CANDIDO, Antonio. O Romantismo No Brasil.

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ISBN 85-7506-050-3, O ROMANTISMO NO BRASIL ANTONIO CANDIDO ernanitine a ‘Sio Paulo, 2002 ‘UavensoA02 80 PAILO- FACULDADE DEALOSOMA LETRAS ECRNEHS HAUS ie FFLEHIUSE = mag 202 Cpt 200 Hummstes FFLCHVUSP pride repro perl a tg, sematringi rsa dos tees do, Serge bot ¢Dacunentgi da PELE usp Faclpce Mii Elsa Grid Grand CRD 3608 (C217 Candid, Asenio ‘Orman so Bel Ato Cano —St Palo: Humaine BRLCH/SE 2012, 105. ISDN A5-75060502 |. Liter brn (Hira Cees) 2. Romana (Lie r)L Tilo ——Hommms PRLCHLUSE i ih edaop be "es s7 193 ‘dir Raunt Tot De Mites he do Nascimento Conn Era NP Hedoa Ropes BIT 28.840 Scia , CalcdnteRoo28239 xtSer Dian Ohta des Soon cs cols Mess Revise Simone DAsvedo epp seo Este resumo do Romantismo no Bra- sil foi escrito de dezembro de 1989 a janei- ro de 1990 e remetido em seguida d profes- sora Luciana Stegagno Picchio, da Univer- sidade de Roma “La Sapienza”, como capitulo de uma obra em quatro volumes, planejada e organizada por ela, com o titulo de Storia della civilta letteraria portoghese, que ser finalmente publicada, apés muitas vicissitudes, pela Passagli Editora, de Flo- renga, Como o meu texto apareceré em tra- ducdo italiana, no 3° volume, achei que po- deria sair em portugués como optisculo de nossa Faculdade e consultei a respeito a professora Luciana Stegagno Picchio, que o liberou para este fim. A ela, os meus agra- decimentos. ‘Tratando-se de escrito destinado a lei- tores estrangeiros, ha nele muita coisa 6b- via e desnecesséria para os brasileiros. Mas como os estudantes gostam de resumos, talvez se interessem por este, como se inte- ressaram por outro composto com finalida- de parecida, intitulado Iniciagdo a literatu- (© Romawrisme no Base ta brasileira e também editado pela Huma- nitas. Sao Paulo, julho de 2001 Antonio Candido de Mello e Souza i No comego do século XIX 0 Brasil es- tava numa situagéo que hoje podemos ver 0 quanto era contraditéria, néo apenas em sentido politico, mas também cultural. Co- lénia de um pajs atrasado como Portugal, 0 estatuto de dependéncia ja atrapalhava os movimentos de suas classes superiores, que desejavam cada vez mais ser também diri- gentes. Os homens cultos, os clérigos, os proprietarios sentiam mal-estar no mundo fechado que a Metrépole criara, néo apenas impedindo 0 intercdmbio comercial, mas tomando a parte do leéo nos produtos da riqueza ¢ estabelecendo condigées humi- Ihantes para os naturais do pais. Isso expli- ca certas tentativas de mudanga, certos pro- jetos de libertacéo, como a Inconfidéncia Mineira de 1789. De outro lado, 0 povo su- balterno comecava a manifestar sinais de inconformismo contra as classes superio- res, o que resutltava em ameaca ao Estado 7 (© Routes wo Bas, portugués, como foi o caso da chamada Re- volta dos Alfaiates na Bahia, em 1798. A situagao da cultura intelectual era igualmente insatisfat6ria. Muitos homens de saber e administradores da Metrdpole jé eram brasileiros, recrutados gragas 4 competén- cia. Apesar de integrados no sistema de do- minagio, eles eram pela propria existéncia elemento de contradigao, mostrando o para- doxo de uma colénia cerceada nas suas as- piragées, mas que comegava a fornecer pe- gas importantes para o funcionamento da cultura e da administracéio metropolitana, por meio de seus cientistas, magistrados, ecle- sidsticos, escritores, funciondrios. Esses homens tinham estudado na Europa, porque 0 governo portugués sem- pre timbrou, ao contrério do espanhol, em manter os seus dominios americanos des- providos dos instrumentos de transmissio e difusdo da cultura superior. No Brasil nao havia universidades, nem tipografias, nem periddicos. Além da priméria, a instrucio se limitava 4 formagao de clérigos e ao nivel que hoje chamamos secundario, as biblio- tecas eram poucas ¢ limitadas aos conven- tos, 0 teatro era paupérrimo, e muito fraco 8 [Awronto Cancioo ointercimbio entre os niicleos povoados do pas, sendo dificilima a entrada de livros. No entanto, nao apenas os brasileiros comegavam a pesar nas letras € ciéncias, mas a nossa produgao local era considera- vel nas artes plasticas e na mtisica. Portan- to, além das contradig6es econdmicas e so- ciais, havia uma sensivel contradicao cultural, Nao espanta que alguns intelec- tuais que viviam na Capitania de Minas Gerais se envolvessem na mencionada In- confidéncia, sendo punidos com carcere ¢ desterro; e que pouco depois, em 1794, tam- bém outros do Rio de Janeiro se reunissem para debates inconformistas, numa associa- go de cunho liberal, o que lhes valeu pro- cesso € prisio. Esse estado de coisas foi alterado por um acontecimento surpreendente: a trans- feréncia da Familia Real Portuguesa para o Brasil. Ante a iminéncia da tomada de Lis- boa pelas tropas napoleénicas, o Principe Regente D. Joao escapou em dezembro de 1807 com todos os seus, inclusive sua mae, a Rainha louca D. Maria I, parte da Corte, o governo, milhares de funciondrios e solda- dos, tudo sob a protegao de uma esquadra ° (© Romagrnstio No Brasit de seus aliados ingleses, chegando em ja- neiro de 1808 a Colénia atrasada e isolada, que sofreria modificagdo profunda devido a essa presenga insdlita e sob certos aspec- tos salvadora, De fato, tornando-se sede da Monar- quia o Brasil ndo apenas teve a sua unidade garantida, mas comegou a viver um proces- so de independéncia virtual, tornada efeti- va em 1882 depois que o soberano voltou a Lisboa por exigéncia dos seus stiditos por- tugueses. Em 1816 0 pais fora elevado a categoria de Reino Unido e, em 1821, ao se retirar, o Rei D. Joao VI (que sucedera A mie, morta em 1816) deixou como regente 0 filho mais velho, herdeiro do trono, acon- selhando-o que caso a independéncia se tor- nasse inevitavel ele proprio a fizesse ¢ go- vernasse o Brasil. Foi o que fez o Principe, proclamando a separagéo e sendo aclama- do Imperador sob 0 nome de Pedro I, numa solugao conciliatéria que permitiu As clas- ses dominantes manter a posigio ¢ as van- tagens, sem resolver os problemas das clas- ses dominadas, 0 maior dos quais era a escravidao dos negros, abolida apenas em 1889, 0 Astonia Canina Do ponto de vista da cultura, a presen- ca do governo portugués no Brasil foi um marco histérico transformador, a partir do Rio de Janeiro, que se tornon definitivamen- te centro do pais e foco de irradiacio inte- lectual ¢ artistica, Depois de 1808, foram permitidas as tipografias e imprimiram-se os primeiros livros, criou-se uma importante biblioteca piiblica, foi possivel importar obras estrangeiras, abriram-se cursos ¢ fo- ram fundadas algumas escolas superiores. S6 entao surgiram os primeiros jornais, 0 mais importante dos quais, Correio Brasili- ense, era todavia publicado em Londres, onde residia prudentemente o seu redator. Nessas condig6es, o inconformismo e 0 espirito de exame cresceram por todo 0 lado a partir do Rio de Janeiro, cidade aca- nhada que possuia cerca de cingiienta mil habitantes A chegada do Principe Regente, endo apenas dobrou de imediato a popula- cao, mas se transformou social e cultural- mente ao receber uma corte européia, com © seu protocolo, os seus concertos e fes- tas, o exemplo de maneiras refinadas dado pela nobreza, diplomatas, altos funcioné- rios, intensificando-se a presenga da mu- uw (© Romumssio no Brast Iher e comegando a ruptura dos costumes arcaicos. Um traco importante dessa fase foi o adensamento do meio cultural, pela chega- da de muitos homens instruidos, tanto bra- sileiros ¢ portugueses vindos devido a mi- gracdo da Familia Real, quanto estrangeiros de varios paises: viajantes, cientistas, ar- tistas, artesiios. Entre os viajantes, alguns deixaram retratos expressivos do pais ¢ con- tribuiram para vé-lo de maneira nova. Se- jam homens de negécio, como os ingleses Mawe e Luccock, sejam naturalistas, como os alemfes Spix e Martius e o francés Auguste de Saint-Hilaire. A partir de 1816, uma importante mis- so artistica contratada na Franga fundou o que seria depois a Academia de Belas Ar- tes, com os cursos de desenho, pintura, escultura, gravura etc., rompendo a tradi- cao local de fundo barroco ¢ instaurando 0 Neoclassicismo, que era entéo uma forma preferencial de modernidade. Pintores como ‘Taunay e Debret, arquitetos como Grandjean de Montigny, escultores como os Irmaos Ferrez deixaram marca profunda na prética artistica académica de todo 0 nosso século 2 Astonia Canivo XIX. Ao mesmo tempo florescia uma noté- vel atividade musical, com o brasileiro José Mauricio, o portugués Marcos Portugal, 0 austriaco Segismundo Neukomm, além de numerosos compositores de miisica ligei- ra, como José Joaquim da Camara. Outro traco importante desse perfodo foi o novo sentimento de civismo, atualiza- Ao do apreco ilustrado pelo bom governo, Os intelectuais brasileiros do fim do século XVIII pensavam sobretudo em lonvar a agio dos governantes esclarecidos, vinda de cima ¢ recebida como dadiva. No comego do sé- culo XIX, e sobretudo depois da Indepen- déncia em 1822, esse ponto de vista foi substituido pelo de participagio politica do cidadao, que deveria tomar a iniciativa de estabelecer o bom governo, de baixo para cima, a fim de promover o império da razio. Essa transigio ideolégica corresponde ao desejo crescente de autonomia, que termi- nou pela separagéio de Portugal e se expri- miu na ago € nos escritos de intelectuais, que falavam em promover as reformas ne- cessdrias para civilizar e modernizar o pais segundo as idéias do tempo: liberdade de comércio e de pensamento, representagio 15 (© Romuerasio $0 Bit nacional, instrugo, fim do regime escravista etc. Nesse sentido atuaram as associagdes de tipo mais ou menos magénico € a pré- pria Magonaria, influindo em movimentos como os que ocorreram em Pernambuco, onde eclodiu, em 1817, uma rebelifio auto- nomista e onde mais tarde, j4 proclamada a Independéncia, outra rebeliao quis separar do império a regido Nordeste, sob regime republicano, A ambos os movimentos se li- garam intelectuais, como o poeta Nativida- de Saldanha ¢ 0 combativo jornalista liberal Frei Caneca. Mas 0 civismo dos intelectuais teve representantes que nao chegaram a tais ex- tremos, haja vista Hipélito da Costa (1774- 1828), talvez o maior jornalista brasileiro de todos os tempos e 0 mais licido repre- sentante do espirito iustrado no mundo luso-brasileiro daquela fase. Do seu reduto de Londres, a salvo de repressées e censu- ras, ele redigin com admiravel espirito de coeréncia 0 Correio Brasiliense (1808-22), que influiu como escola de anélise politica ¢ pensamento moderno, de acentuado cu- nho liberal. Reivindicando o direito de criti- “ Axrona Canon ca, exerceu uma espécie de fiscalizacao lici- daem relag&o aos atos do governo e preconi- zou as medidas necessdrias ao nosso desenvolvimento, inclusive o fim da escravi- dao ¢ o deslocamento da capital para o inte- rior, a fim de expandir a civilizagdo. Vendo de maneira correta que a mudanga da Corte para o Rio de Janeiro estava dando ao Brasil o lugar principal na Monarquia, foi favordvel & wnidio com Portugal até que os aconteci- mentos mostrassem a necessidade da sepa- raciio, que adotou como conseqiiéncia légica da sua campanha. A historia da literatura ele interessa nfo apenas como representante de um momento no qual se esperavam do inte- lectual nitidas definigdes ideolégicas, mas devido & qualidade do seu estilo de admiré- vel preciso ¢ sobriedade, dotado de uma solidez que o libertou dos defeitos de énfase e afetacdo, tdo correntes na prosa brasileira. O homem de maior envergadura men- tal desse tempo foi José Bonifacio de An- drada ¢ Silva (1763-1838). Naturalista de grande valor, voltou ao Brasil em 1819 de- pois de uma brilhante carreira cientifica na Europa, a tempo de desempenhar papel de- cisivo no movimento da Independéncia, da 1s (© Romario so Basie qual o chamaram Patriarca. Como ministro, foi influente na organizacao do Império, mas se desaveio logo com o Imperador e foi exi- lado para a Franga. Apesar de contraditério em suas atitudes, assumiu posigdes libe- tais e clarividentes com relacao a proble- mas téo importantes quanto a escravidao, sobre a qual escrevet um estudo de alto valor. Poeta de segunda ordem, foi todavia sensivel a certos premincios de transforms cdo literdria, apesar de nitidamente neoclas sico. Interessou-se por Byron e Scott, tra- duzitt Ossian e deixou alguns poemas com laivos de pré-romantismo, sobretudo pelo sentimento vivo dos lugares. Essa posicio mista era freqiiente no tempo, como era tam- bém freqitente a qualidade secundaria das obras, 2. Com efeito, do ponto de vista da histé- ria literdria esse € um momento de produ- sho geralmente mediocre, caracterizado pela mistura de Arcadismo sobrevivente com tra- G08 que no firturo seriam considerados pre- cursores. Inovagao formal, praticamente 16 Aronia Casexo0 nenhuma. Todos continuavam a fazer odes, cantos épicos, sonetos, elegias, em versifi- cagio tradicional e quase sempre com as alus6es mitol6gicas de preceito. Mas aqui e ali comecam a aparecer algumas mudangas discretas nos temas ¢ no tom. A melanco- lia, por exemplo, vai sendo cada vez mais associada a noite e & lua, ao salgueiro € A saudade, sobretudo ao pormenor dos luga- res. Modificacio paralela ocorre no trata- mento da natureza, pois a tradigdo nativista se liga entéo ao novo sentimento de orgu- tho nacional, que prenuncia o patriotismo. ff preciso destacar outro traco, cheio de conseqiiéncias: 0 advento de wma religiosi- dade que se distancia da devogao conven- cional para apresentar-se como experiéncia afetiva, que confere certa nobreza espiritual e foi sendo considerada cada vez mais posi- céo moderna, oposta ao paganismo orna- mental da tradigio. Os primeiros roméanticos brasileiros consideravam como um dos seus mestres Ant6nio Pereira de Sousa Caldas (1762- 1814), que de fato consagrou a segunda parte de sua vida a traduzir os Salmos, de Davi, pondo assim na linha de frente a poe- v (© Romurrsto No Basi sia religiosa, seguido por Frei Francisco de Sao Carlos ¢ o arcade Eldi Ottoni, tradutor dos Provérbios ¢ do Livro de Jo. Na mocidade, sendo estudante em Por- tugal, Sousa Caldas manifestou idéias A/o- soficase deistas, escreveu wma ode em defe- sa das teorias de Rousseau e foi condenado ¢ preso pela Inquisicéo. A seguir retornou & religiéo e ordenou-se padre em Roma, abandonando a poesia profana ¢ tornando- se orador sacro apreciado. Mas continuou suspeito as autoridades, pois conservou as posigées liberais, como podemos ver numa obra que escreveu depois de ter voltado para o Brasil, em 1808: as Cartas de Abdir a Ir- zerumo, cerca de cingitenta pequenos en- saios, dos quais restaram infelizmente ape- nas cinco, escritos numa linguagem discreta e concisa, Eles sao um momento importan- te do nosso liberalismo ilustrado, pela de- fesa da tolerancia, da liberdade de impren- sae da compatibilidade entre a religiao ¢ as idéias politicas modernas. Mas hoje Sousa Caldas interessa so- bretudo por um saboroso texto em prosa & verso misturados: Carta dirigida ao meu amigo Joao de Deus Pires Ferreira, em que 18 Asano CANDIES. Ihe descrevo a minha viagem por mar até Génova (1790), no qual com muita graga e leveza faz, uma alegre sétira da heranga clas- sica, critica a educagao baseada na Anti- gitidade ¢ deixa clara a simpatia pela Revo- Inco Francesa. Publicada com as suas obras poéticas em 1820-1821, a Cartaexer- cett influencia nos primeiros roménticos, e vista de hoje pode ser considerada um marco. Frei Francisco de Sao Carlos (1763- 1829) é exemplo interessante da mistura de patriotismo ¢ religiao, que seria tao rele- vante no Romantismo. A sua longa e enfa- donha epopéia Assungéo (1819) descreve o pafs com exaltada ternura eo Paraiso como jardim onde se encontra a nossa paisagem, com drvores e frtas tropicais, - da mesma maneira por que o pintor Padre Jesuino do Monte Carmelo debuxava anjos mulatos nos seus painéis. Tracos pré-romAnticos ocorrem em Domingos Borges de Barros (1779-1855), cuja poesia, embora ainda presa ao passa- do, esta cheia de melancolia transfundida de sentimento da natureza, com muito luar, salgueiros ¢ um corte meditativo ligado ao » (© Rommsio so Brasit ‘oceano. Mas muito mais tocado pelo espiri- to novo foi Frei Francisco do Monte Alverne (1784-1857), professor de filosofia que in- fluenciou a primeira geragao romantica pelo seu ecletismo espiritualista e sobretudo pela elogiiéncia dos seus sermées, cheios de patriotismo e de um sentimentalismo que transforma a religiéo em experiéncia pes- soal. A marca de Chateaubriand é visivel na sua linguagem poética amplamente modu- lada e na propria concepgao lirica do Cris- tianismo. Um elemento importante nos anos de 1820 e 1830 foi o desejo de autonomia lite- raria, tornado mais vivo depois da Indepen- déncia. Entao, o Romantismo apareceu aos poucos como caminho favoravel A expres- sio propria da nagio recém-fundada, pois fornecia concepgées e modelos que permi- tiam afirmar o particularismo, e portanto a identidade, em oposigao a Metropole, iden- tificada com a tradigéo clssica. Assim sur- giu algo novo: a nogio de que no Brasil havia uma produgao literdria com caracte- risticas proprias, que agora seria definida e descrita como justificativa da reivindicagao de autonomia espiritual. 20 Ayroxio Caxn109 O primeiro a dar forma a esta aspira- cao latente foi Ferdinand Denis (1798- 1890), francés que vive aqui alguns anos e depois se ocupou das nossas coisas pela vida afora. No Résumé de l'histoire littéraire da Portugal suivi du résumé de histoire littéraire du Brésil (1826) ele fundou a teo- ria ¢ a hist6ria da nossa literatura, baseado no prinefpio, entéo moderno, que um pais com fisionomia geogréfica, étnica, social ¢ hist6rica definida deveria necessariamente ter a sua literatura peculiar, porque esta se relaciona com a natureza e a sociedade de cada lugar. Os brasileiros deveriam portan- to concentrar-se na descrigo da sua natu- reza e costumes, dando realce ao indio, o habitante primitivo e por isso mais auténti- co, segundo Denis. Como modelos no pas- sado, indicava os poemas de Basilio da Gama (1769) e Santa Rita Durao (1781), por terem assunto ligado ao indigenas; quan- to a pratica no presente, ele proprio deu o exemplo no livro Scénes de Ja nature sous Jes tropiques (1824), no qual inseriu 0 seu conto indianista “Les Machakalis”, primei- ra produgio de um género que seria consi- derado, a partir da sua doutrinacéo, o mais nacional ¢ o mais legitimo. Por intermédio a © Romasvrisno No Baws de Denis, e de outros franceses que tam- bém viveram aqui, os brasileiros puderam sentir como 0 particularismo, inclusive sob a forma do pitoresco, se ajustava ao desejo de diferenciac&o e busca de identidade na- cional. O pequeno livro de Denis parece hoje insignificante, mas foi sem diivida o que teve maiores conseqiiéncias em toda a nossa cri- tica, porque foi o primeiro a conceber a lite- ratura brasileira como algo diferenciado ea indicar quais deveriam ser os rumos do fu- turo. Até o fim do Romantismo, a critica se baseou nas suas idéias ¢ ndo fez mais do que glosé-las, parecendo ter como presst- posto um de seus conceitos fundamentais: “A América deve ser livre na sua poesia como no seu governo”. Entre a publicagéo do Résumée a data oficial de inicio do Romantismo brasileiro, 1836, estende-se uma fase durante a qual foram amadurecendo entre os intelectuais 0s t6picos que ele pds em discussio ou su- geriu: consciéncia de autonomia: verifica- cao do passado literério; reconhecimento da posicao central dos temas nativistas; incli- nagio para o lado das novas tendéncias es- 2 Aronia CANDIDS téticas, que ndo nomeia, mas eram as do Romantismo. Denis ¢ Almeida Garrett (na introdu- cdo ao Purnaso Iusitano, 1826) lamentavam que os brasileiros do passado nao tivessem abandonado a mitologia, os géneros clissi- cos e as convengdes pastorais, substituin- do-os pelo aproveitamento das caracteristi- cas locais. Mas os brasileiros que os segui- ram de imediato parecem ter posto em segundo plano as distingdes estéticas, pois estavam preocupados sobretudo em provar a existéncia material de uma produgao an- terior que justificasse a reivindicagao de au- tonomia espiritual, considerada decorrén- cia necessaria da que ocorrera no nivel politico. $6 numa segunda etapa associa- ram a isso a idéia de Romantismo, que no Brasil se confundiu em grande parte com nacionalismo. De acordo com essa ordem de idéias, a tarefa inicial consistiria em levantar 0 pas- sado literdrio e entroncd-lo no presente, 0 que foi feito a partir de uma colegio de tex- tos poéticos devida ao veterano de estrita obediéncia neoclassica Januério da Cunha Barbosa (1706-1846), padre que militara no 2 © Ronaiswo No Bras movimento da Independéncia ¢ era famoso orador sacro. O sen péssimo poemeto épico Niter6i (1819) pode servir de exemplo da. utilizagao da mitologia clissica para expri- miro patriotismo nascente. De 1829 a 1831 ele publicou 0 Purmnaso brasileiro em fasct- culos, que formaram dois pequenos volu- mes, reunindo poemas desde o passado co- lonial até os seus dias. & uma obra sem ordem nem método, mas que teve 0 mérito de colecionar pela primeira vez amostras da produgao literdria brasileira, inclusive iné- ditos (como os versos de Gregério de Ma- tos), e assim sugerir a existéncia de um corpus. Além disso foi a primeira antolo- gia, ¢ as antologias se sucederiam durante anos como um dos meios de revelar textos ¢ ir formando o cAnon literdrio do Brasil Exemplo da indeterminagao estética dessa fase é a atividade contraditéria e mes- mo confusa de um grupo de jovens estu- dantes da Faculdade de Direito de Sao Paulo, que publicou em 1833 seis ntimeros da Revista da Sociedade Filomitica, onde po- demos ver a curiosa mistura de atragéo e repulsa pelo Romantismo, que comegava a ser conhecido por meio dos autores portu- mM Awroxto CaNDIO9 gueses € franceses. O propésito desses mogos era afirmar a identidade e autono- mia da literatura brasileira, inclusive reco- mendando 0 abandono dos classics ¢ da sujeigio aos autores portugueses; mas a0 mesmo tempo temiam na prética as novas tendéncias e preconizavam obediéncia As yelhas normas. 3. Dentro da vacilante consciéncia criti- ca em formagao, faltava mobilizar duas idéias de Ferdinand Denis: quanto aos te- mas, privilegiar segundo um espirito novo o tratamento literério da natureza brasileira edo indio, que como temas secundrios vi- nham do século XVIII; quanto & concepgio estética, o reconhecimento de que o Roman- tismo era a grande atualidade, sendo mais adequado &s novas aspiracées. Nesse processo foi decisiva a conver- sfio romantica de um grupo de jovens brasi- leiros residentes em Paris mais ou menos entre 1882 ¢ 1838. Eles foram bem acolhi- dos por intelectuais e artistas franceses que tinham vivido no Brasil e faziam parte do 23 © Rosawnsio no Baas, Institut Historique, onde puderam falar so- bre a patria. Em 1836 publicaram os dois ‘inicos ntimeros de uma revista considera- da marco fundador do Romantismo bra: leiro, embora a absoluta maioria da matéria fosse de Astronomia, Quimica, Economia. Mas 0 titulo indigena, Niterdi, equivalia a um programa nativista, ¢ no primeiro mi- mero Domingos José Goncalves de Maga- Ihdes (1811-82) publicou, retomando Denis, o “Ensaio sobre a hist6ria da litera- tura brasileira”, no qual tragava o programa renovador, completado pelo do prefiicio do livro que publicou no mesmo ano, Suspiros poéticos e saudades, considerado pelos con- tempordneos 0 ponto de partida da trans- formacdo literéria ¢ iniciador da literatura propriamente brasileira. Magalhies foi um caso interessante de renovador sem forca renovadora. O seu mediocre livro de estréia, Poesias (1832), é rotineiramente neocléssico, mas tem 0 to- que nacionalista do tempo: patriotismo ace- so e celebragao da liberdade politica, banha- dos na embriagués da cidadania recente. Quando o publicou, Magalhaes ja devia es- tar querendo alguma coisa diferente, tanto 26 Axronto Cano109) assim que ao viajar para a Europa no ano segitinte escreveu uma “Carta”, decalcada na de Sousa Caldas de 1790, na qual, a exemplo deste, rejeita o uso da mitologia ‘outro deve ser o maravilhoso da poe- moderna”. ‘Ao receber na Franca 0 impacto das no- ‘vas tendéncias nao perdeu a dicgao neoclés- sica, mas incorporou concepgbes € técnicas que foram reveladoras no Brasil: sentimen- to religioso como garantia da alta fungao moral da poesia; imitagéo direta da nature- za, nao dos textos clissicos, a fim de poder manifestara originalidade do génio, rejeigho das formas fixas a favor de estrofes livremen- te organizadas, em poemas sem molde pré- vio, para assegurar liberdade ao discurso. Como se vé, um programa de cunho roman- tico, devendo ser destacado o tiltimo topico, cheio de conseqiiéncias que foram muito além das suas proprias realizagoes. O fio condutor da concepgao de Maga- Ihdes aparece no citado ensaio de 1836, ¢ era o que se pode denominar “teoria das duas literaturas”, de Frederico Schlegel, na qual ele se apéia sem mencionar a fonte, do mesmo modo que seu amigo Pereira da Sil- 2 © Ronanrsno No Bras va noutro ensaio, publicado no miimero 2 da Niteroi: “Estudos sobre a literatura”. Segundo essa teoria, as nagdes de civi- lizagao ocidental tém duas literaturas que coexistem: uma, classica, foi elaborada arti- ficialmente a partir da tradigio greco-latina € nfo se coadunava com a sensibilidade oriunda do Cristianismo; a outra, roménti- ca, crescera naturalmente a partir do génio de cada nagio, ¢ aparece em autores como Dante, Shakespeare, Calderén. O espirito moderno consistiria em romper a coexistén- cia ¢ promover o triunfo da literatura nacio- nal, que no caso brasileiro deveria levar em conta a capacidade poética do indio. A poe- sia primitiva deste poderia exercer uma agao regeneradora equivalente & que os cantos de Ossian exerceram sobre as literaturas da Europa, sugere Magalhdes, que todavia néo abordow nenhum tema indigena nos Suspi- ros poéticos (e mais tarde suprimiu o para- Jelo quando recolheu o ensaio em livro). Além disso, 0 grupo da Niteréi preconizou a filo- sofia espiritualista ¢ adotou o ecletismo em moda na Franga, certo de que assim estava sendo coerente com o Cristianismo, consi- derado essencial para a reforma literdria, 28 [Antonio CaNDi09 Esse grupo foi moderado no desejo de reforma, ¢ isso ajudou a recepgao desta no ambiente intelectual brasileiro, pobre ¢ ain- da preso ao Neoclassicismo banalizado. O comedimento de Magalhies contribuiu para dar ao nosso Romantismo inicial um ar de respeitabilidade, que trangiiilizou a cultura oficial ¢ evitou choques, operando uma tran- sicdo branda e quase sempre trivial, na qual pareciam importar principalmente desejo de autonomia ¢ o sentimento patridtico, bem- vindo por todos, Por isso € posstvel dizer que esse Romantismo inicial foi sobretudo programiilico € convivent bem com a tradi- co. Tanto assim que 0s seus integrantes ain- da escreviam tragédias de corte tradicional e epopéias, como foi o caso d’A confederagio dos Tamoios, de Magalhies, poema em dez cantos sobre uma rebeliao de indios contra 0 colonizador, no século XVI. Publicado em 1856 depois de longo preparo, ele fora con- cebido para ser a grande demonstracéo de validade nacional do tema indigena, mas re- sultou uma obra desinteressante ¢ pesada, da qual raros trechos resistiram ao tempo. ‘Ao lado de Magalhaes ficou sempre 0 seu amigo e admirador Manuel de Araujo » (© Rosnisno No Basie Porto-Alegre (1806-79), que tendo chega- do antes & Franca péde conviver 14 com Almeida Garrett, exilado, ¢ receber dele su- gestdes renovadoras. O seu poema “Con- tornos de Népoles”, publicado no ntimero 2 da Niteréi junto com impressées de via- gem, parece mais proximo do novo espirito que os de Magalhies, Outros poemas dele, incluidos depois no livro Brasilianas (1863), t¢m uma intimidade pitoresca com 08 costumes e a paisagem do interior do Brasil, ¢ isso os situa mais perto do progra- ma de nacionalismo estético, ja que o agu- do senso dos lugares, caracteristico do Ro- mantismo, aparece nos Suspiros poéticos com referéncia a paises da Europa. Porto- Alegre foi discipulo do pintor Debret na Academia de Belas Artes do Rio de Janei- ro, ¢ talvez tenha aprendido com ele a fixar 0 trago expressivo dos tipos humanos e dos ambientes. Pintor razoavelmente talentoso de corte académico, fez apesar disso alguns, quadros pouco conhecidos que, pela con- cepcio fantasmagérica ¢ pela liberdade do traco, fazem lembrar os de William Blake. ‘Tudo somado, a sua vida literdria pare- ce pouco valiosa, inclusive porque o grande 30 [Asrani0 CANDID projeto que o ocupou durante mais de vinte anos foi a epopéia em quarenta cantos Co- Jombo (1866), mediocre e cansativamente prolixa. O objetivo era mais ambicioso que os dos contemporaneos que fizeram poemas épicos, ~ sobre a Independencia (Teixeira e Sousa) ott sobre 0 indio (Magalhées, Gon- calves Dias). Ele qutis abranger toda a Amé- rica, sem esquecer a Europa no prélogo. Mas nao foi além de uma rotina sem surpresas. Eisses dois escritores ¢ diversos outros do primeiro Romantismo estiveram ligados a uma importante associagdo erudita fun- dada em 1838 pelo General Cunha Matos Januério da Cunha Barbosa, o Instituto Hist6rico, que em 1839 comecou a publi- car uma revista ainda existente. O Instituto contribuin para dar cunho respeitavel a re- novagio literéria, inclusive porque a partir dos anos de 1840 era freqiientado assidua- mente pelo Imperador Pedro II, que patro- cinou generosamente atividades intelectuais e, sendo ele proprio homem culto, dew-lhe uma espécie de legitimidade. Isso foi posi- tivo de um lado, a vista da pobreza do meio, que tornava bem-vindo qualquer apoio; mas foi negativo pelo conformismo palaciano que 3 (© Rowaymawo no Bratt favoreceu, tolhendo eventuais rebeldias, que 86 mais tarde se fariam sentir como corren- te alternativa, em outros ambientes. primeiro Romantismo, marcado pelo compromisso e os meios-tons, teve entre outros méritos o de fundar a critica literé- ria no Brasil, tomando como ponto de refe- réncia a discussao do problema da autono- mia. Havia de fato uma literatura brasileira? Seria ela distinta da portuguesa? A polémi. ca e as hesitagdes prolongaram-se até tar- de, havendo alguns que afirmavam a impos- sibilidade de haver duas literaturas dentro da mesma lingua; outros adotavam critério puramente hist6rico, ou mesmo politico, afirmando que a partir da Independéncia a literatura praticada no Brasil se tornou dis- tinta da portuguesa; os mais radicais, que acabaram prevalecendo, eram no caso os esteticamente moderados rominticos ini- ciais, que achavam que no Brasil sempre houvera uma literatura prépria, embora menos nitidamente caracterizada antes da renovagao que propuseram. Isso gerou como pressuposto a neces- sidade de saber o que era essa literatura € de reunir os seus produtos, problema qua- 2 Astonia Canoico se patético, que preocupou toda uma gera- cao. Os ensaios da Niterdi evidenciam que 08 seus jovens autores nao sabiam dircito quais eram os escritores do passado, ¢ Ma- galhaes conta como andou fazendo buscas em bibliotecas da Itdlia ¢ da Franga, atris de textos que nao conseguia localizar. A in- formacdo que tinham se limitava ao que fora registrado por Denis, Garrett e Janudrio, compreendendo os poetas da segunda me- tade do século XVIII, alguns posteriores € contemporineos mais velhos. Em geral, pri- vilegiavam Basilio da Gama e Duro, devi- do ao tema indianista; em seguida, Claudio Manuel, Gonzaga, Alvarenga Peixoto ¢ Sil- va Alvarenga, apesar do arsenal clissico. Esse era o ponto de partida, antes do qual sabiam da existéncia de alguns cronistas que nao conheciam, além de imaginarem a existéncia de registros que teriam preser- yado a desejada poesia original dos indios. Como predecessores imediatos e inspirado- res, destacavam Sousa Caldas, Séo Carlos e Monte Alverne, devido ao tema religioso. E como se tratava de engordar a lista, su- pervalorizavam poetas insignificantes, al- guns dos quais ainda vivos, como 0 préprio 3 (© Romario No Bras Januario, Vilela Barbosa, Gualberto dos Reis. Mas néo sentiram a importancia de Gregério de Matos, revelado em amostras insuficientes no Parnaso de Januario. Esse desejo comovente de provar a existéncia de uum corpus literério proprio levou os primei- ros romAnticos a de certo modo inventara literatura brasileira, tentando um primeiro levantamento, que a marcha da investiga- cao e o estabelecimento de critérios criti- cos foram ampliando. O trabalho pioneiro de Jamusrio se pro- longou praticamente até a Histdria da lite- ratura brasileira (1888), de Silvio Romero, quando ficou nitida a existéncia de uma tra- digo ponderivel, sobretudo porque j4 po- dia incluir os autores do século XIX. No tempo do Romantismo esse trabalho foi re- presentado principalmente pelos resumos histdricos, as antologias, as biografias, que tragavam a sucessio das obras, coleciona- vam textos e narravam com toque romanes- co a vida dos autores. As antologias mais, importantes foram o Parnaso brasileiro (2 volumes, 1843-5), de Joao Manuel Pereira da Silva (1817-97), que jé encontramos ao falar da Niter6é, e 0 Horilégio da poesia bra- 4 Aasronio Cano sileira (3 volumes, 1850-3), de Francisco Adolfo de Varnhagen, Ambas sao precedi- das de introducées criticas € histéricas, a exemplo do “Bosquejo da histéria da poe- sia brasileira”, de Joaquim Noberto (intro- ducio ao set livro Modulagdes poéticas, 1841), o primeiro resumo da nossa litera- tura feito por brasileiro. Joaquim Norberto de Sousa Silva (1820- 91), disciptilo fervoroso de Magalhaes, foi péssimo poeta, péssimo narrador, critico ra- zoavel e bom pesquisador, que passou a vida realizando as tarefas criticas propostas ou sugeridas pelo movimento de renovagao, ini- ciado por Denis ¢ acelerado pelo grupo da Niterdi. A partir dos anos de 1840 publi- cou artigos e criou um tipo de edigiio de tex- tos do passado ¢ do presente, acompanha- dos de materiais informativos de valia, segundo o critério em voga de correlacionar vida e obra, Algumas das edigdes que co- mecou a preparar foram terminadas por outros, ja no século XX. Norberto participou de tm trabalho de recuperacao histérica bem caracteristico do esforco reconstrutivo dessas gerag6es: ada Inconfidéncia Mineira de 1789, que ficara 38 (© Romuymatio x0 Beast na sombra devido ao cunho republicano € ao fato de seus figurantes terem sido con- denados como réus de lesa-majestade pelo governo da av do primeiro Imperador, bi- savé do segundo, Recuperar a Inconfidén- cia foi algo que se somou a valorizagéo do indio, como expressio do desejo de afirmar a identidade do Brasil em relagdo ao coloni- zador, tanto no terreno politico quanto lite- rério, pois dela haviam participado intelec- tuais ¢ poetas. As obras destes foram entio editadas ou reeditadas, e sobre eles sturgi- ram, a partir do decénio de 1840, roman- ces, poemas, pecas de teatro. Um fecho des- se movimento foi a Historia da Conjuragao Mineira (1873), de Norberto, significativa, alids, da relativa ambigitidade com que al- guns abordaram o tema: se por um lado exaltavam 0 sentimento de liberdade dos inconfidentes, lamentavam por outro 0 ca- réter regional do seu movimento, que con- trariava 0 desejo de unidade, ao prever a separacao de apenas uma zona do pais. Era este, com muita firmeza, 0 ponto de vista de Francisco Adolfo de Varnhagen (1816-78), o verdadeiro fundador da histo- riografia brasileira. Até ele, tinha havido 36 Antonio CanDi00 sobretudo crénica, isto é, relato de aconte- cimentos sem diretriz interpretativa, ¢ as primeiras obras de histéria propriamente dita foram devidas a estrangeiros, como o famoso poeta inglés Robert Southey. Varnha- gen ndo apenas escreveu monografias ba- seadas na mais rigorosa investigagao docu- mentiria; ndo apenas localizou e publicou textos inéditos do passado; mas é autor da Hist6ria geral do Brasil (2 volumes, 1854- 7), na qual descreve ¢ analisa 0 processo pelo qual o pais se tornou uma nagio. Des- te modo, fez no dominio da histéria, com smuito mais competéncia e amplitude, 0 que os estudiosos de literatura procuravam fa- zer do seu lado. Ao contrario deles, Varnhagen tinha uma concepgio anti-romantica do indio, que apresentou como selvagem cruel, desprovi- do de instituigdes e crencas humanizadoras, em relacéo ao qual se justificavam os méto- dos do colonizador. O seu ponto de vista acentuadamente conservador discrepava, ainda, por justificar sempre a politica me- tropolitana, divergindo, por isso, do forte nativismo do tempo. Tanto assim, que minimizou, ou mesmo desqualificou os 37 (© Romans NO Bras movimentos de inconformismo e rebeldia, tao caros a sensibilidade dos romanticos liberais. ‘Varnhagen contribuitt também para os estudos literdrios (j4 vimos a importéncia do seu Hlorilégio), inclusive publicando tex- tos medievais portugueses e textos brasi- leiros do periodo colonial. A sua obra, to- mada no conjunto, exprime a ambigdo construtiva dessas geragées, que definiram o que eram a nacionalidade e a literatura brasileira, procurando nao apenas estabe- lecer o cfnon desta, mas interpreté-la se- gundo o espirito da época, que em critica preconizava o tratamento biografico e a de- finicdo do génio nacional por meio da cor- relag&o com a natureza e a sociedade, O escrito mais Iticido da nossa critica daquele tempo € o ensaio “Da nacionalida- de da literatura brasileira”, publicado em 18483 na revista Minerva Brasiliense por um jovem que morren em 1847 na quadra dos, ‘Yinte anos: Santiago Nunes Ribeiro. Ele retoma os argumentos correntes, mas 0s de- senvolve com mais inteligéncia que os pre- decessores e stcessores. Aplicando logica- mente o pressuposto que as literaturas séo 38 Awronto CaNDI0 relativas ao meio ¢ a época, afirma a auto- nomia da brasileira desde as origens ¢ mos- tra que nao hé razio para lamentar, como se costumava fazer, que os arcades tenham seguido a norma neoclassica, pois eraa que existia como orientagéo normal no tempo. A critica nascida com 0 Romantismo, diz ele, nfo podia ser dogmatica nem se basear em padrées fixos; devia analisar a correla- cAo entre a obra ¢ a época para compreen- der 0 seu significado. Com isso Santiago nio apenas avaliou com maior pertinéncia a pro- digo literdria do Brasil, mas estabeleceu a. primeira divisio satisfatdria de suas etapas. ‘Acitada Minerva Brasiliense (1843-5) foi a primeira revista que manteve nivel ele- yado e durou o bastante para movimentar as idéias literérias, em parte devido a orien- tag&o que Ihe deu Santiago Nunes Ribeiro. ‘Ao lado do Instituto Histérico e sua revis- ta, ela exprime certo amadurecimento da vida intelectual no Rio de Janeiro. 4, Portanto, o Romantismo brasileiro foi inicialmente (e continuou sendo em parte 9 © Romavnsio wo Baas até o fim) sobretudo nacionalismo. E na- cionalismo foi antes de mais nada escrever sobre coisas locais. Daf a importancia da narrativa ficcional em prosa, maneira mais acessivel e atual de apresentar a realidade, oferecendo ao leitor maior dose de verossi- milhanga e, com isso, aproximando o texto da sua experiéncia pessoal. O romance comecou a ter voga duran- te os anos de 1830 por meio de tradugées. Eram sobretudo narrativas de tipo folheti- nesco, carregadas de episédios melodrama- ticos, que se refletiram nas primeiras tenta- tivas feitas aqui, sob a forma de contos e novelas insignificantes. Considera-se oficial- mente como sendo o primeiro romancista propriamente dito Anténio Goncalves ‘Tei- xeira e Sousa (1812-61), autor também do primeiro poema longo de tema indianista, por sinal muito ruim: “Trés dias de um n vado” (1844), Um ano antes tinha publica- do O filho do pescador, e em seguida publ cou mais cinco romances até 1856. Escritor de terceira ordem, apostou na peripécia ¢ na mais desabalada complicacgéo, ao modo dos livros de aventura e mistério que eram entéo devorados pelo ptiblico, tanto aqui 0 Awronto Cano. (onde ele era bem pequeno) quanto na Eu- ropa. No entanto, nao chegou & popularida- de, e dos seus livros 86 dois tiveram segun- da edigdo até hoje. Esses livros atingem por vezes as raias do grandioso pela fitria de urdir ¢ complicar acontecimentos, poden- do-se dizer de alguns deles, como A provi- déncia (1854), o que disse certo critico nor- te-americano dos de um autor do seu pais: “So tao ruins, mas tao ruins, que chegam quase a ser bons”... O que mais atraiu o leitor daquele tem- po em matéria de romance parece ter sido o de costumes, no qual ele encontrava a vida de todo o dia, sem prejuizo dos lances ro- manescos que eram entdo indispensévei O brasileiro parecia gostar de ver descritos os lugares, os habitos, o tipo de gente cuja realidade podia aferir, e que por isso Ihe davam a sensacio alentadora de que o sen pais podia ser promovido a esfera atraente da arte literdria. A voga do nosso romance comega de fato com uma despretensiosa narrativa de costumes do Rio de Janeiro, A moreninha (1844), 0 primeiro grande éxito de ptblico na literatura brasileira, que até hoje € reeditado, lido e estimado. a (© Romano no Basic ‘Seu autor, Joaquim Manuel de Macedo (1820-82), estava terminando 0 curso de Medicina ¢ teve uma longa carreira de r0- mancista, dramaturgo, cronista e até poeta. Sem ter escrito nenhuma obra de real valor, compés algumas que sao legiveis, num es- tilo agradével quando superava os rompan- tes melodramaticos em moda. Historica- mente, interessa por ter fincionado como modelo do que era ser escritor, ao mostrar a seus contempordneos que a literatura po- dia ser caminho para a popularidade. A sua novelfstica exprime bem a esté- tica romantica, pela mistura de realismo espontineo e lances folhetinescos, numa prosa que também transita da simplicidade & afetagdo. Certos romances dele, como O. mogo Ioiro (1845), combinam o bom senso da observagao dos costumes as mais des- vairadas complicagées do arsenal romanes- co, algumas inspiradas por autores como Eugéne Sue. A veia humoristica e a bonomia conciliadora nao impediram Macedo de es- crever ficg6es de grave contetido social, como as que consagrou ao problema da es- cravidao: As vitimas algozes (1869). Nem apagaram os tragos de melodrama tétrico, n Axronio CaNDIOO presentes de maneira flagrante no poema narrativo “A nebulosa” (1857), verdadeiro paradigma do Romantismo tenebroso. O aparecimento do romance, género adaptado a sensibilidade moderna, foi um verdadeiro acontecimento, pelas perspecti- vas que abritt. Igualmente importante foi a revelagiio de Anténio Gongalves Dias (1828- 64), o primeiro grande talento do Roman- tismo brasileiro, que parece finalmente con- figurar-se com ele, para além dos programas e das intengées. O essencial da sua obra poética esta contido em trés livros: Primei- ros cantos (1847), Segundos cantos (1848), Uiltimos cantos (1851), revistos e reunidos num volume em 1857. Eles foram conside- rados pelos contemporaneos como a verda- deira pedra fundamental da poesia brasilei- ya moderna, sobretudo porque traziam finalmente um conjunto de boa qualidade sobre o tema do indio, que até entdo havia suscitado poucas e em geral mediocres pro- dugdes. A obra de Goncalves Dias foi no Brasil a primeira de elevada qualidade depois dos Arcades do século XVIII, como concepgio e como escrita. A cadéncia melodiosa, 0 dis- a (© Romansno No Bras cernimento dos valores da palavra ¢ a cor- regao da linguagem formavam uma base, rara naquela altura, para a calorosa vibra- cio € 0 sentimento plastico do mundo que animam os seus versos. O tempo desgas- tou a maior parte de sua obra, como a de. todos os contemporaneos, ¢ 0 que dela res- tou é hoje relativamente pouco. Pouco, mas bastante para manter a sua posigdo, devida sobretudo aos poemas indianistas, os tini- cos realmente belos dessa tendéncia, néo porque correspondam etnograficamente ao que 0 indio foi, mas, ao contrario, porque construiram dele uma imagem arbitréria, que permitiu recolher no particular da rea- lidade brasileira a forca dos sentimentos e das emogoes comuns a todos os homens. O sopro poético ¢ a deformagdo cavalheires com que tratou os seus selvagens 08 con- servaram vivos, realizando 0 seu desejo de redefinir a tradic&o da literatura ocidental por meio de novas imagens, referidas a uma, gente diversa. No belo prdlogo em verso do poema “Os Timbiras” (1857) (que plane- jou como culminagao de sua obra, mas nio alcanca no conjunto 0 desejado nivel), ele substitue a coroa classica de louros por 4s [Awana CaNDIBO outra, feita com as flores brancas da acécia eas amarelas dos sassafras, o que pode ser tomado como metéfora iluminadora da ten- tativa indianista. Apesar de alguns poemas bons de ou- tro tipo, como a singela “Cangao do exilio” e uns poucos entre os que chamou “Hinos”, foi portanto no tema indianista que produ- ziu os melhores versos, como “Maraba”, “O canto do Piaga”, “O leito de folhas verdes” e sobretudo “I-Juca Pirama”. Este é um poe- meto heréico sobre o prisioneiro de uma tri- bo inimiga que, contrariando o heroismo in- flexivel do indio convencional, se humilha para ter a vida salva, a fim de poder conti- nuar guiando o pai cego. Mas este o maldiz, porisso, ¢ ele acaba lutando com denodo para tornar-se digno do sacrificio ritual. O movi- mento do poema € expresso pela variagdo de metros ¢ ritmos em diferentes combinagoes estroficas, tudo admiravelmente adequado & modulagéo das emogées. Jé em “O leito de folhas verdes” o assunto é um encontro amo- roso frustado, em que a mulher lamenta a attséncia do homem num monélogo cuja den- sidade aumenta pela representacdo da fuga do tempo, gracas a recursos de métrica ¢ lin- 4s (© Rowawisio No Bras guagem que bem mostram a forca de Gon- calves Dias nos bons momentos. Embora integrado no espirito romanti- co, ele guardou certo compasso neoclissi- co, que soube combinar de maneira pessoal & musicalidade conquistada pelo seu tempo. B © virtuosismo Lhe permitiu escrever um poe- maem portugués arcaico, as “Sextilhas de Frei Antéo”, como se quisesse demonstrar que a ‘busca da expressio nacional comportava fi- delidade a tradi¢ao, e a liberdade se entroncava_ na obediéncia ao génio intemporal da lingua. Além disso, foi ensafsta e bom dramaturgo, tendo também escrito uma monografia etno- grifica, O Brasil e a Oceania (1852), e 0 Di- ciondrio da lingua tupi (1857) Gongalves Dias fez parte da comissao de redagdo da revista Guanabara (1849-55), com Joaquim Manuel de Macedo e Araujo Porto-Alegre. Foi um periddico importante, que marcou 0 fastigio dos iniciadores da li- teratura romantica no Brasil e seus imedia- tos continuadores. Momento em que eles foram vistos como fundadores gloriosos, ¢ em que a renovagao se consolidara com a introdugao do romance e a demonstracio de qualidade dada por Goncalves Dias quan- 6 Aronia CaNei60 to a viabilidade dos temas nacionais. O movimento se justificara e se impusera, coincidindo com o que alguns historiado- res consideram o fim do processo de con- solidacio da Independéncia. ‘Tendo entrado em conflito com as ten- déncias nacionalistas de seus stiditos bra- sileiros, ¢ querendo além disso resolver a complicada sucessio do trono portugués, 0 Imperador Pedro I abdicou em 1831 ¢ se retirou para Portugal, deixando 0 filho de cinco anos como sucessor. Desde entao até 1840 0 pais foi governado por sucessivas regencias, que enfrentaram movimentos de rebeliao contra o poder central. Em 1840, 0 jovem Pedro II foi declarado maior antes dos 15 anos, mas as rebeliées continuaram até a tiltima, de 1849, exprimindo em muitos casos as tendéncias regionais de autonomia, que poderiam ter levado, como na América Espanhola, & divisio do Brasil em pelo me- nos trés ou quatro paises, A partir de 1850 houve paz interna e um grande progresso devido & extingao do tréfico de escravos, ten- do por conseqtiéncia a liberagéo dos capi- tais envolvidos nele, que puderam ser apli- cados no desenvolvimento do sistema de a (© Rowusmsno no Baas. crédito e em investimentos modernizadores de varios tipos, inclusive as estradas de fer- ro. Na literatura, 0 decénio de 1850, viu a consagracéo do Romantismo, cuja manifes- taco considerada mais zacional, o indianis- mo, teve nele o momento de maior prestigio e, extravasando da lirica, chegou ao mesmo tempo ao romance e A epopéia, numa curio- sa coexisténcia de arcaismo e modernidade. Além das duas obras eruditas de Gon- calves Dias, jé citadas, apareceram, na Re- vista do Instituto Histérico, uma monografia de Joaquim Norberto sobre aldeamentos indigenas da Provincia do Rio de Janeiro (1853), e um longo ensaio de Gongalves de Magalhaes, “Os indigenas do Brasil peran- tea histéria” (1859), refutacao do ponto de vista etnocéntrico de Varnhagen, demons- trando (apesar do tom apologético) maior sensibilidade em relagéo As culturas indi- genas. Vimos que Magalhaes publicara trés anos antes A confederagio dos Tamoios, aclamada pelos seus numerosos devotos, mas acerbamente criticada por José de Alencar, sob 0 pseudénimo de Ig., numa série de brilhantes artigos depois reunidos 48 Axronto CaNDI09 em optisculo. Na defesa de Magalhaes se agitou a literatura oficial, ¢ o préprio Impe- rador nao hesitou em publicar sob pseudd- nimo um escrito de elogio. Muito mais moderno, Alencar mostrou que para versar os temas indianistas a for- ma antiquada posta em pritica por Maga- Ihfes nao servia, com o seu duro verso sem rima e as sobrevivéncias do maravilhoso convencional. Visivelmente inspirado por Ossian e Chateaubriand, preconizava uma linguagem transfundida de cor local e mu- sicalidade, que tentou a seguir sob a forma do romance, a comegar por O guarani (1857), que teve grande éxito e se tornou dos mais lidos pelo ptiblico brasileiro, além de fornecer bem mais tarde o tema para o livreto da 6pera do mesmo nome, composta pelo maior misico do tempo no Brasil, An- tOnio Carlos Gomes (1836-96), ¢ estreada com éxito no Scala, de Miléo, em 1870. O nacionalismo literério se completava assim pela misica, que também absorvia as nor- mas européias, para dar viabilidade geral ao desejo de exprimir 08 nossos aspectos con- siderados mais originais. Fazendo miisica romantica de tipo italiano para assunto in- 4” (© Romarnsito No Beast digena, Carlos Gomes valeu-se do direito de usar em qualquer pais de cultura ocidental as linguagens que permitem a comunicacao entre os que dela participam. Em 1858, um grande erudito, Odorico Mendes (1799-1864), em nota da sua tra- dugio das Bucélicas, de Virgilio, identifica- va quatro reas temdticas na literatura bra- sileira, correspondendo aos diferentes tipos humanos: a referente aos “mais civilizados”, que pouco se distinguiam dos europeus; a referente aos selvagens; € a que deveria to- mar como objeto os sertanejos, deixados de lado até entao, e que ele considerava mais ou menos equivalentes aos pastores de bu- célica, ¢ tipicos do interior, merecendo maior atencéo dos escritores. A seguir acres- centa a possibilidade de um grupo inspira- dor, os negros, € conclui dizendo que ao abordar esses elementos caracteristicos, os autores assegurariam uma literatura pro- priamente nacional. Estas observagées in- teressam porque sfio uma espécie de pre- monicéo do que comegaria a ocorrer: a introdugaio do romance regionalista e 0 in- teresse crescente pelo negro, em verso e pro- sa, nos anos de 1860 ¢ 1870. so Antonio CanDibo 5. O decénio de 1850 viu também o que se costuma chamar, & maneira dos portu- gueses, Ultra-romantismo, tendéncia que vinha dos anos de 1840 e se expandiu nes- se, numa espécie de literatura da mocida- de, feita por jovens que, antes das atenua- Ses inevitaveis trazidas pela “vida pritica”, deram largas ao que alguns criticos caute- losos do tempo chamavam “os exageros da escola romantica”. Esses poetas levaram a melancolia ao desespero ¢ o sentimentali mo ao masoquismo, além de os temperar freqitentemente pela ironia € o sarcasmo, nao raro com toques de satanismo, isto ¢, negacao das normas ¢ desabalada vontade de transgredir, que levou alguns deles & poe- sia do absurdo ¢ da obscenidade. Do ponto de vista formal, € 0 momento de avango da musicalidade no verso; quanto aos temas, manifesta-se pouco interesse pelo patriotis- mo ornamental e pelo indianismo, perma- necendo vivo o sentimento da natureza e surgindo a atragao pela morte. Significativos dessas tendéncias foram os grupos de estudantes de Direito, sobre- tudo os de Sao Paulo, que desde o decénio st (© Romario no Beast de 1830 exprimiam uma sociabilidade es- pecial, que se tornou objeto de lendas e con- tribuiu para a imagem do Romantismo como rebeldia, sofrimento e mal-do-século. Fecha- dos numa pequena cidade provinciana, for- mando grtpo a parte, os estudantes contri- buiram de maneira original para essa literatura de mocidade, que parecia aberran- te, mas acabou, com o tempo, aceita em ee como manifestagéo peculiar de talen- Eles formaram uma espécie de piiblico restrito e caloroso, que produzia e simulta- neamente consumia literatura, assegurando a esta (0 que nao era freqitente na época) circulagio e apreciagio. Deste modo, houve oportunidade para se acolherem niio s6 os produtos da rotina, mas também os diver- gentes, que exprimiam a ousadia eventual desse grupo suspenso no flanco da socieda- de, em cujos padrées os seus membros aca- bariam por integrar-se um dia, quando cum- prissem o seu destino social de quadros juridicos, politicos e administrativos da na- Os anos que vio mais ou menos do fim do decénio de 1840 aos meados do decénio 32 [Avrronio CANDIOD de 1860 sao 0s mais caracteristicos dessa literatura da mocidade, expressa em nume- rosas associagdes culturais ¢ pequenos pe- niédicos, como Revista do Ensaio Filosn- co Paulistano (1850-642) ¢ Ensaios Literarios do Ateneu Paulistano (1852-60). ‘A-colaboragio ¢ desigual, obviamente, mas ha, nelas ¢ noutras, paginas de qualidade, como os ensaios de um jovem que soube avaliar com notavel inteligéncia critica a natureza do Romantismo ¢ a produgéo do momento: Anténio Joaquim de Macedo Soares (1838-1905). Representativo dessa atmosfera espi- ritual foi Manuel Antonio Alvares de Aze- vedo (1831-52), uma espécie de menino- prodigio morto aos vinte anos, antes de terminar os estudos de Direito, cujos escri- tos foram retnidos e publicados depois de sua morte em edigdo que misturou textos acabados, rascunhos, fragmentos, aos quais faltaram a selecdo ¢ o polimento do autor (Poesias, 2 volumes, 1858-5). A sua obra é portanto irregular demais e deve ser avalia- da pelo pouco que tem de melhor. Alvares de Azevedo possuia informa- cdo considerdvel para o tempo ¢ a idade. 8s © Romario no Beast Impregnado de Shakespeare, Byron, Hoff mann, Heine, Musset; obcecado pelas con- tradigdes do espirito e da sensibilidade, a sua produgao é mais densa que a dos con- temporaneos, sobretudo pelo dom de pas- sar de um pélo ao outro, modulando a dor e o sarcasmo, 0 patético € o cOmico, a grandi- loqiiéncia ¢ 0 prosaismo, com uma versati- lidade que era programada ¢ ele manifesta pela adesao a teoria roméntica dos contras- tes, a “binomia”, como a chamava, O seu livro seduzitt os leitores ¢ teve até o fim do século sete edigdes, 0 que é notavel para o Brasil atrasado ¢ estreito daquele tempo. Aprinefpio, o que mais se apreciou nele foi a vertente desalentada, sentimental ¢ melodramatica. Hoje, apreciamos os versos humoristicos, a primeira parte do drama Macério e certa poesia intimista ligada ao cotidiano, __ Possuindo acentuado espirito critico, Alvares de Azevedo encarou com reserva 0 nacionalismo estético que triunfava em seu tempo € concebeu a literatura como espaco sem fronteira, uma espécie de comunhdo universal dos talentos verdadeiros. Por isso, ndo apenas satirizou 0 indianismo como 7) Anromio CANDID convencao vazia, mas negou a independén- cia da literatura brasileira em relagio a por- esa, opondo-se deste modo a dois pro- feesres dowel Colégio Pedro II do Rio de Janeiro: Goncalves de Magalhaes e Santia~ go Nunes Ribeiro. © drama Macdrio é wma representagio saténica da mentalidade estudantil de Sao Paulo, e sua primeira parte ainda prende pela intensidade do desencanto e pela presenga da noite romantica, expressos numa prosa vibrante, cortada pelo sarcasmo e pelo de- sespero. O poema “Idéias intimas” é singn- lar para o tempo, gracas & naturalidade com que o prosaismo do cotidiano se associa & forca analitica e & emogéo. Os seus versos mostram a originalidade que surge por vezes nesse poeta desigual, a quem nao faltou uma pitada de genialidade. Bernardo Joaquim da Silva Guimaries (1827-8), colega ¢ companheiro de Alva- res de Azevedo, escreveu certo ntimero de poemas de corte meditativo, com uma inti- midade cheia de graca em relago A paisa- gem, que soube apresentar com simplicida- de. Mas o que sobreviveu de sua obra poética éa parte cOmica, grotesca ¢ obscena. O poe- 38 © Romasnsio No Bras ma “A orgia dos duendes” mistura de modo. verliginoso o folclore macabro ¢ 0 gosto ro- mantico do pecado, criando uma comicida- de que todavia se torna sadicamente cruel e, deste modo, manifesta os aspectos do Romantismo enquadrados na triade de Ma- tio Prag: “carne, morte e diabo”. Espirito bastante contraditério, transi- tou com facilidade do sentimentalismo a. negacao mais irreverente, que se pode ver nos poemas obscenos: “A origem do méns- truo”, sdtira divertida da tradig&o mitol6gi- ca, e “O elixir do pajé”, parédia dos poemas indianistas de Goncalves Dias, contando de que maneira certa erva misteriosa deu a um velho nigromante indio a mais desabalada energia pridipica. Bernardo foi mestre numa variante da poesia grotesca, 0 nonsense, o velho anfi- guri cultivado havia muito na literatura por- tuguesa, que teve no Romantismo brasilei- ro uma ocorréncia que se poderia considerar notavel, se os seus produtos tivessem so- brevivido em maior nimero. Sabemos que muitos além dele praticaram 0 género, en- tre os quais provavelmente Alvares de Aze- vedo; mas é claro que ao entrar na “vida 36 Asoni0 CANDID prética” eles descartavam tais poemas, ¢ 0s organizadores de obras péstumas jamais pensariam em inclué-los, Hé materiais iné- ditos a serem publicados, mas por enquan- to 0 que conhecemos é muito pouco. Cha- mada em geral “bestialdgico”, a poesia do anfiguri foi denominada expressivamente pelos estudantes romanticos de Séo Paulo “pantagruélica”. Vista de hoje, ela seduz pela forca da associagao livre e pelo insdlito das sitnacées, nascidas de um automatismo revelador de estranhas obsess6es. Ao mes- mo tempo, depois das experiéncias de her- metismo ¢ as do associacionismo surrea- lista, n6s a podemos ver como manifestacéio de um lado importante do jogo poético: a livre combinac&o de palavras ¢ 0 direito de elaborar objetos gratuitos. Esse gosto heterodoxo pela comicida- de, a obscenidade e 0 contransenso, tio vivo nos grupos estudantis de Sao Paulo, que- braa convencao romantica, que ia impondo © sentimentalismo piegas, 0 cansativo des- fiar de lamirias, numa linguagem que se automatizou rapidamente. Ele talvez seja um tipo peculiar de satanismo ¢ ajuda a expli- car certa parte inconformada da obra de 37 (© Romaymsto no Beast Joaquim de Sousa Andrade (1833-1902), que wsou no fim da vida o nome de Sousan- drade. A sua concepgdo muito pessoal ¢ a capacidade de jogar com as palavras, até 4 beira do nonsense, contribuiram para o des- caso dos contempordneos e explicam 0 in- teresse com que o restautrou em nosso tem: po a critica de vanguarda. © livro de estréia, Harpas selvagens (1857), néo tinha relevo especial, nem ino- vages, que aparecem na epopéia inacabada O guesa errante, cujos cantos ele foi publi- cado em edic6es aumentadas a partir de 1866 até o decénio de 1880. Embora com- prometido pela prolixidade implacdvel dos roménticos, é ma visdo transfigurada de toda a América, tendo momentos de grande. interesse, devido & imaginagio prodi as ousadias de linguagem e um admirdvel fermento de rebeldia, muito mais profundo que 0 desencanto mecanico da moda. A lin- guagem, cheia de tragos grotescos e pesqi sas de sonoridade, serve a uma visao hist6- rica de inegavel poder. Sousiindrade encara, por exemplo, de maneira movimentada e dramética, as culturas pré-colombianas, destrogadas mas presentes como forca viva; 38 [Awronto CANDIO9 no outro pélo, alegoriza o capitalismo nor- te-americano em fase expansiva, vendo nele com admiravel premonig&o uma componen- te diabdlica, que estrutura o texto mais sin- gular do poema: “O inferno de Wall Street”. Sao estrofes curtas, precedidas cada uma por uma rubrica em prosa, téo interessante quanto os versos, nos quais se acumulam jogos de palavra e sonoridades asperas, for- ‘mando um movimento de pandeménio que justifica o titulo, B em todo 0 poema nota- ‘se uma auséncia de sentimentalismo que reconforta, em comparagéo com 0 agucara- mento habitual da época. O lirismo agucarado de toque sentimen- tal, dissolvendo a natureza na emocao ¢ a emocdo na confissao, fot um dos tragos que mais atrairam 0 leitor do tempo. Ele predo- mina de maneira alarmante na produgdo média, em dezenas e dezenas de poetas, dos quais pode ser considerado paradigma Casimiro José Marques de Abreu (1839- 60), cujo livro Primaveras (1859) se tornow uum dos mais populares quase até hoje. A sua versificacio correta ¢ facil, a ternura algo mérbida do tom e a capacidade de desper- tar uma piedosa simpatia tiveram eco no 30 (© Rommwnsio no Baas, gosto médio; ¢ 6 a critica dos nossos dias, com Mario de Andrade, discerniu 0 que havia nele, por baixo dos tragos menciona- dos, de erotismo quase agressivo, disfarga- do pelo aspecto convencional do texto. Tal- ve, por isso Casimiro de Abreu tenha atraido tanto as mocas, que encontravam na sua obra a forga do sexo sem ofensa is conven- Goes. _Bem menos popular foi Luis José Jun- queira Freire (1882-55), hoje esquecido, monge beneditino'cyjo livro Inspiragdes do, claustro (1855) comoveu os contemportineos pelo desespero e pela representaco patética da morte, ligados ao egocentrismo, patente, num curto escrito autobiogréfico que expri- me a vocagéo romantica da auto-andlise de~ salentada, & qual nao faltava certo prazer no sofrimento, parte do “mal-do-século”. Esses dois e muitos outros que morre- ram cedo favoreceram a idéia corrente de que o Romantismo estava ligado a uma fa- talidade inexoravel, manifestada nao apenas no sentimento de malogro, freqiiente em seus versos, mas no préprio destino pes- soal, tocadlo pela morte precoce. “Lira dos vinte anos”, titulo de uma parte da obra de Cy “Axronto CANDO Alvares de Azevedo, bem poderia ser a epigrafe da produgio de todos eles. No decénio de 1850 surgiu um roman- ce singular em relagao as tonalidades ¢ con- cepgées predominantes: Memédrias de wm sargento de milicias, de Manuel Anténio de ‘Almeida (1831-61), publicado anonima- mente em folhetins de 1852 a 1858. Além dele, o antor 86 publicow artigos ¢ wm Hibreto de Gpera, sem imaginar que 0 set livro des- pretensioso, ¢ despercebido na hora, terla no futuro um éxito duradouro, que 0 tor- nou até hoje dos mais lidos ¢ estimados da nossa literatura. fs uma obra marginal, desligada das modalidades em voga, tanto realistas quan- to melodramaticas. Para comegar, 0 autor néo pertencia aos grupos literérios predo- minantes, ¢ portanto nao tinha satisfagdes a dar ao gosto oficial. Em segundo lugar, néio parece ter querido a principio escrever uma narrativa estruturada, mas apenas ir contando cenas ¢ episédios da vida popular do Rio de Janeiro nos anos de 1810 e 1820. Em terceiro lugar, como bom jornalista, ti nha golpe de vista para perceber 0 trago pi- toresco dos costumes. ‘Tudo isso 0 deixou a

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