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MARCELO MIRISOLA HOSANA NA SARJETA editoralll34 EDITORA 34 Edita M Lida Rua Hungria, $92 Jardim E Sio Paulo - SP Brasil CEP 01455-000 /Fax (L1) 3811-6777 wwwed tora34.com br right © Baltora 34 Lida,, 2014 ta © Marcelo Mirisola, 2014 n da capa da boate Kilt, em Soo P Capa, projeto grafico e editoracio eletrinica Revisor Beatriz Freitas Moreira 1 igi - 2014 CIP - Brasil. Catalogagdo-na-Foate (Gindicato Nacional dos Editores de Livios,R, Brasil) ora Biemoa B, ml do céu poluido paraa aera, agradeco essa io minuto do s po, me dew ese susto PROLOGO Ios dos 90 Arguipélago malaio — Indonésia, tha de Sumatra Houve uma época, antes da internet, que eu acreditava 50% em encontros € 100% em desencontros. Acreditava, inclusive, que encontros som te teriam possibilidade de acontecer em fungio dos desencontros. A vida era Sbvia, 0 verso nao levava porcentagens em consideragao e cons: pirava por qualquer coisa: tanto fazia se era um livro do Paulo Coelho ou a obra completa de Balzac Eu ia no embalo. Saia pra night com a quase certeza de {que voltaria muito bem acompanhado. Quase sempre vol tava. Tina trinta e poucos anos, um monte de cabelo em cima do cocuruto, um bom repertdrio e ~ as vezes — di nheiro pra dar garantia ‘Um cara pode ser desobrigado na vida? Acho que era ‘meu caso, além disso, eu e Breco éramos sécios num des: manche, A mulher dele fornecia marmita pra fora, ea ma fama do nosso estabelecimento as vezes nos causava em. baragos. Nada que nao pudesse set contornado pela labia do Brecio ¢ os encantos de Vania Marmiteira, (Os estelionatérios também amam. A diferenca, dizia Brecio: “E que a gente nao reconhe- ce firma no cartério’, Daf que muitos malucos, ¢ milicianos vindos das ilhas vizinhas, principalmente de Komodo ¢ Bali, frequentavam. as marmitas da Vania, que também lia taré e antecipava 0 futuro a partir das folhas de alcachofra. Uma ver.ela previu que eu correria o mundo e desfrutaria do sexo de muiitas mulheres. Achei razodvel, porque vivia de pau duro full-- ‘me e tinha um senso de humor erstico excepcional — alias, a vidente das alcachofras acrescentou: “elas nao resistem a ‘uma sacanagem bem aplicada, voce tem o dom de alegrar as femeas" Quem nao resistin foi ela, saudosa Vania Marmiteira, que morreu de AIDS e feliz da vida — verdade! — em mea dos dos 90. Eu nao era um cara bonito, mas sabia ficar bonito. ‘om o tempo, e apesar do Vinicius ¢ dos meus dons, entendi que as expectativas deviam ser invertidas. Em vez de sair para encontrar, safa para desencontrar. Tive essa show de pompoarismo numa boate préxima a Kuala Lumpur, azul a boate. A cor é fundamen se caso: anotem af: boate azul, Na oportunidad, ou seja, no instante luminoso em que a buceta daquela criatu intuigdo quando vi um ra deu umas baforadas na direcao da plateia, me convenci de que nao havia nenhuma arte em inverter a ordem natu- ral das coisas: apenas gindstica, matematica ¢ um pouco s6 um pouco — de imaginacéo, Digamos que as chances de me frustrar reduziam-se a quase zero. ‘Mas o melhor de tudo era contar com um acidente no meio do caminho. Ora, que acidente? © encontrat O que ais? Se acontecesse 0 encontro (as vezes sim...), bem, ai cera s6 correr pro abrago, € comemorar 0 ébvio com uma bela trepada A vida corria simples e mamifera em Sumatra «nas demas ilhas do arquipélago. Bastava estufar 0 peito, abrir uma latinha de cerveja, € urrar 1é do alto do Empire ‘ou 0 homem dos desencontros” State Building-cover: *S Infelizmente ndo consegui me transformar num gorla. Perdi o cabelo, Os cientistas de Bonobo inventaram 0 Via graea internet deu o ar de sua graca. Com o advento das redes sociais, as coisas se embaralharam radicalmente, Ho- je, nao sei mais fazer a diferenga entre encontro e desen- contro, ¢ desconfio que nao estou sozinho no meio de uma Sofias Coppolas, cobras & lagartos que sofrem do mesmissimo dilema, multidio virtual de gorilas, chimpanzés, sudades dos lupanares azuis de Kuala Lumpur CAPITULO 1 Saindo do Biro’, vinte e dois anos depois Eram quase 3 horas da madrugada, Uma azia dos dia bos, ew entornava mais uma dose de umburana pra ver se curava a queimacao, e nada. Resolvi que ia tirar o time de campo. Pedi mais um refil pro Biro, ¢ fii atras dem tixi © Biro é — ou era — 0 dono do Bird's Bar. Que fica bem na frente da lendétia boate Kilt, o Castelo da Cinderela da Nestor Pestana.! Imediatamente ao lado do Biro’, existe — deve estar ki até hoje — um canteiro descuidado sobre o qual repousava ta “vou convidar essa putinha triste para ir pra casa’. Aconte iturna e entristecida mariposa, Pensei comigo mesmo: — Oi —0i — Quer ir comigo? Exit, derrub las que feriam miché: a esquina da Nestor Pestana fiearam banguelas ram o Castelo Viking, Sumiram com as Cindere o meu coracio beega e vagabundo, Minha alma ¢ ahn? ‘Vamos pra casa. Dorme lé? —ahn? — Cinquentio. Nao sou puta, mogo. Paulina Denise havia recém-saido do Biro’. Onde a irma e Francisnight, 0 valete do forrd, digladiavam-se a olhos vistos. A garota que nao era puta estava meio perdida por causa da confusio, € um bocado triste — queria sair fora, dar érea, Cavalheiro que sou, pedi desculpas pelo en: gano, corrigi o mal-entendido e a convidei para ir a outro bar Bela noite, conversa vaivém, Apliquei a velha piada do cachorro que chupa a prépria pica, beijei as costas e a pal: ma de suas mos, Depois de trés cervejas, e de aproximada- mente uma hora de olhos nos olhos, refiz 0 convite: — Vamos pra casa. Dorme li? Dessa vez ela aceitou: 20 reais a conta do boteco, mais taxi, Apesar da breguice, gamei na Paulinha. Estava dis- posto a esquecer o chapéu de poodle que ela aninhava em cima da carapinha oxigenada, prometi para mim mesmo que iria relevar as roupas que ela usava, roupas de puta, porque nela, além do rabo perfeito,interessava-me sobre tudo a metafora, ¢ olha que eu odeio metiforas. A questo &a seguinte. Em Paulinha caia bem a figura da puta triste, ea como se aquela garota de vinte e poucos anos incorporasse a tristeza do mundo quando olhava de dentro dos seus olhos para os olhos de quem the pedisse um cigarro, um dedo de prosa ou socorro, ¢ 0 engragado é que 0s incautos, no final das contas, seguiam esse roteiro: cigarro, prosa, socorro, Nao foi diferente comigo. Ela ab- sorvia os despojos e as esperancas de quem a solicitava, engolia tudo. Dai emergi sua majestade. Paulinha Denise era um mar. “O mar brega de Mon gagua” eu pensava... que se purificava devolvendo & praia todas as sujeiras do mundo, F eu, claro, eu era a praia, A palavra “incorporar” nao & gratuita. Tanto Paula De nise, como a irma e Francisnight frequentavam terreiros, barra-pesadissimas la em Suzano, onde moravam. Num, belo dia, Paulinha disse que precisava conversar seriamen- te comigo. Explicou-me que recebia cinco entidades: ago- ra, s6 lembro da cigana Sarah e de uma outra chamada tia, Alzira,a dengosa. Acho que nem o Fernando Pessoa incorporava tanta gente. problema é que, por conta de sua quintupla perso- nalidade, as vezes, ela “estava mas nao estava’ diante de mim... e eu poderia “estar mas nao estar” diante de Sarah, a cigana, de tia Alzira e sabe-se li de quem mais Paulinha??? — peguei no braco dela, ¢ a sacudi — Oi, coragai — E voce? — ‘Tonto, agora sou eu. — Ah, td, entdo pega no meu pau. Ela aferiu a eregao e depois nos grudamos num beijo de lingua. No meio do beijo — de olhos fechados, juro — ocorreu-me o seguinte: “incorporacio por incorporagio, sou mais a Marisete’ Que, além de ser meu génio particular, sempre foi par- ceiro nas merdas em que nos gou, nem jamais entregaria a guarda prum Paulo Coelho ou pra dona Zibia Gasparetto em horsrio comercial, Mas no falei nada, claro que nao. Preferi nao estragar 0 que viria depois do beijo na boca, e guardei a maldade para ‘mim, Em seguida, para me tranquilizar (como se isso fosse B razodvel..), ela disse que sem os remedinhos seria dificil segurar a onda, Também garantiu que sua psicanalista era de extrema confianga. Sério? Pensando bem, Paulinha recomendara a psicanalista a si mesma, Como se fosse uma quituteira recomendada pela tia Alzira, Em se tratando de esoterismos, fazia todo senti do. Afinal, a psicanalista era a mesma mulher que havia prescrito uns tarja-preta pra ela nio sair de érbita de uma vez por todas. — Me pegaram roubando nas Lojas Americanas. Ela jurou que nao lembrava de nada. Eu acreditei. De- pois, me disse que seu Akira pagou a fianca direitinho «que, apesar dos lapsos que podiam durar cinco minutos ou um dia inteiro, ea, as ve7es, era uma garota perfeitamente normal. — Ti tudo hem pra vocé, coragio? Com excegio da psicanalista, tudo étimo! Pensei co- migo mesmo: “Ganhei na labia, ela tem uma bunda branca, redonda e macia, é engracada e a breguice dela, até 0 cha peuzinho de poodle, dentro do contexto, tem lé 0 seu élan, porral, ela nao sabe que ett sou escritor... nunca leu Dos toiévski e nunca vai ler Cioran, o negécio de Paulinha De nise é dona Zibia Gasparetto. Ah, obrigado, meu Deus. Uma mulher que pector e Amélie Poulain! Caraio, t6 livre da ficgdo se mis xmais vai encher 0 saco com Clarice Lis turando com a realidade! Paulinha nao é Orkut nem Face- book, nada de truque... Seu Akira?” Fiz umas contas: ha mais de vinte anos, desde os tem: pos das boates azuis de Kuala Lumpur, que eu nao ganha- va uma mulher na base da labia. O que se passava era 0 caso classic do macho que havia conquistado a fémea porque ela o havia escolhido, Danga do acasalamento, Na- tional Geographic. B eu era 0 macho em questo, O mais apto para andar de maos dadas com Paula Denise nas ruas do Bixiga A ganhei na madrugada, ela fazia meu pau endurecer ito ago. Nada de Viagra nem de metafisica, Se esté tudo bem? “Apesar das rimas involuntérias e das metaforas, té feito, minha cabrita Sem falar que Paulinha recebia cinco entidades! Cada noite eu teria uma mulher diferente na cama, ou, sei Ki, as cinco ao mesmo tempo. Surubso! Putaqueopariut! S6 fal- tava pedi-la em casamento, e explicar-Ihe delicadamente que porra de chaps amargar, té lindo, euzinho de poodle na carapinha era de timo, té perfeito, que venha com Ri votril, com a irma macumbeira & Francisnight, com seu. Akira e com todas as entidades, rimas e metaforas desse mundo e de alhures, #4 tudo hem, Paulinha Denise, claro que ta Os dias seguintes transcorreram na mais absoluta paz, amor e putaria. Eu nem ligava pro chapeuzinho de poodle e pras breguices dela, ta-la e fiquei sabendo, por intermédio da tia Alzira, que Exu Caveira formava dupla comigo desde 0 bergo, ¢ que (Ogum lancetava os dragoes que apareciam pelo meu cami- ho e me protegia dos inimigos mais filhos da puta. Claro, 10 contrario, passei a respei- tava explicado! $6 podia ser Ogum que mandava as xaro- pes embora no dia seguinte, eu e Zeca Pagodinho éramos filhos de Ogum — me senti muito bem acompanhado e m pouco menos cafajeste do que o costume, ah, Pauli nha, descobri que te amo demais, descobri em voce minha paz. Uma noite, Paulinha Denise bebeu além da conta. A cigana Sarah manifestou-se pela primeira vez, baixou ma- jestatica e implacivel, & queima-roupa: Vocé nunca vai amar ningném nessa vida. Ainda bem que Paulinha havia me prevenido. Safo, respondi na lata: — Ta certo, cigana. Mas agora vou te comer, vira de lado ai Isso! Paulinha era brega, mas tinha majestade. Uma garota bacana, inteligente, meio abilolada e muito gostosa. ‘A Capitu mareada que tanto pedi a Deus, sem o par de cornos. Agora, diante de todas as novidades, o que mais me incomodava era minha atividade de escritor. Nao queria que ela soubesse. Tinha vergonha. Acreditava sinceramen- te que essa era a raiz.de todas as cagadas da minha vida, do actimulo de todos os erros e infelicidades. Entretanto, eu estava decidido a no mentir, nio fazia sentido esconder 0 lado podre. Se ela quisesse mesmo ser minha mulher, teria de aceitar 0 pacote completo, eu & meus doze livros pu blicados. Mesmo porque, se eu ndo contasse, alguma enti- dade, digo, algum amigo meu ia aparecer ld em casa e so- prar pra ela Paulinha também nao me escondia nada. Assistente de hor, otal do sew enfermagem, disse que cuidava de um se Akira, e Ihe aplicava injegGes direto na pica. “E sobe?” “Ah, o pirulito ta meio gasto, mas sobe” Ab, Paulinha, garota jeitosa. Tao meiga. Uma das coi- sas mais bonitas do mundo era quando ela pedia licenga pra chupar meu “pirulito” — Chupa, Paulinha, chupa meu pirulito, Tava gamadio; de modo que decidi abrir 0 jogo, dei meu Charque pra ela ler, De um dia para o outro, leu o livro e fez comentirios muito pertinentes — algo que jamais ne- nhum cafetio de Vieira e/ou critico literario da Unicamp metido a besta conseguiria vislumbrar. Tudo bem que 0 “além” era especialidade dela, mas, dessa vez, Paulinha su: perot os trocadilhos e a si mesma, Ela usava um filtro que somente 03 grandes eruditos, aqueles que nao sio afetados pelo conhecimento, sabem usar. O filtro da generosidade Clara e evidente, Paulinha me lembrou Valéry a cotejar Victor Hugo com Baudelaire: cirtirgica como injegao na pica, afirmou categoricamente que eu desperdigava abis- ‘mos ¢ infinitos. E 0 mais incrivel: era tudo instintivo, xucro. ‘A mulher nao estava pra brincadeira, nem ela nem a cigana Sarah. Pigao e pulgas atras da orelha. Impressionante, pensava comigo todo tempo, impres: sionante conhecer uma mulher desse naipe perdida na ma drugada. Na frente da Kilt, minha putinha triste; pascei a admiré-la, Ou admiré-las, Sem exagero, posso dizer que formavamos o casal mais esquisito da Major Diogo esquina com a Conselheiro Ramalho. Os traficantes do pedago se intimidavam diante da passagem de Paulinha Denise, era quase um ato de genuflexao involuntatia coletiva, s6 que de pé eles iam de encontro aos muros e olhavam para baixo (sempre quis escrever a palavra “genutflexaa’, devo isso ¢ 0 respeito dos traficantes & Paulinha). Incrivel. Mesmo com as roupas de puta que usava, impunha respeito, Uma rainha cigana. Queria conhecer meus amigos — Meus amigos? — Sim, quero conhecé-los, —T. A danada estudava as pessoas. Enfeitigava. Marquei com Picanha — Mauro Picanha, o detetive — no bar que fi muito doido e belicoso. Todavia, na presenga de Paulinha, a beligerancia e 0 porre passaram. Fut vi, juro que sim, vi Paulina tragar uma linha na frente dele, € o hipnotizar como se fosse um peru, Quem o observasse juraria que ele navegava a bordo de um veleiro em alto-mar, de éguas profundas, voltado para a costa africana. atrés da Biblioteca Mario de Andrade. Picanha chegou mbriagado Aquele jeito dela, de engolir a si mesma e devolver os despojos. — Meu! — Fala, Picanha — Onde vocé arrumou essa mulher? — Na frente da Kilt, saindo do Biro’, PB s garcons do Planeta’ ficaram malucos, ela era simpatica e sorridente, conversava indiscriminadamente com todos, linha Denise foi um acontecimento na minha vida, cla nao gostou: disse que falava pel fiava nele porque tinha olhos de gato (2). -ntilezas. Do Jordao, ‘otovelos, € nao con: Esquisito nao gostar do Jordao; talvez uma indisposi a0 estética devido a sua cabeleira black-power meio fora de moda se justificasse, mas “olhos de gato, como é que eu nunca havia reparado nisso? Nao quis me aprofundar, fiquel intrigado e guardei para mim, Ela também guardava sérias ressalvas com relagao a orientais. Trabalhou de hos: tess num restaurante da Liberdade e o garcom coreano ou © cozinheiro chinés, ou vice-versa, ou 0s dois a0 mesmo tempo, tentaram estupré-la, algo assim. Compreensivel Todo mundo ficava besta com ela, € eu... ah, eu comia Assédio ostensivo dos homens. Nao obstante, a pre~ senga amistosa de Paulinha baixava a testosterona dos tara- dos, ¢ no final das contas acabava tudo bem. Menos com uma equipe de para-atletas que trombamos no Marajé, com eles aconteceu diferente. Todos bébados, todos pela metade e muito loucos, uma mesa com uns quinze. Diga- ‘mos que em condigdes normais — cabeca, tronco e mem- bros — somariam trinta, on talvez quarenta homens, con- tando os cegos da equipe que babavam indiscriminada- mente diante do cheiro e da presenga de fémea de Pauli nha, Aprendemos a respeitar esses putos pelos “exemplos de vida e superagdo” que o Galvao Bueno e as politicas de correcao, nos tiltimos anos, nos impingiram goela abaixo. Antes desse episddio, eu os considerava semideuses — e aqui nao vai nenhum trocaditho pela metade. Acreditava sinceramente que o Brasil podia dar certo porque tinha vocagio para ser um pais leso, cotoco. Desde 0 nosso ex -presidente, passando pelos intelectuais ticket-refeigdo da Flip até chegar nos para-atletas, expresso maxima e obje- tiva do carater nacional. Engano, lamentével engano. Os caras perderam a majestade, 0 controle ¢, literalmente, as proteses: as sociais, as de fibra de carbono e dos bons mo- dos, todas clas. Teve um filho da puta de um aleijado que s6 e hater punheta ali mesmo, Chamel meia diizia de cotocos pra briga. Paulinha morria de rr, ¢ provo: cava os caras. Os gargons ¢ 0 seguranga do bar sumiram. Algumas muletas voaram pelos ares, um pé da marca Adi- das atingiu minha cabega, ¢, por pouco, nao acontece uma desgraga completa (ou incompleta, sei lé) no estabeleci- mento. Ela tirou de letra. — Porra, Paulinha, vocé podia maneirar com essas roupas de puta, né? No fundo, eu nao estava nem ai, Em vez de citimes, ela faltou sacar a rola ime transmitia seguranga nessas ocasides, e felicidade. Pau- c 0 que havia sobrado deles diante dela, seja fitho da puta paraolimpico ou o porteiro do prédio — linha enfeitigava os homens — ‘0 fazia entender que eu era o macho dela, e que ninguém ia tascar: nao iam tirar uma casquinha, uma medalha de bronze, nem um cotoco sequer. Fla me enchia de orgulho. Um orgutho man sangue bombear toda essa felic fero, carnivoro, F fazia meu lade para as cavernas mais reconditas do meu corpo. Nao é mentira, no. Meu pau fi cou maior e mais grosso nessa época — detalhe nada lite- rério, mas que eu fago questo de registrar para eventual deleite dos pesquisadores(as), mestres € doutores(as) da Unicamp. Paulinha tinha duas cachorrinhas, Titi e telefonando pra Suzano para saber se a irma macumbeira tratava bem das bichinhas. A ligagdo com o mundo terreno — vamos chamar assim “mundo terreno” de Paulinha alegrava meu cora¢do cético e cansado de pessimismo. Fur ficava besta, fascinado comigo mesmo toda vez que per camila, Vivia guntava da Titi e da Camila pra ela, “E a Tit, Paulinha?” “E, a Camila?” A‘ ela respondia uma bobagem qualquer, “Ti- ti tem citimes da Camila” ou “Camila faz xixi na cama’, e aquilo me servia como passaporte pra entrar num mundo de brinquedo, completamente diferente do bolerao que eu vivia antes de conhect-la, Fla me transportava prum par- quinho de divers6es, um mundo pet repleto de felicidade e interesses sinceros, Juro! Logo eu, que sempre odiei metiforas e cachorrinhos. Juro outra ver! E hoje, depois de tudo, fago uma reflexio e vejo que no fui um cara tao filho da puta assim, no passei nem perto de ser © monstro que as entidades de Paulinha, so: bretudo a cigana bocuda, me acusaram. O sobrenatural sim, ele € que foi muito calhorda e cruel comigo, e mal in formado, Ou seja, Nao foi nada pouco, sobretudo prum cara cujo curriculo mais atrapalha do que recomenda, demons- 2 trar felicidade e interesse — vejam s6 —, os dois sentimen- tos juntos e 20 mesmo tempo, por uma s6 pessoa, Troquei deliberadamente Cioran pelo dr. Shinyashiki, O que mais 0 sobrenatural poderia querer comigo? Que eu agradecesse aos céus pelo simples fato de dormir e acordar de conchi nha ao lado da mulher mais brega de Suzano? Pois eu agra. decia compungido, e pensei até em apresenté-la pra dona Marietta, Ela e toda turma, Tia Alzira, a cigana bocuda, ¢ toda legido de aloprados naturais e sobrenaturais que gra. vitavam no entorno, inclusive Francisnight, valete do forré € idedlogo de Paulinha. $6 nao deu tempo. Hoje, eu me pergunto: que autoridade, afinal, tinha aquela cigana? Num, momento me praguejava ¢, no outro, chupava meu pau € cengolia as préprias palavras junto com meu esperma mais sincero e apaixonado, Quer saber de uma coisa? — Vai praguejar na novela da Gloria Perez, cigana, Chupa ai ‘© meu sonho era levar Paula Denise e as cachorrinhas pra passar um final de semana em Aguas de Lindoia: Ea Titi? Ah, Titi fez xixi na cama, Ea Camila? — Essa é ciumenta que dé até raiva — ow vice-versa, € assim por diante. Um dia, Paulina me ligou muito séria,e pediu no. me completo do detetive Picanha, ¢ 0 meu nome também. Quase me esqueco de contar essa passagem. No encontro, depois de ter enfeitigado o arredio detetive, ela nos revelou que éramos amigos daquele jeito porque, tanto ele como eu, incorporévamos entidades muito conhecidas no mun: do do candomble, Fle era o Zé Pilintra em carne ¢ 0ss0 € eu era Exu Caveira desde criancinha. Quase uma dupla caipi ra, Quando nos juntavamos, segundo Paulinha, © mundo a tremia, Tenho provas que sim, eu e Mauro Picanha, quer dizer, Exu Caveira & Zé Pilintra, badas na Praca Roosevelt e adjacéncias, em alguns bares smos figurinhas carim- exectados, noutros festejados. Coisas da vida daqui e do outro lado, ela dizia, Pediu nossos nomes completos, e acendeu velas pros nnossos guias e anjos da guarda. Nunca nenhuma mulhes, com excegio de nionna Carmella, acendeu vela para mim, e ainda ela teve a delicadeza de acender vela pro Picanha, que rateou um bocado para queimar. A minha, ela garantiu, queimou que foi uma beleza. CAPITULO 2 20 de novembro de 2011 — Oi, meu nome nao é Joana, Vocé costuma aceitar convite de desconhecidas? — Claro que aceito, Pode ser hoje? — Tudo bem, eu nao te conheco tio bem e me desco- nego inteira. Onde e que horas hoje? ‘Ariela era o contrério, o oposto vertiginoso de Pauli nha. Um compéndio de todos os meus pontos fracos. 0 que havia de pior em mim. Aquilo que eu acreditava ter superado depois de ter conhecido Paulinha, Bu podia per- feitamente ter caido na armadilha de Ariela, e ter dado se: quencia & vida brega e feliz que desfrutava ao lado de Pau: linha, mas fui além ou aquém... sei 14. Ariela no usava chapeuzinho de poodle na cabeca. Ariela néo depilava os pentelhos maquina zero. Ariela nao recebia espiritos. Ariela beijava bem, e tinha um sorriso lindo. Voce jé beijou um sorriso? Ariela era fetichista e manipuladora. Ariela me conhecia dos meus livros, alids, foi o amante de Ariela, um sujeito que copiava meu estilo sOfrega e ardorosamente, obcecado por mim — e quase fie. —, quem me apresen. tow a cla. Ariela queria uma aventura, Ariela era casada ‘morava de favor na casa da sogra. Ariela apanhava, e mere- cia apanhar, do marido. Eu acho até que ele batia pouco. Ariela mentia, Ariela era uma mentira ambulante, tu- do nela era mentira, mas nio era falso. Dessa mistura, seu charme e leveza; nao entendo como ela conseguia esse re- sultado, talvez inventasse um mundo pata sobreviver a si mesma, e, nese mundo — junto com todas as outras tra- pagas —, Ariela resolveu me incluir. Tudo mentira, Tudo menos o beijo. O betjo nao era s6 beijo, nosso beijo era uma conversa antiga. Quando nos beijamos pela primeira ve7, falamos o contrério de todas as mentiras que nos levaram ao beijo. Nosso beijo nao tinha cerveja e amendoins, nem livros lidos nem autores em comum, nem amantes traidos, nem casamentos arruinados, e nao havia desencontro, nem encontros fortuitos — porém ao mesmo tempo havia tudo isso e mais um monte de mentira, porque sem as mentiras — repito — certamente naa teriamas che- gado a0 beijo, Era como se Ariela beijasse Ariela, e eu estivesse me beijando. A questao é que precisivamos um do outro para que isso acontecesse. Um beijo egoista de dois egoistas, que tinham algo a dizer na saliva — nao importava se era ver dade ou mentira, mas algo a dizer, um para o outro. E dai que a gente nao prestava? Os canalhas se enternecem, as sim como os torturadores fazem hidroginéstica no SESC terceira idade, e os evangelhos — creio — seriam propor- cionalmente menos nocivos se, no lugar das pragas, gafa hotos e danagdes, os profetas nos revelassem mais betjos na boca e sexo debaixo do chuveiro. Fu virei uma espécie degenerada de hippie, um hippie de Rider, por causa do beijo de Ariela Afinal, um encontro. Ariela ouvia minhas bobagens e, diferentemente de Paulinha, demonstrava interesse ¢ patti cipava da fraude, Ariela gostava das minhas mentiras, ¢ mentia junto, Ariela jamais me acusaria de nao ter “amado nninguém na vida’, Ela ndo era exatamente discreta —e es- sa era sua arma mais letal. Uma indiscricao calculada, co- mo quem traga 0 cigarro e solta fumacinha pro alto. Como quem chama atengao no chamando, ¢ tem um lindo sor riso pra dizer que sim, Ariela carregava um potencial de destruicao visivel, ‘mas sabia escamotear o mal atris de uma cumplicidade que nao oferecia perigo iminente — aparentemente no — a ‘quem pretendia enfeitisar. Ariela era Lolita avancada tec nologicamente. Algo meio caipira, sotaque carregado da Mooca, Pés lindos, unhas manicuradas. Quando vinha por cima sabia como estocar, quadris de égua e respiragao de cavalo, Ariela era quase um amigo na mesa do bar. Ela tra- ia a presa para si, recuava no tempo certo e ndo se fazia de ingénua — pra mim, ndo — estudante de direto, serpente. bissexual e safa. Tesdo. Dificil confiar em Ariela. Impossi vel nao confiar. A mesma idade de Paulinha, um filho de 4 anos, fumava feito uma doida, e a nossa trepada comecou — nem seria preciso dizer — no primeiro beij. Trai Paula Denise, e o fiz por causa daquele chapeu- zinho ridiculo que ela pendurava na carapinha oxigena- da, Um pouco também por causa do nome composto que no comego, me distraia e dava até um certo tesio, Uma coisa é uma queda de patins em Paqueté, outra é morar em Paqueta. Aquela soma de Paula + Denise + chapeuzinho de poodle passou a me incomodar profundamente. E 0 pior, a cada dia, diante do meu sinal positivo, ela se esme- rava na breguice. Chegou a pintar as unhas dos pés de ver- dee amareo. — Sou brasileira, com muito orgutho. Nao bastasse, ainda alisava e descoloria a ca traf no melhor do nosso amor, quando, pela primeira vez, consegui conciliar tesio, sexo e o ufanismo do dia a dia, pastel de feira e pipoca na frente da televis vidinha caseira recém-descoberta e a omelete de presunto io, trai nossa que era minha especialidade, e trai junto a irma ¢ mais Eranscisnight, que acabou virando meu parceiro no “Forré do Nerd” (letra minha), trai a mde troglodita eo pai dela, gue era confeiteiro numa padaria em Suzano, trata cigana s outras quatro entidades que acompanhavam Paulinha (inclusive a psicanalista), mas sobretudo trai o real que — depois de quase trinta anos — comeyava a ocupar o lugar do furtivo, do virtual, da maldita ficgao que arruinara mi nha vida até aquele momento. Trai a chance que tive &s 3 horas da manha defronte a Kilt. Trai Paulina, exatamen- te no momento que comecivamos a trepar sem camisinha, cazzo!, eu trai o meu pau duro sem aditivos, leva a crer que a trai porque fui um idiota. Qualquer um pensaria da mesma maneira, menos Paulinha, claro. Que chorou do outro lado do telefone... até sua voz embargada aceitar (2) a traigao, e dizer que eu pre cisava mesmo achar alguém parecido comigo. =) Nao vou dizer que nao me senti aliviado, afinal eu ha- via me reconcitiado com o canalha seminal, o escritor ego latra de sempre. A diferenca & que, dessa ve7, 0 canalha nao se reconciliara completamente comigo, Alguma coisa esta va errada. E eu no me tornei um cara melhor ou menos filhodaputa por causa disso, muito pelo contratio. Entdo, a voz de Paulinha sumiu completamente do ou- tro lado da linha, feito um bafo quente que se levanta do asfalto numa noite de verio e sobe aos céus... feito negra nuvem de silencio... até surgir novamente acompanhada de trovoadas e ventania — mais ou menos dez d i depois —e se elevar ameacadoramente sobre toda a cidade, em forma de torpedo, de Tim para Tim: “acho que estou gravid: Com 0 celular na mao, mudo, lia a mensagem ¢ ao mesmo tempo olhava para Ariela, que fumava no terrago da quitinete, linda, vestida com minha camisa xadre; li reli¢ temoi: “Nunca mais Tit, nunca mais Camila, Nunca mais chapeuzinho na carapinha oxigenada, e agora um filho’. CAPITULO 3 Ariela vestida com minha camisa xadrez, fumando no terrago — As meninas da rua estao olhando pra mim, amor Se eu tivesse la embaixo também olharia. Nao ¢ to- do dia que elas tém a oportunidade de ver uma xoxota t30 bonita e cabeludinha. — Que horror! Sao criangas! — Ta na moda, Hoje em dia, atéas criancas sdo bisse- xuais, Ainda mai — Pervertido, — Nada, Sou o cara mais careta do quarteirdo. ‘Tem um colégio aqui na rua detrés que é um verdadeiro orfana to gay. Menininhas de 11 anos se pegando, voce precisava ver, Outro dia, meu sobrinho, que é um pirralho, me rect minou porque eu disse que os garotos do Restart queima Fle € gay? Fle s6 €feio. Aprendeu a respeitar as diferencas na escola, — Fu acho certo — 0 qué? Ble ser feio? —Troglodita — Pensando bem... levando-se em considerasio 0 argumento das professoras. —Lavem, pensando bem, 0 moleque poderia consertar a feiura queimando a rosca. Nét —Teamo. — Ama mesmo? Entéo dé uma olhada na mensagem que acabei de receber. Ainda néo conhecia bem Ariela; até hoje, depois de tudo, nio posso dizer que a conheco. Mas a coisa era re- cente, havia largado Paulinha fazia duas semanas. Quando Ariela disse que ia dar “o maior apoio’, achei que ela tava zoando com a minha cara. E tava. O que eu poderia ter feito sendo travar? Quando ela insistiu que a gente ia criar ‘o-moleque junto com o filho dela, ai é que virei estétua ro mana, daquelas que tem um pinto menor que o dedinho do pé, Paulinha havia m — Por que vocé nao usou camisinha? amarrado, fez a macumba certa. — Pelo mesmo motivo que nao usei com voce Ocorrew-mme contar vantagem, ia dizer que era dificil achat extra-large nas farmacias, Que o correto, oral, o mais, correto, seria denunciar o pinto pequeno do brasileiro pro Procon. Nao deu. S6 pensava em Paulinha, e na merda que havia feito em largi-la, Naquele momento, Ariela néo significava nada para mim, Ou melhor: ela era a imagem e semelhanga da minha insensatez, da escolha errada, do pinto mole. O pior que para tentar reverter a situagao, investi nas carnes de Ariela, e consegui uma eregao a 75 graus. Meu pau amole cu na primeira bombada, dentro dela. Ela fingiu que essas, coisas acontecem, que “a gente ia dar um jeito” e que o me- hor era chupar minha rola, que — outra vez — subiu, su biu e acabou amolecendo dentro de sua boca. Mandei-a embora. Foi a primeira vez de uma série que «a expulsaria pelo mesmo motivo: impoténcia, Engracado é pensar que, com Paulinha, nunca houve vacilo, Nunca dei xei de comparecer com a mae da Titi e da Camila, apesar do chapeuzinho que a infeliz nao tirava da carapinha des. colorida. Essa era a questio, nao o contrario, Tanto Paulinha como Ariela eram de verdade, carne e oss0, ovatios ¢ tte ros, as duas sempre ofereceram 0 mesmo perigo, portanto entendi que era uma bobagem atribuir a realidade a uma, e a ficgdo, a outra. Eu é quem oscilava nesse terreno, € no las, Ariela sempre pag ou o pato. Bagorat tempo... cazzo, agora vou ser pai? Que merda que té acon- tecendo? Se eu fosse um cara decente, esqueceria a carapi- nha descolorida, e pediria desculpas a Paulinha Denise: 105 45 anos, digo, aos 45 minutos do segundo Ela vai me dar uma chance, porra, ela vai ter um, filho que saiu daqui desse pau mole! Foda-se, Arielal Nao sei se sou um cara decente, mas sou o reina enca ago, A vida engana e eu néo desencano, Ea grande prio ridade, naquele momento, era recuperar minha erecio. Li guei pra Paulinha, e disse que ela podia contar comigo, que eu tinha sido um filho da puta com ela, ete, etc, Ento Pau- linha me tranquilizou. Nao tinha descido, mas podia ser “Ae fundo nervoso” O tal do “de fundo nervoso” me acalmou, Trocadilho besta, mas era uma chance real antes de ser um trocadilho. Valia, Naquelas circunstincias, eu aceitaria até as rimas dos ra ndo ter de assu- manos do hip-hop. Qualquer merda pa mir que, no final das contas, eu era um cara decente e que toda aquela merda de literatura nao passava de um lapso na minha vida, um lapso que se prolongava desde 1989, e que, agora, teria fim na barriga de Paulinha. Ah, imaginei recuperar meu Creci, raspar a barba a la Rasputin, e me inscrever nalgum trabalho voluntério liga- doa adogio d sou criangas de rua. Abandonaria de vez as florestas tropicais e todos os meus amigos gorilas que agonizavam diuturnams Roosevelt, na Indochina e arrabalde 1no PPP, nem drink no dancing; a consequéncia natural des- se processo tinha um nome: Caixa Economica Federal. A palavra “holerite” brilhou diante de mim, teria de provi dencié-lo junto com os documentos exigidos pelo banco. e numa festa macabra, na Praga nunca mais cachaga 1S now or never Finalmente eu realizaria meu sonho de morar num. apartamento financiado pela Caixa... é em Suzano... nunca estive tio perto da realidade de ter uma mulher dengosa pra chupar meu pau em dias de chuva, asa propria e uma quer dizer: mais ou menos perto, somados o salério de au- xiliar de enfermagem da Paulinha e as minhas contribui- ‘es como escritor pornogtifico, corretor de seguros e ven- dedor de carros usados, teriamos anos para quitar as prestagdes do imével, em Suzano. A nio set que op aprazivel por baixo — uns vinte téssemos pelo Solar Margot de Coberville, um unto residencial localizado lA pras bandas de Presidente Altino, a o valor das prestagdes — fiz 0s cél- culos na ponta do lipis — sofreria drastica redugao, sem falar que o tempo do financiamento cairia pela metade. S6 dex anos. Mas Paulinha queria ficar perto da mae, aquela velha pernambucana truculenta filhadaputa, O fogo. Sim, sé pensava nisso: em queimar toda a corja de delinquentes, que hé décadas haviam se empoleirado nas minhas prate- leiras, a comecar pela dupla Cioran & Céline: el primeiros da lista, mesmo porque os sebos nao iriam me dar nada por aquele inferno escolhido a dedo, e, depois, descartei a hipdtese de doar Silogismos da amargura e afins para bibliotecas pitlicas e/ou escolas municipais. doam danagoes, Inferno a gente adquice, Pra fogu tanto, Cioran & Céline, Sade, Villon, Verlaine, Baudelais Bernhard, Denser, Genet, ¢ todo meu passado de infimias e dissolugao! As pessoas querem ser felizes; mais do que 4, Por querer, ela precisam do dr. Shinyashiki e do Padre Marcelo. Eu também merecia ser feliz, eu e Paulinha. Nos finais de semana, assarialinguigas com meu novo amigo e parcei- ro, Francisnight, 0 valete do forré. Tudo dentro dos confor mes, cada Orixé no seu quadrado. Bati o martelo, decisio tomada. Era isso mesmo: meus préximos vinte anos em, Suzano financiados pela Caixa Econémica Federal, filhe cachorrinhos ¢ Faustao (porque sem Fausto aos domingos nada disso faria sentido)... eu jé me sentia grivide — junto Paulinha — de todo esse futuro bregaesplendoroso, quan- do uma cachoeira de sangue rubro-negro desceu das entra- nnhas mais nebulosas de Paulinha, e destruiu meu sonho de nao usar black-tie, e tudo acabou como comesou, num, torpedo de Tim para Tim, a custo quase zero: “estou livre de vocé, desceu’ Voltando & Transilvinia, digo, Major Diogo esquina com a Humaiti, coracio do Bixiga nordestino. Aricla ves tida com minha camisa xadrez ¢ sem calcinha, tio linda, fumando no terrago e dando tchauzinhos pras garotinhas, lésbicas da rua. Os teleforemas do marido ao longo da madrugada me incomodavam. Tirando isso, eu e Ariela formavamos um casal bem divertido e quase inocente, Talver nosso cinis mo deixasse as coisas mais leves, como se ela nao fosse ob jetivamente a adiiltera e eu nao fosse objetivamente seu amante: — Oi, Gui. To aqui na casa daquele meu amigo viado. Nao esquece de levar 0 Cau na dentista, hein? Um ex-marido chamado Gui? Que porra de intimida- de era aquela? Na qualidade de “amigo viado” de Ariela, ¢ amante corneado, eu somente remofa — porque nio tinha condigbes de “exigit” — explicagbes, Ela mudava de assun- to, se aninhava feito uma serpente e me pedia para acordi: a as 5 da manha. Caud era o fitho deles. Talver 0 fato de Ariela ser mignon, talver 0 encaixe de nossos corpos ou a mentira que ela aplicava na base da distragio, talver.a ca mada de poluicio acumulada no céu de Sao Paulo um pou co antes de raiar o dia tenha ajudado — quem é que olha prum céu to feio? — a embaralhar ainda mais as ideias na minha cabeca, acho que sim: com certera, a céu medo- tho de Sio Paulo significava Ariela nas alturas, ela era minha hosana poluida: s6 mesmo nds dois para suspirar por aquela mistura de gés carbonico laranja e “bom traba Iho, amor”; ds cinco da manha, Ariela era o meu apesar de tudo eo tranco, a vertigem e o barranco, ¢ também éramos nds dois & espera do téxi abracados na esquina da Brigadei- ro com a Humait, tudo isso, enfim, essa confluéncia po- lida (e bonita) fez com que eu apagasse a figura de “Gui” do meu horizonte, como se ele nao tivesse cacife para ser 0 marido traido. Ou seja. Eu e Ariela no precisévamos na- da além do céu poluido de Sao Paulo ao alvorecer, e de um taxi para consumar nossa fraude. Simples assim. Bastava embarcé-la; ato continuo, Ariela me dava um tchauzinho, abria a porta do taxi e pedia outro beijo, como se ela no fosse a adiitera e eu nao fosse seu amante, assim, acabamos displicentemente nos convencendo que Gui também nio «ro vorno da historia. Era bolero, mas ndo era, Para resu- Init, até hoje no sei se me apaixonei pela mulher ou pela cntira, ou vice-versa. Que diferenga faz? © beijo nos explicava, O beijo apagava o entorno. Es- 1 era a tinica certeza que tinhamos, nosso beijo. Depois, Aiela subia no tixi e ia embora CAPITULO 4 22 de dezembro. Quase natal Todo natal vou pra Serra da Canastra, em Minas Ge- rais. Uma viagem de onibus que poderia ser feita numa noite, mas que prefiro cumprir em duas etapas. No primei- ro dia, fago Sao Paulo-Ribeirdo Preto. Chegando em Ribei- io, me hospedo num hotel que fica atrés da rodovisria e, no ontro dia, sign pea Passos hem ceda, De If pega outro, 6nibus pra Piumhi — quase meu destino final. Um pinga- ppinga dos infernos, que demora mais ou menos umas 5 horas. Sempre tem uma Yasmin ou um Jonnatan que sen: tam-se imediatamente ao meu lado e se esgoelam pedindo mais salgadinhos (sabor queijo podre). Os pais geralmente dividem 0 salgadinho com os filhos. Ha 5 mil anos, os sumérios chamavam isso de educagao. Nas escolas catélicas mais tradicionais, a héstia é que cumpre a funcio do chee- tos. Tanto faz o lugar, a época ea casio, educar é estragar. Embora “opsao” seja algo que nao se aprenda, e o inferno seja produto da escolha particular de cada um, regra somos induzidos i fedentina alheia, Votamos. Pagamo: postos, parcelamos crédito, assinamos Net, Sky etc — Triste destino cheetos de Jonnatan e Yasmin. (© que eu quero dizer € que se estivesse num énibus a dividas em mil vezes no cartio de caminho de Harvard, ia feder do mesmo jeito, e que Capi- télio é logo al. Capitélio, Minas Gerais, Brasil. A peniiltima cidade conta-gotas, sinal de que o martirio rodovidrio esta perto do fim, Ao chegar em Piamhi — dez quilémetros adiante encontro meu pai ou meu irmao. Assim mesmo que se escreve P-i-t-m-h-i com “u, m, h, i. Bles revezam. Anos pares ¢ do cacula, impares do pai, acho que ¢ isso. Nos til: desde que meus pais se meteram nesse final de mundo, é a mesma coisa. timos vinte natal No lugar do cacula, encontro Chitaozinho. No lugar do pai, Xoror6, Ou vice-versa. Nunca sei quem é um e quem é outro. A mesma roupa e os mesmos chapelées. Eu de saco cheio, e eles também. primeiro a chegar Id, na Serra, fui eu, em meados dos anos 80. Na mesma época que Cazuza vislumbrava um museu de velhas novidades a partir de uma piroca atolada no rabo, Bem, nessa mesma época abandonei a faculdade de agronomia e cismei que era Ferndo Dias Paes, larguei tudo pra garimpar no leito do So Francisco. A ideia de abster-se dos 80s incendiow o povo lA de casa: 0 primeito a dar 0 pinote foi o velho, que nem era tio velho naquela po0ca, nao tinha nem 50 anos e s6 ouvia jazz e miisica cls. sica; depois meu irmao mais nove, Muito novo. Em 1986, Xororé contava apenas 16 anos de idade. O cara abando. nou a escola ¢ a vida de nerd que levava em Sio Paulo e se mandou pro garimpo. Logo que chegou, emprenhow uma boia-fria. T& casado até hoje com a cabocla. Ao longo dos, lltimos vinte anos nao troquei duas palavras com ela, acho que é muda. Hoje me arrependo de té-los recriminado, ela e ele, julguei-o insensato. Errei, Na verdade, penso que foi cora- joso, mas dou apenas meio brago a torcer, ese alguém me perguntar sobre casamento perfeito (se & que isso existe) «ligo sem pestanejar, na lata: engravide uma cabocla muda antes de completar 17 anos. Depois, procure um sitio que tenha muita agua, de preferéncia com uma nascente den. tro da propriedade, Sem Agua nao da. A partir dai faga um, curso de piscicultura e construa dois tanques. Um para criar tucunarés, e outro, tilépias; logo em seguida, batize 0 seu pesque-e-pague com 0 nome de “Papai Feliz’ Ah, nao esqueca dos porcos e das vacas. O esterco deles pode ser util para alimentar os peixes, além disso as vaquinhas dao muito leite. Mas sobretudo instale um alambique perto da cocheira das meninas, uma vez que se fay mister permane- cer embriagado a maior parte do tempo. O alambique & imprescindivel, Sem ele vai ficar quase impossivel encarar as auroras e 0s luares do sertao, dia apés dia: pense que as vaquinhas acordam as 4 horas da manha e carregam litros, iberes inchados, pense que de orde- nhé-las, esse alguém é voc®. A questio éa seguinte: nao ha clitros de leite dentro daqu alguém, que nao é necessariamente o bezerro, te diferenca entre os tiberes inchados das vacas e as tetas de sua dignissima esposa — que nada e comida pelo fazendeiro (que pode ser um porco ou iantém o habito de ser orde- voc’ mesmo) em noites de lua cheia e de minguante tam- bém, Donde se conclu: Sabias as vacas, e as mulheres do sertio, Mais do que o habito, conservam bom senso de nada declarar a respei to, Mudas, caladas e cheias de leite. Mesmo porque elas nao, iam ser bestas de reclamar de qualquer coisa, e ouvir um, ‘muuuruuuu como resposta, né no? A viagem da rodoviéria de Piumhi até Vargem Bonita € uma tranquilidade nos anos impares e nos pares também, sobretudo porque durante o trajeto, que dura mais ou me nos uma hora, eu e meu irma nao trocan palavra, Esse é o acordo: eu vou até ai no natal, mie, mas les nao podem ligar o ridio ou meter um CD no trajeto que vai de Piumhi até Vargem Bonita. Chegamos a conclu- sio de que uma vez por ano nao é sacrificio para ninguém, digo, nao é um grande sacrificio, nada que se compare a0 sofrimento de Jesus para salvar a humanidade, trata-se ape nas de uma enchegao de saco que dura no maximo trés dias, a véspera,o dia no aniversério do cara eo dia seguin- te — quando Chitdo ou Xororé me desovam na mesma rodoviaria que me pegaram, e cada qual volta a rotina de ordenhar a vida, eles no meio do mato ¢ eu na esquina da Major Diogo com a Humaits, Seguimos. Logo que atravessamos a fazenda da Cargill, pedi a meu irmao que pusesse uma moda do Chitaozinho (o original) pra gente ir onvindo até chegar na Canastra — Aquela, aquela do cabelo comprido gradado no suor do pei. — Tem certeza? Como se a gritaria dos irmaos Xorord, os juizos ante- cipados e a paisagem e 0 que vem de fora — a vida inteira vem de fora —, como se 0 antes do amor, o ramerrame disrio de tarefas e obrigagbes quisesse ou pudesse inter romper e/ou ocupar o lugar do amor: Na verdade, ocupa. Uma vez que a vida — dizem — continua. Mas agora a paisagem e tudo 0 que inclui a rotina de viver e dar bom-dia a0 porteiro do prédio, tudo isso & atravessado por um sentimento que invade maior quea ocupasio, no s6 maior, mas prioritério. Aliés, tio certo como a morte. — A vida nada mais é do que uma ocupagio antes da ‘morte, um passatempo — disse pro mano Xororé. 40 fe amor no. O amor é do tamanho da morte. Nao por- {que € para sempre, isso é besteira, Mas porque é lugar in certo endo sabido e, para suportar sua ideia, é fundamental uma boa dose de mistficagao e autoe E aqui descons lere aquela coisa de Eros e ‘Thana- tos, quer mijar? Eu paro, Eu nio falava de morrer no gozo nem de impulsos pri- dentro da ocupagio, Pois bem. milivos, mas de ocupa¢ Nesse instante intrincado e metafisico, mano Xororé pa rou na frente de uma plantagdo de eucaliptos que nao tinha mi jei, Como é que eu nao havia reparado naqueles eucalip tos? Uma verdadeira floresta dentro do cerrado, Nao tava s fim, ¢ disse: “vai mijar”, Eu nao queria mijar, mas mi aqui ano passado? Faz seis anos. Fles erescem a ada ano, No mesmo Igar ‘Ai ele me explicou que os fazendeiros da regiéo apos- taram que o chileno, o dono da plantacio, ia quebrar a cara, Mas a floresta exuberante crescia ali para provar 0 contririo, assombrava — em todos os sentidos — os cafe- zais ¢ pastos vizinhos. Uma pequena fortuna plantada no nariz da mineirada, Quase uma afronta, eu pensei. Mano Xorord desembestou a falar, disse que, nos diltimos anos, © prego da saca de café havia superado a expectativa dos ‘mais otimistas, e que uma nova técnica de irrigagio desen- volvida pela Embrapa aumentava em até trés vezes a pro- dugio dos cafezais, Ele se empolgava ao volante: “Trés ve- Mais do que mereciam, pensei comigo: “que se fodes- sem, em primeiro lugar, meu irmao Xororé-cover que nun- ca plantou um pé de café na vida, depois os fazendeiros a mineiros, os pesquisadores da Embrapa, ¢ o chileno dos eucaliptos, todos eles juntos’ Dois quilémetros adiante, desandou a falar de acudes, peixes, incubadoras, cativeiros e o diabo agricola a quatro. O proximo paso — garantiu era aumentar o tanque das tilipias e aprender a falar inglés. Isso mesmo, o negécio agora era aprender a lidar com os gringos e turistas que apareciam para fotografar passarinhos e cagar borboletas. Vai ser dificil “lidar” com os gringos, pensei,e, entre uma tilapia e um gringo cagador de borboletas, Chitdozinho betrava no CD da camionete e Ariela irrompia dos cupin- zeiros no meio dos pastos, ocupava as alamedas dos ca- fezais e atravessava feito uma sombra a plantagio de euca liptos do chileno, até no tanque das tilapias ela se metia, reluzente, batendo a cauda feito uma sereia-tucunaré, Que, segundo meu irmao, era peixe carnivoro ¢ se trolar a populagéo das tilépias — Explic E que as tilépias so chegadas mum incesto e se repro: duzem alucinadamente. Corriam 0 risco de atrofia, exp: cou-me, Os tucunarés comem as tildpias, entende? (© mundo precisa de tucunarés, pensei Nao € que estabelecemos um didlogo, ou as vezes sim, como quando fiquei chocado com a revelagao de que 0 Ca- bresto, um vilarejo que fica a vinte quilometros de Vargem Bonita, havia mudado de nome. Agora se chamava Campi- népolis. Mas. —F Confusio? © arraial de Confusto. Que tem? Continua Confusio? — Igualzinho. © povo continua se perdendo até che: gar li Deus na Confusio, € 0 diabo nos entroncamentos, Nao, ndio se tratava de um dislogo, era algo entrecortado, nicio trepidante e travado pelo actimulo dos anos, mesmo 1porgue Chitdozinho, o do CD, ¢ Ariela, a doida que me ti rou de Paulinha, ele com a vor. esganigada, e ela que brota va dos cupinzeiros, nao davam trégua; interferiam no meio «la conversa, nas cruzes fincadas & beira da estrada, no pa- redao da Canastra que dava nome & serra, e que, agora, aparecia diante da camionete como da primeira ver que 0 vis em 1986, Ariela incrustada no paredao. Amor, paixao, obsessio, grude — feito 0 fio de cabelo comprido berrado pelos itmios Chitdozinho & Xororé no CD da camionete, Dali vinte minutos, chegamos em casa Ao longo dos trés dias, engasguei. Nao com o rango e rnem com o natal de sempre. Mas com relaglo a Ariela, que. ria contara todos que finalmente havia encontrado a garo ta da minha vida e que, logo que chegasse a Sa0 Paulo, a primeira providéncia seria gozar dentro dela. Nunca tive uma namorada, digamos assim, namorada oficial. Isso doa em mim, Doia mais a falta do comunicado do que da na- morada propriamente dita, de resto eu me virava muito bem com as putas. Ver ou outra, mano Chitéozinho me acusava de ser viado, eu nem ligava. Pelos meus calculos, devo ter comi do mais mulheres do que ele ¢ Xororé nas tiltimas trés en carmagées sertanejas. Mais vacas também, Todasas vésperas e todos os natais a mesma coisa: pas- so 0s trés dias me empanturrando de farofa ¢ peru e dur- ‘mo, € nos intervalos dou trés cagadas. Um relogio cristéo, Mas me incomoda, confesso. Sei Ii, pode ser uma ba- baquice da minha parte, mas nao ter dado a noticia, nfo ter feito o comunicado oficial é uma tortura que me acompa: nha ha pelo menos uns vinte e cinco natais. Cada ano pio- ra, Por que nao falar? Comuniquei tantas merdas offcial- mente: quando fui voluntario ¢ entrei no Exército, e quan: do me expulsaram de a. Quando tireia carta de motorista, e quando decidi virar pedestre depois de enfiar 0 carro de Xoror6 debaixo de uma carreta. Quando publiquei meu primeiro livro s6 dona Marietta ficou sabendo, mas comu- niquei. Tanta obsequiosidade ao longo da vida. Tantos co municados, ¢ nunca consegui chegar de mos dadas em casa com uma garota, e dizer: minha namorada. Por que nao falar de Ariela? Todavia, esse ano me ocorreu um plano. Se obtivesse &xito, talver, no préximo natal, conseguisse chegar na ro dovidria de Piumhi acompanhado de Ariela e do comuni cado oficial explodindo dentro da bacriga dela, nem preci saria abrir a boca Seguinte. Hé pelo menos quinze anos o governo fe chou os garimpos na Serra da Canastra. B 0 Thar nav ida de cada metro quadrado, autua, prende, confisca, multa. O plano, enfim, era comer belas moleza, fiscaliza, beiradas e pela diagonal — Bo Baduzinho? —Se fodeu. — Os garimpeiros?. — Nada, Foi a Policia Florestal, Hoje eles tem satélite, camionetes tracadas, infravermelho, barco ¢ 0 diabo a qua tro, tudo monitorado, Tudo? Tado menos eles, a Floresta Baduzinho, o capangueiro, foi um pretexto que arru- ‘mei para entrar na conversa que interessava. Uma espécie de senha da familia MM. O resto, aquilo que cortia por ci “4 ‘ma, ndo era um pretexto somente para mim, mas o rellexo da cagada disfargado de vida agricola saudavel,tiépias in- cestuosas, luar do sertao, etc, Se tenho alguma responsabi- lidade desde que a merda aconteceu, essa responsabitidade se resume ao fato de eu ter sido o primeiro a chegar nesse final de mundo, e de ter sido o primeiro a me pirulitar, rerdade, nao importa o lugar. Tanto far no meio do mato, ou na esquina da Consolagéo com a Paulista. Temos io. A gente v8 isso nos olhos remelentos e amendoados do velho. A vocagio de depredar. O deserto que brilha nos olhos do meu pai, quan. do, em raros e preciosos momentos, nos encaramos ¢ fala ‘mos o mesmo dialeto, quando nos reconhecemos no final da picada e no cheiro chamuscado da carne. Uma catinga tipica, Enxofre, O cheiro técito lé de casa, como se fosse um, ‘um destino, Intrinseco, Uma voc perfume de morte, ad perpetuam rei memoriam. Nos en- s, portanto, quando o assunto é garimpo, sindni- mo de destruigao. tendem E eu sabia que, apesar da proibigdo, alguns garimpos clandestinos resistiam em plena atividade. Perto da nascen- te do Sao Francisco, perto do Kimberlito. A pedra original, de onde brotam os diamantes gratidos. Dentro da reserva. ‘Tudo isso, claro, sob os auspicios e a complacéncia da Poli cia Florestal. Chitao e Xororé iam la dar suas faiscadas, eu sabia, mas nao podia entrar de sola no assunto. A gente — ja disse — tém uns cédigos em casa. Dai me vali de um habito famil que mais me atrapalha do que ajuda, as 7es ajuda. A mania de falar de uma coisa para chegar nou- tra, e somente depois voltar ao as unto inicial, Nas inter- rupgdes, jogamos as iscas e nos entendemos. Um morde 0 rabo do outro. To engolindo esse veneno MM desde a primeira go- norreia ‘Ah, meu Deus! Bastava gritar! Seria bem mais ficil se eu di esse: estou apaixonado, porra, quero dar um dia- ‘mante para Ariel — Grande filho da puta, o Badu. — Baduzinho. Tinha a mania perigosa de adulterar balangas, enga- nava Deus e o diabo. Capangueiro. Se fudeu, a Florestal cagou o puto e o entregou pra Justica. Depois de mofar dois anos na delegacia de Passos, morreu estrangulado na via tura a caminho do férum, dizem, Mais fécil enganar 0 Ba duzinho no inferno, e achar uma pedra de 30 quilates do que justificar minha curiosidade e admitir, enfim, que 0 anacoluto que eu maquinava tinha © nome mais bonito do mundo: Ariela, Sé6 pensava nisso, ¢ estava determinado a usar todo o meu repertério de pretextos extraviados para chegar ao garimpo clandestino. Badu nao era Badu ~ esse era nosso acordo técito, Dullio Gaspar Neto, sargento da Florestal, mais conhe- cido como Gasparzinho, nos levaria de madrugada até o Pogo das Bruxas, no coragdo da reserva. Segundo suas es- timativas, teriamos apenas duas horas de acesso garantido a0 Pogo. © sacana dava o nome de “portal” para valorizar esse ten 10 €0 “Favor” que nos prestava — quando todos os satélites €as garatujas da madrugada nos beneficiariam em razio nio exatamente de um favor, mas de uma divida an- tiga que Chitao — por incrivel que parega — coincidia com a retdrica en- viezada que eu havia ajambrado para me enfiar na expedi 40. Uma mistura de desprezo e admiracio pelo método do velho, como algném que reconhece familiaridade em algo qne pode descambar numa grande cagada — regra geral era 0 que acontecia. O guarda florestal ndo tinha opcio diferente de ser chantageado, pra putaqueopariu ele € 0 tal -cover Ihe cobrava implacavelmente e que 46 do portal. Sob 0 meu ponto de vista, tudo pelo amor de Ariela, O velho Chitdo talvez estivesse pensando em ca dveres pretéritos e especialmente no cadaver do Badu, 0 extinto Baduzinho que, afinal, era a nossa garantia. A ca ‘maradagem de Gaspar duraria exatamente duas horas, das, 2 as 4 da madrugada, depois o “portal” fecharia e era cada sum por si. CAPITULO 5 De Vargem Bonita até a rodovisria de Piumhi nao tro- ‘camos sequer uma palavra, Bu e meu pai. Na verdade, nun ca soubemos lidar com nossa cumplicidade. E isso nao & exatamente qualidade nem defeito, mas falta de jeito, Pra que abragar, olhar nos olhos? Desde sempre prescindimos desses derramamentos. Se ele tinha orgulho de mim? Acho que nao, Nem eu dele. Passavamos longe da férmula ge- lol, mas nos comunicévamos a contento, Melhor assian Ele sabia que eu jamais iria abrir a boca. Podia confiar em ‘mim como um criminoso se obriga a confiar em seus cim- plices. B vice-versa, Tava li no DNA: vindo de Canicati, provincia de Agrigento, diretamente para 0 sertio das M nas Gerais, Pra nao chamar a pequena viagem de Vargem Bonita a Piumhi de sepulcral, lembro do pai-Chitéozinho pedindo pra eu afivelar o cinto antes de chegar no trevo de Confu- sto, Seria bom evitar guardas rodoviarios, perguntas des: necessiti as, e sobretudo redundaincias. Em suma, Siléncio absoluto e a constatagdo que a paisagem é muito melhor sem a gritaria dos irmaos Xoror6. E sem eles, a pre senga aumentada de Ariela: repetida nos cafezais da ida e agora na volta, na plantagdo de eucaliptos e nas lembrangas imediatas de um natal movimentado, diferente, um pouco diferente e mais brilhante do que nos outros anos. (Ok. Peguei o dnibus das 10 da manha em Piumhi e cheguei em Ribeiro quase as duas da tarde. Fazia uma se- mana que ndo acessava o Facebook. A luzinha verde ao lado da tela indicava que Ariela estava on-line. Contei dez segundos, e nenhum “oi” da parte dela, Nao aguentei e en: Viei uma mensagem reservada: “Amanha, em Sao Paulo’, Ela disse que nao iria ao meu encontro, Nunca mais. Havia me traido com o fulano virtual. © cuzao. Aque- Je que deu 0 Joana a contragosto pra ela ler. Outra Maria Rodapé? De novo, a mesma histéria? Eu nao podia nem conjecturar, depois de tanto tempo e agora mais rodado do que nunca, “vocé costuma aceitar convite de desconheci das?", de ter caido no mesmo tatibitati: armadilha que se cai voluntariamente porque — em tese — até o mais idiota dos leitores da dona Zibia sabe que o cagador € a caca. Ariela caiti na armadilha que armou e que eu desarmei e que de- pois nos prendeu e nos fez de idiotas ¢ apaixonados por sempre que nos beijévamos e cumpriamos co enredo de dona Zibia — que no final das contas & quem muito tempo, ou esti com a razio, a natural ea sobrenatural A vagabunda me traiu exatamente com 0 babaca que era meu f&, a imitacao, o diluidor. Cliquei na pagina do infeliz,¢ la estavam os dois, ela e ele. Os dois filhosdaputa As mesmas cenas que eu guardava na lembranga, nos: melhores momentos, quando beiji o sorriso de coelho dela (nunca havia beijado um sorriso...), estava tudo la: o mes- mo sorriso reproduzido nas fotinhos felizes ao lado do ba baca, me traiu, a puta, Porra, ndo precisava postar as fotos. Agora, o que me deixou mais transtornado, foi o raciocinio banal do imitador: “ja que nunca vou escrever os livros do cara, pego a mulher dele’, Ela podia simplesmente ter me traido,e final de papo. Que chupasse o pau do cara, ficasse de quatro, Que arreganhasse o cu pra ele, Traiu, ta traido. Nio precisava documentar a traigao, Mas o verme fez ques: tao de publicar as fotos como se fosse um troféu. Falta de talento & uma tristeza. Ele sabia que eu nao ia perder meu tempo lendo as besteiras que escrevia em seu blogue, biti niquezinho de merda. © que fazer? Ora! Comer a mulher do cara! Taf. Fle conseguiu. Perdi alguns segundos olhando pra alguma coisa de sua “autoria. Nao que um sujeito mes- quinho, banal, ndo pudesse escrever algo que prestasse, 20 contrario, A literatura tém intimeros exemplos de vermes geniais que se deram muito bem porque souberam exer~ cer a devida pequenez. Foram além do sintoma. Mas nao adianta nada o cara ser um verme, se ele nao for um genio. Vide Truman Capote. No caso do blogueiro, ele conseguiu ficar aquém da prépria condigio de verme. Crasso e previsivel. O golpe que armou nao serviria de enredo nem pra novela das 6 do Waleyr Carrasco. Enquanto as fotos repetiam as mesmas cenas que eu guardava na meméria, como se fossem as fotos que Ariela no havia tirado comigo, tudo bem. No entanto, o caldo entornou quando topei com uma foto que destoava de tudo que eu podia ter idealizado ao lado de Ariela. Era o reca- do do fulaninho. A obra da vida dele, Uma foto que denun- iava sua falta de talento. Quase um pedido de desculpas e/ ou reconhecimento de sua ‘mim com aquela carinha de viado bitinique, de soslaio so- ignificancia. Olhava para mente como os bitiniques de padaria so capazes de olhar, enquanto a vagabunda o abragava por tras e simulava uma fungada em seu cangote. Engolidora de porra. Puta. A mes: ma que me evitava em pitblico, que nao queria ser vista a0 meu lado, que me visitava nas penumbras ¢ ia embora de madrugada, ¢ que jamais havia tirado uma foto ao meu lado, ela nao s6 permitiu a publicagao das fotos (varias) como foi ciimplice da falta de talento do infeliz Como é que fui trocar Paulina por uma criatura des 10 foi 56 isso. Ela train nossas maos que se entrelaga- ram perfeitamente logo na primeira vez, e 0s nossos corpos que se encaixavam como se estivessem habituados desde sempre um ao outro, as estocadas e a respiracao de cavalo, cla havia mudado de pagina. Tava lé: aninhada junto a.um tonto metido a escritor maldito, Ah, meu Deus. O tipo mais pateta de todos, o bitinique de padaria. Vadia, feliz a0 lado do barbudinho, que coisa mais ridicula. Ela traiu os torpe dos sacanas e 0s “meu amor” ¢ 0s “beibes” que havia espa Ihado as dezenas em bilhetinhos escondlidus nos desviius do meu apartamento, ela destruiu toda a mentira compar- tilhada que havia nos levado ao primeiro beijo — ela me train até na mentira, Trair a propria mentira & che dade pelo avesso, Isso que doeu. A puta traiu as criangas do terrago, sim: as meninas que a observavam da rua, ¢ que talver.pela primeira vez. viram uma buceta cabeluda, tam bbém foram traidas em suas inocéncias lésbicas. Quem € que olha prum eéu tio feio? Ela e 0 filhoda- puta do meu diluidor olhavam pro céu medonho de Sio Paulo naquelas fotinhos nojentas. Minha hosana poluida & caralho. Hosana na sarjeta. A biscate traiu o motorista do Lxi que cochilava dentro do carro as cinco da manha, e que a levou pra Guarulhos depois de uma noite de adultério perfeita ao meu lado, Agora, nés dois nao é a vertigem e o barranco na esquina da Brigadeiro com a Humaités ela havia mudado de esquina, rodava bolsinha no imos 0 tranco, Facebook do idiota metido a escritor maldito. Fu, que sem- pre precisei do escambo e do contrabando para que a men- tira acontecesse em sua plenitude, sabia que nao sentiria falta do beijo de Ariela. Mas do beijo dado em mim mes mo. E agora ela se atracava com 0 bitinique de padaria co- mo se eu o tivesse chancelado: ela me fez beijar o verme por tabela. A Ariela que inventei com tanto cuidado, agora es- tava sendo reescrita por um escritor metido a bitinique. E 6 pior. Ela que fez a troca! Optou pela mediocridade. Talvez comegasse a usar coturnos por causa dele. Que mulherzi- nha podre, os dois olhando para mim a partir daquelas fotos, tao falsas como a felicidade deles. ‘Ariela havia mudado de pagina e de perfil. A coisa s6 no havia mudado pro lado do marido dela, que continua va a esperando no mesmo endereco, na casa deles, 0 mes- mo “Gui apaixonado de sempre, o mesmo corno de todos 08 dias, paciente a servigo de um amor que virou sequestro e cujo lastro (ou resgate) se resumia ao filho e as tarefas do cotidiano: na préxima segunda-feira era uma consulta mar cada com a pediatra, depois ele alugaria uma fantasia pra festinha da escola e assim por diante. O filho. Fra a chanta- gem, era o vinculo, afinal, O lar. A moeda de troca das trai Ges. Que nao eram poucas, ela o traia com motoboys, lés- bicas curitibanas, guardas rodovidrios, dobermans, chefes de almoxarifados, tenistas, hare-krishnas e sushi-mans, O traiu comigo. $6 nao digo que o corno tinha 100% de razio quando perdia a cabega e espancava Ariela, porque um cara que atende por “Gui” mere pos e depois do apocalipse er coro até o final dos tem smbém, enfim: tanto o marido oficial como os genéricos eram sistematicamente subst: tuidos por flsificagdes cada ver mais fajutas. Eu, por exem. plo, havia sido substituido por um bitinique de padaria Imagino o arremedo de Kerouac implorando por um fio tera? afinal fot isso, mais o pau pequeno e a foda meia- -boca que Ariela denunciou posteriormente, que depreen. di da foto feicibuquenta daquela maldita fungada no can- gote publicada na pagina do infeliz Algumas horas depois de publicar as fotos, 0 casal de trairas me bloquearia da vidinha virtual deles, simples as edo n0 ca, no caso d btiniques de padaria, dois ded cruza dos — como rmaterializassem uma estrutura ce DNA — que por sua ver denunciariam a falta incorrigivel de talento a dnsia de se foder nhada de mais uma dose de Domecg. ‘Irate, pois, de uma me- igcridade cromossémica qu jamais i de se desgrudar desses ipinhos. Never more, nem fudendo: nem fadendo mala mulher dos ses escrito res preferidos CAPITULO 6 diamante é um dos poucos objetos lapidados pela vontade humana capaz de encerrar-se em si mesmo, Os li- vros de Camus também. Sem nenhuma jaga. Um octaedro ingulo, diferen- tede Aricla: integro. Simples, cristalino, © diamante que eu que mostra a mesma face vista de qualquer ia dar pra Ariela, tirado do ventre contaminado da terra, que custou o prego do meu grito sabiamente sufocado por vinte e cinco anos, ¢ mais a alma do Baduzinho que — no ‘momento em que a biscate me traia— devia estar crepitan- do nos quintos dos infernos. Uma pedra linda, perfeita, de quase dois quilates. E agora? © que eu ia fazer com a merda de diamante? Othar pra cle, e olhar pra garrafa de uisque. Confiden- ciar, ora com um, ora com a outra. A sotiddo como compa- hia, Uma espécie de sitio arqueolégico dentro do meu peito, Sao varias camadas de decepgio. De todos os tipos, feitas de ossos, cacos, durepox e esperanga. Desde crianci- nha fui um solitatio. O engracado é que vivi varias situagdes que simulavam, ‘uma infinidade de outros sentimentos, menos solidio. Mas era solidao. Quando crianca, tinha certeza que 0 mundo dona Arlete do apto. 92 compartilhavam do mesmo sen- timento — que ela ¢ 0 zelador do Sanvi Porchat também enxergavam espumas de sangue nas ondas que quebravam. sspumas foram as primeiras lembrangas que registrei de minha solidio. De- pois viriam os losangos do Ilha Porchat Clube. Eu acredi tava que meu irmao mais velho era sugado pelos losangos; ‘mansas na praia de Sao Vicente. Essas ¢ ld dentro ele se metia em encrencas com o Valete de Ou- ros do baralho, enquanto 0 Rei de Copas me dava guari da do lado de fora, boa gente — El Rei. Tinha certeza que Vinicius de Moraes frequentava o mesmo barbeiro do meu tio Ademar, ¢ que ambos jamais usariam meias. O sapato branco eas canclas nuas dos dois. nao sabia o que era estilo, apenas separava Vinicius e meu Era o estilo deles, mas eu tio Ademar dos outros adultos a partir de suas canelas nuas, cles brincavam comigo. Fu estava sozinho. Ouvia a tonga da mironga do cabulet® numa eepécie de walkman interno. lids, antecipei varias tecnologias que, logo depois de des. cobertas, seriam substituidas por outras muito mais ef cientes, jurol, Isso em 1972. Bra minha soliddo. Até hoje, acredito sinceramente que as pessoas ouvem a tonga da ‘mironga em walkmans acoplados diretamente em seus tim- panos, e, quando alguém aponta o dedo e me acusa de vai oso, egocéntrico, umbiguista etc., eu atribuo esse julga- mento a surdez interna do infeliz: que nunca vai saber 0 que é desfrutar da companhia do Vinicius e do tio Ademar em 1972; ambos girando pedrinhas de gelo no blended que minha meméria —feita do mais refinado isolamento. Eu podia citar milhares de exemplos, abrir o peito e desfolhar camadas e camadas de solidao que experimentei a0 longo da vida, Tenho sim uma Roma dentro do peito ¢ a Jem branga de tia Neném furando meu pescogo com suas garras de hatpia... e nfo se trata apenas de autoengano, Mas da 36 solidao na esséncia, algo que eu poderia quase chamar de felicidade, apesar da dor ‘Tem outro tipo de solidao, Aquela que maltrata, e que nao depende apenas da nossa esquisitice, se i se en posso dizer que é a solidio de verdade, mas posso garantir que é ‘uma solido que nao remete a valetes ereis de baralho, ela € crua e dbvia, ¢ cobra 0 condominio atrasado; ela é 0 nos so erro em estado de urgencia, um sentimento que jamais vai se misturar a qualquer desejo de abrir uma cachaga de rolha e nem vai admitir 0 encontro do céu com o mar, essa outra solidao reafirma a acusagao e o dedo em riste, faz com que efetivamente nos transformemos em seres vaido- sos e egocéntricos. Um caminho de mudanga que leva nossa Roma direto pro crematério de Vila Alpina: estou falando de uma solido que é alheia vocagio, uma solidaio que nfo esté nen para ruinas que acumulamos dentro do peito, porque é a ruina sobre a ruina, a reforma, aquilo que é prioritério diante da estagnagio. A solidao que so: mente as mulheres sio capazes de intentar. Imediatamente pensei que Ariela seria mais uma ruina a carcomer dentro de mim. Todavia, ela (ou eu mesmo) me surpreendeu, Dessa ver, confesso que nao cai no abismo negro das faltas que ferem feito punhal, nem dos porqueés inexpli veis que fazem a gente emagrecer,escrever romances Vin- gativos e ligar pros amigos de madrugada, Dessa ver, inclu- sive, poupei os amigos. Em determinado momento, acreditei que nio estava acompanhado da solidao de sempre, a supracitada, aquela que maltrata ¢ que faz a gente confundir 0 amor perdido com a mulher que caminha desavisadamente do outro lado da calgada, embora eu visse Ariela nao s6 do outro lado da calgada, como atrés do baledo da padaria, na caixa do su- permercado e no meio dos pesadelos que me acordavam de madrugada para lembrar que eu — outra vez — era um, apaixonado, mas dessa vez nao teve a limina nem a dor lancinante que cresce feito um punho fechado dentro do esbfago. Ariela pairava, permanecia ao meu lado mas nio exatamente como Joana, nao, nao exatamente. Nao era s6 presenga, Era dor tafnbém, mas uma dor que ao invés de me maltratar, me acalmava: imaginei que dessa vez quem me fazia companhia era o amor, o amor que sentia por Ariela, porque somente o amor nao se contaminaria a0 imiscuir-se com paixio e vaidade, sim, o amor de verdade, que nao era apenas abandono e obsessio, e que também io era somente idealizaao infantil da minha parte, mas n amor que acompanhava a solidao com serenidade, Eu seria capaz de tanto? Ou estariaficando velho e calejado? — Voce jamais vai amar alguém na vida Praga de cigana? Nao sei, enem devia ter lembrado da cigana num mo- mento desses. Mas 0 que posso afirmar, independentemen, te de ser amor ou paixio — ou a mistura dos dois —, no importa o nome, o que posso afirmar é que, pela primeira vex. na vida, tive controle da situagio. Eu imaginava que sim, talvez um controle que somente pudesse existir em fungao de um descontrole absoluto, mas era controle. Era sim, Além disso, uma certa elegincia leminskiana. Bem, descontada a poesia, falando assim “eu tinha controle” pa- rece até que guardava uma certa superioridade com relagio A novidade que me entorpecia. Nao era bem assim. O tal do controle apenas me acalmava quando devia me deixar puto da vida,e 1 repudiava muito isso porque — sinceramente — nao fazia a menor questio de conservar distancia e mui to menos de me tornar elegante diante dos cornos que bro: tavam da minha testa. Uma bosta de um controle que nio ‘me trazia seguranga. A verdade é que — mesmo que eu ti vesse amando pela primeira vez na vida — eu continuava infeliz, ¢ travado. Mas tinha controle sim, ¢ uma porra de um diamante de quase dois quilates que eu congelei junto aos cubos de gelo, s6 pra ouvir um barulho muito particular misturado no copo de uisque, um tilintar que me acompanhou ao lon- go da vida, mistura de memoria, dor e entorpecimento. CAPITULO 7 28 de dezembro — Paulinha? Oi. 01 Sou eu. Eusei — Tudo bem? — Tudo. — Bom que voce atendeu. — A gente se gosta, nao gosta? — Paulinha? —0i. — Sabe... eu fui viajar nesse natal. Cheguei anteontem. Chegou? — Pensei muito em voce. Pensou? — Putz, que merda que eu fui fazer. Sou o maior vaci lio do Bixiga. Ab, Paulinha. 61 Paulina? Oi. Jamos conversar? —Paulinha? — Oi. — Sabe, eu até trouxe um presente pra voeé, _—f& — Dé uma chance? Eu explico tudo, Que tal no Verdinho? Paulinha? Cé ta ai? Te. Entio, O Verdinho. O bar. Na Praca Dom José Gas: par, atrds da biblioteca, — Ah, o bar ~ A gente, Paulinha. Sabe. —Sei — Era s6 voce. Por onde eu ia, durante a viagem... todo tempo. A gente se gosta. Nem sei como falar... a bobagem que fiz. Parecia que voce estava la, no meio dos cafezais, na sombra dos eucaliptos. Até lembrei do amor que vocé tem. pela Titi e pela Camila — Elas estao bem? A Titi continua com citimes da C: mila? — Camila que é ciumenta — Ab, & Verdade! Titi faz xixi na cama, né? Enfim. Paulinha Denise aceitou meu convite, porque sabia que et ndo prestava, era um vacilio, mas gostava dela Aceitou também — ima ino que sim... — porque estraguei | | | | | | a surpresa e disse que havia trazido um lindo diamante do garimpo pra ela: Acredita em mim, Paulinha, Sé pensava em voce. — .. (cachorrinhas latindo ao fundo). — Verdade, Paulinhat Fu juro! Arrisquei meu pescogo, Enfrentei apaches, andes canibais, testemunhas de Jeov, seringueiros do PSTU, mocinhos & bandidos de todas as espécies, sucuris gigantescas, ongas, g fantes.. tudo isso pra voce. — Pra mim? —E Paulinha. $6 pra voes. Tira 0s andes canibais da lista Tirol — Tira os elefantes. -gonas, ciclopes, ele —Tiro! — Voce nao existe. — Existo sim, minha cabrita. Bu te amo. —Cabrita? — Sim, Quer dizer, meu amor. Um diamante. — Quié que tem? — Trouxe uma pedra linda pra vocé. Batizei com sew nome. Eu olho pra ela e vejo voce. Vocé é louco. Mentiroso, Mas isso que vocé acabou de falar é lindo. — Purinha, sem nenhuma jaca. furo! Oito lado, Pau linha. Uma raridade. Quando a vi brilhando no meio do minério de ferro, eu disse, essa pedra é da Paulinha. Nin. guém tascal —uhns? — Saiu da terra pra vocé, com seu nome: a partir da quele momento ninguém ia tascar ¢ eu resolvi que ia se chamar Paulinha Denise. Queria acreditar em vocé, 6 — Mais de dois quilates. — Mais de dois? — Quase trés, Noventa pontos, quase um quilate. Lindo, E antes de se chamar Paulinha Denise, todo mundo aqui t careca de saber, tinha outro nome (que en me esforgava para apagar da lembranga). Que se fodesse Ariela ¢ 0 arremedo de es critor, eles que se fodessem tomando conhaque na padaria, 6s dois vermes que me galharam. © que importava, agora, era consertar a merda que eu havia feito com Paula Denise, a mulher de verdade. A puti- nha triste, que nao era puta nem triste, A assistente de en- fermagem que me esperava ha quarenta ¢ cinco anos na frente do Biro’. Fu tamente da cabeca e colocar Paulinha no lugar — assim sem maiores delongas, sem traumas. Ariela simplesmente virou bijuteria. F Paulinha, agora, era o que eu tinha de ‘mais brega e precioso. Confesso que fiquei um pouco cho: cado com a falta de sensibilidade ea objetividade que me faziam agir como um cambista do show do Fagner, e muito mais chocado com os jogos de palavras que elucubrava em minhas permutas mais canastronas. Mas, apesar das bijute- rias que viravam pedras preciosas ¢ vice-versa, descartei de io sei coma é que consegui apagar Ariela comple- imediato a possibilidade de ser “um monstro dos trocadi- Thos’, Um monstro nao iria pedir arrego do jeito que pedi Talvez. um alquimista de chanchada, mas, no fundo, eu es tava sendo sincero porque, em primeiro lugar, nao podia ficar sem buceta e, depois, procurava consertar um erro crasso que havia cometido com Paulinha. Para tanto, eu teria de me redimir. E redengao é algo que transcende esti 64 oe trocadilhos, Nao tem erro, o resultado ¢ invariavelmen- te sublime, Bastava amar Paulinba e ser amado por ela. — Nao € bonito? Uma lindeza, Mais bonito se a mulher amada atender pelo nome de Pautla Denise. Uma criatura superior, que segundo meus célculos — ainda me amava e nao se impor taria de selar nosso love ganhando um diamante de um, quilate (ou quase) de presente. Nem ela, nen dades que incorporava, nem a psicanalista que receitava os tarja-pretas. Ningu xé-la careca, ninguém tinha como saber que o diamante era da outra, NE cinco enti- n,nem o cabeleireiro que ainda ia dei- Eu nao me perdoava, nao pelo fato de ter abandonado Paulinha, mas por ter feito toda aquela patetice em nome de Ariela. Quer dizer, patetice interna, porque ninguém ficou sabendo que o caso era de amor eterno. Os joguinhos de palavras e trocadilhos persistiam, pensei em procurar dr. Reinaldo Moraes, mas entendi que dos males os trocada. Ihos eram os menores. Pior se eu tivesse cometido a boba- gem de chegar no garimpo e anunciar Ariela como a mu Iher da minha vida. Na certa, chitdozinho e Xororé tripu- diariam dos meus sentimentos e, do jeito que os conhego, imediatamente providenciariam uma “moda’ antes mes mo de o par de chifres brotar na minha testa, Todavia me aguentei ria o diamante pelo triplo do preco em So Paulo, ¢ 0 lucro ‘egurei a onda, Para todos os efeitos, eu revende- — tanto faz se uma ou outra ganhasse o diamante — seria, abatido de uma divida antiga que o cacula Xororé tinha comigo, portanto assunto encerrado. A mulher de verdade havia me perdoado. E se ela ha- via me perdoado, ora, tava tudo certo, Menos o chapeuzi- ho de poodle, ¢ a carapinha alisada de Paulinha Denise que agora atingiam novo patamat Explicar € dificil. A parte lateral esquerda e a nuca per: maneciam descoloridos. Paulinha nao descuidava, Ié do jeito dela, nem das penugens da nuca, Do outro lado, ela havia cortado rente, méquina um, Para contrastar — a0 mesmo tempo — com o lado esquerdo eo direito, uma franjalaranja-deus-me-livre erguia-se a partir do centro do cabegio nortista em forma de tsunami, Ihe tapava o olho esquerdo. — Degradé, amor. Gostou? lindo, Paulinha, Como é que uma pessoa que é aconselhada por cin- co entidades, e mais uma psicanalista, pode permitir que um viado de um cabeleireiro faga tamanha cagada em sua cabeca? © mais curioso € que eu achava meio esq uisito, mas nem ligava. O chapeuzinho de poodle contimuava preso lé ‘em cima, como se servisse de base para o tsunami que bro tava do centro do cocuruto, Que se dane 0 corte de cabelo. Que se dane o chapeuzinho, Nem ligava para o fato de ela ter rapado a buceta maquina zero, e olha que eu sou ext gente nesse item, — Té uma belezura, meu bem. Tava lindo. Se ela fosse um travesti, estaria lindo do ‘mesmo jeito — porque se tratava de uma mulher de verda de, brega, mas de verdade. Paula Denise apareceu no Verdinho acompanhada da irma e de Francisnight. Ela reclamava muito da irma por conta de suas trapagas na esfera sobrenatural. As duas dis- putavam terreno no mundo paralelo, e Francisnight, que também era coroado na macumba, procurava conciliar os santos de uma com os santos da outra, Paulinha jurava que a irma era trambiqueira, que surfava em sua sensibilidade para chantagear a mae, uma velha pernambucana casca grossa que nunca lhe dava razao, Além disso, tinha um ir- mao psicopata que cumpria pena em Santa Coldnia Agricola de Palhoga, e mais cinco cachorros (trés poodles e dois chihuahuas) que disputavam seus lengéis fatarina, na com Titi e Camila. A vida de Paulinha, enfim, era o reflexo do seu corte de cabelo, Foi nessa noite, na mesa do bar, que eu ¢ Francisnight terminamos 0 “Forré do Nerd’: Entendi que para recuperar amor de Paulinha, eu teria de ganhar a confianga de seu melhor amigo € mentor, Francisnight, e da irma trambi- queira ~ que navegava ao sabor do vento e também era muito gostosa, diga-se de passagem. O diamante no bolso. Até aquele momento, ninguém havia tocado no assunto, ¢ provavelmente Paulinha devia estar pensando que eu in ventara a hist6ria para impressioné-ta. De certa forma, ela ndo cobrava nada porque havia me perdoado, ¢ junto con. cedia indulto para as minhas gambiarras pretéritas, e para s futuras também. Do fundo do coracio, imagino que ela avaliasse: “quem & que pediu diamante? mais uma lorota, deixa pra a, eu gosto dele mesmo assim, por isso que capri- cho no penteado” Uma lorota a mais, uma a menos. Noite linda e brega, uas dizias de cervejas sobre @ mesa. Um malho nervoso coma irma no banheiro, O “Forré do Nerd” em breve na mente e no coragao do povo, mais duas porgdes de frango a passarinho, Era o momento certo, ¢ entio eu disse: “pa rem tudo’ Saquei o diamante do bolso, ¢ proclamei que aquela pedra eraa prova do meu amor por Paulinha. O tsunami se ergueu a partir do chapeuzinho de poodle, ela tirou a fran- ja laranja de cima do olho esquerdo, e balangou os ombros na diregao da irma e de Francisnight, como se os consultas- se, eles anuiram, Toda orgulhosa pegou na minha mao, ¢ me tascou um beijio na boca, Sé love — Vamos pra casa, Dorme li? —ahn? — 0 diamante é verdadeiro, Igual a vocé. Eu e vocé Confia em mim? CAPITULO 8 Paulina me evitou delicadamente, Nao fui além do beijo. Achei melhor ndo insistr. Eu nao tinha esse direito Agora, aqui entre n6s, uma reconciliacio desse naipe, co roada com um diamante arrancado das profundezas de um sube minimo — um fodio. masciente mineral. travado e assassino, merecia — no A recusa de Paulinha me fez experimentar uma sensa- ao esquisita de ambiguidade, Eu até que gostei, embora no tivesse tido tempo suficiente para assimilar a ideia de que 0 ledo da noite anterior havia se transformado num poodle sub-repticio. Eu vivia uma realidade préxima a Titi € Camila, talver.um pouco abaixo das cachorrinhas, hierar quicamente falando, Mas estava tudo certo. Vale que eu havia consertado a merda, e seria feliz a0 lado de Paulinha Denise, mulher de verdade, brega, mas de verdade, final ‘mente ao meu lado. Ela roncava, Estalava os beigos ¢ assobiava quando sol tava o ar dos pulmaes. Pensei que esse tipo de ronco s6 acontecia em desenhos animados. Fiquei puto da vida. De- via ter dado um safanio nela, acordado a folgada e ter re clamado meus direitos de... poodle (2) « No dia seguinte, cumprimos o roteiro: maozinhas da- das, almogo por minha conta, selinhos. Bem, minha espe ranga era a siesta, Paulinha sabia que eu acordava de pau duro, que li pelas 15h era meu dpice. Quantas veres, antes de té-la traido com Ariela, ela mesmo nio me acordou gru: dada no meu “pirulito"? Tao meiga e inocente, Paulina, chamava meu pau de “pirulito” Nada de siesta. Ela resolveu que era hora de voltar pra Suzano, Tudo bem, pensei, Toco uma punheta, e amanha resolvo a parada. No dia seguinte, Paulinha ligou pra mi- nha casa aos prantos. A mie queria saber de que modo ela havia ganhado o diamante. Acusou-a de puta, e a irma — que acompanhou toda a mise-en-scéne na noite anterior — calou-se. Qual remédio? Por ela, eu iria até Suzano de taxi, ¢ explicaria & troglodita da mae que minhas inten. eram as melhores. Que eu era um autor de livros de sacanagem recomendado pelos mais severos criticos e in telectuais do pais. Além i direitos autorais, e tinha condigies de dar uma vida digna $0 acumulava uma fortuna com 2 filha brega dela, Cazzo! Qual o problema dessa velha filha da puta? Iria, mas nao fui. A velha pernambucana me desancou pelo telefone, Disse que rufido nenhum iria dar brilhante pra sua filha, Eu tentei argumentar, disse que nio era um brilhante, mas uma pedra bruta que precisava ser lapidada, e fiz, uma analogia com Paulinha, uma pedra bruta, brega e pessimamente penteada, mas que era gostosa ¢ chupava um pirulito como ninguém. A velha troglodita desligou o tele fone na minha cara. Fudeu, pensei. Perdi o pigo e a peda © curioso é quea filha da puta da velha nao fez. meni e se fosse 0 caso levaria os poodles juntos ode devolver o diamante. Uma hora depois, Paulinha liga pra minha casa Decisao tomada, Chegou de mala ¢ cuia, e disse que depois ia pegar Titi e Camila pra morar conosco, ¢ juntos — segundo seus planos — dividiriamos nossa felicidade numa quitinete-canil de 30 metros quadrados. Lindo. Oti mo, Problema resolvido, Agora vamos fuder, né? CAPITULO 9 —‘Tem um bébado no telefone, amor la me passou o aparetho. Era 0 Brecio: vindo dos ca fundés de um passado movedigo e improvavel, ele mesmo. Somente o Brecio para fazer contato pelo telefone. Fixo. Qualquer outro teria o cuidado de usara tecnologia para se reaproximar, arriscaria uma solicitagio de amizade através, do Facebook ou rede social equivalente. Mas Brecio nio era apenas uma assombracio perdida no tempo e no espa- ¢0. Ele nio mudaria seu modus operandi apenas porque vinte e tantos anos se passaram, ¢ um nerd chamado Zuu- ckerberg se mete no meio de Charles Darwin, Jesus Cris- to e Vania Marmiteira. Brecio ndo tava nem ai, Nunca es- teve. Da altima ver. que nos vimos, entetramos Vania, a marmiteira que morreu de AIDS em meados dos anos 90. ‘Até aquele telefonema, eu havia descartado a hipotese de ter passado a doenga para ela, Apostava no Brecio, mas 0 puto estava vivo, quer dizer, morto e vivo, louco e babando do outro lado da linha como se vinte e tantos anos e um Oceano Pacifico pra boi dormir nao significassem — entre outras coisas — ele ter puxado quase dez anos de cadeia, € eu ter acreditado que havia me livrado dele definitivamen- te:e 0 pior de tudo, o passado — coerente como de costume — me ligava a cobrar: Brecio? —Filhodeumaputa! — Sou um cara casado. — Pangaré! ‘Té louco? — Muito louco, cumpadi. Também casei Ah, meu Deus. Sério, merrrmao. Quando 0 sacana pronunciou 0 “cumpadi” e logo em seguida arrastou o “erre” do “merrrmao’ comecei a decifrar o mistério, $6 podia sera carioca. Aquela retardada que conhece- ‘mos nas selvas da Malisia, amiga da Neusinha Brizola. Da época que traficévamos pimenta-do-reino e mais uns arti- gos de primeira necessidade pra juventude bronzeada da zona sul carioca. Tempos idos. Nao lembro se foi o Brecio © fui eu quem 0 convenci. Ow se foi a falecida Neusinha quem nos influenciou, Mas atribuiamos & bandalheira uma fuungao social. Idealistas. Nés ¢ 0 nosso socialismo moreno. Que escorria das selvas da Indonésia diretamente pro Vidi- gal, morro abaixo. — Ti com aquela pirada, né? = Tuse escafedeu, foi pro garimpo, e eu fiz a vida, amizadinha. Quem diria, Brecio casado e fil. Depois da morte da Vania, se engracou com a socialaite carioca e, desde aquela época — presumi — vivia as custas da maluca que hi um quarto de século percorria os lugares mais fodidos do pla neta com o pretexto de fazer assisténcia social, ¢ cheirava p6 dia e noite. O pai dela era um nazista-ecol6gico, depu- tado estadual, viado enrustido que nao disfarcava a paixio pelo g ‘0, ninguém mais ninguém menos que o Brecio, Ou seja: incoeréncia completa, a cara do Brecdo com aque- le nariz que nfo parava de escorrer ha vinte e tantos anos, servindo bem para cheirar sempre. — Quer dizer que vocé surtou mesmo? — Ritinha, do ramo dos Schmidt Vasconcelos. — Armaluca carioca, eu sabia, aroto ispierrrto. Se vocé continuar falando desse jeito, desligo o te- lefone. —Eai, mano? Firrrmeza? — Vai tomar no eu, Brecio. — TW aqui no apartamento do sograo. Cobertura du plex. Paulinha me olhava com estranheza. Tapei a boca do telefone, e falei pra ela: “Amigo do Rio, meio pirado. Liga nao’ — Pera ai, Brecio. (Ouvia-se um som de atabaques do outro lado da linha, berimbaus, afoxés. Quase dava pra sentir o cheiro do defu mador ea encrenca que o telefonema prenunciava, ‘Cabrita, vocé poderia descer e comprar um mago de cigarros?” Paulinha retrucou dizendo que nio era uma ca- brita, eque eu nao fumava, eu disse que tanto fazia: pedi pra cla aproveitar a viagem e trazer umas latinhas de cerveja aulinha foi as compras, eeu fiza pergunta crucial pro Brecio: — Ti comendo o velho? Em suma, Brecio arrumou uma cobertura duplex no Leme pra passar aquele e os préximos vida, $6 ia depender de: 1. “preservar 0s canai 2. conservar uma certa “discricao’: Ou seja, Bastava comer a bunda do velho, e acompa. nhar Ritinha nos chs beneficentes e bocas de fumo dos morros pacificados do Rio de Janeiro, Paz € amor, como nos velhos tempos. Uma tarefa hippie aparentemente sim ples. Acreditei que Brecio conseguiria “preservar 0s ca nais” Afinal, ele vinha — aos trancos e barrancos — fazen- do isso hd mais de duas décadas. O problema seria con- servar uma certa “discrigi’, sobretudo porque ele me con- vocava — novamente — para ser seu ciimplice. Da iltima ver que o prenderam, ¢ eu tive que me pirulitar vestido de mulher do padre. Onde ele havia arrumado aquela giria anos 70? Talvez tenha se inspirado em alguma pornochanchada do Canal Brasil. Sei ld. $6 sei que nao combinava com ele, gaticho de Alegrete, grosso. © que para 0 Brecio era malandragem, para mim era sindnimo de encrenca e canastrice. Paulinha ou da rua com a cara amarrada. Eu fiz.0 comunicado: — Arruma as malas, cabrita. Vamos passar o réveillon no Rio de Janeiro. Umm minuto antes, Brecio, pra li de Bagda esquina com Chapéu Mangueira, do outro lado da linha, havia me convencido: velho ta na Europa. Tem uma suite com hidro. ra tue pra dignissima senhora. — Ti de brincadeira? ‘Tue senhora Mirignela, O casalzinho amigo nosso. Nao ia ser facil aguentar 0 Brecdo falando giria anos 70. Mas, porra, réveillon no Rio de Janeiro, cobertura, hi- dro 6 escambau, Eu & Paulinha, 0 “casalzinho amigo nos- so"? De endurecer 0 pau. © universo conspira, ¢ quando conspira demais ébom a gente desconfiar. Consegui duas passagens pro dia 31 de dezembro a prego de banana. Era a primeira vez de Pauli nha no avido. A aterrissagem e 0 pouso mais perfeitos e bonitos do mundo, Fla nao fazia ideia do que era decolar ‘em Congonhas e pousar no Santos Dumont. Paulinha nao sabia nada do Rio de Janeiro. Nunca ouviu 0 “Samba do Aviao’, ndo sabia nada de Tom Jobim e bossa nova. Tudo perfeito, a mulher de verdade, bom demais pra ser verdade. Mas ai é que morava o perigo: era verdade. — Ver, Paulinha, Vamos comemorar o final de ano agora mesmo. —O Rio é bonito, coragao? —Perto de vocé, é horrivel. Vem cé, mulher. — Posso te fazer um pedido? CAPITULO 10 Tudo bem. Atendi o pedido. Foi uma merda ter traido Paulinha, ela precisava recuperar a confianga em mim. Dis- se — aligs me prometeu — que ld no Rio a gente ia se en- tender. Por ora, apenas maozinha dada e selinhos, Nem Belchior ela conhecia, mesmo assim cantei pra ela a misica grudenta do cearense na hora que 0 aviso decolou. Parece que eu sou um escroto, mas sou romantico. Com o Brecio 6a mesma coisa, parece que ele é um animal, mas na ver- dade ele s6 comeca a latir quando esta bébado ou drogado. Do periodo das 15h, quando acorda, até mais ou menos is, 21h, isto 6, antes do terceiro uisque e a primeira cafungada, Brecdo é um cavalheiro E I estava ele no aeroporto — vejam sé — dia 31 de dezembro as 17h. Brecao, a delicadeza, a finesse em pessoa. gia requintes de hospi talidade ao desfilar no saguao do Santos Dumont com um. dockside nautico azul e branco, Rolex de ouro no pulso e tum sorriso iluminado que realgava sua pele bronzeada. S6 Vestia uma camisa havaiana, e ati faltava o chapéu panama para estampé-lo na capa da rev ta no me decepcionou: —Bem-vindos & Ilha da Fantasia. vas. Eu pressenti qual seria sua primeira fala, e Brecio —Cadé 0 Tatu? — Na cobertura, ajudando Maria Rita na decoracao. Paulinha abriu um sorriso largo. Os dois se entende- ram imediatamente, Conversavam como velhos amigos, e, as vezes, me incluiam no meio do di lo tudo perieito, sobretudo porque nao ta papo furado. Entao, diante do janeldo que se abre para a pista e imediatamente para a baia de Guanabara, parei de caminhar por instantes. Os dois tagarelas se afastaram de mim e nem se deram conta. Nem eu me dei conta. Senti o 0, eu ach: ra aqui a muito a fim de sargago € 0 azul do eéu ¢ a extensio da ponte Rio-Niterdi a0 fundo, invadindo todos os lugares-comuns dos meus poros. Era como se a paisagem tivesse entrado no meu cor po. O que eu poderia fazer sendo facilitar a invasio e deixar a felicidade correr livre até transbordar e explodir dentro do peito? Mais um pouco, eu, encarnagéo de buda gay da ponte aérea, levitava. Nesse momento, os dois se viraram para mim e me chamaram de volta Nem Brecio, muito menos Paulinha, eles nao faziam parte da paisagem. De jeito nenhum, Paulinha Denise, ndo, Em nenhum momento consegui vislumbré-la no Rio de Janeiro, dentro da paisagem. Se ela me chamasse a partir da plataforma de embarque da rodo- visria de Praia Grande, daria no mesmo, Brecio era uma falsificagao ambulante, talver, por isso, as vezes, eu conse guisse incluf-lo com muita boa vontade no Rio de Janeiro que imaginava para mim. Paulinha nao. — Bora! Os alcancei, e Paulinha me perguntou: Verdade que eles tem um ano em cas — Mentira — eu disse —, tudo mentira, 80 31 de dezembro de 2011 No réveillon, 0 Rio de Janeiro todo cabe dentro do Santos Dumont, o resto vira Mongagus. Culpa nossa. Nos: sa, da gente, niné (© paulistano tem esse dom de levar as praias oleosas e a feiura da Baixada Santista pra onde vai, No final do ano, qualquer um, seja dinamarqués, gaticho, cearense, ou até listas/paulistanos, mesmo carioca, tanto faz, no réveillon, vira tudo bebedor de garapa. Ipanema se transforma numa Barueti, as mu Iheres bronzeadas empalide paulistas. Quando Deus fei Mongagua e pensado: “é aqui’. B carimbou a Baixada na sm, ¢ todos, sem exce¢ao, S40 ‘6 mundo, deve ter olhado pra alma dessa gente que nao é caipira, nio é praiana, nao € metropolitana, Nao txd. Do terminal Jabaquara até o Tiet®. Reparem. A cara nada, Basta fazer uma viagem de me amarrada. A mesma tristeza, 0 vigo perdido, A deselegin. cia nada discreta da tiazona crente vestida de urubu. Ape nas o barulho do vagio, nenhum sinal de vida. Inventamos a embolia. O cancer de pulmao. A neblina eterna cobrindo a Serra do Mar. Hebe Camargo. © bermudio, o Rider ea camiseta regata. E Deus, s6 pra sacanear, dividiu a conta no cartio em mil parcelasa perder de vista, e sentenciou: “ago- ra vio pra Mongagud e nao me encham 0 saco’, Pra piorar, acrescentou ao nosso livre-arbitrio “um chopis & dois pa tel: e ai as minas comeyaram a descolorire alisar suas ¢: rapinhas, e os caras adotaram o ray-ban, o churrasco de linguica e a pochete como estilo de vida, Resultado: de se~ gunda a sexta-feira, sou obrigado a ouvir a mulher do 52 despedir-se do marido com um beijo na boca e um “bom trabalho” — o desejo do casal ecoa pelo fosso do prédio. As veres desanima. As vezes dé vergonha. st Uma piada dizer que temos alma cosmopolita. Como 6 que alguém que enche o pastel de catchup pode ter alma cosmopolita? De modo que é uma puta sacanagem as em- presas aéreas venderem passagens mais baratas que a Itape- mirim, Nao bastasse, ainda deixaram Paula Denise comer baconzitos durante o vo. O leitor ira dizer: elitista, pre~ conceituoso, Eu respondo: sou paulistano e conhego muito bem a Mongagua que carrego dentro do peito, e sei com quem estou lidando. Evitem o Rio de Janeiro no réveillon. Somente depois do carnaval é que as coisas comegam a entrar nos eixos Depois do carnaval, as sombras machadianas voltam a se estender sobre a cidade. Apesar das florestas menstruadas, as castanheiras dizem o contrario e nao me deixam mentir, €, no outono, especialmente no final do outono, elas néo devem nada as obsessdes mamiferas de Nelson Rodrigues, ‘mas nao s6 as castanheiras, as tamarineiras também par- ticipam com suas vagens secas, ambas ajudam a empali- decer as ruas, de vagens ¢ folhas mortas, ambas estendem suas sombras que atravessam 0 tempo com a elegancia eo estilo das velhas viciadas, cansadas de tanta lubricidade e beleza Mas o Brecio me convidou, e Paulinha, que mandou ver no baconzitos dentro do avio, prometeu que ia dar gostoso para mim no Rio de Janeiro. Eu fui, fomos, ora Do aeroporto direto pra Adega Pérola, em Copacaba- na, Paulinha Denise torceu o nariz.e arrepiou a carapinha, ficou com nojo do estabelecimento ¢ armou uma tromba gante, Eu e Brecio nem ligamos, Coisa de duas horas de pois, li pelo décimo chope e a quinta dose de Germana, a ouvi murmurar que preferia a praga de alimentagao do Walmart. Bingi que estava bébado. As 10 horas da noite nao dava mais para fingir. Beba- dos e ilhados na Adega Pérola. O celular do Brecao havia descarregado. O meu irremediavelmente fora de Area e sem. . Maria Rita, Ritinha, a socialaite que o Bre via descolado, preparava os comes & bebes e enfeitava a cobertura nao muito longe dai. Nao obstante, metade da populagdo de Barueri, Cotia, Itapevi e mais um enorme contingente de Suzano, ocupava toda a extensio da Siqueira Campos e atravessava nossos, crédito: jo ha- hopes e cachagas, que apareciam e desapareciam de nos. sa mesa feito passes de magica, O fluxo. Que a cada segun. do se intensificava a partir da praia até alcancar a pacif cada Ladeira dos Tabajaras, morro acima. Uma multidio de zumbis vestida de branco entupia a pobre Iemanjé de oferendase pedidos iam vinham, de acordo com aqui lo que a minha avaliagao de bébado encalacrado na Adega Pérola jurava que era o movimento das marés —‘Traz mais uma, gargom! Nao dava pra sair dali, Alguma coisa, ao meu lado, que vagamente me lembrava Paula Denise aos prantos, me s cudia e pedia pelo amor de Deus para ir embora. Brecao se atracou com um travesti, bem, talver fosse uma mulher vestida de travesti, no sei. Conseguimos sair de li ainda de madrugada. Depois, lembro de um quiosque no calga Era um disco voador. Eu conhecia o truque dos: e denuncieia nave extraterrestre para uma autoridade cor petente que nos encaminhou diretamente para dentro do tixi, De li — consta — chegamos no apartamento do Bre: cao, Tenho certeza que aquilo que os otimistas chamam de “dia” ainda nao tinha raiado, jenigenas, 83 1° de janeiro de 2012 Do quarto, ouvi os bertos lancinantes de Maria Rita, a socialaite do Brecio, e mais uns barulhos de louga quebra- da que me acordaram mais ou menos s 3 horas da tarde do dia seguinte, Paulinha Denise se esticava ao meu lado, se ‘minua, numa tentativa de compreender onde havia amar rado 0 seu jegue. O pau quebrava na sala, Perguntei pra Paulinha: — Quem é vocé? Que lugar & ess —Imbecil — Te comi? Braa cobertura duplex da mulher do Brecio, virada de cabega para baixo, Na sala, aver do Brecio gritar: — Rita, love u! ‘Um baque seco. Um objeto muito pesado caiu perto do terrago que dava pra piscis Mas que merda, pensei, por que esses dois nao concentram a briga num s6 lugar? A seguida. Como € que et ia saber qual xingamento correspondia a determinado Logica era xingar e jogar 0 objeto e objeto? — Té ouvindo, Paulinha? — No ouco nada, Mais nada. Sou surda, e nao quero owir — A coisa té feia — Seu amigo é maluco, pior do que voce. — Eu? O que eu te fiz? — Nada, vocé nao me fez-nada. Nem te comi22? Paulinha levantou da cama num palo, e correu pro ba- nheiro. Foi chorar Ia dentro, Cazzo! Que hora pra se trancar no banheiro, onde & que eu ia mijar? Saf de fininho e logo a achei o tangue da érea de servico, Mijei ld mesmo. Brecio € Ritinha se estapeavam no deck, Ouvi um tchibum, De- pois outro tchibum, era o Brecao que mergulhava na pisci- naatrés na socialaite? E se ele afogasse a mulher? Ah, foda-se. Voltei pro quarto, solteé alguns peidos e dormi novamente. Acordei jé era de noite, Paulinha permanecia trancada no banheiro, chorando. L4 fai en de novo pro tangue da da Ritinha. Caraio! O maluco tava dando um caldo rea de servigo. Mijei. Brecéo tentou me surpreender 20 nha nuca, peguet a mardita na virada, em pleno voo. — Feliz ano novo, Miriguela! — Opa! Feliz 2005, Brecio, — Dois mil e quanto? — Caralho, depois de 2002 perdi a conta. — Acho que é 2012. jessar uma latinha de cerveja que tinka por alvo mi ‘Tem certeza, Brecio? — Deve ser, acho que sim. Fa Paulinha? — Que Paulinha? — Tua mulher, maluco! — Ah, td trancada no banheiro, chorando. — Por qué? —Seilé —EaRitinha? — Que Ritinha, amizadinha? — A socialaite, Brecio. Socia... o que, Miriguela? Aquela que tem um pai ladrao que gosta de dar o rabo pro genro. Ah! Foi pra Acapulco. ~ Pra onde?! — Pra puta que pariu. — Por qué? — Sei la A dea de servigo do apartamento de Ritinha contava com uma vista privilegiada, Pai e filha decerto nio haviam reparado, Para tanto fazia mister mijar de pé. Pra ver a flo resta tinha que mirar dentro do tanque, na ponta dos pés. © melhor lugar que mijei na vida, Revigorante mesmo. ‘Me senti um Tarza da Mata Atlantica quando abanei a pica prum bicho-preguiga que me observava com olhar langui- do e blasé; engragado, nesse momento, lembrei do meu primeiro editor, assim meio desinteressado mas curioso, 0 tipo do cara que desdenha porque quer comprar, ele o bi- cho-preguiga, Sinceramente? Eu moraria no quartinho da ‘empregada numa boa, ¢ de bonus ainda ganharia a compa ‘hia de uma cachoeira borbulhante — e o melhor é que a cachoeira era s6 o borbulhar. Impossivel avisté-la. Era mais, um pressentimenta do que uma queda-d'igua. Pensei em fundar uma seita new-age na area de servigo do Brecio. O sujeito ia Ia dar uma mijadinha no tanque e estabeleceria contato com a floresta mamifera e seres elementais, gno mos, sacis-pererts, saguis, bichos-preguica, o fantasma de Mem de Sa e 0 sogro do Brecio de lingerie (pra quem apre- ciasse)... enfim, a drea de servigo era de fato um lugar mé- gico: étimo para quem é dado a pressigios e visdes, ¢ tem que mijar de qualquer jeito, Desejei feliz natal ou feliz ano novo pro bicho-preguiga que continuava a me olhar com languider, e voltei pro quarto, Feliz da vida, mesmo saben- do que ia dar merda, mas feliz da vida, como se Paulinha no continuasse trancada no banheiro e isso — a tal da fe licidade — fosse possivel, apesar dos pes tangue da drea de servigo, res e longe do 8% CAPITULO 11 Brecio chegou perto de acertar na mega-sena. Baita cobertura no Leme. Dava pra ver a orla de Copacabana quase até 0 Posto 5. O problema — como eu havia previsto —eraa tal da discrigao. E sem discricao a “preservasao dos, canais” do malandro foi pras picas. Um pouco antes de eu acordar, ou um pouco antes de © primeiro objeto de arte voar da cobertura na diregio do mar do Leme, Brecio ha: vie revelado a Ritinha que o pai dela, além de ser um nazis ta-ecol6gico dissidente do PV e recém-filiado a0 PC do B, também gostava de chupar rola ¢ dar 0 cu. No comeco, Ritinha deu de ombros. Bla era assessora do pai, aspone, cimplice. Tinha conhecimento das falea- truas do velho. Mas, depois que juntou a +b, isto & depois «que atinou que dr. Schmidt Vasconcelos néo somente chu- pava a rola do Brecao, é que o bicho pegon. Se Brecio fosse uum cara disereto, a coisa terminaria no vexame, no atraso,, no réveillon que ele — que nés — estragamos por conta de mais uma bebedeira, normal. Réveillons e aniversérios acontecem todo ano. Ele podia consertar a cagada em 2007, digo, 2014, 13 bana inteira testemunhariamos a seu favor. Quem é que sei lé, Afinal, eu ¢ Paula Denise e Copaca no sabe que Copacabana se transforma numa macaroca irremovivel na virada do ano? O problema é que 0 Brecio — como antecipei — tem todos os defeitos do mundo, e o mais grave deles, mais grave que a nossa amizade, € a indiscrigao, Ele nao precisava dizer que — também — comia a bunda do velho, Porque uma chupeta é uma chupeta. Um ato quase involuntario, O sujeito fica ali paralisado e a chu- padora, ou chupador (no caso 0 sogro do Brecio), execu- ta o servigo. Outra coisa, porém, € comer o rabo de uma bicha velha ecologica dissicente do PY. Isso demanda con- centragio e esforso, muito esforgo. O cara s6 com muita vontade. Brecio nunca se empenhou a esse ponto com Ritinha. Entao ela, fnalmente, depois de tanto tempo, surtou pra valer. ‘A merda toda aconteceu antes de eu acordar. A tinica e tiver coisa que sobrou do apartamento foi a vista. Belissima vis- ta, aliés, Quer dizer: a vista, mais Paulinha Denise trancada no banheito e 0 Brecio arremessando latinhas de cerveja na minha diregao. — Uma semana, Brecio? Foio prazo que ela me deu. Essa mulher te ama. Sea gente nao saisse em sete dias, os capangas da bi cha ecolégica iriam delicadamente nos apresentar 0 cami- nho do olho da rua. De fato, sete dias depois de vinte e tantos anos, era prova de amor, Maria Rita Schmidt Vas- concelos amava 0 Brecio, corria o risco inclusive de voltar para cle, Diante da situagao, ocorreu-me estuprar Paulinha, mas ela me fez, mudar de ideia quando apareceu de canga na sala, esquisita e sorridente, iluminada mesmo, e fez. essa proposta Vamos pro quiosque? — Agora? — Por que nao? ‘Uma noite leve. Divertida, Ou quase. Paula Denise — insisto — nao fazia parte da paisagem, parecia uma havaia- nna dos Trapalhdes. A mesma coisa aconteceu no dia se- guinte quando mais ou menos recuperamos o fuso horé- tio, Brecao se distraia com ela. Os dois haviam retomado a cumplicidade do aeroporto e, agora, Brecio sabia da hist6 ria do diamante, e o pior, sabia que ela regulava a buceta para o seu melhor amigo desde que reatamos o namoro em, Sao Paulo, © puto, logo ele, aconselhou-me a ser compreensivo, assegurou-me que Paulinha era uma garota especial que merecia tempo e dedicagio. Claro que sim, desde que ele no comesse ela antes de mim, tudo bem Mas nao era 0 caso, Paulinha virou uma espécie de sacerdotisa particular para 0 Brecio. Fez a mesma coisa com a detetive Manro Picanha, em Sia Pana. E fazia o mesmo comigo. Comigo principalment mia com ela, Er quase um més. S6 podia ser mégica, fetigo, macumba. porque eu dor- na comia desde nossa separacio, coisa de Em dois dias varremos Copacabana, Ipanema e Le- blon. Gastei mais de 2 mil reais com ela e com 0 Brecio, tudo no carto de crédito, O pior foi levé-la & Argumento da Dias Ferreira. Ideia do Brecio. O que me deixou mais puto ndo foi o fato de ela ter comprado — com o meu car- tao — um livro do dr. Shinyashiki, mas o vinho do Porto que 0 idiota do Brecio teve a infelicidade de pedir no café da livraria, Paulinha virou sete célices. Eu tentava fazer ‘uma aproximagao entre o vinho do Porto e a cidade, mas nao adiantava nada explicar que os lugares existiam em funsao da historia, ¢ que a historia nao se en talagada (ou varias) de vinho do Porto, muito menos numa prateleira de supermercado que vendia os mesmos alisan- 9 tes e as mesmas tinturas para cabelos em Ipanema e no Jardim Casqueiro. Em outras palavras: aquela xucra nao tinha paladar, simples assim; ela jamais entenderia que al: ‘guém, antes dela, havia — entre outras coisinhas...— fama do maconha nas pedras do Arpoador e amarrado cavalos no obelisco da Rio Branco, que o Rio de Janeiro, a despeito da breguice de Paula Denise que contaminava a todos e ignorava a histérla, nao era Mongagué. No dia 3 de janeiro a levei ao Bip-Bip. Paulinha detes- tou. Fez-cara feia, armou tromba eo Brecio deu razao a ela. © puto disse que preferia lugares amplos ¢ iluminados. “Ti- po praca de alimentagio, né Brecio?” Sim, claro, Ele con. cordava com tudo que. estrupicio falava. Brecio, o homem «que frequentava as rodas de samba da Gamboa e Pedra do Sal. Logo ele — vejam s6 — ele que me levou pra comer bacalhau no Cadeg la em Benfica, logo esse puto vem me dizer — ou melhor — corroborar a tese de Paula Denise que acusava o Bip-Bip de ser um lugar “meio apertadinho’ ‘O cu do teu sogro, Brecdo, também é meio apertadinho?” Isso porque, antes de irmos pra Argumento, no almo: go — que eu paguei no meu cartéo —, ela olhou dentro dos olhos dele e disse que dois orixés disputavam sua coroa. Orixas da pesada, Nao se tratava de Zé Pilintra nem de Exu Caveira, era figurdo graiido de Aruanda. Nem preciso dizer que fiquei com inveja,e que o homem se encantou, sentiu -se © cara mais importante da macumba e do Tio Sam, 0 boteco frequentado por Joao Ubaldo antes de entrar em surto peessedebista. E eu pensei, Joao Ubaldo deve ter li a 0 povo brasileiro suas razdes, pior seria se o autor de Vi entrasse em surto do PSTU, e, em seguida, avaliei: duas entidades a disputar a coroa e o respectivo couro do Bre- cio, 0 sogro bicha dele e a mulher drogada, Esse merda té fudido, e amanha ou depois de amanha, quem té fadido e no olho da rua sou eu, responsivel por esse impiastro eso: \érico, dona Paula Denise, que me regula a buceta faz qua. se um més, limit do cartéo de crédito tinha ido pras cucuia: Como é que chama o dia antes da antevéspera? Sei la. Sei que faltavam poucos dias pro despejo,e eu ja havia de. sistido de comer a sacerdotisa do Brecdo. Resolvi desfrutar da cobertura, Que vista! Nas favelas, ali atrés no Chapéu Mangueira e Babilonia, tem gente que aluga a mesma vista pros gringos. O problema é subir a porra dos morros, se dependurar nas lajes. Eu pensava comigo mesmo: imagina uma vista dessas sem ter de correr riscos? Vale uma grana preta. E eu aqui, desfrutando dessa porra na faixa. Ou qua- se. Até que 0 Brecdo — fiz meus calculos —, apesar de ser 171, &um cara legal Divagava pra ver se me distraia da merda que Paulinha faria naquele momento. Bobagens. Quem mora numa cobertura dessas no tem necessidade de alugar vista nenhuma. A paisagem é dele. A cidade brilha, as familias atravessam as ruas € os cles cagam no calgadao s6 para ele, Daqui de cima, é dele ‘o miché dos travestis e 0 primeiro beijo dos namorados, ele © pos suir,e se o puto olhar em linha reta tem o horizonte e o sol no precisa fazer nada diferente de olhar para baixo, que morre todo dia s6 para ele. Imediatamente acima de seus cornos o céu azul do Rio de Janeiro. Um cara que mo- ra numa cobertura dessas nao vai dividir o azul do céu com, ninguém, E td certo, No caso do sogro ou ex-sogro(a) do Brecdo, a exclusividade era mais do que justificada. Tudo roubado. © Rio de Janeiro lé embaixo eo motim aqui na cobertura, o enfim, eu divagava est cado numa chaise longue e analisava seriamente a possibi- lidade de arremessar Paulinha Ié de cima. Eram umas 10 horas da noite, Minutos antes, eu ¢ 0 Brecio assistiamos Bofe de Elite, programa do Tom Cavalcante. Aliés, muito bom, recomend. Quando Paula Denise apareceu na sala e nos convidou para ira praia, nem olhamos pra ela. Apenas lembro de ter falado algo do tipo: “Vai li, minka filha’ — Vou tomar um banho, e ja volto — ela disse. —T. Dali meia hora, ela aparece na sala. Vestida de puta Nao, ndo era o vestido que usou no dia que enlouqueceu os para-atletas no Marajé. Era de puta mesmo. Tanto que foi a primeira vez que reparei na borboleta gigante tatuada em sua coxa, A cinta-liga amarrava a borboleta. Além disso, tinha o umbigio, Aquele umbigo mal tesourado que deixa a tripa um pouco pra fora, um detalhe nada desprezivel. Todavia, esse era apenas um dos detalhes que mais saltavam a vista, quase o centro geodésico do vestido, Mas sobretudo 0 decote. O correto seria dizer que o decote tinha um ves tido, ¢ néo 0 contririo, A fenda em V comecava nas ore Ihas, atravessava todo 0 tronco e se prolongava mais ou menos cinco centimetros abaixo da protuberancia umbili- cal, e depois seguia alucinadamente na direcio da linha de pelos escuros que levava ao pibis. Curioso, até aquele mo. ‘mento, eu ndo sabia que Paulinha tinha uma borboleta ta- tuada na coxa, nem sabia que o umbigo dela era tao feio. Dentro desse decote, ou melhor, fora dele, as tetas saltavam pediam pelo amor de Deus me chupem. O vestido verme- tho — grudado neta feito uma s terminava no decotdio em V furioso, Como se 0 corpo in eee sgunda pele — comegava e teiro de Paulinha tivesse se transformado numa espécie transgénica de oroboro que engolia a si mesmo e a tudo, que girasse em torno de sua érbita — no caso e até aquele ‘momento, eu € 0 Brecio, Paulinha Denise havia se transfor- mado numa uisqueria ambulante: Mas sem calcinha? Unhs? — Onde é que vocé vai? — Dar uma volta. Brecio olhou para mim, eu olhei para o Brecio, e de- sgalhar, Compulsivamente. —Tehau! satamos a — Pera ai, Paulinha! — Quer ir comigo? — Desse jeito? Té louca? — Tehau! — Peraal thei pro Brecio, ele havia congelado, Explica pra ela, Brecio! Nada. O homem entrou em estado de catalepsia. Tal- vez abatido por uma crise moral aguda, A alma corrompida do Brecio pedia arrego, Fra outro Brecio. Paralisado, cata- tonico, Eu e ele perplexos diante do ex rico umbigo de Paulinha e da xoxota raspadinha que contrastava com os pelos negros abaixo do umbigo. O que eu posso dizer? Di, ‘gamios que 0 Conjunto da obra sorria de labios arreganha dos prandis. Imagino que Brecao deva ter se arrependido de todos os seus crimes e pecados, e agora conjeturava abandonar os vicios, ¢ levar uma vida regrada, Naquele breve momento, talvez.tenha avaliado a possibilidade de trabalhar na TV Folha ou numa corretora de seguros. c ‘Tehaut io vai falar nada, Brecdio? — Paulinha! Espera! O calgamento aqui no Rio... as pedras portuguesas, as vezes, causam transtornos, Voce pode se machucar, torcer o pé, entende? — Nada! To acostumadat — Bla ta acostumada — balbuciou o Brecdo. — Quantos centimetros tem 0 salto dessa sandilia? perguntei ~ Uns quinze, eu acho, Tchau! — Aonde voce pretende ir? — Dar uma volta — Paulinha. Vocé sabe que isso aqui é 0 Rio de Janci — Unhs? — Presta atengio, meu amor. Lé fora, isso aqui € aqui- lo al, Otha li o Rio de Janeiro, — Unhs? — Uma selegao. Os mais bébados, drogados, vikings ¢ loucos varridos de todas as nacionalidades e espécies, todos eles atris de encrenca, sem falar nos malucos locas, Existe uma probabilidade muito grande de dar merda, Olha pra mim, Paulina Ela tirou o batom da bolsa, e um pincel. Arqueou a sobrancelha, olhou pra mim de alto a baixo com desprezo, etocou a maquiagem calmamente, e disse: — Vou dar uma voltinha. — Desse jeito? — Unhs? —Sabia que toda a putaria do hemistério sul esta con- entrada logo ali embaixo. Logo ali. $6 atravessar a avenida, aquela avenida, ta vendo? —Aonde? Ali, Avenida Princesa Isabel. Aquela é a Avenida Princesa Isabel. F do outro lado da avenida, é 0 Lido, A ONU da putaria! disse o Brecio. — "Tava faltando essa informagao — Vai tomar no cu, Brecao! — Abaixo a escravidio! Viva a Princesa Isabel! — pro- clamou Brecdo, subitamente saindo do estado de catato- —Tehau! — Paulinha, pera ai Acompanhamos a saida da mariposa pelo circuito in terno de video, O porteiro quase que bate uma punheta com o proprio pescogo a0 acompanhar o rebolado dela. Paula Denise caprichou no rebolado, diga-se de passagem. E. Pois é — O sograo vai pirar — Relax. Teu sogro t ld na Escécia, mamando na gai- ta de fole de algum Black Label de minissaia Bre mesmos, Um erro crasso, Mas de que provas ele falava? A puta da cobertura: estava tudo gravado. Ela é puta? Ela nao 6 puta? Nao era exatamente a deusa do recato, mas Brecio, logo o Breco, quem era cle para acusara mequetrefe de ser puta ou filha da puta? Entdo, o jurisconsulto explicou-me sua teoria, segundo a qual ele estaria perto de conseguir usucapido do duplex, “sabe cumé2”, Nao eu nao sabia, mas, entendi que havia um acordo tacito entre ele & 0 sogro. Pos- se. Usucapido do rabo da bicha velha, Além de corrupto, ecologista ¢ ladrao, o sogro era ciumento € possessivo. Ti- ham um trato. E 0 Brecao, um cara disciplinado e cumpri- 10 me acusava de ter fornecido provas contra nds dor dos deveres morais e cfvicos, seguia as cliusulas risca. Surpreendente. Assim é que ele “preservava os canais” ¢ mantinha uma certa “discricio! anais do intestino grosso que terminam no re- to, que coisa mais linda, Brecao. © trato era 0 seguinte. Na cobertura, apenas ele e 0 sogro de lingerie. O ramerrame didrio, E Ritinha recebia os traficantes e socialaites amigos dela, tudo dentro do maior respeito. Tradigdo, Familia. Propriedade, — Vocés também cultuam a Virgem Maria de Guada- lupe? Sim, claro. Catélicos fervorosos. Nada de puta, nem travestis no duplex. Com isso, ele novamente insinuou que minha mulher fazia programas, chupava picas e dava o cu mediante paga. Mas, na verdade, Brecdo, 0 rei dos protoco- los, queria me fazer compreender que os benditos canais que ele tanto tentou preservar e a discrigio, afinal de con- tas, inham ido pra casa do caralho, Tava tudo filmado. Nao bastasse, o zelador punheteiro filhodaputa era cupincha do velho. — Porra! Fla nao é puta! Eu devia ter ficado quieto diante do estrago que direta ¢ indiretamente provoquei na rotina do Brecao. Nao era 0 caso de cobrar o que ele me devia, eu o havia perdoado mas, nao esquecido: meu crédito permitiria levar a Kilt toda pra dlentro do duplex. Outra coisa. Se Paulinha Denise era puta ‘ou santa, antes disso era minha mulher, ends éramos con- vidados do Brecio. Vexame, Até que ele foi bastante gene 050 € didtico comigo, mesmo assim nio aguentei. Brecio podia perfeitamente ter discorrido sobre a merda em que nos encontravamos sem usar aquelas girias anos 70, que porta! Entao, o fiz entender duas coisas. Em primeiro lugar ‘que, apesar de ser héspede, eu nao era “cumpadi” dele. E, depois, que tampouco era sua “simpatia’ Brecio polidamente deu de ombros, e me convidou para experimentar uma vodca que o sogro bicha trouxera de uma viagem & Riissia, Destilada, segundo depreendi, de tuma grama — Bisto? Bisio, parente do biifalo, Tinindo de gelada. E Riti nha recomendara expressamente ao Brecio para aquela garrafa de jeito nenhum, — Merda de bisio? A grama que brotou do es isso, Ou seria o capim pastado pelo bisio no curtissimo Pperiodo de tempo do verdo siberiano? Deduzimos que tra tava-se de uma combinagao rara de tempo, lugar e coc6. E, pecialmente cagada pelos bisdes da Siberia, io abrir ‘ume do bisio, acho que era incias, no fazia dif naquelas circuns 1a se a vodea vi nha da Sibéria ou do Tarcomenistio, se era destilada a par- tir da grama ou do cocé do bisio, 0 fato & que dispiinhamos, da garrafa em cujo rétulo constava a figura de um bisio solitario ¢ carente que pedia para ser bebido imediatamen- te. Mas, no fosse estrume? Vinelo do sogiv do Br podia perfeitamente ser porra de bisdo. Brecio ficou na divida, Arriscamos. A tinica certeza é que dentro de pouco tempo levariamos um pé na bunda, e a porra da vodea ou a vodea de porra trincava d Abre! — Mati. = Maaaiiie7? De — 0 que a bichona foi fazer na Russia? encana que bisio nao late — Dar o cue torrar dinheiro piblico. Até que de vez em quando, Brecao, vocé é um cara sensato, Faz sentido. Uma vista deslumbrante do Rio de Janeiro, Eu & Bre- cio brindamos 0 despejo com sotaques cariocas dos 70s.

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