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Sumario O ENCONTRO ENTRE E., L. e F. 7 1. O MISTERIO VILEM FLUSSER......000 ssrasi 13 Il. O NASCIMENTO DO POS-HUMANO NA CIBERNETICA ......0.r0 25 1. Agénese do pés-humand.....:cnee 2% 2. A irrupgao do pés-humano - soe 3. 0 pés-humanismo cético, 0 apocaipticn, © popular e 0 crtico...... 35 ll, MACHINA SPECULATRIX: AS MUITAS VIDAS DA CIBERNETICA E A MORTE DO HUMANO 45 1, Qimpério cibernético 45 2. Flusser cibernético....... “ 52 3. Ciéncia e poesia: Por um novo pensar (pd -humano?) 64 IV. MONSTROS, ANIMAIS E OUTROS “OUTROS” .......00sesesnnenniin B 1. Impactos das revolugées biotecnolégicas... ne 3 2. Abalos na corporeidade... . - 78 3. O ciborgue e a iminéncia do monstro : ssa BO 4. Manimalidade recalcada......-onsnnssenennnnnsnnninnininnnnesasninnnntnnn 89 5. Objetos e ambientes sencientes - 6 V. DOS DIFERENTES CORPOS: HUMANO, ANIMAL, COISA sos WB 1. Projetar corpos . ii 103 2. 0 animal que logo sou Vampyroteuthis infernalis crusiessncasaene TI 3. Aaarte vampiromérfica e a vertigem do pés-humano...... 122 Conus C40 © EXPLORADOR DE ABISMOS VILEM FLUSSER & 0 POS-HUMANISMO 6 VIA DISSOLVENCIA DOS HUMANISMOS 1 wmwn Os humanismos classicos Critica & metatisica dos humanismos, Nos, os homens. Mas quem, nds? O modelo do humanismo liberal O humanismo sod a mita do pos humanismo critica Vil REPERCUSSOES DO POS:-HUMANO NAS TEORIAS DA MIDIA 2 3 0 pos-humanismo neoxibernetico de Luhmann 0 Tecnomaterialismo de ittler Flusser e 05 enigmas do abismo ANEXO : Vilem Flusser ~ “Seres de um outro Mundo”. BIBLIOGRAFIA. a 1 O ENCONTRO ENTRE E., L. ¢ F. Para um espirito rigoroso, nenhum homem deveria corresponder a seu nome (segundo seu significado etimoldgico), pois © nome préprio é palavra de Deus em sons humanos. (Walter Benjamin, Sobre a Lingua em Geral e sobre a Lingua dos Homens, trad. de Susana Kampf Lages.) ideia para este livro masceu, muito apropriadamente, na Alemanha, no longo inverno de 2011. Num fim de semana a pacata cidade de Kassel, E., L. W. partilharam longas caminhadas por florestas silenciosas e friorentas ¢ conversas sobre arte, literatura e semidtica. Vilém Flusser povoou todas essas con- versas, € a certa altura W. chegou a perguntar a E. qual seria uma boa escolha tradutéria para o termo “ungeheuer”.' Ao longo dos meses que se seguiram ao répido encontro, 0 projeto foi tomando corpo. Decidiu-se que L. iria se encarregar prioritariamente das seg6es dedicadas 4 discussao do pés-humanismo Lato sensu, ao passo que E. exploraria a | manifestagao do tema e seus desdobramentos ‘0 contexto era precisamente uma obra de Flusser, Dinge und Undinge (1993). Comunig Gi 40 Zé é U EAPLURAUUR UE ADI, VILE IE FEU satin bo Bee Hhaiviesianaiyid na obra de Flusser. Todavia, também se acertou que nic \ haver fronteiras rigidas entre as escritas dos autores, de im ee qualquer espécie de interferéncia fosse bem-vinda, O objet ‘Me produzir um terceiro autor, entidade que continuamente 3 ke se entre, um e outro, mas no final ganhasse uma espécie de lds propria. Muito antes desse encontro, L. ¢ E. jé haviam descoberto que compartilhavam um vasto conjunto de interesses. Eles liam os mesmos autores ¢ subscreviam posig6es tedricas semelhantes, () ponto de convergéncia mais significa pds-humanismo. Aos dois parccia claro que, nos anos vindouros, tal tema estava destinado a ocupar posigao de significative destaque no Ambito das humanidades. A realizagao de um grande evento trans- disciplinar sobr¢ “a virada nao humana” (nonhuman turn) no Center for 21st Century Studies, na Universidade de Wisconsin-Milwaukee, em maio de 2012, parecia constituir um pequeno indicio do acerto dessa intuicéo. Reunindo um seleto grupo de pesquisadores, como Steven Shaviro, Manucl de Landa, Mark Hansen ¢ lan Bogost, 0 evento tinha como objetivo debrugar-se sobre 0 conjunto de pro- blemas que vinham chamando a atengao de E. ¢ L.; por excmplo, a teoria ator-rede, de Bruno Latour, os chamados “novos materia- lismos”, os animal studies ¢ 0 realismo especulativo, entre OULres: GO fato de todos esses t6picos aparecerem reunidos, como que num tinico pacote, sob a rubrica da “virada ndo-humana’\ também parecia validar a aposta de que estavamos verdadeiramente lidando com a emergéncia de um novo paradigma intelectual. Infelizmen- te, porém, L. ¢ E, acreditavam que tais questocs (em especial 0 ivo encontrava-se no tema do 1 débitos que prect esa. A Jussi Parikka lorosa acolhida 2 Mas como nenhum livro nunca ¢ realmente produto de um tinico autor, existem ‘samos pagar aqui, nomeando alguns daqueles que contribulram para esta emprt e Geoffrey Winthrop- Young, pelas valiosas sugestdes; a Siegfried ielinski, pela cal i em Berlim; a Claudia Becker, por nos abrir as portas do Arquivo Flusser; a Anthony Jensen € yi Komossa, pela amizade em terra estranha; a Vinicius Pereira ¢ ‘Adalberto Miiller, pela compan ” na exploragdo dos abismos flusserianos; a Winfried Noth, pela acolhida em Kassel ¢ pelos tesoits : de seus arquivos. Naturalmente, agradecemos também a Capes ¢ ao CNPq pelo at ixlio finance" que viabilizou parte desta pesquisa ‘ah riots eae pat x | O ENCONTRO ENTRE E., L. e F. 9 pés-humanismo) nao vinham recebendo a merecida atencéo no contexto académico brasileiro. Além disso, 9s poucos trabalhos a Tespeito que aqui vieram a luz adotavam frequentemente um acento apocaliptico do qual L. e E. nao compartilhavam. a. Isso porque, para E. e L., a maior parte das criticas acerbas ao( +‘ pés-humanismo vinha se dando na moldura de uma compreen-\ ; 1” sao bastante limitada do conceito. Em esséncia, ela se resumia a. entender o pés-humanismo unicamente como expresso de uma vontade de poténcia tecnoldgica, dedicada a expansio_da_vida humana ¢ A superacio de seus limites por meio da tecnologia. Em Ultima instancia, tratar-se-ia de obter a imortalidade — prometida pelas religides no plano espiritual e agora adaptada a uma “tecno- -, espiritualidade” profana tipica da existéncia cibercultural — através ~ g do emprego/faustico da tecnociéncia. Todavia, tal perspectiva pare- cia aos dois autores excessivamente simplista. Como afirma Keith a Ansell Pearson, devemos resistir a tentacéo de reduzir a “condicio trans-humana” a qualquer ideia de ordem simplesmente empitica, 2 || como um estado bioldgico ou tecnoldgico (1997, p. 2). O desejo de \. ‘supress4o do corpo e da matéria em geral implicado nessa vertente do pés-humanismo permite caracterizd-lo, na verdade, como uma espécie dé super-humanismo. Nesse ultimo, nao se almeja a uma desconstrugao do projeto humanista naquilo que ele apresenta de mais perigoso e totalitario; nao se busca um descentramento da todo-poderosa subjetividade do humanismo liberal classico. Pelo contrdrio, 0 que se quer é uma espécie de “antropocentrismo para- noico € fébico, devotado & colonizacao imperialista e entrdpica de todo o universo conhecido e desconhecido, tudo em beneficio de uma vida imortal” (ibid., p. 2). Entretanto, o problema com termos como “pés-humanismo” (ou ainda “cibernética”, como se vera adiante) ¢ que servem como etiquetas genéricas para nuvens conceituais extremamente amplas € vagas. Desse modo, se agendas intelectuais politicamente conser- vadoras se apropriaram da expressio “pés-humano” para encampar 0s impulsos expansionistas do sujeito liberal classico, certas propos- tas bascadas numa deslegitimagao desse modelo de subjetividade Supe pso® Dal Mnacegies funee’s HESOES b@ tecudlobr dé. com Cao pI © EXPLORADOR DE ABISMOS: VILEM FLUSSER E O POS-HUMANISMO. 10 também reivindicaram 0 uso da nogao. E Por essa razao que oi ee » Sei abandonar as ressonancias caracteristicamente tecnoldgi a = ae icas do Pos- -humanismo, L. e E. decidiram empregar a expresso ; ; iii €m um sent. do eminentemente filosdfico e em sintonia com a proposta de uma critica da comodificagao da subjetividade no 4mbito do capitalismo Oo} ivo e do triunfalismo tecnolégico. Como o pés-humanismo pode efetivamente servir tanto a agendas conservadoras como pro- gressistas, conforme alertou David Foster (2005, p. xii), é Preciso cuidar para que a ideia nao sucumba as tentagées do super-huma- nismo e perca, assim, seu potencial libertério, sua capacidade de engendrar novas formas de pensamento e de expressio do humano. De fato, sao essas poténcias que tornaram as dimensdes pés-huma- nistas da reflexio flusseriana especialmente relevantes para E. e L. "© fato de que 0 tema nunca antes tivesse sido investigado (a0 menos explicitamente) no horizonte do pensamento de Vilém Flusser tornava o desafio de escrever um livro como este ainda mais interessante. O engajamento dos autores com seus diferentes universos de referéncia, e agora com esse terceiro personagem, esse misterioso exilado de Praga, engendrou um campo mental povoa- do de tensdes, surpresas ¢ familiaridades reconfiguradas. Acima de tudo, o objetivo de L. ¢ E. era dialogar com F, grande apreciador da arte da conversagao, de modo a fazer emergir dos seus esctitos certas ideias que pareciam constituir esbogos € anteprojetos pata 0 maquindrio tedrico com o qual nos defrontamos neste principio de milénio. O encontro curioso trouxe a E. e L. a convicgao de que ainda havia muito que se aprender cond EJEsse ultimo demonstrou, durante toda a sua vida, uma saudavel desconfianga face as preten- ‘s6es da ciéncia e da técnica. O projeto da ciéncia era o de explicar © mundo, e o da tecnologia, de dominé-lo.F)possivelmente diria que temos sido razoavelmente bem-sucedidos no segundo, mas misera- velmente fracassados no primeiro. Sua singular forma de pensat ¢ escrever apontava para um saber que nao era inimigo da imagina- $40; Para uma ciéncia que se alimentava das poténcias da ficgao ¢ do virtual. Essas peculiaridades do pensar flusseriano persuadiram L. e E. a produzir um estudo também nio inteiramente convenclo- nal em sua estruturac4o. Assim acreditavam os dois autores serem capazes de claborar uma escrita que fosse, ao mesmo tempo, uma homenagem ao inclassificavel /pensador checo-brasileiro. Oriundo da mesma cidade magica onde nascera Kafka, que bem conhecia 0 poder cabalistico dos nomes ¢ das sugestivas abreviaturas (lembre- mos 0 Joseph K. de O Processo ou mesmo o simples K., de O Cas- telo), F. teria certamente apreciado 0 pequeno jogo linguistico com o qual se quer encerrar este preambulo: £. ¢ L. estdo os dois contidos no nome de F. Nessa rede que entre os trés se formou, dissolveram- -se os varios nomes préprios, ¢ a figura mesma do autor tradicional, hoje “em vias de extingao irrevogavel”, foi lentamente esvanecendo (Flusser, 1984, p. 22). O que restou, entao, foi uma coisa, um dis- positivo, uma longa sequéncia de letras que sé passard a ter sentido no encontro com nosso quarto personagem, 0 leitor. O ENCONTRO ENTRE E., L. eF I COmuNs CSO O MISTERIO VILEM FLUSSER Somos animais que negam, e isso é a nossa dignidade (Vilém Flusser, Bodenlos, uma Autobiografia Filos6fica) ilém Flusser pertence aquela estirpe de pensadores que desperta fascinio e curiosidade nao apenas por suas ideias, senao também por sua propria vida. Apés a fuga de sua cidade natal, precipitada pela ascensao do nazismo na Europa, o pensador autodidata nunca mais encontrou pousada definitiva. Porém, mais do que uma questdo de cidadania ou territorialidade, sua constante errancia se devia a um principio filoséfico. A Boden- losigkeit (falta de fundamentos) tornou-se para ele um mandado vital. Mesmo a longa estada de 32 anos no Brasil nao resultou em tepouso definitivo. Flusser nao possuia titulos académicos. Sequer conseguiu concluir seus estudos universitarios. E assim, a intole- rancia racial que enfrentara na Europa somou-se a intolerancia académica caracteristica de uma terra de bacharéis. Sua permanén- cia no Brasil tornou-se insustentavel, fazendo-o retornar 4 Europa, onde morreu em 1991. Inicialmente, ndo foi muito diversa a sua sorte na Alemanha, quiga sua segunda patria linguistica. Foram necessdrios cerca de 30 anos para que 0 autor da Filosofia da Caixa Preta conquistasse fama e reconhecimento. Hoje, todavia, sua celebridade 14 alcangou tal patamar que suas ideias poderiam ser comung c3Q O EXPLORADOR DE ABISMOS: VILEM FLUSSER £ O POS-HUMANISMO 14 arroladas entre as mais classicas ¢ influentes da teoria da mid; Bidlo, 2008, p. 12).! ‘dia (cf O enorme éxito que a obra de Flusser alcangou na Alemanh, contrasta embaragosamente com seu magro reconhecimentg Brasil. Nao obstante os esforgos isolados de alguns estudiosos = areas como a comunicacao, a literatura ¢ a filosofia, Flusser ‘a mente aparece ‘ome referencia importante em Projetos de Pesquisa ou mesmo em bibliografias de ementas de cursos UNiversitarios, £ verdade que seu pensamento nao segue Parametros facilmente ass. milaveis pelas estruturas tradicionalmente conservadoras dos esta- belecimentos académicos. Avesso as fronteiras da geografia fisica, Flusser também era inimigo das balizas mentais. Isso dificulta sua assimilagao em ambientes fortemente institucionais, normalmente pouco afeitos 4 mudanca ¢ inovagéo. Como escreveu Siegfried Zielinski, “para o mundo académico estabelecido, seu pensamento, marcado pelos saltos mentais entre as disciplinas, permanece inacei- tavel até hoje” (2002, p. 121). Desse modo, nao chega a espantar a resistencia que suas ideias enfrentaram repetidamente, mesmo na Europa. Mais que simplesmente inter ou transdisciplinar, a reflexio flusseriana se entregava ao risco ¢ ao fascinio com a multiplicidade do mundo, nédo se fixando em parte alguma. Ela respondia também ao principio da Bodenlosigkeit, ¢ passcava livremente pelos mais diferentes territérios, temporalidades ¢ temas, Como sublinhou 0 proprio Flusser, a falta de imaginacao do pensamento académico constitui sua sentenga de morte, “pois ele sempre reflete de forma protegida, e assim se pulveriza” (2009, p. 10). Em algumas de suas eee ' Na Alemanha, os termos Medienwissenschaft (“ciéncia” ou “teoria da midia”) e Kommunika- tionswissenschaft ("teoria da comunicagao”) acabaram por adquirir conotacoes diferenciadas 20 longo dos dltimos anos. De modo esquematico, poderiamos dizer que enquanto na prime 0 acento costuma recair sobre o problema da circulagao de sentidos e mensagens nos melds, ne segunda 0 foco se encontra na dimens3o tecnoldgica/histérica/cultural dos proprios meios. Mii Porém, as abordagens caracteristicas da Medienwissenschaft parecem estar suplantando 0s a delos tipicos da Kommunikationswissenschaft. Para uma abordagem historica do ebsemotinet® dessas disciplinas na Alemanha, ver a interessante coletanea organizada por Claus Pias, Was ren Medien? (2011), O MISTERIO VILLEM FLUSSER b experiéncias mais ousadas, como no Vampyroteuthis infernalis, Flus- ser se aproximou, em muitos aspectos, de um outro famoso conter- raneo seu, o animador checo Jan Svankmajer. De fato, em ambos podemos encontrar idéntico fascinio com a matetialidade (e a vida intima) das coisas, com a estranheza do cotidiano, com o jogo e com a colagem de temas ¢ ideias. Talvez porque 0 que os aproxime constitua uma espécie de pulsio tipicamente barroca que tomou corpo nos célebres gabinetes de curiosidades ( Waunderkammer), nos quais se exibiam simultaneamente as maravilhas da natureza e do artificio humano.” E esse sentido de permanente maravilhamento com o mundo, do saber como espécie de curiosidade infantil da crianga brincando com um besouro encontrado na lama, que se manifesta na obra de Flusser. Para Zielinski, o fildsofo era digno fepresentante dessa tradicéo barroca, que localizava a motivagao fundamental para a pesquisa ¢ o conhecimento na tensdo entre curiositas (curiosidade) necessitas (necessidade) (2002, p. 121)? No manuscrito inédito “Do barroco”, encontra-se a mesma tese, defendida igualmente por Eco e Calabrese, entre varios outros, de que 0 contemporanco retoma e reelabora formas tipicamente bar- rocas. Os pés-modernos seriam, assim, essencialmente “neobarro- cos” (ou “super-barrocos”, segundo a terminologia empregada por Flusser). Muitas das categorias estéticas e intelectuais que vigoraram nos séculos XVII e XVIII estariam alcancando agora tanto seu dpice como seu esgotamento. A situagao existencial do homem contem- poraneo repete (e potencializa) aquela do perfodo barroco. Apés a 2£ intrigante a associago que Zielinski estabelece entre Flussere a figura dos alquimistas (que na cidade de Praga tiveram, inclusive, uma travessa nomeada em sua homenagem) (cf. 2002, p. 121) ‘Na entrevista incluida no volume. The Cinema of Jan Svankmajer: Dark Alchemy, assim explica 0 cineasta a influéncia da alquimia em seu trabalho: "Em minha obra, como nos antigos alquimistas, estou continuamente destlando a gua das minhas experiéncias — da infancia, das minhas obses- ses, idiossincrasias e ansiedades -, de modo a fazer com que a ‘agua pesada' do conhecimento, essential para a transmutacdo da vida, comece a flut” (HAMES, 2008, pp. 112-3) 30 exemplar trabalho de Lorraine Daston e Katherine Park, Wonders and the Order of Nature 1150-1750 (1998), demonstra como o sentido do espanto (wonder) constituia pulsdo digna dos homens de ciéncia até fins do século XVIII, quando foi entdo banido do repertorio dos bons costu- ‘mes cientficos, A maraviha sigificava o preémbulo necessério a toda espécie de conhecimento, Comuns co (0 EXPLORADOR DE ABISMOS. VILEM FLUSSER 16 £ 0 POS-HUMANISMO perda da fé no divino € na natureza, estariamos agora, finalmente. nos dando conta do cardter teatral de nossa experiéncia. “O gesto barroco”, escreve Flusser, “é uma pose. O barroco € um fazer de conta. f um teatro, no qual a raz4o desempenha varios papéis no palco da natureza, tendo por bastidores o nada (...). O barroco é uma busca desesperada do centro perdido, pois é fingida” (2860- X, s/data, p. 2). Nesse sentido, o pensamento de Flusser brota do reconhecimento honesto dessa traumdtica perda da centralidade ~ experimentada j4 pelo homem barroco, mas vivida em sua plena intensidade apenas pelos contemporaneos. Estamos sempre_na margem, sempre deslocados, sempre sem fundamento (bodenlos). E, mesmo a raz4o, na qual tao cegamente confiamos na modernidade,_ ‘nao cessa de nos desapontar. Reconhecer a fra¢ao de ficcionalidade das nossas especulagées significa, hoje, portanto, o principio da sabedoria. Nao surpreende, desse modo, que a obra de Flusser tenha desfrutado de maior sucesso no campo da arte, especialmente da arte tecnolégica. Todavia, como pensador da midia ¢ das tecnologias digitais, Flusser realmente gozou (e continua gozando) de excepcional popularidade na Alemanha. Ironicamente, 0 pais com o qual ele mantinha relacées mais que conflitantes foi o que mais aberta- mente 0 aceitou. Ali, onde florescera nazismo, responsivel pelo exterminio de boa parte de sua familia, mas cuja lingua e cultura serviram de base para sua educagao, Flusser recebeu finalmente 0 reconhecimento que sempre havia almejado.* Em terras germani- cas, praticamente nao existe manual de teoria da comunicagao que nao mencione respeitosamente seu nome; nenhum curso sério de fotografia que nao inclua a Filosofia da Caixa Preta como leitura obrigatéria. De fato, seu sucesso foi tao estrondoso que autores como Dieter Mersch nao hesitaram em caracteriz4-lo como 0 gran- de “fundador” e “impulsionador” da teoria da midia (2006, p. 136). 4 Nao é Nao é mero acaso que 0 arquivo Flusser se encontre hoje sediado na Universidade das Artes de Berlim e nao, infelizmente, no Brasil, O MISTERIO VILEM FLUSSER Todo esse éxito acabou por engendrar um fendmeno curioso: Flus- ser passou a ser frequentemente qualificado como um “pensador alemao”. No prefacio de Medienkultur, Stefan Bollman o descreve como uma espécie de McLuhan da Alemanha, um “ciberguru” dos novos meios digitais, tido por intelectuais como Bazon Brock como “o mais significativo filésofo alemao dos anos 70 e 80” (apud Bollman, 1999, p. 10).> De fato, ainda que Flusser tenha recusado explicitamente esse epiteto, a ele atribuido, também, por seu amigo Abraham Moles, é impossivel negar a sistematica apropriagao do seu pensamento no ambiente intelectual alemao. Quando sugeriu como tema de debate na famosa lista de discussao digital Rohrpost a existéncia (ou nao) de uma teoria da midia especificamente ger- manica, o ciberativista Geert Lovink recebeu como resposta uma indicagao que incluia o nome do filésofo como parte de uma série de prestigiosos intelectuais alemaes: Aqui no Reino Unido, comeca a se formar um rumor sobre © que tem sido denominado como "“teoria da midia alema”, com o que se quer indicar principalmente a obra de Friedrich Kittler, Bernd Siegert, Vilém Flusser e Klaus Theweleit, mas também Peter Sloterdjik e Hartmut Winkler (2008, p. 84).° Infelizmente, o auge do éxito de Flusser se deu pouco antes de sua morte em 1991. Alguns meses antes do trdgico acidente de carro que o vitimou no caminho entre Praga e Eger, ele fora convidado 5A conexdo entre McLuhan e Flusser, bem como 0 tropo de pioneiro da filosofia dos meios (digi- tais) 6 retomada por Stefan Miinker em Philosophie nach dem »Medial Turn« (2009, p. 16). Por sua vez, Rainer Guldin aponta como Flusser foi recebido, na Alemanha, a partir de uma perspectiva linguistica e tematica unilateral: como "tedrico da midia e ‘pensador digital alemao' (2005, p. 7). 5 A palavra que traduzimos aqui por “rumor” é “buzz”, que apresenta ainda a conotagao de burburinhos gerados em torno de algo que comeca a se tornar moda. E de fato, nao seria exagero especular que a nova teoria da midia alemé (incluindo Flusser) adquire hoje as feigGes de uma ‘moda académica nos dominios da anglofonia. Parte dessa popularidade deve ser creditada ao tra- batho do finlands Jussi Parikka, ex-estudante de Friedrich Kittler e Wolfgang Ernst, e atualmente radicado na Inglaterra. Cf. suas obras Digital Contagions (2007) e Insect Media (2010) 17 ‘omuns C0 EXPLORADOR DE ABISMOS: VILEM FLUSSER E O POS-HUMANISMO. Bo para passar um semestre como professor visitante (Castprofery, Universidade de Bochum. As palestras que ali oferecey foes na vadas e, posteriormente, compiladas na obra que é, Possivelm, ne a melhor e mais abrangente recensio do pensamento flussern maduro, Kommunikologie weiter denken (2009b). No Preimbulod. livro, o grande teérico alemdo da midia Friedrich Kittler” lamentay, © atraso na publicacio do volume, responsavel pelo faro de que geracées de estudantes desde entao passariam “sem escutar mais que simples rumores sobre Flusser como um herdi fundador da t, _contemporanea dos meios (Medienwissenschafi)” (2009b, p. 10). E prossegue nessa mesma linha, com um entusiasmo que é incomum para o estilo tipicamente kittleriano: “das barbas do profeta safam palavras como relampagos, pois elas eram sempre também juizos” (ibid, p. 11). Apés sua morte, a revista Kunstforum publicou, em 1992, uma segao especial em homenagem a Flusser, para a qual contribuiram nomes como Florian Rétzler, Dietmar Kamper, Andreas Miiller- -Pohle, Peter Weibel, Norbert Bolz ¢ 0 prdprio Kittler, entre varios outros. Os pequenos ensaios ali reunidos constituem um dos mais evidentes testemunhos da importincia que Flusser vinha conquistando no contexto alemao. Ainda assim, contudo, muitos dos esctitos de Flusser s4o hoje virtualmente inacessfveis: alguns se esgotaram € nunca foram republicados. Varios deles existem apenas em alemédo, sem traducdo ainda para nenhum outro idioma. A edi- tora Bollmann, que planejava publicar uma versio de suas “obras recolhidas” em 14 volumes, faliu, tendo editado apenas cinco livros do projeto original. Além disso, um rapido exame do acervo man- tido pelo Arquivo Flusser em Berlim permite constatar que diversos manuscritos do autor permanecem inteiramente inéditos. Por fim, nao pode deixar de surpreender o pequeno ntimero de estudos ’ Kittle morreu em 19 de outubro de 201 1, em Berlim, reconhecido como um dos maiores tedricos de midia da atualidade, Nenhurm de seus lvtos conhece ainda traducéo para 0 portugues. OArau Vo Flusser possui copias das cartas trocadas entre Kittler e Flusser, nas quais o primeiro materialize © comvite a Fusser para a Gastprofessur em Bochum. O MISTERIO VILEM FLUSSER publicados especificamente sobre Flusser. Essa situagio compée um panorama no minimo intrigante: lidamos aqui com um pen- sador cuja importancia é reconhecida enfaticamente por diversos nomes de peso do cendrio académico internacional — recentemente, inclusive, nos Estados Unidos, como testemunham as referéncias feitas por Shaviro (2004), Galloway e Thacker (cf. 2007), e Krapp (2011). Todavia, diversos aspectos de sua obra permanecem como territérios virgens, aguardando ainda a merecida atengio dos pes- quisadores.* Mas a questéo permanece: por que razao Flusser foi “coop- tado” como um pensador da midia “alemao”? O que explica seu estrondoso sucesso nos ambientes académicos de lingua alema? Nao € objetivo central deste livro explorar exaustivamente as conexées entre 0 pensamento de Flusser e os outros autores que, mais recentemente, tém sido identificados como representantes de uma teoria da midia especificamente alema. Todavia, uma andlise comparativa cuidadosa certamente revelaria interessantes afinidades entre o pensamento de Flusser e as teses de autores como Kittler, Zielinski, Winkler e Ernst. Mais interessante ¢ produtivo do que tragar influéncias, contudo, é pressupor que Flusser captara, em seus momentos iniciais, as energias mentais que tomariam pleno corpo apenas no ambiente académico alemao de meados dos anos 80. Desse modo, um conjunto de questées de ordem filoséfica ¢ midiolégica, como a materialidade dos meios, o tema do arquivo, a triade armazenagem (Speicherung), processamento (Verarbeitung) transmissio (Ubertragung), 0 interesse por nogdes como as de cédigo e tradugao e, finalmente, a problematica do pés-humanismo constituiriam, em maior ou menor grau, 0 parentesco intelectual 5 Neste ivr, fizemos uso de varios manuscritos preservados no Arquivo Flusser, nas dependéncias da Universidade das Artes em Berlim. A maioria desses textos nao possui data de elaboracao e consiste em copias xerox de folhas datilografadas por Flusser. Nesses casos, indicamos a referéncia oor meio da numeracao (cuja l6gica nos escapa) dada aos textos segundo o sistema classificatorio do Arquivo. Por exemplo: (Flusser, 2555-X, s/data), onde o X indica que efetivamente se trata de texto totalmente inédito. 19 COMUNE do © EXPLORADOR DE ABISMOS: VILEM FLUSSER E 0 POS-HUMANISMO 20 entre Flusser e a chamada German media theory? Em determinado nivel de generalidade, acreditamos que essas questées constituem, na verdade, tendéncias crescentemente determinantes do pensa- mento contemporaneo no campo das ciéncias humanas, Porém, foram os pensadores alemaes da teoria da midia que de forma mais exaustiva e sistematica as abordaram. No que diz respeito ao pés-humanismo, trata-se de tema abso- lutamente fundamental pelo menos no contexto da teflexio de Friedrich Kittler e Niklas Luhmann, possivelmente os dois mais influentes autores alemaes nos dominios dos estudos de midia e sociedade nos tltimos anos. Geoffrey Winthrop-Young descreve detalhadamente as convergéncias pds-humanistas dos dois teéricos, demonstrando como em ambos encontra-se uma forma de subjeti- vidade tremendamente esvaziada, seja devido & sua impoténcia face 4 reproducdo autopoiética da comunicacio (Luhmann), seja pela ideia de que o “assim chamado homem” (der Sogennante Mensch) é determinado, em tiltima instancia, por parametros tecnoldgicos (Kittler). Escreve Winthrop-Young: A agéncia subjetiva é concebida como reflexividade operacio- nal, que, traduzida no dominio computacional, toma a forma de comandos de feedback. Isso permite a Kittler estabelecer uma equivaléncia funcional entre operadores humanos e mis- seis taticos como “sujeitos maquinicos” (machine subjects), e declarar que os ultimos suplantaram os primeiros, j4 que sao capazes de receber, processar e executar informacao recebida de forma superior. Novamente, isso nao significa que Os computadores sejam cérebros humanos artificiais, ou que imitem digitalmente modos de pensar especificamente huma- nos. Antes, eles otimizam certos padrées de processamento informacional que foram impostos sobre os seres humanos, —_——______ * Curiosamente, essa expresso tem se popularizado em inglés — 0 que indica, de fato, um proces de internacionalizado da teoria da midia alema. Sobre o cardter polémico do termo, mas Lae uma defesa de sua legitimidade, G. Lovink, "Whereabouts of German Media Theory”. €™ Comments (2008). O MISTERIO VILEM FLUSSER — 21 — — mas em seguida tomados erroneamente como qualidades inatamente humanas. Onde havia sujeitos, ali deverdo existir programas — pois os programas ja estavam la antes de tudo (2000, p. 397). Essa impiedosa critica da nogao de agéncia, bem como o enten- dimento “computacional” da subjetividade constituem pegas cen- trais da reflexdo de Kittler. Desse modo, nao é surpresa encontrar precisamente tais elementos como pontos que Kittler busca destacar no pensamento de Flusser, caracterizado, a exemplo do préprio Kit- tler, como historiador da midia e profeta com o rosto voltado para o passado: “Em seus olhos [de Flusser], 0 homo erectus jd era um computador. Exatamente como o préprio Flusser, ele processava, armazenava e transmitia algo que nao se resumia a mera heranga: linguagem, cultura, informacao” (2009b, p. 11). Nao ha divida de que existe uma série de importantes diferengas entre Kittler ¢ Flusser no que se refere a suas perspectivas sobre o futuro do homem ¢ suas concepgdes da subjetividade na sociedade hiper-tecnoldgica. Porém, ambos apresentam marcado interesse em desconstruir 0 sujeito libe- ral cldssico, independente, auténomo e em plena posse de si, que se tornou, de fato, absolutamente insustentdvel na situa¢ao contempo- rinea. Em seu lugar deverd surgir uma subjetividade descentrada ¢ distendida nas redes tecnoldgicas. Efetivamente, a nogao de rede em Flusser possui tamanha centralidade que envolve o desenvolvimento de uma nova ética, de uma nova epistemologia, de uma nova filo- sofia. Na sociedade telematica, serd necessdrio considerar uma outra e diferente experiéncia do humano. “Nés nos encontramos em uma revolucéo comunicacional, na qual um ser-para-o-outro (Fiireinan- dersein) intersubjetivo projeta pseudorrealidades” (Flusser, 2009b, p. 82). Caberd a esse novo homem projetar 0 mundo no qual ird habitar. E os limites desse mundo serio os limites da sua criatividade. Nesse aspecto, poder-se-ia dizer que Flusser é mais otimista que Kitdler, A partir de outra perspectiva, porém, também seria possivel afirmar que Flusser conserva certo “humanismo residual”, do qual © teérico alem&o procurou se desvencilhar por completo. Afinal, Comins C0 0 EXPLORADOR DE A 2 BISMOS: VILEM FLUSSER E 0 POS-HUMANISMO- o homem ¢ inteiramente irrelevante fora do escopo das formas de expresso que lhe sao permitidas pelos meios tecnoldgicos, ‘A dissolugdo completa da figura humana face as tecnologias é um passo que Flusser se recusa 2 dar. E no ambito das nogées de jogo e criatividade, opostas a todo tipo de automatismo, que Flusser localiza o essencial da experiéncia humana. Criatividade significa producio do novo e diferenciagao. Pois 0 perigo que sempre nos acossa é o da unidade sem restos, sem diferenga. A esperanga promovida pelo digital consiste na vitéria do enredamento (Vernetzung) sobre a uni- ficagdo. Criar redes significa articular competéncias cruzadas, pro- mover hibridismos, fertilizar o devir. Nesse sentido, a dissolugao de fronteiras nacionais teria uma positividade apenas — € téo somente — quando acompanhada da manutencao das singularidades locais. Um mundo sem fronteiras nao significa um mundo sem diferengas, mas, antes, um mundo no qual as diferengas podem comunicar-se livre- mente entre si, em constantes fluxos e reconfiguracées. Desse modo, os hackers constituem uma das mais significativas figuras heroicas do nosso futuro tecnolégico. Nao custa lembrar a publicidade que gru- pos como o Anonymous ou o LulzSec vém obtendo na midia gracas a suas acdes espetaculares. Escreve Flusser: “eles vivenciam como, através dos fios dessa rede [a internet], 0 novo é continuamente produzido. Eles sao a prova viva da insensatez de toda delimitagao de fronteira (Grenzziehung) e da poténcia criativa das chamadas “zonas cinzentas” (1994b, p. 87). Nos hackers, temos uma expres- sio viva das forgas que combatem os impulsos de (re)unificacao. A escolha do hacker como figura-emblema de uma humanidade vitoriosa é significativa. Para Flusser, nao se trata efetivamente de afirmar o humano em detrimento da maquina (ou do animal), mas de acoplar criativamente homem e aparato. A internet, esse vast “dispositivo” que foi, em alguma medida, profetizado por autores como Giinther Anders e Gilbert Simondon,'° constitui o ambiente para Kittler, ” ‘ ® No caso de Simondon, menos que profecia propriamente dita, tratava-se de denéncia de uma visto tecnlata da qual ele no parthava:o aperfeigoamento do automatism 0 crescimento 1a complexidade maquinica teriam dado lugar & fantasia de uma reunido e interconexao de todas O MISTERIO VILEM FLUSSER no qual a préxima revolugéo humana poderd se dar. Mas isso repre- senta, de fato, um novo estdgio no processo histérico das relaces do homem com o mundo. O que terd valor, nesse estdgio, nao serd mais 0 objeto possuido, mas a informagao. O que determinard a estrutura da sociedade nao sera mais a economia, e sim a comuni- cagdo. E essas mudangas indicam que a vida sedentéria encontra-se em seus momentos finais, prestes a dar 4 Juz uma existéncia nomd- dica. A vida sera uma intermindvel viagem em busca de diferentes alvos, mas cada alvo significa apenas uma estacao intermediaria (Zwischenstationen), a partir da qual se partir4, depois, em busca de novas metas. Em sua totalidade, “a viagem é um método sem finalidade” (Flusser, 1994b, p. 60). Essa mobilidade permanente, esse nomadismo inerente é uma catdstrofe na histéria humana, mas que pode ser encarada de forma positiva e afirmativa. Apés milénios de confortavel adaptagao as nossas “casas” (sejam elas propriamente fisicas ou existenciais), é hora de abandonar a morada e aventurar- -se livremente nos espacos abertos. Como escreveu Flusser, “Das ist die Katastrophe: dass wir jetzt frei sein miissen” (ibid. p. 64)."' Livres, inclusive, para deixar a confortavel zona das experiéncias humanas conhecidas e experimentar novas identidades pés-humanas. 45 m&quinas entre si, “de modo a constituir uma maquina de todas as maquinas” (1989, p. 11). Com as discussdes correntes sobre a “internet das coisas”, talvez se possa afirmar que a fantasia ‘onizada por Simondon tornou-se realidade. Todavia, € bom esclarecer que 0 problema de Si- mondon com essa “maquina de todas as maquinas” dizia respeito ao tema do automatismo. Este ‘epresenta, na visSo do autor, “um grau muito baixo da perfeicdo técnica” (ibi.), pois o que eleva © grau de tecnicidade de uma maquina é a possibilidade de manter certa medida de indetermina- 20; 04 seja, permanecer sensivel a informacbes exteriores. Nesse sentido, a internet esté longe de Constitur a realizago de um sonho do maximo automatismo. Sobre Anders, ver as observacbes de Ciro Marcondes Filho (2011). obra mais conhecida de Anders, die Antiquiertheit des Mesnchen 2010; 1956), 6 referida na bibliografia. Trad: “Essa é a catdstrofe: que nés agora devemos ser livres”. B comings C0 O NASCIMENTO DO POS-HUMANO NA CIBERNETICA The point is not to reject humanism tout court - indeed, there are many \_ values and aspirations to be admired in humanism (Cary Wolfe, What is posthumanism?). o cendrio da cultura, a problematica do pés-humano ~ comecou a emergir discretamente ha algumas décadas. ~~ Sua presenga foi crescendo com velocidade similar 4 das <1 continuas transformagées biotecnocientificas e mididticas que esta- ~ mos atravessando. Dos anos 1990 para ca, ignorar a condigao pés- ~~ -humana vem se tornando cada vez mais dificil. A intensificagao de sua notoriedade é proporcional ao aumento de sua complexidade. De fato, falar em pés-humano e pés-humanismo é apertar um botdo que irradia em varias diregoes, muitas vezes, inclusive, inconcilidveis, : Para Robert Pepperell, o termo refere-se “a convergéncia gener: ida dos. organismos com_as tecnologias até o ponto de se tor TECA rem indistinguiveis” (1995, p. i). Outra sintese nos é fornecida por / Wolk tawee: o qual “o pés-humanismo nomeia um momento histérico em que o descentramento do humano por sua imbricagao em redes técnicas, médicas, informdticas. e econémicas tornou-se_ crescentemente impossivel de ser ignorado, um desenvolvimento histérico que aponta para a necessidade de novos_paradigmas ted- ticos” (2010, p. xv). Para fazer jus ao titulo deste capitulo, iremos seguir os passos da emergéncia e do crescimento de complexidade dessa questao para, Novas garner GMss teokKcos coms 50 © EXPLORADOR DE ABISMOS: VILEM FLUSSER E © POS-HUMANISMO 26 x : ento, abrir o leque da diversidade de interpreta Ses a que tem 5 do submetida. 1. A GENESE DO POS-HUMANO De que se tem noticia, a primeira mengao ao termg foi feita por Ihab Hassan) grande tedrico da ps-modernidade, que, jd em 1977, antecipou a onda pés-humanista ainda em formacao: A forma humana - incluindo o desejo humano e todas as suas representagdes externas — Pode estar mudando radicalmente €, portanto, deve ser revista (...) quinhentos anos de humanis- ™o podem estar chegando ao fim, a medida que 0 humanis- Mo se transforma em algo que deve sem desvios se chamar Pos-humanismo (1977, p. 212) Wolfe (ibid, p. xii) aponta que, bem antes de Hassan, jd nos L Arros-1960, no pardgrafo final do seu livro As palavras e as coisas, (foucauly/(1968, p. 502) preconizou que “o homem é uma inven- 40, € uma invengao recente, tal como a arqueologia do nosso Pensamento o mostra facilmente. E talvez ela nos indique também © seu prdximo fim”, ~~ Tais antecipacoes funcionam como indicadores de que algo ja estava fermentando na ciéncia, cultura e sociedade, sintomas que esses pensadores e criticos argutos souberam colher no ar. Tanto é que hoje, entre os estudiosos, hé certa convergéncia em se localizar a génese do pés-humano na série de dez conferéncias Macy, pro- movidas pela Josiah Macy Foundation ¢ tealizadas em Nova York entre 1946 € 1953 (ver Hayles, 1999; Wolfe, ibid.).' As conferén- cias tinham uma natureza interdisciplinar e reuniram cientistas notaveis, como Gregory Bateson, Heinz von Foerster, Kurt Lewin, —— _ dos "A documentacao Completa das conferéncias pode ser encontrada nos dois volumes organiza Por Claus Pias na Alemanha (2003; 2004). Ver bibliografia One , Ut f He JAAS pria Woo ORRVE ES ws ty COON URAVE = = ON O NASCIMENTO DO POS-HUMANO NA CIBERNETICA > 27 Norbert Wiener, Claude Shannon, entre outros. A intengao dos | estudiosos era langar as bases de uma ciéncia geral do funcionamen- | to da mente humana, que resultou no nascimento da cibernética, | \ da teoria dos sistemas ¢, pouco mais tarde, da ciéncia cognitiva. ‘-"— Embora esteja prioritariamente ligada ao nome de Norbert — ( Wiener, que assinou 0 livro Cibernética ou controle e comunicagao. , no animal ¢ na maquina (1948), a cibernética brotou do convivio ()7" de Wiener com o fisiologista Arturo Rosenblueth, com o enge- nheiro Julian Bigclow ¢, certamente, com Warren Weaver e Claude Shannon, autores da ‘Yéoria matemdtica da informagao (1949), além de John von Neumann, criador dos computadores digitais, do neuropsiquiatra Warren McCulloch e do matemético Walter Pitts, todos cles também participantes das conferéncias Macy. O que aGibernética propés foi uma teoria unificada da maquina ¢ do viventg, tendo por base a categoria da finalidade pensada em termos Mecanicistas ¢ rebatizada como “teleologia”. Tratava-se, ao fim e ao cabo, de uma ciéncia das analogias entre maquinas e organismos (Dupuy, 1995, pp. 49, 53). Por que estavam ai langadas as sementes do pés-humano? A ana- logia Proposta entre o funcionamento do orginico e do maquinico | | arrancou o humano do privilégio de sua irredutibilidade. Surgiu, | | assim, uma nova maneira de pensar o humano como um sistema \ | de processamento de informacao que apresenta similaridades | com qualquer méquina dotada de certa inteligencia. Nesse periodo, cha- |\ mado de cibernética de primeira ordem,(@ homeostas constituia-se A No conceito mestre dayimilaridades>) OR (2 oxen | Entendendo ey “capacidade do organismo de se Mmanter est4vel no confronto com as vicissitudes do ambiente, as ce maquinas também realizam algo similar por meio dd feedback)Este , , se id havia sido teorizado, desde os anos 1930, como fluxo de infor- (et Macao ¢ estava sendo estudado ¢ empregado para aumentar a esta- b canicos, gragas a estabilidade autorregulada Por meio de corretores cibernéticos. Chamado mais propriamente de feedback Joop, sua fungao é levar 0 output de um sistema em con- Sidetagéo de modo a provocar 0 ajustamento de sua performance a HUCOS\>& € HEDRACR ad uf Wh. Wt XN paula ofS HOME MAC ilidade de sistemas me: comunic, — M FLUSSER EY FY OTTOMANTSIIQ: 0 EXPLORADOR DE ABISMOS: viLel a desejada. A partir desse ponto de vista ost . uma resp a, slate 4 2 Fe do organico € do maquinico sustenta-se no seguinte tripe jae municacao. ———_e orma =~ \&> ‘controle ecomunicagao. aki, Te acordo com Hayles (1999, pp. 8-9), 0 conceity i, mn tase, conectado ao de feedback, logo cedeu passagem ao conceit yellexividade, definido pela autora como “0 Movimento pay aquilo que | foi usado para gerar um. sistema torna-se, por mien uma mudanga de perspectiva, parte do sistema que ele gra”. Nac A com isso a cibernética de segunda ordem, que teve como fn \ gens principais Von Foerster, o britanico Gordon Pask ¢ ° ctadoe » / ecologia da mente, Gregory Bateson (ver Kujavski, 2008). Enquanto - & / na cibernética a de primeira ordem observadores estavam fora do si tema observado, nesse segundo momento, a informacio sv at r vista como fluindo do sistema ao observador que se torna arte do sistema. Como redefinir sistemas homeostaticos que levem em conta o observador? A resposta mais madura para essa questio, segundo Hayles (ibid., p. 10), surgiu algum tempo depois no trabalho sobre reflexividade no processamento sensério, de Humberto Maturana, ¢ na dinamica dos sistemas biolégicos auténomos, de Francisco Varela, As respostas que 0 organismo di ao ambiente so determinadas por sua auto-organiza¢ao interna. Organismos, dotados de autopoiesis, autoproduzem-se. Nesse ponto, a énfase ia mia ae desloca-se dos sinais, das mensagens e da informagao para as intera- g6es constitutivas dos componentes de um sistema. Entretanto, nao levou muito tempo para o surgimento de uma terceira ordem da cibernética, quando a auto-organizacao nao mais se limitou a garantia da organizacdo interna de um sistema, mas veio integrar o fendmeno da emergéncia que passou a ser pensado €m consondncia com o campo da vida artificial em ascensio, um campo cuja ténica recai sobre criaturas computacionais ‘com evolu- ¢40 espontanea capazes de simular a vida, ‘como se fossem, de fato, vivas. Afinal, como nos diz Hayles, > OSOALN LAM 3 g 8 wy i} AUNO - €ssas criaturas séo formas de vida porque elas tém a forma da vida, isto ¢, um cédigo informacional. Resulta disso que @5 — O NASCIMENTO DO POS-HUMANO NA CIBERNETICA bases tedricas que costumavam categorizar toda a vida pas- sam por uma virada significativa. [...] A concepgao do Homo Sapiens transfigura-se a tal ponto que pode muito apropriada- mente ser chamado de pés-humano (ibid., p. 11) 2. AIRRUPGAO DO POS-HUMANO | aS att exe ff OBE A complexidade crescente das trés_ordens da cibernética, estas acompanhadas de implicagées para a condigao p6s-humana, explica & Por que, nos anos 1990, essa condicao passou a ganhar presenga nas” inquietag6es dos artistas, curadores, tedricos e criticos da cultura. Antes disso, pioneira na apreensio das mutagées que se anun- ciavam foi Donna Haraway (1991), com seu Manifesto ciborgue, publicado pela primeira vez em 1985. O neologism: oe (cib-ernético mais org-anismo) foi inventado por Manfred E. Cly- nes e Nathan S. Kline, em 1960, para designar os sistemas homem- -méquina autorregulativos, quando ambos aplicavam a teoria de controle cibernético aos problemas que as viagens espaciais impu- nham a neurofisiologia do corpo humano. No contexto da relagao do programa espacial norte-americano com a pesquisa médica, 0 ciborgue foi proposto como uma solug4o para as alteracées das funges corporais ao se acomodarem a ambientes diversos (Tomas, 1996, p. 35). Em 1965, sob o titulo de Ciborgue — Evolugdo do superhomem, D. S. Hallacy publicou uma apresentagao popularizada do fené- meno ciborgue na qual defendia a ideia de que uma nova frontei estava se abrindo através de uma ponte entre a mente ¢ a matéria, entre o espago | tecia como uma entidade cde reversivel precisamente porque era uma combinagao entre o humano e a maquina; _rever: dg essa que permitia que dispositivos feitos pelo homem fossem incorporados nas cadeias de feedback regulatério do corpo h Devido &s suas ressondncias polissémicas, o neologismo do cibor- gue foi apropriado por Donna Haraway. A repercussio ¢ influéncia comin 30 , 5 COBEN HE MOS MRMEDe, Os erebr Bs ProHeHS HECHO(DG CAS, po ORADOR DE ABISMOS. VILEM FLUSSER E O POS-HUMANISMO. EXPL a # de seu manifesto foram € continuam sendo imensas.(Bislop 7 formagao, de imediato, soube avaliar a ruptura com as tra icionais categorias ideoldgicas € epistemoldgicas disparadas PelasFiurage, do ciborgue, especialmente na sua violagao das disinges enue humano, animal e maquina. O ponto de partida da autora € que os ciborgues nao s4o apenas seres da ficgao. Eles, de fo, exigem Exibem-se nas hibridacées do corpo com as préteses tecnolégicas ¥ . também se projetam nas fabulagoes da imaginacio e se manifestam ihe nos discursos da cultura e da ciéncia. Justo na mistura desses ingre- |& XX dientes encontra-se o segredo do sucesso do manifesto, S$ XY Outro fator de garantia de seu sucesso encontra-se no fato " 8 de que esse texto langou as bases para o desenvolvimento do gs ciber-feminismo no campo dos estudos culturais, Haraway usa a figura do ciborgue como uma metéfora carregada de ironia, com q SG q a intengao de fazer essa imagem funcionar como uma blasfémia \ contra o capitalismo patriarcal dominante. A imagem lhe parece suficientemente forte porque hé no ciborgue algo de monstruoso, a medida que implica o derretimento das fronteiras entre humano € animal, entre_géneros, eni humano e maquinico, natural ¢ artificial, mente e corpo, fisico endo fisico. A autora toma partido dessas indeterminagées como recurso imaginativo para construir Seu argumento prazeroso, e€ mesmo perverso, sobre uma onto- x logia de fronteiras transgredidas, fusdes_potentes, possibilidades, RN perigosas e sobre uma epistemologia que nao teme identidades X +s t permanentemente parciais ¢ pontos de partida contraditérios. Oo alvo da transgressio, ao fim e ao cabo, é a constitui¢ao histérica ¢ social de género, raga e classe propria do patriarcado, colonialismo © capitalismo, ~ — : ——_— come queria a autora, texto contribuiu grandemente para ‘editecionar_a cultura do feminismo_socialista. Desde entao, a nese fanto metafSrica quanto literal do ciborgue passou a fazer Parte dos estudos culturais de linha feminista. Formou-se, assim, ders eunidade discursiva que passou a ser conhecida como uma es oo do pés-humano critico, Aproveitando-se da_brecha_ aberta 1 . 7 Fe at Pelo ciborgue, na sua subversio de tod 9s os tipos de dualis CBRNE E FEA) S/O O NASCIMENTO DO POS-HUMANO NA CIBERNETICA 31 mos que deram subsidios as hierarquias dominadoras das socieda- ‘des patriarcais, as feministas viram a chance de livrar o feminino dos constrangimentos impostos por uma cultura secular dominada por pontos de vista exclusivamente masculinos. Com isso, entraram em cena os abundantes discursos sobre a crise das identidades unas | €a emergéncia do miltiplo, do instavel, do volétil, livre das amarras das normas institucionalizadas (Santaella)2010, p. 43). © ambiente cultural em que Haraway escreveu seu manifesto coincidiu com o borbulhar das ficcdeg cyberpunk3) Esse termo foi empregado pela primeira vez em um conto com 0 titulo de “Cyber- punk”, de Bruce Bethke, publicado no volume de novembro-1983 de Amazing Stories. Desde entao, 0 termo tem sido usado para designar a literatura que trata da alienagao do corpo carnal em constructos informaticos (ver McCaffery, 1991). A narrativa-chave dessa literatura é Newromancer, de William Gibson (1984). Nesse mundo ficcional, 0 ciberespaco ¢ uma rede computacio- nal global de informag6es que é chamada de “A matriz”. Os opera- dores podem acessar essa rede através de fones de ouvido e de um terminal de computador. Uma vez na matrix, os operadores podem voar para qualquer parte de um vasto sistema tridimensional de dados codifi- cados em varias formas arquitet6nicas, ic6nicas e coloridas dispostas sob eles como uma vasta metrépole. Nessa cidade de dados, qualquer documento esté disponivel, qualquer gravacdo é audivel, e qualquer imagem, visivel. Quando um local particular é selecionado, através de um zoom, é possivel se mover para dentro da representacao tridimensional dos dados a fim de escandir areas particulares. Diferentes tipos de entidades inteligentes podem conviver no ciberespaco, desde representacdes simuladas dos proprios usuarios até inteligén- Cias artificiais auténomas que tém seu habitat no ciberespaco (Featherstone e Burrows, 1996, p. 6). Neuromancer matca a passagem do modelo do ciborgue hibrido, ainda dividido entre o organico ¢ 0 maquinico, para o ciborgue COMUNIG IG 40 puprore> = URES ER EO pOS-HUMANISMO- io expLORADOR DE ABISMOS vues FUSS 7 3 como simulacio digital, numa gradacao que val do simple 7 ‘0 ciberespag» tendo em vista a entrada € saida de f, iy kos lugado 1 i plug até o limite dofavatares (termo usado por Stephe, de informagao, * crm son em Snow Crash, 1992), oe inteiramente di itis qu das simuladas para 0 transporte identificatérig 4 le emprestam suas V! usuarios para dentro dos mundos paralelos do ciberespaco. A ie da “expresséo literdria suprema’, no dizer de Jameson (1991), que Neuromancer apresenta do capitalismo tardio, 0 aspecto dark da novela, responsavel pelo impacto por ela provocado, diz respeito a desencarnagao da mente, que abandona o corpo para integrar-se no universo infinito € etéreo dos fluxos informacionais. ~ ~~ O tipo de ficcdo a que Neuromancer deu fama constitui-se de estorias alocadas em um futuro préximo, em que é descrita uma sociedade cadtica, governada por gangs de rua, corporagées multi- nacionais e mercenarios, todos residindo em megacidades nas quais | extrema pobreza ¢ alta tecnologia usualmente coexistem. Nessa literatura, a tecnologia nao é um privilégio das classes dominantes, mas, uma vez pirateada € transformada, é fundamentalmente sub- versiva, sempre corruptivel para fins nao previstos pelo poder. Ela , é assim um meio de liberagao por faciliar a sobrevivencia fisica ¢ \ financeira. As tecnologias cyberpunk sao flexiveis, plasticas, comuns, \ sempre alojadas com seguranga no corpo humano — werwart, software & hardware, todos ao mesmo tempo. Essa biologizacao | da tecnologia permite aos cyberpunks conceber as tecnologias d# comunicagao (computadores, inteligéncia artificial, vida artificial, | internet etc.) como componentes fundamentais (se 140 fundante) da biosfera (Dyens, 2001, p. 74). Unindo a ficg4o cientifica com outros cédigos genéricos ee lares, 0 estilo ¢ as figuras do movimento punk se amalgamam s outras subculturas urbanas contestadoras. Segundo Kellner, 0p” denota “a rispidez e a atitude dura da re como 0 sexo, as drogas, a violéncia ¢ a re mo no modo de vi ta papena mo dois termos juntos,)“ciber” e “punk”, -eferem-se subcultura high-tec)Gom as culeuras marginalizadas 43° ® WEF WARE, GoFtw bE ¢ pan ower Gite é beldia contra 0 aU! da” (2001: P- 383). 08 ao casame! A yas, ou # ku PO Novas Nogecs ve O NASCIMENTO DO POS-HUMANO NA CIBERNETICA, B tecnoconsciéncia ¢ 4 cultura que fundem tecnologia de ponta com a alteragao dos sentidos, aa mente e da vida presentes nas subculturas boémias”.__) 7 eS Ao fim ¢ ao cabo, acrescenta Dyens (ibid. p. 75-76), 0 que essas ficgdes descrevem é a expansio de uma esquizofrenia global, /\, baseada nao sé na inabilidade de lidar ¢ com grandes e a-humanas ragoes € mutacées do corpo, Para os 18 cyberpunks, © corpo nao é uma totalidade homogénea, mas um mosaico flexivel e permedvel a que muitos podem ter acesso e compartilhar. Além dos discursos, além das estruturas politicas, estéticas e tecnolégicas que os caracterizam, personagens cyberpunks sugerem seres fragmentados, multiplicados, esquizofrénicos. \-~'¥ por isso que 0 movimento cyberpunk abraca as tecnologias, I mas de maneira rebelde, 8 margem da lei, contra o estado cen- tralizador e as grandes estruturas econdmico-financeiras, sendo favoravel, portanto, “a um uso subcultural mais descentralizado da ciéncia ¢ da tecnologia a servico dos individuos”. Desse modo, enxerga “a tecnologia como algo onipresente, mas que apresenta novas possibilidades para o prazer ¢ a liberdade do individuo, bem como para sua.destruig4o e escravizagao”. Assim, conforme é assi- nalado pot Kellner \ibid., p. 383, 402), a ficgao cyberpunk acaba profundas questées filoséficas sobre a natureza da realidade, | | da subjetividade e do ser humano no mundo da tecnologia: | @ que é autenticamente humano quando se tornam indefi- nidas as fronteiras entre humanidade e tecnologia? O que € identidade humana, se ela for programavel? O que sobra das Togoes de autenticidade e identidade numa implosao progra- mada entre tecnologia e ser humano? O que é “realidade”, se ela é capaz de tar tanta simula‘ De que modo a realidade esta hoje sendo corroida, e quais sao as consequéncias disso? Certamente, Gibson nao responde a essas perguntas, mas pelo menos suas obras as formulam e nos obrigam a pensar sobre elas. Guede oer US comunigco 0 EXPLORADOR DE At Hw ISMOS: VILEM FLUSSER E O POS-HUMANISMO Foj justamente no terreno sedimentado pelo opberpu nh ¢ “i, indagagées € desafios nele presentes que a expresso “Pérhume gradativamente tomou corpo pata surgi com grande impery i final dos anos 1980 em diante. Algumas referéncias telativas » década dos 90, com uma nomenclatura que convergia para g Me. -humano, sao suficientes para dar forga a essa afirmacao, Em 1988, Hans Moravec, em seu livro Mind Children, o, sad. mente falava de um mundo _pés-bioldgico de liberacao do pi. mento da escravidao de um corpo mortal. Em 1989, Jean Claude Beaune, em seu estudo sobre os autématos, chamou de autémato cibernético e informatico uma nova espécie de criatura viva dotada de uma inteligéncia semiauténoma ou capacidade de adaptacio, Em 1990, no segundo simpésio internacional de Arte Eletténica, realizado em Groningen, o artista australiano Stelarc, no seu “Pré- tese, robética e existéncia remota’, ao desenvolver sua tese do coi obsoleto, falava em estratégias pés-evolucionistas para reprojetar 0 corpo humano, biologicamente mal equipado, para enfrentar seu novo ambiente extraterreste (Stelarc, 1994, 1995, 1997). Em 1991, J. Deitch organizou uma exposicao itinerante sobre o pés-humano. Essa exposi¢ao passou pelo FAE Musée d’Art Contemporain Pully, em Lausanne, pelo Castelo de Rivoli Museo d’Arte Contemporanea Rivoli, em Torino, pela Deste Foundation for Contemporary Art, em Atenas, pelas Deichtorhallen Hamburg, em Hamburgo, ¢ pelo Israel Museum, em Jerusalém. Em 1993, em um artigo intitulado “The Desire to Be Wired”, Gareth Branwyn mencionava a emergén- cia de una tecnomitologia que consiste em “morfar”, “formatar” 9. corpo humano para que ele responda as exigéncias ¢ as possibilidades de uma era pés-h Francesco Antonucci, em 1994, falava de corpo biomaquinal; Oliver Dyens, em 1995, pressagiava 0 futuro de outra espécie de corpo, Roy Ascote)em 1995, utilizando a expressio pés-humana e pds-bioldgica para se referir & consciéncia emergent lo organismo humano, anunciava que 2 mos a cami 10S tornarmos icos | (Santaella, 2003, p- 191). i partir de tal irrupcao, a questao do pés-humano instalou-se decisivamente no debate cultural, numa diversidade de interpre" O NASCIMENTO DO POS-HUMANO NA CIBERNETICA gGes que se justifica pelas multiplas facetas que essa questio exibe. Além disso, por se tratar de uma condicao que esta indissoluvel- mente atada & acelerac4o no ritmo das transformagées sociotécni- cas, sua complexidade cresce em igual medida. 3. 0 POS-HUMANISMO CETICO, O APOCALIPTICO, © POPULAR E 0 CRITICO Parece necessdrio apontar para a distingao sutil que fazemos entre “pés-humano” e “pés-humanismo”. O primeiro refere-se & condicio humana promovida pelo estado de coisas vigente. J4 o segundo diz respeito aos discursos cuja proliferag4o essa condig4o estimula. Embora 0 pés-humano exiba facetas muito diversificadas, parece possivel englobar os discursos correntes em quatro grandes blocos: a versao cética, a apocaliptica, a popular e a critica. 0 cético Estas vers6es pertencem aqueles que ignoram ou desprezam o debate sobre o pés-humano. Para citar um exemplo representado por uma figura influente, esse é 0 caso de Manuel De Landa. Nao obstante reivindique, com base em Deleuze e Guattari (De Landa, 2002), um realismo ontolégico renovado, que poderia muito bem subsidiar filosoficamente as discussées sobre o pés-humano, descré dessa expresso por consider-la tola (De Landa, 2003). O apocaliptico As versdes apocalipticas incluem tendéncias cada vez mais ate: morizadas diante da ininterrupta expansio “tecnolégica. Sem des- cartar a riqueza do pensamento critico de alguns dos representantes dessa tendéncia, por exemplo, Paul Virilio, é preciso vasculhar o que esta por tr4s, movendo esses temores. Muitas vezes, trata-se de uma visio, quase sempre inconsciente e por isso mesmo mais forte — da integridade da natureza humana a que a tecnologia é 3) swine coms 30 © EXPLORADOR DE ABISMOS: VILEM FLUSSER E O POS-HUMANISMO 36 estranha, forasteira. O vinculo entre ambas é artificial, impos faria capitalista. Embora na sua superficie de critica ao capa ; o discurso seja convincente, seus pressupostos sio duyi ica merecem ser investigados com cuidado. Bastante incisivo é Slote jik, quando afirma que a histeria antitecnolégica que toma conta de grande parte do mundo ocidental é um produto da decomposicao da metafisi- ca, pois essa histeria se agarra a falsas classificacées de Modo a se revoltar contra processos nos quais essas classificagdes esto superadas. O horror ao tecnoldgico é inversamente pro- porcional ao apego as velhas verdades metafisicas. Por isso, a histeria € reacionéria, pois ela expressa o ressentimento de uma bivaléncia anacrénica que contrasta com uma Polivalén- cia que ela nao pode entender (2000, p. 5). Uma vez que as tradicionais bivaléncias, que informam as concep¢ées do humanismo a que o pés-humanismo vem fazendo frente, serao_discutidas no capitulo VI, podemos encontrar no livro de Fukuyama, Nosso futuro pés-humano:_as consequéncias da revolugdo biotecnolégica (2002), o exemplo paradigmatico de uma visio apocaliptica concernente especificamente ao pés-humano. A defesa do autor de regulamentag6es para as ameacadoras tecno- logias genéticas, que iro alterar as bases materiais e bioldgicas da natureza humana, nao consegue esconder seu firme apego & narta- tiva iluminista de uma esséncia humana invioldvel. Nas palavras de Simon, “o retorno 4 natureza humana em Fukuyama fornece novos reforgos para as barricadas humanistas esmigalhadas na maré alta da pés-humanidade” (2003, p. 2). Diante das apreensées inevitavelmente provocadas pelas tecno- logias reprodutivas, vida artificial, biométrica, organismos genet camente modificados, terapia genética, clonagem, pesquisas a células tronco, as versées apocalipticas tém pelo menos 0 merit” : um esforgo critico contumaz. Jé nao € esse 0 caso do pés-humans mo popular. © NASCIMENTO DO POS-HUMANO NA CIBERNETICA O popular Assim nomeadas por Badmington (2003), as versoes “popu- lares” so herdeiras das concepgées do ciborgue alimentadas nas ficgdes cyberpunk, as quais embutem um neocartesianismo mal dis- farcado: a possivel separacio da mer wines qual se a €0 transporte do mental para suportes robéticos ou similares, tal como esta exemplarmente tematizada na obra Mind Children de Hans Moravec (1988) e na trilogia Matrix, nitidamente inspirados em Neuromancer, de Gibson. O que Mind Children propoe é a lipossuccao do cérebro, a leitura informacional de cada molécula e sua transferéncia para um computador. Tudo isso para ganhar a tao sonhada imortalidade dentro de um corpo seco, metilico, ascético, livre das fragilidades e vulnerabilidades do corpo timido, de seus abjetos excrementos e, sobretudo, de seu destino mortal. Sem chegar a tanto, mas inspirado nesse sonho, o paradigma das versées pés-humanistas populares encontra-se no trans- -humanismo, cuja sistematizacao foi elaborada pelo movimento Extropy (Extropia), termo cunhado por Tom Bell. Anténimo de entropia, o movimento foi idealizado por Max More, e seus ideais encontram-se fartamente disseminados na internet. Seus princi- pios foram explicitados por More (1998). Por extropia deve-se entender “a extensdo da inteligéncia, informacao, ordem, vitalida- de e capacidade de aperfeigoamento de um sistema. Extropianos sao aqueles que procuram incrementar a extropia, € 0 extropia- nismo é a filosofia evoluciondria trans-humanista da extropia”. O autor continua: oC trans-humanistas jlevam o humanismo adiante ao desafiar 05 limites humanos, por meio da ciéncia e da tecnologia com- binadas com o pensamento critico e criativo. Desafiamos a inevitabilidade do envelhecimento e da morte e procuramos levar adiante as nossas capacidades intelectuais, fisicas e nosso desenvolvimento emocional. Vemos a humanidade como um estagio transitério no desenvolvimento evoluciondrio da 7A conuny 50 © EXPLORADOR DE ABISMOS: VILEM FLUSSER E © POS-HUMANISMO. inteligéncia. Defendemos o uso da ciénci, aa acelerar a Passagem do humano para uma condicéo trans-humany ge ee pds-humana. eel ——. Sao sete os principios-guia: progresso Perpétuo, au macao, otimismo pritico, tecnologia inteligente, autodirecionamento, pensamento racional, Nem nos detalhes daquilo que cada um desses Principio. darmos conta de que a ingenuidade os leva para receitudrio de autoajuda. Nao é para menos. Embora o Movimento postule suas bases em uma filosofia evoluciondria trans-humanista, esta carece de quaisquer dos fundamentos presentes na fartissima, diversificada e complexa bibliografia sobre evolucionismo produzi- da ao longo de todo o século XX. Como se nao bastasse, sob a pele do trans e do pés—e na ignorancia de todas as desconstrucées pro- cessadas pela psicanilise ¢ filosofia — ocultam-se Apreco ao sujeito humanista liberal ¢ a crenca nas triunfantes perfectibilidade e racio- nalidade humanas, justo esse perfil pretensamente redondo e uno que © pés-humanismo est veementemente colocando em questio, Junto busca da perfectibilidade humana, 0 movimento tam- bém prevé transformagées no mundo material com o auxilio da ‘anotecnologia} com suas promessas de construgdo de materiais organicos e inorganicos, molécula a molécula, e novas relagées com © ambiente gracas 4 biotecnologia (Thacker, 2003, p. 74). A promulgacao dos ideais do movimento nio se limita ao seu lado mais popular. Cientistas ¢ tedricos de renome, tais como Ray Kurzweil, Marvin Minsky e Richard Dawkins, também aderiram a esas ideias, trazendo a elas um pouco mais de credibilidade. 0 que une a todos é a crenca de que progresso tecnoldgico necessaria- mente acarreta progresso para o humano. O paradoxo que a crenga esconde é que, apesar das transformagées, a espécie ainda mantera algo de sua esséncia imutdvel. Para Thacker, nessa “tensao entre identidade e mudanca radical, entre vis6es da mente feita de sof ware € as realidades dos corpos bioldgicos, os extropianos — as tens6es internas do pensamento pés-humanista” (ibid., p- 75): _UtOtransfop. Sociedade aberta, © Preciso entrar § enseja para nos bem Perto de um OQ P&- Hum sso CHico O NASCIMENTO DO POS-HUMANO NA CIBERNETICA Trés séo as linhas tensionadas: a revisio do humanismo europeu, a tecnologia vista como eu ¢ nao-eu, a aplicacdo de conceitos das ciéncias da vida a problemas sociais. Entretanto, nao so os extro- pianos que enfrentam essas tensées com a complexidade que elas merecem, mas, sim, as vers6es do pés-humanismo critico. Q@aitico) No contexto brasileiro, em 2006, Felinto (p. 119) sublinhava que o pés-humanismo pode ser entendido como “uma das mais relevantes ‘narrativas digitais’ com que nos defrontamos hoje — uma narrativa que encontra nos(temas)da a transcendéncia, do espiritualis- mo tecnoldgico, da informatizacao do real e da expectacao futurista utépica alguns de seus elementos principais”. Todavia, ao tomar ‘como base uma pesquisa cuidadosa realizada na internet, Felinto tem a precaucao de distinguir entre um pés-humanismo semeado na internet versus um pés-humanismo critico. De fato, quando se trata de uma questo como essa, sujeita a todos os tipos de exacer- bacdo, ha que se separar 0 joio do trigo. Vem dai a necessidade de se estabelecer diferengas pertinentes no emaranhado que constitui o debate sobre o pés-humano. Nas versdes criticas, depois do manifesto inaugural de Haraway, em plena irrupgio do pés-humano, surgiram duas obras bastante divulgadas. Em 1995, na esteira do ciber-feminismo, Halberstam e Livingston (orgs.) langaram seu livro Posthuman Bodies (Corpos pés:humanos). O interesse das feministas nas_tecnologias politicas_ do corpo resulta do papel que © corpo, como figura socialmente construida, desempenha nos modos | pelos quais a cultura é proces- sada e orientada. Reivindicar a existéncia de corpos po: significa deslocar, tirar do lugar, as velhas identidades orientagdes Na outra publicagao, sob 0 titulo de The posthuman Condition (A condigao pés-humana), o attista inglés Robert Pepperell (1995) emprega o termo pés-humano tanto para se referir ao fato de que | Bossa visto daquilo que constitui o ser humano esté passando por profundas transformagées, quanto para apontar para a convergén- 39 ; . PO” Ao teepolo6tAs poKH@S bO CO" hon « bon foe HOES Soushyort Cons a cao eg © EXPLORADOR DE ABISMOS: VILEM FLUSSER E O POS-HUMANISMO. 0. POL -NUWAYAS. RS HECVOLOGIAS OLEH) i cia geral dos organismos com as tecnologias até o Onto de se realidads vittual(RV), comunicacao global, protética e nangae logia, redes neurais, algoritmos genéticos, manipulacso pene Bente ida artificial, ~~ Entretanto, o que marcou época foi a jé citada obra de Hayles (1999), How We Became Posthuman (Como nos tornamos Pbs-buma. nos). Vale a pena transcrever o perfil do pés-humano desenhado pela autora, pois ele nos dé um panorama do estado da questéo na virada para o século XXI: Quando vocé olha para os tremeluzentes significantes escor- regando pela tela dos computadores, nao importa que iden- tificagées vocé concede para as entidades corporificadas que no se podem ver, vocé ja se tornou pos-humano(a) (p. xiv), L..] A qualidade heterogénea coletiva do Pds-humano implica a cognicao distribuida, localizada em partes disparatadas que podem estar em ténue comunicagao umas com as outras (p. 3). [...] Mesmo que intervencdes nao tenham sido feitas No corpo, novos modelos de subjetividades emergentes em campos como ciéncia cognitiva e vida artificial implicam que até um inalterado Homo sapiens conte como pdés-humano (p. 4). [..] No paradigma da vida artificial, a maquina torna-se © modelo para compreender o humano. Assim, 9 humano Transfigura-se e gura-se_em _pds-humano (p. 239). [...] Embora um conceito nascente, [0 pds-humano] jé é tao complexo que envolve uma extensao de dominios culturais e técnicos que incluem nanotecnologia, Microbiologia, realidade virtual, vida artificial, neurofisiologia, inteligéncia artificial e ciéncia cogni- tiva, entre outros (p. 247). [...] Nao ha consenso sobre o que © pos-humano pressagia, em parte porque a maneira como ele € construido e imaginado varia amplamente (p. 251). [.-] O prospecto de se tornar pés-humano evoca terror e excita 0 prazer (p. 283). [...] Para alguns e para mim, o pés-humano €vOCa O prospecto estimulante de sair das velhas caixas e abrir Novos caminhos de pensamento sobre o que ser humano significa (p. 285). © NASCIMENTO DO POS-HUMANO NA CIBERNETICA 41 No decorrer do livro, Hayles dirige suas discussées em trés frentes: (a) como a informacao perdeu sua corporeidade ao ser con- ceitualizada como uma entidade separada das formas materiais nas_ quais est enraizada; (b) como o ciborgue foi criado 4 maneira de um artefato tecnolégico ¢ icone cultural; (c) como uma construgao_ especifica, chamada humano, est cedendo passagem para_uma_ ‘tconstru¢ao distinta chamada pés-humano (p. 2). _ Sem duvida, a grande ténica do livro recai sobre a primeira fren- te. Hayles defende veementemente a inseparabilidade dos padrées informacionais e das manipulagées formais de simbolos em relac4o ao substrato material em que se encarnam. Com isso, adere a uma corrente mais contemporanea da ciéncia cognitiva voltada para a cognigao encarnada. As raizes da descorporificagao_da informagao se encontrariam na cibernética da primeira ordem, conceito que a ‘cultura transferiu 2 automaticamente para 0 ciborgue. Vale observar que, sob 0 ponto de vista que o presente nos da, treze anos depois da publicacao do livro, as discuss6es de Hayles ficaram datadas. O ambiente em que ela escreveu era 0 do primeiro estagio do ciberespago. Dependente do desktop, 0 acesso a virtua- lidade informacional conduzia 4 ideia de dois universos paralelos: 0 real, fisico, corporal, de um lado, e © ciberespago, mental, nas alturas, descorporificado, de outro. Entretanto, a aceleragao das transformagées tecnoldgicas tem sido de tal ordem que, em pouco mais de dez anos, essa metdfora dos dois universos, que tanto dis- curso provocou, dissipou-se naturalmente. O advento e explosio planetaria dos dispositivos méveis estéo agora demonstrando que, de fato, as comunidades virtuais eletré- nicas nunca deixaram de viver nas reas limitrofes entre a cultura fisica ¢ a virtual, e o crescimento dos espacos eletrénicos nao esta / se ditigindo para.a dissolugao das cidades, dos corpos, do mundo | fisico, mas para intersecgio do Fico como irtuall|O corpo}cuja | - perda iminente foi tao lastimada, estd na realidade se transforman- | do rapidamente em um Conjunto de extensées ligadas aum mundo _/ cibrido, pata tado pela interconexio de redes e sistemas on e offline (Beiguelman, 2006, p. 153). Assim, nds s continuamos a habitar contig 30 0 EXPLORADOR DE ABISMOS: VILEM FLUSSER E POS-HUMANISMO. 2 MON OMA SAD bo eyo CMON Ups ed DWHAKr> BO Convo cy, NO NL BAS Te ace esferas fisicas, em urdiduras nas quais varias outras esferas se iam, sem que os ambientes fsicos desaparecam, Realmente, a presenga crescente das midias méveis (Celulares incrementados, i-pads, redes Wi-Fi etc.) contribuiu Para intensificy, todas as interseccoes do corpo com as midias. Com isso, no dizer de Lemos, “a cibercultura [...] solta as amarras e desenvolve-se de forma onipresente, fazendo com que nao seja mais 0 usudrio que se desloque até a rede, mas a rede que passa a envolver os Usuarios ¢ o5 objetos numa conexio generalizada” (2004a, P- 2; 2004b), Além dos intensos deslocamentos internos que sao préprios dos fluxos informacionais do ciberespaco, passam a existir deslocamen- tos externos, acompanhando os movimentos dos usudrios, © ciberespaco ganha o transito das ruas ¢ Os usuarios conectam-se a varios espacos simultaneamente com o minimo de deslocamento fisico. Resulta disso um neonomadismo que potencializa a movi- entacao € os pontos de encontro nas cidades (Pellanda, 2006, p. 203). Assim, nds con nuamos a habitar esferas fisicas, em urdidu- Fas nas quais varias outras esferas ciberespaciais se misturam, sem que.os ambientes fisicos desaparecam. Tudo isso nao deve significar que estejamos dispensados da critica ao conceito de informagao forjado na cibernética de primei- ta ordem e seus adeptos, critica que foi enfrentada por Hayles e, algum tempo depois, Por Thacker (2003), com sua aguda anilise do que chama de “essencialismo informético” na concepgao que €ste promove de que a materialidade nao passa de um padrao infor- macional programével, Portanto, a chave do pensamento do infor- macionalismo essencialista nao esta na descorporificagio, mas em algo mais perto das conversées de arquivos e da traducao de dados. Em sintese: “a Iégica do informacionali me essencialisa é2 seguir te:_a informacio ¢ uivale a0 €orpo) o qual, por extensio, implica que a informacéo equivale 4 biologia e/ou 1 Trait 0 conduz da contingéncia do corpo biolégico & emancipagao_desss Corpo por meio S potenciais técnicos da informatica” (Thac ibid., p. 87) « ‘ 40 et ibid. p. 87). Pata o autor, entretanco, “ sem uma considers dos modos como as atuais ciéncias da vida estao reinterpretand Iisty ou sj, O NASCIMENTO DO POS-HUMANO NA CIBERNETICA organismo, © Corpo, a vida, arriscamos assumir que, nas mudangas epistemolégicas trazidas a baila pela posicao pés-humana, o unico perigo é aquele da descorporificagao” (ibid., p. 88). O artigo de Thacker esta inserido em um numero da revista Cultural Critique (Inverno, 2003) especialmente dedicado ao tema do pés-humano. O ntimero é relevante nao sé na sua natureza multitemdtica, mas, principalmente, porque se coloca como um representante significativo do pés-humano critico. No seu excelente livro sobre Representagdes do pds-humano, Graham (2002, pp. 3-5) considera que as novas tecnologias compli- caram sobremaneira 0 que significa ser humano de uma variedade de maneiras, a saber: a tecnologizagao da natureza, 0 apagamento das fronteiras entre as espécies, E recaclogizacao dos compos ¢ men- tes humanos, as ferramentas, os corpos ¢ o ambiente. A autora considera equivocados os temos “pés-biolégico” ¢ “condicéo pés- “humana” como caracterizacées das tecnologias do século XI. Para ela, 0 termo “pés/humano” é preferivel para expor a inadequacio, inclusive érica, de se adotar o prefixo “pds” como marco de um progresso linear inevitivel da racionalidade iluminista, na forma de avancos tecnocientificos deterministas ¢ da inelutavel evolugao do Homo sapiens ¢ faber em Homo ciberneticus. Ao contrario, 0 que Graham pretende ¢ “chamar atengao critica ao trabalho das taxonomias que distinguem entre criadores racionais ¢ sencientes € seus artefatos — naturais, virtuais ou maquinicos”. O “pés/humano” denota, portanto, o reconhecimento daquilo que sempre foi 0 caso, a saber, que a “natureza humana” é tanto um artificio quanto sio todas as outras coisas que o ser humano inventou (pp. 36-37). Outro representante mais recente de uma critica filosoficamente fundamentada encontra-se na obra de Wolfe (2010), que cumpre com maestria seu propésito de encontrar novos paradigmas tedricos para o pés-humanismo ao localizar a virada decisiva de um pensa- mento pés-humanista na correlacdo original que estabelece entre Luhmann e Derrida. O propésito do autor é sugerir que, se a teoria dos sistemas precisa da desconstrugao, entao esta também precisa da teoria dos sistemas para ajudar a levar avante o trabalho para 0 B comin 40 © EXPLORADOR DE ABISMOS: VILEM FLUSSER E O POS-HUMANISMO Bo qual, em comparacao, a desconstrugio apenas acenou, © }; denso ¢ exemplar da atual busca de fundamentos teoricam, wwe s6lidos promovida pelo pés-humanismo critico, sme mas Q pés-humanismo em sua expresséo critica ¢ aquele que p se aproxima das proposigées de Flusser, : ainda que nig See mente uma correspondéncia ponto a ponto. E nao é casual Far de o caminho escolhido pelo pensador para se aproximar do . ser igualmente o da ¢ibernética) ‘Teremos que retornar a ela an sermos compreender plenamente os impactos das cransformasse tecnocientificas dos wiltimos anos na concepgao do humano, ~~ / Po 32 yn teno Edsibonse wean yy tf UFoRMAH UA “er 4 WUa- DE HOE PW ALE OO Ne ht IAS te US LA Oe Be re Dea t “yd RE GE REMUA 0 pm ei rok EM SeRES YtUoS, ‘QUA CULONTE aaa E ulann PARA bESCREVE a = [ne DtOS COU AMIAES A ageee Oe WARE cuuonr gard €/r UME Pe es ¢, 0 SiSteMs perdne apart (SO) EB MEME RULAUE MACHINA SPECULATRIX: AS MUITAS VIDAS DA CIBERNETICA E A MORTE DO HUMANO A critica cibernética (...) assinala que a tradicional diferenciagéo entre a mera subjetividade e a antitética objetividade 6 demasiado rude e primitiva (Gotthard Giinther, Das Bewusstsein der Maschinen). historia da cibernética poderia oferecer material para um bom romance, dotado de personagens estranhos ¢ segredos nvolventes. Nascida no seio de uma grande guerra e pon- tuada por elementos de espionagem, complexas maquinas e cédi- g05 milicares, essa histéria teve sua origem num desejo igualmente (:¢/ romanesco: desenvolver uma espécie de ciéncia total que pudesse 10 oferecer ao homem solugées para alguns dos grandes problemas da_ existéncia. E, realmente, o que torna dificil descrever sucintamente a cibernética é seu cardter fundamentalmente interdisciplinar; ou melhor, antidisciplinar. 1. O IMPERIO CIBERNETICO ene J Do ponto de vista tedrico, como vimos, a cibernética se propunha ()#' £omo um saber universal capaz de abordar questées fundamentais em dominios tao diversos como o funcionamento do cérebro ou da acoplagem entre homens e maquinas. Do ponto de vista empirico, cla representou um extraordindrio exercicio de colaboragio entre Pesquisadores de diferentes campos, convocados a “cruzar fronteiras COM 0 _— © EXPLORADOR DE ABISMOS: VILEM FLUSSER E 0 POS-HUMANISMO 6 M4! Nn wv rofissionais, frequentemente o trabalho com 0 prazer req P! e formar novas redes interdisciplinares” (Turner, 2006, p. 19). Numa das definicées (extremamente vaga €, portanto, facilmente geradora _de equivocos) oferecidas por] Norbert Wi ener) provavelmente seu consistia numa ciéncia dedicada a abarcar “todo o campo da teoria da comuni. ‘agao € do controle, nam a partir das mesm: 0(Entro, 1a quer dizer: perda de energia n de um sistema, En destino de tudo que existe é a degi em um processo entré; - Seja na maquina, seja no animal” (1985; 1948, p. 11). Enxergando 0 mundo como composto de sistemas que funcio. as leis, a cibernética se dedicaria, acima de caracterizada como © grande mal que 10 interior quanto um sistema produz informacao e diferen- @, ele se mantém ativo ¢ em funcionament essa energia comega a se dissipar, dentro do sistema, e tudo tendea ‘0. No momento em que aumenta o estado de indiferenca uma estabilidade que é sinénimo termodinamica determina que o rada¢ao progressiva, culminando, Pico, na irreversivel morte do sist ema. Wie- ner defendeu a tradicional hssociacao entre entropia e ruido\ Tudo que atrapalhasse o fluxo da infor tuido, encontrava-se, pois, nética traduzia 0 mundo ini ‘magao no sistema, toda forma de na ordem da entropia.'! Como a ciber- iteifo Nesses mesmos termos sistémicos, Entretanto, do ponto de vista Pragmiatico, as pesquisas de Wiener tiveram inicio no contexto da Segunda Guerra Mundial, quando o matemiatico dedicou-se a investigar e aperfeicoar a acoplagem entre pilotos de aviao eo maquindrio de artilharia antiaérea que deveriam ———_ as exe "Katherine Hayles assinala que essa assaciacéo no &inevitévg)No caso de Shannon, por aha har Plo, a informacao era antes identificada com a entropia, em vez de oposta a ela. Segundo SI quanto mais inesperada (ou aleat s smitida ria) fosse uma mensagem, mais informagao seria trans! 4 hannon, Por ela (cf. Hayles, 2004, P. 102). Para um detalhado estudo da vida e do pensamento de sha ver Roch (2010). MACHINA SPECULATRIX: AS MUITAS VIDAS DA CIBERNETICA £ A MORTE DO HUMANO- _ = operat. De que forma seria possivel minimizar os erros dos pilotos e a imprecisao dos aparatos? Na perspectiva desenvolvida por Wiener (em parceria com o engenheiro Julian Bigelow), 0 controle deveria emergir “nao da mente de um oficial comandante, mas das intera- goes complexas e probabilisticas de homens, maquinas ¢ eventos no seu entorno” (Turner, 2006, p. 21). Assentada, portanto, em nogdes como controle ¢ feedback,’ a cibernética foi encarada com desconfianga como _um_projeto_ Joalldrio de dominio © maquinizagio do h Tminologia inimiga do sentido e lo espirito — input/output, black box, informagdo, entropia etc. -, ela conquistou o édio de muitos ¢.a admiragio de poucos.’ Desse modo, nao surpreende o com de complé e mistério que envolve o estudo de Céline Lafontaine sobre o “império cibernético” (2004). Ali, a cibernética aparece como uma poténcia quase invisivel, mas de algum modo sempre onipre- sente, Defrontamo-nos com um sentido de mistério e transgressao que sempre fez parte da cibernética e constitui mesmo uma das razées de seu extremo poder de sedugao. De fato, Lafontaine inicia seu livro com um interessante paradoxo: nao obstante scu quase 2om sua ter- completo esquecimento nos tiltimos anos, a cibernética constituiu um movimento intelectual de tamanho porte que produziu (¢ con- tinua produzindo) impactos em areas do conhecimento téo diversas como a sociologia, a arte, a psicologia ¢ a informatica. Essa verda- j4 you deira “matriz da tecnociéncia” marcou o inicio de uma “revolucao (1. " epistemoldgica” que se prolonga até hoje (Lafontaine, 2004, p. 13). Seu éxito teria sido tamanho que ela, paradoxalmente, desapareceu de vista, mas precisamente por estar nos fundamentos subterraneos que sustentam praticamente todos os saberes contemporancos. E nao seria exagero afirmar que a plena compreensao do fendmeno da cibercultura demanda o conhecimento da cibernética ¢ sua historia. Para uma descricao detalhada da nocao de feedback, ver 0 capitulo Il > Por exemplo, Friedrich Kittler, que incluiu Wiener no rol de seus herdis imortais (cf. Unsterbliche, 2004, pp. 47-55) - muitos deles ligados a projetos militares, como Shannon e Turing. comur ¢o

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