma figura um tanto esquematica para assumir funcdes de didatismo, e nao de reduc&o dos fendmenos. hrogesnao Contents Producto coments toes oo tertorazae so Sie sect a : Vetere dies Sauoarsmave PORTO ARTE [4 Dame Ung Hr Cina do Cap sm ros: Fsquzoaase Esqodana 1 No eixo horizontal ha dois polos, o de producdo e antiproducao cognitiva/afetiva. Tal como Espinosa (DELEUZE, 1981b), consideramos que os processos de potenciali- zaao corporal podem levar ao desenvolvimento das atividades de cognicao/afeccao como um todo, pois cognico e afeccdo nao formam pares antitéticos, como algumas teorias classicas da psicologia social acreditam (LE BON, 1895). Portanto, quanto maior © potencial afetivo, ou mais elevado o poder de se afetar, maiores podem ser as reall- zacBes cognitivas. Dessa forma, ha processos de produc&o cognitiva /afetiva quando © corpo se potencializa a partir de relacdes de composicao com outros corpos. E ha 0 contrario, processos de antiproducao, quando o corpo se decompée na relacao com outros corps, ou consigo préprio. Assim, evidentemente, as modalidades cognitivas se precarizam na medida em que se direcionam ao polo antiprodutivo, deixando de operar por uma légica da pluralidade, para atuar numa logica dicotomica, ou seja, deslocando- -se de uma logica das multiplicidades, para uma logica da negatividade. No eixo vertical situam-se os polos de desterritorializacao e territorializacao. No hemisfério superior h4 os processos relacionados ao que Deleuze e Guattari (1975) denominam de coeficiente de desterritorializacao, enquanto no hemisfério inferior ha. coeficiente de territorializacdo (GUATTARI, 2015). Nesse sentido, em um hemisfério ha 0 processos relacionados aos picos de desterritorializacao, a producao de um espaco liso, enquanto no outro, os lados territoriais, que proporcionam uma fixidez, base, bem como a instauracao de um espaco estriado (DELEUZE: GUATTARI, 180b; HUR, 2012). Na articulacdo entre estes dois elxos, vertical e horizontal, constata-se que nem todo processo de desterritorializacao ¢ produtivo e nem todo proceso de territorializa- ‘cdo ¢ antiprodutivo. Portanto, em cada quadrante ha a propagacdo de um tipo deter- minado de linha. Na conjuncAo desterritorializacdo/producdo, ha a diftus4o de linhas de fuga: na interseccao territorializacao/producao, linhas segmentarias; no encontro tervitorializacdo /antiproduc4o, as linhas abolicionistas; e na zona desterritorializacao/ antiproducao, a linha autoabolicionista. A producaio de cada corpo se refere a atualizacdo e intensificacao da propagacao de cada linha, a qual também pode se transmutar em seu préprio movimento de difu- ‘so. 0 Cs0 ¢ produzido primeiramente por linhas de fuga que fraturam os bloqueios © couracas, o que permite a propagacao dos fluxos. Entretanto ha um segundo movimen- to de preencher, de ocupar e de fazer circular as populacées nesse corpo. Devem ser produzidas conexGes, que sao uma ‘maneira de eliminar 0s corpos vazios e cancerosos que rivalizam com os corpos sem érgos; de rejeitar as superficies homogéneas que recobrem 0 espaco liso; de neutralizar as linhas de morte e de destruicao que desvian allinha de fuga’ (DELEUZE; GUATTARI, 1980¢, p. 197). Entéo, para manter seu coeficiente de producao, o cultivo do CsO se situa num espaco paradoxal entre desterritorializacao e territorializacdo, entre idas e vindas, num Ziguezague, numa relacdo entre linha de fuga e linha segmentaria. Mas essa segmen- taridade deve ser transitéria, os 6rg4os so vistos como transientes: “o corpo sem 6r- aos nao se define pela auséncia de orgdos, nao se define apenas pela existéncia de um 6rgAo indeterminado; ele se define, enfim, pela presenca temporaria e provisdria de (rgaos determinados" (DELEUZE, 1981a, p. 54, italico no original). Os érgaos so vistos PORTO ARTE [4 Dame Ung Hr Cina do Cap sm ros: Fsquzoaase Esqodana 2 como intensidades, pelos quais 0 corpo pode ‘escapar, tal como retratado nos quadros de Francis Bacon. Nessa conexao e transmutacao entre estrato e fluxos, a maquina & sempre maquina da maquina (DELEUZE; GUATTARI, 1975). aso nao hala a constituicZo dessa zona paradoxal, corre-se 0 risco que a criac&o do C30, de producao, reverta-se em antiproducao. Na medida em que se traca a linha de fuga de forma muito intensa, se 0 corpo desterritorializado nao ¢ preenchido por intensidades, essa linha pode se converter numa linha autoabolicionista que esvazia esse corpo, levando a um processo de desintensificacao radical. Nesse esquema, 0 ve- tor deixa o quadrante superior esquerdo e se desioca rapidamente para o quadrante superior direito. Da plenitude do C50, decorre-se 0 corpo esvaziado e que aos poucos pode se esvanecer. 0 corpo anoréxico, 0 corpo poreso, ou 0 corpo drogado. Por exemplo, as drogas, ao invés de produzirum Cs0 intensive, “erigem um corpo vazio ou vitrificad, ou um corpo canceroso: a linha causal, a linha criadora ou de fuga, va imediatamente linha de morte e de abolicéo” (DELEUZE: GUATTARI. 19804, p. 80). Nos quadrantesinferiores temos a conformacao do corpo caracteristico de nossa sociedade contemporanea, 0 CC. Se nao esta muito estratificado com um alto coeficien- te de temitorializacso pode produzir linhas de flexibilizacSo e quem sabe, até de des- territorializacao, mantendo-se com um potencial de producdo cogpitiva/afetiva, cons- tituindo linhas de segmentarizacdo, estratos. Situa-se no quadrante inferior esquerdo. Contudo, se 0 coeficiente de teritorializacdo se eleva, ha uma tendéncia que a segmen- tarizacao dé lugar aos processos de antiproducdo, havendo um rapido giro ao quadran- teinferior direito. CC tende aiinchare se fechar cada vez mais, entrando em regime de paranoia e oposicao aos outros corpos. Ha uma hiperterritorializaco em seu proprio corpo, eja ao Eu, em regimes de cédigos, as crencas religiosas, valores conservadores, a ideologia. Ocorre um recrudescimento da logica do Eu, uma reteritorializacao no ego, ou seja, um proceso de erotizacdo do Eu, que podemos chamar de egotizacAo, isto &, os investimentos desejantes direcionados de forma centripeta ao Eu. A egotizacao é um processo socialmente perigoso, pots com o recentramento e estratiticacéo do Eu, pode fomentar processos de ruptura do laco social. Nesse sentido, arigidez ea estraiticacSo podem ser tamanhas, que 0 CC pode se calcificar e se despedacat. Pode produzircorpos ddespedacados no espaco social Como exemplos vemos a intensificacao do isolamento social, as praticas de individualismo, do fendmeno standby, a apatia social, a nao sen- sibllidade com 0 Outro, e no seu limite, o édio a0 outro. E muitas vezes a clinica tradi cional realiza esse fortalecimento desmedido do Eu, principalmente em tempos de crise psicossocial, desconhecendo, ou ignorando, os percalgos que com isso pode causar. Consideramos que a intensificacao das linhas abolicionista e autoabolicionista, que produzem respectivamente 0 CC e 0 corpo esvaziado resultam no esmirihamento desses corpos. Tal precarizacao resulta numa outra modalidade: o corpo canceroso. Nesse sentido 0 corpo canceroso pode decorrer tanto de processos intensos de dester- riteriaizacao, bem como de hiperterritorializaco. Ambos podem levar a pulverizacko desses corpos, seja por uma linha suicida, ou uma extremamente destrutiva, Corpos € 6rgdos que se fecham ou se abrem desmesuradamente, que atacam os outros 6r- 840s, ou a si prdprios. Ha assim modalidades de precarizacdo coletiva, no ataque e PORTO ARTE [4 Dame Ung Hr Cina do Cap sm ros: Fsquzoaase Esqodana 12 depreciacdo ao outro, tal como podemos ver claramente nesse perfodo de extremismos politicos (HUR; SABUCEDO, 2020). Os neofascismos e microfascismos podem ser vistos como sintoma do mal-estar da sociedade contemporanea, que do alto esvaziamento, ou inchaco, produziu corpos cancerosos que estdo mortificando o corpo coletivo social, € inclusive planetario-ambiental. Dessa forma, os vetores de crise social podem con- tribuir para o aumento da producao do CC, do corpo esvaziado e do corpo canceroso, propiciando uma necropolitica generalizada, A clinica esquizoanalltica e esquizodramatica deve operar de modo com que seus vetores de intervencao estejam direcionados para a esquerda desse esquema, numa produgao de um Cs0 que conlugue processos de desterritorializacdo ¢ reterritorializa- Gao. Deve adotar a compreensao dos riscos dos efeitos da desterritorializacao radical, bem como de hiperterritorializagées intensivas, mesmo que paradoxalmente os pro- cessos de desterritorializacdo e reterritorializacdo sejam seus principais instrumentos de intervencao. Portanto, deve evitar ao maximo que os processos eliciados na clinica permanecam nos quadrantes a direita. Esse esquema deve ser vistalizado nao como pontos estanques € estaticos, mas nna dinamica de seus plats de vibracdo. Porque sempre estamos em zonas de vibracao, de agitacdo, em variaco continua. 0 corpo é um campo de intensidades eo ritmo, a vi- bracao, ¢ um vetor de sensacdo, “que faz passar de um nivel a outro” (DELEUZE, 1981a, .37). Multas vezes 0 corpo esta obstruldo por suas estratificacdes, por seu organismo. Num momento pode-se estar na vibracdo da producdo de um CsO, mas logo pode-se vibrar centripetamente como um CC, Devemos captar as vibragdes das moléculas, as Circulagdes de forcas, pois so elas que modulam toda a jornada, o que sentimos, ire- mos fazer e falar. Destaca-se também que o que falamos, ou a mera compreensdo de como vibramos, so condicdes necessarias, mas nao suficientes para conseguir nos levar a novos platds de intensidade, a novos processos de reinvencAo social e estética. Deste modo deve-se criar e manejar dispositives clinico-politicos de intervencao que possam fomentar esse movimento & esquerda do esquema, no sentido da pro- ducdo de um Cs, e de fuga do buraco negro do CC, da despotencializago do corpo esvaziado, ou da (auto)destruicao do corpo canceroso. Consideracées tinais esse artigo buscamos investigar 0 conceito de CsO na obra de Deleuze e Guattari para tracar alguns vetores direcionais para a clinica esquizoanalltica e esquizodrama- tica. Constatamos que 0 conceito de C50 se desenvolve na obra de Deleuze e Guattari, culminando em sua verso mais utilizada nos Mil Platds. Em sintese o Cs0 pode ser figurado como um Ovo. Ele nao é regressivo, é prospectivo, ¢ involucdo, desenvolvi- mento entre heterogéneos, bloco, devir, multiplicidade do desejo (DELEUZE; GUATTARI, 11980¢).Por isso que em sua produce, no campo da dinica, ¢ importante que no fluir dos investimentos desejantes, consigamos cartografar,distinguir,o que remete a cons- tituicdo de um plano de consisténcia, ou a proliferacao de estratos, bem como a deses- tratificacao demasiado violenta. Sdo diversos tipos de movimentos que sao eliciados PORTO ARTE [4 Dame Ung Hr Cina do Cap sm ros: Fsquzoaase Esqodana 4 em sua propagacao, decorrendo, seja num Cs0 intensivo, um corpo cheio, um corpo esvaziado, um corpo canceroso. Na clinica esquizoanalitica e esquizodramatica devemos buscar e inventar ma- quinas para fabricar 0 CsO, pois “maquinas abstractas 0 cuerpos sin érganos, eso es el deseo (DELEUZE; PARNET, 1977, p. 119). E 0 esquizodrama € 0 conjunto de mui- tas maquinas de producao do Cs0, com diversos niveis, ou platés, de intensidades € vibracdo. Seu método sempre € € sera clinico-politico, pois ao mesmo tempo em que se debruca na agitacao das moléculas no ambito psiquico e desejante, analisa e Intervém nos vetores de forcas. Sua intervencdo culmina irremediavelmente nas alteragbes das relacSes de poder, seja de um coletivo em relac&o ao social, ou mesmo de um individuo consigo proprio. Entdo, figuramos num esquema a dinamica que se da entre as distintas li- nhas ¢ tipos de corpos para a producao de um Cs0. Consideramos que com essa figura, sao visibilizados vetores direcionais que podem contribuir como uma ‘bus sola’ para a pratica clinica, na qual possivelmente influenciem diretamente no modo de conducao dos processos clinicos, bem como a escolha e operacionaliza- Go de dispositivos de intervencao. Referencias ARTAUD, Antonin. Para acabar com o julgamento de Deus, 1947. http://escola- nomade.org/wp-content/downloads /artaud-para-acabar-com-o-Julgamen- to-de-deus.pat BAREMBLITT, Gregorio. Introducdo 4 esquizoandlise. 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