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§ 46. IMPUTABILIDADE (CAPACIDADE PSIQUICA DE CULPABILIDADE: DE COMPREENSAO DA ILICITUDE E DE AUTODETERMINAGAO SEGUNDO TAL COMPREENSAO) I. Conceito de imputabilidade 1. O delito requer certa capacidade psiquica do autor sem- pre que qualquer de seus estratos analiticos envolva a presenca de um aspecto ou conteiido subjetivo. E preciso certa capacidade psiquica para que aa conduta ou, dito de outro modo, ha uma incapacidade psiquica téo profunda que elimina diretamen- te a conduta' “Também 0 dolo pode descaracterizar-se por causa da incapacidade psiquica do autor para reconhecer os elementos requeridos para configurar a finalidade tipica, situacéo que_gera _um erro de tipo psiquicamente condicionado*. Por fim, também a culpabilidade pressupde uma capacidade psiquica de culpabili- dade (ou imputabilidade). Esses trés niveis sio reconhecidos até mesmo na linguagem corrente, na qual apenas em sentido figura- do se diria que uma pessoa inconsciente “estd fazendo algo”, bem como, de alguém que nao se da conta das providéncias que deve adotar para alcangar o fim que se propusera, se diria que ele “ndio sabe o que faz”, e finalmente, de quem nao chega a entender o significado de sua conduta, que ele “ndo compreende”. A sabedo- tia popular cunhou um neologismo para o portador de transtorno mental: “descompreendido”. phy Como vimos, a capacidade psiquica de delito abrange a capacidade psiquica de. acdo, a capacidade psiquica de dolo ea ea capacidade psiquica-deculpabilidade*, Esta ultima c sapreidade do autor do injusto para responder as exigéncias de_ 1 Cf supra § 28, VI (v. If, t. I, pp. 112-113). 2 Cf. supra § 35, Ill (v. Il, t. I, pp. 292-293). 2 Para Lesch, no se justificaria a clara separagao entre a capacidade de ago e a ca- pacidade de culpabilidade, jé que a segunda, ao lado de uma capacidade de injusto, configuraria a capacidade de delito (Lesch, Heiko, Die Verbrechensbegriff, p. 224). 239 Digitalizado com CamScanner compreender-lhe a ilicitude e de adequar sua conduta a esta com- preensdo. Portanto, a capacidade psiquica de culpabilidade é uma condi¢do do autor, enquanto a imputabilidade seria a caracteris- que essa condigfo agrega a sua conduta tipica e antijuridica (injusto). Imput fica langar & conta, e por isso imputabili- dade é a possibilidade que tem 0 injusto de ser langado a conta do_ autor’, Embora na linguagem corrente e também na juridica nem sempre se observe essa distingdo, e talvez nem seja necessario observé-la, a rigor imputavel é o injusto (a conduta tipica e ilicita), que somente ser langada a conta do autor quando ele dispuser de ‘capacidade psiquica para compreender sua antijuridicidade e para conduzir-se segundo tal compreensdo. Apesar disso, cabe insistir em que na linguagem técnico-juridica corrente frequentemente se fala de autores imputdveis e inimputdveis, 0 que — com a devida adverténcia — nao é propriamente incorreto, constituindo afinal uma metonimia que pode evitar inovagGes terminoldgicas dispen- saveis®. 3. Que a imputabilidade ¢ uma caracteristica da conduta que provém de uma_capacidade do sujeito é algo que se demonstra pelo fato de que 4 mesma pessoa pode ser imputavel um injusto e nao outro’. Um oligofrénico pode dispor de capacidade psiquica para compreender a antijuridicidade de um homicidio, que nao re- quer elevado nivel de abstracao, e nao dispor dela para compreen- * Como “conjunto de condigdes pessoais” do agente a concebia Anibal Bruno (Di- reito Penal, I, 2, p. 39); a um “conjunto de requisitos pessoais” se referia Maga- Ihaes Noronha (Direito Penal, 1, p. 161). As Partidas escusavam de pena “aquele que fosse louco de tal loucura que ndo sabe 0 que faz” (P I, I, XX1). 5 Silvela,I, pp. 104 ss; Carrara, Programma, § 2°; Rossi, p. 224; Pacheco, Estudios, pp. 72-73; Garraud, p. 160; Schaffstein, F., La ciencia europea del derecho penal en la época del humanismo, p. 58. No sentido restritivo de imputabilidade (capa- cidade psiquica de culpabilidade), Niiiez, II, p. 24; Jescheck-Weigend, p. 433; Fragoso, Ligdes, P.G., p. 203. Em sentido anélogo, Frias Caballero, Jorge, Imputabilidad penal..., p. 17. Hungria observava que “imputabilidade refere-se mais & agiio do que ao agente” (Comenté- ios, I, II, p. 321). 7 Fontin Balestra, Esquema de una imputabilidad juridica. 240 Digitalizado com CamScanner der 0 contetido ilicito de um crime econémico que exija um pen- samento abstrato mais profundo. Dessa constatagao nao se segue, absolutamente, que se possa recortar parcialmente a consciéncia nos casos de delirio, como veremos. 4. A capacidade psiquica de culpabilidade implica possa 0 sujeito no apenas compreender a lice se0 Telio mas tan bém que possa ele adequarsua condita a essa compreensao. Pode ocorrer que haja uma perfeita capacidade de compreensao da an- tijuridicidade, e mesmo sua efetiva compreensdo, e nao obstante © sujeito n&o consiga adaptar sua conduta a essa compreensdo, como sucede em miltiplos casos de fobias severas, ou mesmo do dependente quimico que, a despeito de conhecer a proibigao do comércio de drogas ilicitas, dele participa compulsivamente para poder satisfazer seu vicio. A incapacidade para adequar a conduta__ sofre um estreitamento em seu Ambito de autodeterminagao tao rigoroso que torna impossivel a exigéncia razodvel de um com- portamento conforme a0 di 0 0 primeiro contetido da capacidade psiquica de culpabilidade (a compreensio da ilici- 0 segundo conteudo (a adequacdo da conduta 4 compreensio da ilicitude) afeta, também eliminando ou reduzindo. 0 Gmbito de> “qutodeterminagao, € estaria melhor tratado no repertorio das situ- acoes redutoras da autodetermiagao. Por razées didaticas_contu- ‘do, optou-se por inclui-lo neste capitulo, que reunira assim toda a nialéris conematte A capaciieds unis oa ‘pendentemente lamento em que se sustente a inimputabili- dade ou a semi-imputabilidade. IL Posigdo sistemdtica da imputabilidade na teoria do delito 1. A posigdo sistematica e 0 conceito de imputabilidade séo duas questdes que se encontram cingidas de forma t&o entranhada que é impossivel falar de uma sem imediata referéncia 4 outra. 241 Digitalizado com CamScanner Isto se deve ao emprego da expressio em sentidos tedricos muito dispares, e por vezes ambiguos, Na verdade, a posigao s tica e 0 conceito de imputabilidade sao dois extremos indissolu- velmente ligados. A desconfianga dos juristas — especialmente os neokantistas — para com a imputabilidade, por considera-la porta de entrada de conceitos naturalisticos*, fez com que a doutrina preferisse manter unida a total capacidade psiquica para o delito, de sorte a que todos esses conceitos naturalisticos pudessem ser tratados em um Unico momento de anélise. Assim se evitava en- frentar os insumos psicolégicos em cada etapa analitica, pela difi- cil concordancia entre a psiquiatria e 0 direito, pela nebulosidade de alguns conceitos da nosologia psiquiatrica, e sobretudo pelo in- cémodo metodolégico que para um neokantiano representa qual- quer referéncia a uma ciéncia natural em seu discurso de ciéncia do espirito nao contaminada. Por causa disso, no desenvolvimento histérico da teoria do delito, a imputabilidade ocupou todas as posigdes sistemdticas possiveis. Entre aquelas que j4 nao tém pro- sélitos na doutrina contemporanea cabe recordar os hegelianos outros autores no tio préximos a eles? que, por entenderem que s6 existe conduta com um sujeito livre, conceberam a imputabili- ® Sauer, W. , pp. 188-189. Sobre as dificuldades de intercémbio entre linguagem judicial e psiquidtrica, Barbero Santos, M., em Psiquiatria y derecho penal. % “Assim Oetker, Friedrich, Zum Schuldbegriffe, em Gerichtsaal, pp. 72 ¢ 161 ss; do mesmo, em ZStW, pp. 17 ss; Abegg, pp. 107 ss; Bauer, Anton, em Abhand- lungen aus dem Strafrechte und dem Strafprozesse, 1, pp. 245 ss; Gerland, Hein- rich, Kritische Bemerkungen zum Alg. Teil des Strafgesetzentwurfes, p. 8; Késtlin, ChR., Neue Revision..., p. 21; do mesmo, System des deutschen Strafrechts, p- 120; Wachter, Carl Georg, Lehrbuch des Rémisch Teutschen Strafrechts, pp. 118 e 131; Holtzendorff, Handbuch, Il, p. 151; também Villey, Edmond, Précis, p. 99; nao foi alheio a ideia Binding, Grundriss, p. 97. No direito privado, Demn- gurg, Heinrich, Pandekten, I, p. 126 (0 argumento parece tomado de Ihering, em Vermischte Schriften Juristichen Inhalts, pp.155 ss). Tempos depois, a teoria ¢ sustentada por Stammkétter, Franz-Emst, Uber unbeschrinkte und bechrinkte Handlungsfihigkeit im Strafrecht; Gerlich, Helmut, Die Gegner einer verminder- ten Zurechnungsfahigkeit in der deutschen Strafrechtswissenschaft, Uhse, Bernd- Riidiget, Kritik des § 330a StGB; a0 nivel de teoria geral, Mayer, H., 1953, pp. 220 ss; do mesmo, em ZStW, 50, pp. 283 ss; Quiroz Cuarén, Alfonso, em DPC, 10, 1965, pp. 73 ss. 242 YF lh clad Digitalizado com CamScanner dade como capacidade de agéo ou de condita: dessa persp sem imputabilidade nao existe agao. Entre outras consequéncias de tal concepgiio, o incapaz de culpabilidade nao poderia atuar justificadamente. 2. Enquanto a expresso Tatbestand era equivocadamen- 3 Ke identificada com 0 préprio delito, antes de sua categorizagio ‘dogmatica, para alguns autores a inimputabilidade excluia a tipi- cidade", Pela mesma época, partidarios da concepgio subjetiva da antijuridicidade sustentaram que a inimputabilidade excluiria a ilicitude!', e houve quem postulasse a excluso do injusto'". No enorme grupo de autores que vinculam a imputabilidade a culpa- bilidade, 0 vinculo é estabelecido de formas tao dispares que é impossivel reconhecer qualquer unidade. Muitos foram os pena- listas para os quais a imputabilidade constituia um pressuposto da culpabilidade; dentre eles, alguns deduziam que a imputabilidade era uma circunstancia prévia a culpabilidade ¢ na falta da primei- ra seria incabivel a andlise da segunda, porém outros atribuiam 4 imputabilidade a natureza de causa de exclusao da culpabilidade, neste caso as vezes integrada a seu conceito, as vezes repartida entre os elementos do conceito de culpabilidade. Os inumeros te- 6 cos que conceberam a imputabilidade como um dos elementos da culpabilidade a situaram ou antes dos demais ou entre eles e até mesmo como o derradeiro elemento". “No Brasil, a despeito do yozes que tomam a imputabilidade como pressuposte da acao', ‘do dolo e da culpa” ou da culpabilidade"*; predomina amy ampere P. ex. Geib, Gustav, Lehrbuch, Il, p. 196. Merkel, Adolf, Kriminalistische Abhandlungen, pp. 43 ss; Janka, Karl, Der straf- rechtliche Notstand, p. 36. Hardwig, Weiner, Die Zurechnung, pp. 234 ss. Sobre isso, pormenorizadamente, Etzel, Gerhard, Die systematische Stellung der strafrechtlichen Zurechnungsfihigkeit, pp. 62 ss. Miguel Reale Jinior, Instituigdes, P.G., v. 1, pp. 208-209. Basileu Garcia, Instituigées, I, I, p. 323. Costa ¢ Silva, Comentarios, p. 142; Paulo José da Costa Jr, Comentarios, v. 1, p. 209. 243 Digitalizado com CamScanner a conclusio de que cla constitui um elemento da culpabilidad. Sua natureza de capacidade do sujeito favoreceu que alguns 2 assem anteposta 4 culpabilidade'’ ¢ outros dentro dela’’. Contudo, situa-la num estagio anterior 4 culpabilidade implicaria incoerén- cia, porque semelhante critério, rigorosamente observado, deveria levar a que, como pressuposto da agao, se reconhecesse a capaci- dade psiquica de aco, e num plano anterior a tipicidade subjetiva. a capacidade psiquica de dolo”. Tal construcao hipertrofiaria des- necessariamente 0 capitulo da capacidade psfquica para o delito que, como num corte longitudinal teérico, funciona em todos os estratos analiticos que requisitam contetidos subjetivos. Para evi- tar tal exagero, nao faltou quem tomasse a imputabilidade como capacidade de pena, como problema de punibilidade, dentro ou fora da teoria do delito, segundo seu assentamento topolégico. imputabilidade como seu pressuposto nao parecia coerente: afinal, era perfeitamente claro que o psicético poderia atuar com dolo ou culpa, naio fazendo muito sentido perguntar-se pela imputabilida- de antes de averiguar se houve dolo ou culpa, porque a imputabi- lidade nao constitui um pressuposto necessario desses elementos, particularmente desde um ponto de vista como o de von Liszt, que nao admitia a autodeterminagao. A consequéncia logica dessa concepgao seria excluir a imputabilidade de uma teoria do deli; _ ‘to elaborada com uma culpabilidade que pretendia ser descritiva. 7 Anibal Bruno (Direito Penal, I, 2, p. 49); Frederico Marques (Tratado, II, p. 156); Fragoso (Ligdes, P.G., p. 202); Joao Mestieri (Manual, p. 159); Juarez Cirino dos Santos (Direito Penal, p. 287); Paulo Queiroz (Direito Penal, p. 315); Cezar Biten- court (Tratado, 1, p. 407); Alvaro Mayrink da Costa (Direito Penal, v. 2, p. 1222) Claudio Brandao (Curso, pp. 233 e 247); Fernando Galvao (Direito Penal, PG. 447); Rogério Greco (Curso, p. 386); Angelo Roberto Ilha da Silva (Da Imputabi- lidade Penal, p. 33). Assim Binding, Handbuch, p. 158; Gerland, Heinrich, Kritische Bemerkungen, p. 8; Mayer, M. E., Lehrbuch, pp. 202 ss. © Wiirtenberger, Thomas, em JZ, 1954, pp. 209 ss. 2 Cf. Zaffaroni, em DPC, 1965. 244, ~ Digitalizado com CamScanner Para evitar tal consequéncia, L ‘gruente com s cessiio ao id zt recorreu a uma solugéio incon- idcias ¢ que de certa forma exprimia uma con- smo hegeliano: introduziu, antes da culpabilidade, a imputabilidade como capacidade de motivagdo normal: quem nao havia podido motivar-se normalmente nao podia ingressar no circulo-dos-autores culpaycis, Esta solugéio é proxima do homem livre hegeliano, que funda 0 circulo de possiveis culpaveis numa ‘comunidade jurfdica andloga de pessoas capazes. No esquema po- sitivista de Liszt isto representa uma cunha de madeira estranha. _ Daj que—mais harmoniosamente as ideias do proprio Liszt—tenha__ utabilidade fosse considerada como escusa absolutéria ou causa de exclustio da punibilidade. Comega ‘assim uma corrente positivista alema que decide — como ja am- plamente enunciado no positivismo ferriano — remeter a imputa- bilidade 4 punibilidade, e que influenciaria mesmo os primeiros vagidos neokantistas. Quando Radbruch bi indou ao | positivismo ; elementos ifi0S para OS Novos figurinos que lhe garanti- Tiam @ Sobrevivencia, também procurou ¢ deixar a imputabilidade— na posigao de incapacidade de pena, ou seja, como causa pessoal “de exclusao da punibilidade?!, no que seria mais tarde acompa- nhado | por outros autores”. Critério semelhante adotaria na Ttalia’ advertindo que 0 poder de de escolher também existe nas _ também existe nas _ ‘criangas e em doentes menitais, que ndo s4o meros autématos*. A vinculagao italiana da imputabilidade com a punibilidade™ pro- Cf. Handlungsbegriff, p. 97; também em ZStW, 24, pp. 333 ss. Klee, K., em Deutsches Strafrecht, 1943, pp. 65 ss; posicionamento similar em Baumgarten, A., Aufbau, p. 264; Kantorowicz, em Monatschrift fiir Kriminalpsy- chologie und Strafrechtsreform, pp. 7 € 257 (logo passaria a tomar a imputabilida- de como elemento da culpabilidade, em Tat und Schuld); Galli, em Deutsche JZ, 1907, colunas 1352 ss.; Oppler, em Gerichtssaal, pp. 70 ¢ 387 ss. Antolisei, pp. 479-480. No mesmo sentido, Agudelo Betancur, Nédier (Los Inim- putables..., p. 85). Atualmente, Massimo Donini interroga o tratamento da impu- tabilidade na culpabilidade, ou a criagdo de um dolo e uma culpa inculpaveis para 0s inimputaveis (Teoria del Reato, p. 292), a rigor reinventando o famoso dolo natural de Frank, com base em sua dupla localizagito. Sesso, Rocco (/mputabilita e sistematica del reato, p. 227) argumenta em favor da culpabilidade dos inimputaveis, 2 245 Digitalizado com CamScanner vém da filosofia neo-idealista, especialmente de Giovanni Gentile, dado que da identificagdo entre pensamento ¢ agéo resultava que, salvo total incapacidade de conduta, sempre haveria certo grau de liberdade. Tal premissa conduz A consideragéo da imputabilidade como uma questo alheia ao delito ou posterior 4 culpabilidade,— pois sempre que houver capacidade de agio haverd liberdadee, portanto, nao se poderd excluir a culpabilidade. Por uma trilha filosdfica totalmente (ao menos em principio) oposta, o atual ic alismo e 0 positivismo criminolégico chegaram 4 mesma posicao sistematica da imputabilidade._ = 4, Uma caracteristica do delito que para alguns era um pro- para a maior parte dos contempor4neos um elemento da culpa- bilidade, para nao falar daqueles que a remetiam 4 punibilidade,— ou seja, uma caracteristica do delito que pretendeu instalar-se em a designacao de fantasma errante que lhe atirou Frank. A esta ir- requietude sistematica agrega-se se uma _dificuldade metodoldgica: nao é verdade que os dados que sustentam a imputabilidade sejam naturalisticos em sentido neokantiano. Tais dados sao psicolégi- Cos, psiquiatricos e psicanaliticos, mas € impossivel desconhecer que essas disciplinas implicam um discurs: ‘onto socal apgumentn de due o-dieio peel nie deve i mar partido num deb debate tedrico que Jhe éalheio é valido quando \ Se trata de estabelecer critérios para a qualificacdo tipica de con- ‘dutas médicas, nao porém quando se trata de estabelecer a culpa- bilidade de qual juer pessoa. E absurdo supor que o direito penal garantista e a atica teleolégica funcior ‘edutora_aceitem acriticamente conceitos provindos do mesmo ideolégica_ do perigosismo ou do biologismo, quando nio do racismo, parti- cularmente onde o positivismo fez muitos estragos com sua pro“ ~ fissiio de fé determinista® impedindo discernir entre imputaveis \ 5 Sobre efeitos da polémica acerca do determinismo na imputabilidade, Diaz Palos, Fernando, Teorfa General de la Imputabilidad. 246 Digitalizado com CamScanner ¢ inimputaveis, ¢ onde a psiquiatria filiou-se obstinadamente a_ propostas biologistas ¢ organicistas, ao que convém acrescentar _a total ignordncia da matéria revelada em muitas decisées dos tri- bunais. E evidente que 0 controle social manifestado no discurso dos profissionais da satide também envolve fundamentos etici- zantes ¢ consideragées perigosistas por vezes inextricaveis, que devem ser cuidadosamente depuradas pelo direito penal. A nao ser assim, 0 poder punitivo que o direito penal pretende conter reingressaria em seu discurso como poder punitivo exercido por agéncias médicas. Isto nao significaria cair numa antipsiquiatria radical, por mais tentadora que seja tal queda perante a crueza de certos métodos psiquidtricos manicomiais, mas téo somente reser- var ao direito penal a potestade de depurar o discurso que recebe dos elementos de controle social repressivo que arrasta, isto é, de operar segundo 0 mesmo padréo critico que adota a respeito de seu proprio discurso. E inegavel que o controle psiquidtrico en- cerra riscos similares ou até maiores do que o controle punitivo’®, No hospital Colénia, em Barbacena, fundado no inicio do século XX, morreram, de causas que vo da desnutri¢ao ao eletrocho- que e da sedagao quimica ao frio, sessenta mil brasileiros; quando Franco Basaglia o visitou, em 1979, declarou: “estive hoje num campo de concentragao nazista’””’. 5. Por outro lado, a mesma critica a psiquiatria — especialmen- te a su; \ca0-_de controle social repressivo — ensejou também um du questionament go.fopeo conceile de wnpalabiaa Rae nao se pode ignorar”’. A pessoa psiquiatrizada ¢ tradicionalmente 26 Uma descri¢do dos problemas basicos em Manna Adelmo, L‘imputabilita e i nuo- vi modelli di sanzione. 2) Cf. Arbex, Daniela, Holocausto Brasileiro, p. 207 e passim; sobre 0 caso exemplar de Febrénio Indio do Brasil, Mattos, Virgilio de, Trem de Doido, pp. 29 ss. ‘Uma visdo de conjunto em Basaglia, Franco et al. (orgs.), Psquiatria, antipsiquiatria y orden manicomial; do mesmo et alia (orgs.), Los crimines de la paz; do mesmo, A Instituigo Negada; suas conferéncias brasileiras (1979) em A Psiquiatria Alter- nativa; Pessotti, Isaias, O Século dos Manicémios; Rauter, Cristina, Criminologia Subjetividade no Brasil; Panisset Ornellas, Eleuza, O Paciente Excluido; Machado, Roberto ef al. (orgs.), Danagiio da Norma — Medicina e Constituigo da Psiquiatria 247 Digitalizado com CamScanner excluida ou inferiorizada, Frequentemente dispée ela de menores recursos defensivos do que um condenado, particularmente quan- do sua situagho é tratada por um discurso “é/elar. O psiquiatrizado passa a scr, na visio tutelar, um incapaz juridico, tal como foram os escravos, as mulheres e em grande medida seguem sendo os indios no integrados”’ e as criancas ¢ adolescentes, apesar do di- reito internacional”. Nessa perspectiva 0 conceito de inimputa- bilidade abre espago para uma futela coisificante da pessoa, que mdigées do que um condenado. O agente que é considerado incapaz de culpabilidade nao € escutado, nem the é oferecida, através do processo_e de uma_sangdo penal adequada, — a oportunidade de inserir-se num ritual de reintegracao (ainda ‘que puramente simbélico), ou mesmo dé encontrar alivio para sua culpa real ou inconsciente*'. A partir dessas criticas ensaiaram-se 2 m no Brasil; Freire Costa, Jurandir, Historia da Psiquiatria no Brasil; Birman, Joel, Arquivos do Mal Estar e da Resisténcia; Bercovitz, Rodrigo, La Marginalizacién de los Locos y el Derecho; Genelhii, Ricardo, O Médico e 0 Direito Penal; Ennis, Bru- ce, Prisoners of Psychiatry; Fabricius, Dirk, Folter und unmenschliche Behandlung in Institutionen; Carrara, Sérgio, Crime e Loucura; Castel, Robert, A Ordem Psiqui- atrica; Mattos, Virgilio de, Trem de Doido; Szasz, Thomas, La Fabricacién de la Locura; Almeida Tundis, Silvério et alii (orgs.), Cidadania e Loucura — Politicas de Satide Mental no Brasil; Cooper, David, Siquiatria y antisiquiatria; Dorner, Klaus, ‘Ciudadanos y locos; 0 percurso ibérico da degenerescéncia em Campos Marin, Ri- cardo, et alii (orgs.), Los legales de la Naturaleza. Perante a lei brasileira, os indios se distinguem entre isolados, em vias de integra~ go e integrados (cf. art. 4° da lei n° 6.001, de 19.set.73), Neste ultimo campo observou-se ha décadas que se a infancia se caracteriza no pot sua amoralidade sendo pela auséncia de uma moralidade consolidada, o conceito juridico de imputabilidade nao Ihe seria aplicavel (Moreno, Artemio, Nifiez aban- donada y delicuente, p. 38). Frente ao acionamento de um mecanismo de controle tutelar, destaca-se atualmente que a inimputabilidade como conceito normativo con- vencional conduz a uma despersonalizagio que priva os adolescentes das garantias oferecidas pelo direito penal, em especial aquelas ligadas ao principio da culpabi- lidade (ef. Cantarero, Rocio, Delincuencia juvenil y sociedad en transformacién, p. 129). Cf. ainda Minahim, Maria Auxiliadora, Direito Penal da Emogao; Pastore, ‘Massimo, L’ illusione correzionale; Schéne, Wolfgang, El derecho penal juvenil de Ia Republica Federal de Alemania y su reforma; Fletcher, p. 51. Cf. as dramaticas palavras de Louis Althusser sobre sua condigdo de inimputdvel: “nem morto nem vivo, ainda nao enterrado mas sem obra” (O Futuro Dura Muito 2 248 Digitalizado com CamScanner e conceitos diferentes de inimputabilidade, que tendem a considera- -lanao uma incapacidade e sim uma dissidéncia valorativa grupal ou critério politico”. Desde um marco ideolégico completamente distinto e oposto, também se enunciou recentemente um conceito politico, embora apresentado como normativo pela pretensao de que as ciéncias psicolégicas e sociais em nada poderiam contri- buir para o conceito de culpabilidade e que a inimputabilidade nao seria mais do que a falta de competéncia para questionar a validade da norma*’. Enquanto a primeira proposta, levando em conta 0 poder punitivo psiquiatrico, reconhece carater politico ao limite da imputabilidade, a segunda se fecha em seu normativismo para eximir-se de todo debate com as ciéncias do comportamento; enquanto a primeira as descarta, por repressivas, a segunda parece temé-las por discursivamente contaminantes; enquanto a primeira tenciona tratar o inimputdvel como um cidadao dissidente, a se- gunda dele se ocupara como objeto’. Muito embora a intenciona- lidade construtiva e 0 marco teérico destoem, ambas as propostas desconsideram um dado indispensavel, que é a existéncia da psi- copatologia na realidade do mundo. Isso nos levaria a um beco sem saida, tornando especiosa e sutil a diferenca entre inimputa- “Tempo, p. 29). Agudas observagdes sobre o ambiente manicomial em Lima Barre- to, O Cemitério dos Vivos. No limite, Virgilio de Mattos propde renunciar a inim- putabilidade fundada em sofrimento mental, preconizando que “todos os cidadaios devem ser considerados imputiveis, para fins de julgamento penal, com todas as ¢garantias a ele atinentes” (Crime e Psiquiatria: uma Saida, p. 185 e passim). Sobre 8 possibilidade do delito derivar de um sentimento de culpa, o classico texto de Freud Los delincuentes por sentimento de culpabilidad (Obras Completas, v. 111, pp. 2427 ss.).. Assim Bustos Ramirez, p. 487; também em Bases criticas de un nuevo derecho penal, p. 105; no mesmo sentido Gémez, Orlando, Culpabilidad y inculpabilidad, p. 405. CE. Jakobs, p 631; a reagdo ao inimputivel é associada a prevengio geral por Lackner, Karl, Insanity and Prevention: on linking culpability and prevention in the concept of insanity, p. 895. Criticamente, Selmini, Rossella, em DDDP, 2/94, quem observa uma revitalizagdo do conceito de periculosidade ndo para funda- mentar medidas preventivas seno diretamente punitivas. * Cf. Jakobs, p. 636. 249 Digitalizado com CamScanner bilidade, autoria por imposig&o de consciéncia e condutas cultu- ralmente condicionadas por subculturas ou pelo pertencimento a _ etnias distintas. 6. Talvez numa sociedade futura, mais igualitaria e plural, na qual a psiquiatria nao favorecesse e dissimulasse poder punitive exercido contra-os-pacientes, seria admissivel um conceito poli- tico de imputabilidade que permitisse desloca-la para a punibili- dade, com um sentido completamente distinto daquele que teve no positivismo e no neoidealismo. Contudo, o discurso juridico- -penal (0 direito penal) deve ser construido como instrumento de controle do poder punitivo para uso das agéncias do sistema penal em nossas sociedades, tais como existem e como empregam o po- der punitivo. Por isto, perante a injustiga distributiva permanente (seletividade) do sistema penal, impde-se excluir de seu dmbito aqueles que se encontram no extremo da vulnerabilidade por mo- tivos psicopatoldgicos. Para isto, 0 conceito de imputabilidade, que como todo conceito penalistico é também necessariamente politico, deve ser elaborado observando-se os limites 6nticos im- postos pela psicopatologia como realidade do mundo. O conceito de imputabilidade deve ser construtdo respeitando-se o dado 6nti- co da patologia e das alteragdes ndo patolégicas da compreenséio e do auto-controle, com o imprescindivel cuidado de identificar e depurar elementos punitivos presentes, ostensiva ou clandestina- mente, nos discursos das ciéncias psi e comportamentais. Para tal empreendimento, convém levar em conta que: a) 0 poder punitivo nem é exercido apenas pelas agéncias do sistema penal nem se apresenta sempre de forma manifesta, e constitui indelegavel tare- fa do direito controla-lo, quaisquer que sejam as feig¢des que assu- ma € a pessoa — capaz ou incapaz — sobre quem recaia; b) existem situagdes nas quais as condigdes psiquicas da pessoa, associadas ou no a alguma psicopatologia, tornam absurdo o intento de responsabiliza-la por nao se ter conduzido segundo 0 direito; ¢) tais situagdes sao esclarecidas por conhecimentos provindos das ciéncias psi e comportamentais, nao raro permeados de elemen- 250 Digitalizado com CamScanner tos punitivos, que cabe descartar quando de sua incorporagao ao direito penal; d) é tarefa do direito penal controlar o poder puni- tivo exercido tanto pelas agéncias do sistema penal quanto pelas agéncias do sistema de satide; e) a lei penal ndo ¢ um instrumento simb6lico: embora seja dbvio que,cumpra, entre outras (algumas bem ocultas) também uma funcdo simbdlica, nao se pode exer- cer poder punitivo para simbolizar, violando o respeito 4 pessoa como fim em si mesma e atribuindo uma “cidadania” de cunho publicitario aos pacientes psiquiatricos 4 custa de sua criminaliza- 40; f) os pacientes psiquiatricos devem ser cabalmente escutados pelos juizes, especialmente quando em discussdo sua capacidade juridica; g) por respeitavel que seja o desejo de participar de um ritual de reincorporagio e encontrar escoadouro para a expiacao de sua culpa, real ou inconsciente, tal fungao nao pode ser atribui- da ao sistema penal, rigorosamente inapto para oferecer espago no qual se desenvolvesse uma terapia respeitosa da dignidade. * 7, Em sintese, imputab idade é auséncia de impedimento _psiquico 4 compreensdo da ilicitude oud autodeterminagdo da_ i __conduta segundo tal compreensdo..A imputabilidade inaugura_o | “procedimento de culpabilizagao do agente por seu feito. Assim, 1} “deve ela situar-se sistematicamente no mesmo estrato analitico i semeouest encanta a possibilidade exigivel de cor prensa. da | _ilicitude ¢ a possib ilidade exis vel de autodeterminagio conforme | ao dircito, ou seja, na culpabilidade, i III. Inimputabilidade por imaturidade i Com idéntica redago,_dispdem_a_Constitui¢ao_da-Re-— publica e 0 Codigo-Penal- que-os-menores-de-dezoito-anos_sGo_ lnlmputéveis, suditande se no entanto 4s normas da legislacaa_ “especial (arts. 228 CRe 2 28 CP). A legislacaio especial referida-é- hoje o Estatuto ca_e do Adolescente ~ ECA (lei n° 8.069, “de 13jul.90), na qual também um dispositivo proclama a inimpu- tabilidade dos menores de dezoito anos (art. 104 ECA). O ado- 251 Digitalizado com CamScanner lescente (a “pessoa entre doze ¢ dezoito anos de idade” — art, 2° ECA) que pratique um ato infracional (“conduta descrita como crime ou contravengiio penal” — art. 103 ECA) estaré sujeito, apés 0 devido procedimento (arts. 171 ss. ECA), a uma das medidas s6cio-educativas previstas na lei, entre as quais figuram a pres- tagao de servicos 4 comunidade (também cominada no Cédigo Penal como “pena restritiva de direitos” — art. 43, inc. IV CP), a internagdo em estabelecimento educacional ¢ o tratamento psiqui- Atrico em regime hospitalar (arts. 112, incs. III, VI e VII e 101, inc. V). Sem embargo do avango representado pela recepgao da doutrina da prote¢ao integral, superando o “complexo tutelar”’, a natureza penal das sanges aplicaveis aos adolescentes infrato- res é muito evidente, sendo imperiosa a convocagao de todas as garantias e principios penalisticos — além ¢ em complemento aos ja previstos no ECA — para controle racional do poder punitivo exercido contra. os autores de atos infracionais*. Os “estabeleci- mentos educacionais” onde sao institucionalizados os adolescen- tes infratores em nada diferem essencialmente das carceragens ou penitencidrias nas quais aguardam julgamento ou cumprem pena adultos processados ou condenados. 2. A op¢ao do legislador de 1940 em superar o modelo do codigo anterior, que sé tornava impuniveis as criangas entre 9 e 14 anos “que obrarem sem discernimento” (art. 27, §2°CP 1890), _ Subst \do-o0 por presungio iuris et de it constituiu inegavel aperfeicoamento Ga disciplina juridico-penal da matéria: Os 300 lescentes infratores, como frisou Hungria, “foram postos inteira 35 Designagtio atribulda por Donzelot, Jacques, A Policia das Familias, pp. 91 ss. Sobre a construgao social do “menor” no Brasil, cf. Resende B. Vianna, Adriana de, O Mal que se Advinha — Policia e Menoridade no Rio de Janeiro, 1910-1920 e Torres Londofio, Fernando, A origem do conceito “menor”, em Priore, Mary del, Histéria da Crianga no Brasil, pp. 129 ss. Cf. Morais da Rosa, Alexandre, Introdugao Critica ao Ato Infracional; Shecaira, Sérgio Salomio, Sistema de Garantias ¢ o Direito Penal Juvenil; Batista Sposato, Karyna, O Direito Penal Juvenil. 252 Digitalizado com CamScanner ¢ irrestritamente 4 margem da lei penal”?”, Culminando um lar- go processo histdrico*, uma presungao calcada em critério cro- nolégico (ou biolégico)” converte a imaturidade de criangas ¢ adolescentes em infranqueavel impedimento psiquico 4 compre- ensao da ilicitude e 4 autodeterminagéo da conduta segundo tal compreensiio, pouco importando que, em casos concretos, seja possivel admitir tenha ocorrido aquela compreensao e autodeter- minagéio da conduta. O marco etario escolhido pelos.constituintes— de 1988 (que viabilizou a recep¢ao-do-dispositivo-do.Cédigo Ps nal de 1940, reiterado_na_reforma_da Parte Geral de 1984, ¢ ba-__ lizou 0 dispositivo do ECA), ist “inuitas legislagdes, remete as po! _desenvolvimento cultural ¢ e biolégico. dos j jovens, a seu_processo. de aprendizagem e cializac do; infancia e juventude so constru- s histérico-sociais que assumiram formas muito diferentes, ou— _mesmo nao existiram, segundo a época e a classe social. Trata-se “Portanto de evitar, para nossos adolescentes, os perigos do sistema penal, a estigmatizacAo do processo e a deterioragao do encar- ceramento, cujo fracasso em relagdo aos proclamados objetivos preventivo-especiais é evidenciado pelos assombrosos niveis da reincidéncia penitencidria. Este fundamento politico-criminal dis- pensa 0 argumento, sem divida procedente, dos empecilhos que sempre podem turvar a compreensio de pessoas em formagio acerca da ilicitude ou mesmo de suas dificuldades em recalcar im- pulsos, como aventado por Roxin*'. * Comentarios, v. I, tI, p. 359, nota 19-A. Sobre ele, Alimena, Bernardino, I Limiti e i Modificatori dell” Imputabilita, v. Ul, pp. 297 ss,; Tobias Barreto, Menores e Loucos em Direito Criminal, pp. 19 ss.; Maria Auxiliadora Minahim, Dircito Penal da Emogéo, pp. 18 ss. Alfonso Reyes Echandia, La Imputabilidad, pp. 113 ss; Maria Auxiliadora Mi- nahim, op. cit., p. 101. Sobre isso, Ariés, Philippe, Histéria Social da Crianga e da Familia; Levi, Giovan- ni e Schmitt, Jean-Claude (orgs.), Histéria dos Jovens. Auma aptidio ou poder de recalque (Hemmungsvermdgen) se refere Roxin (Sira- frecht, 4 ed., v.I, p. 913 [§ 20, 53)); a um “poder de controle dos instintos, impul- 08 ou emogdes” se refere Juarez Cirino dos Santos (Direito Penal, p. 290). 253 Digitalizado com CamScanner ir da “ideia completamente duvidosa de que a capacidade ps quica & adquirida hoje mais cedo do que em outros tempos”? sucedem-se_ propostas, oriundas de campos politicos conservadores ¢ intensamente di mizadas pela midia, visando reduzir 0 marco etério constitucional de dezoito “anos, Motivadas quase sempre por algum epis6dio criminal violento com a participagao de adolescente(s), e portanto carregadas de emogao € pouco re- flexivas, tais campanhas ignoram 0 verdadeiro fundamento politico-criminal da inimputabilidade por imaturidade ¢ interpelam a presungdo legal como se de presungdo nao se tratasse; caso fosse juridicamente possivel atendé-las, cair-se-ia num circulo vicioso, porque pouco tempo apés 0 rebaixamento do marco etirio para dezesseis anos, poder-se-ia dizer do adolescente de quin- ze anos 0 mesmo que as campanhas dizem hoje daquele de dezessete, ¢ as- sim por diante. Ocorre que 0 tratamento constitucional da matéria outorgou a inimputabilidade por imaturidade aos dezoito_anos, como observada-por__ Sirotheau Corréa, a natureza de “direito fundamental de um certo grupo de individuos que fazem jus a um tratamento diferenciado em razio de especiais @ transitrias condigées de existéncia”®. Como a Constituigao da Repiblica, comprometida com 0 principio da irreversibilidade®, proibe seja objeto de deliberagio qualquer emenda consfitucional “tendente a abolir direitos € ga~ Tantias individuais” (art. 60, § 4°, inc, IV CR), estamos diante de uma cléusula © Assim se exprimiu Ventas Sastre, R., La Minoria de Edad Penal, p. 30.No mesmo sentido, Nilo Batista, Pena piblica em tempos de privatizagao, em Edson Passetti (org.), Curso Livre de Abolicionismo Penal, pp. 109 ss. (incisivamente, p. 115). Cardter Fundamental da Inimputabilidade na Constituigio, p. 250. Desde que a Constituigdo incorporou a inimputabilidade por imaturidade como direito funda- mental, estd revogado o art. 50 CPM, que consentia na responsabilizagio dos ado- Iescentes maiores de 16 anos que revelassem “suficiente desenvolvimento psiqui- co”; neste sentido René Dotti, Curso, p. 534; Ilha da Silva, Angelo Roberto, Da Inimputabilidade Penal, p. 69; Cesar de Assis, Jorge, Comentitios ao Cédigo Penal Militar, Curitiba, 2007, ed. Jurud, p. 139; Romeiro, Jorge Alberto, Curso de Direito Penal Militar, S, Paulo, 1994, ed. Saraiva, p. 152; Souza Cruz, Jone e Amin Miguel, Claudio, Blementos de Direito Penal Militar, Rio, 2005, ed. L,Iutis, p. 110. 0 princfpio da irreversibilidade dos direitos humanos acentua a condigio de cléu- sula pétrea das normas constitucionais que os enunciam” (Luiz Femando Coelho, Helénia e Devilia, p. 186). d Digitalizado com CamScanner pétrea®’. E irrelevante a circunstancia de nao inserir-se esse direito individual ~ entre os ii incisos do artigo 5° CR: nilo é a topologia, e sim a estrutura ¢ 0 sentido ~ do emunciado normativo que Ihe confere o cardter de garantia fundamental, e uma boa prova disto é que existem incisos do artigo 5° CR que nao contém nenhuma garantia e, até pelo contririo, prevém graves restrigdes a direitos (cf. ines, XLI, XLII, XLII, XLIV). IV. Inimputabilidade e semi-imputabilidade por doenga men- tal ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado 1. Segundo a lei brasileira, “é isento de pena o agente que, por doenga mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da agdo ou da omissio, inteiramente incapaz de entender o cardter do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento” (art. 26 CP). Aperfeigoada pela reforma da Parte Geral de 1984 com a substituigZ0 dos termos “carater criminoso do fato” por “cardter ilicito do fato”, a formula do legislador de 1940 inspirara-se no cédigo sui¢o, por seu turno influenciado pelo projeto austriaco de 1912“. O emprego da ex- pressio “doenca mental” foi na ocasiao objeto de muitas criticas, partidas de médicos legistas que preferiam “aliena¢ao mental” ou mesmo “psicopatia”*” e de juristas que ja ent&io observavam ser a opeao do legislador muito restritiva’®. Na concep¢iio predomi- nante em 1940, a supressdo da capacidade de compreensio da ilicitude ou de autodeterminagao segundo tal compreensao deve- 4 Neste sentido, também René Dotti, Curso, p. 532 e Alvaro Mayrink da Costa, Direito Penal, v. 2, p. 1.229. “Cf Hungria, Comentérios, I, Il, pp. 329 ss. “| Cf. Favero, Flaminio, Medicina Legal, S. Paulo, 1973, ed. Martins, v. 2%, p. 444, Leonidio Ribeiro afirmava que “a um conceito puramente médico, como o da doenga mental, seria preferivel um conceito médico-forense, como o de aliena- 40 mental, capaz de abranger todos os estados mentais, mérbidos ou nfo, que se acompanham, ao tempo da ago, de incapacidade para entender o cariter cri- minoso do fato ou de determinar-se de acordo com este entendimento” (Ribeiro, Leonidio, Criminologia, Rio, 1957, ed. Sul Americana, v. I, p. 527). Galdino Siqueira lamentava a exclusiio de “doenga fisica com efeito perturbador da psique, como p. ex. 0 delitio do tifo” (Tratado, 1947, v. I, p. 441). 255 Digitalizado com CamScanner ria estar “indeclinavelmente condicionada a certas causas biold- gicas; doenga mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado”™”, Perante tal concepgio, qualquer psicopatia que ndo fosse limpidamente associdvel a um distirbio organico, biolégico, _ nao constituiria propriamente doenga mental Contudo, para que se reconhega a inimputabilidade nao basta — como nas legislagbes inspiradas no no Code napoleénico — a doenga mental, 0 dado biolé- yen nha provindo dela a cabal incapacidade do sujeito de compreender a ilicitude de sua conduta ou de autodeter- sninarese semua a comatestat evitando-a, que constituiria 0. ado psicoldgico. Por isso, afir aExposicao de Motivos (item — 18), € quase toda a doutrina o referendou, que haviamos adotad “na conceituagao da imputabilidade, um crifério biopsicoldgico. =— So 2. Sempre prevaleceu entre os penalistas brasileiros a opiniao de que a expressiio legal “doenga mental” deveria ser interpreta- da em sentido amplo®. Nao é simples definir 0 que é patolégico em psiquiatria, mas é inquestionavel que restringi-lo unicamente a uma alienagdo mental sobre base biolégica cujos efeitos se produ- zem apenas na esfera intelectual conduziria 4 declaragao automa- tica da imputabilidade de todos os neuréticos, independentemente da gravidade de seu transtorno, do tratamento de que necessitem e do grau de sofrimento que suportem. A concepgao restritiva pro- vém do pensamento positivista que definia a doenga mental como alienag&o sobre base bioldgica, reconhecivel fisica ou organica- mente*!. Nesta linha, o signo da alienagao seria exclusivamente a © Assim Hungria, op. cit,, p. 322. %® Costa e Silva, 1967, p. 144; Magalhaes Noronha, Direito Penal, v. 1, p. 163; Paulo Queiroz, Direito Penal, p. 325; Paulo Cesar Busato, Direito Penal, PG., p. 562; Joao Mestieri, Manual, pp. 170 ¢ 172; Angelo Roberto Ilha da Silva, Da Inimpu- tabilidade Penal, cit., p. 49. Sob visivel influéncia de Nerio Rojas (Medicina Legal, p. 387), exigem um “trans- torno intelectual global” Hilirio Veiga de Carvalho e Marco Segre (Compéndio de Medicina Legal, S, Paulo, 1978, ed, Saraiva, p. 32), Gerardo Vasconcelos (Ligdes de Medicina Legal, Rio, 1976, ed. Forense, p. 156) ¢ Heber Soares Vargas (Manu- al de Psiquiatria Forense, Rio, 1990, ed, F. Bastos, pp. 197-198). 256 Digitalizado com CamScanner perda da razao de carater instrumental. Acertadamente sustentou- -se que um neurético, um alcodlatra ou um psicopata profundo tém tanto direito a serem considerados doentes mentais quanto um delirante, um maniaco ou um esquizofrénico, cabendo-lhes 0 mesmo género de tratamento e a mesma assisténcia especializa- da®, Seria totalmente arbitrario restringir a doenga mental ao 4m- bito do aspecto intelectual da atividade psiquica, descartando os transtornos enraizados na emotividade e na afetividade, por mais significativos que sejam, sem contar que tal disjun¢iio é discutivel e muitas vezes irrealizavel. Mesmo psiquiatras mais tradicionalis- tas entendem hoje a psiquiatria como ramo da medicina que tem por objeto a patologia da vida de relagao ao nivel da integragaio que assegura a autonomia e adaptagiio do humano as condigdes de sua existéncia®. Além disso, as teorias organico-mecanicistas da doenga mental foram seriamente questionadas pelo advento de teorias psicodinamicas do inconsciente patégeno e por teorias sociogenéticas™. Talvez, numa reforma progressista de nossa le- gislagao penal, a expresso doenga mental seja substituida com vantagem por ¢ranstorno mental. cepsao alienista de base bioldgica esquecem que a doenga mental s6 resulta em inimputabilidade quando impedir que se possa exigir do sujcito a compreensao da ilicitude de sua conduta ou a autodeterminacio segundo tal compreensiio, 0 valorativo, indispensdvel para 0 juizo de culpabilidade, estaria a rigor exclui- do pela predominancia biolégica da doenca mental; assim, ante o diagndstico pericial, tocaria ao juiz apenas referenda-lo (declarando a imputabilidade ou a inimputabilidade). J se disse que tal juiz seria um “conviva de pedra” no pro- 3% Cabello, Vicente, El concepto de alienacin mental, p. 1197; também em Psiquia- iria forense en el derecho penal, I, p. 146. 3 Henry Ey—P. Bemard — Ch. Brisset, Tratado de Psiquiatria, p. 59. * Henry Ey etal., op. cit., pp. 61 ss; Jaspers, Karl, Psicopatologia Geral (trad. S.P, Aarzio Reis, Rio, 1973, ed. Atheneu); Quiroz Cuarén, Alfonso, Medicina Forense, p. 662. 287 Digitalizado com CamScanner , cesso*, Ao contritio, a declaragiio de inimputabilidade demanda claramente a valoragiio juridica da doenca mental (em sentido amplo) ou do desenvolvimento mental incompleto ou retardado referida ao contetido injusto do fato concreto, Reside af um componente juridico-valorativo através do qual é avaliada a ap- tidao da doenga mental (em sentido amplo) ou do desenvolvimento mental in- completo ou retardado para suprimir a capacidade de compreensio da ilicitude ou da autodeterminagaio segundo tal compreensaio*. Como foi dito com toda a clareza, quando a psiquiatria duvida é a valoragao psicolégica que decide’, sendo definitivamente determinante para o juizo juridico da (in)imputabilidade. Por isso costuma-se frisar que a formula legal responde a um critério psiquico- -normativo®, ja que ela remete as limitagdes psiquicas do sujeito submetidas no entanto a uma valoragao juridica®. Nao se trata de uma questo insignificante, mas de fundamental transcendéncia tedrica e pratica: a lei nao classifica os seres —fiumanos em loucos de competéncia médica ¢ licidos de competéncia judicial, mas sim em pessoas as quais no momento do fato pode exigir-se — ou no —a conduta conforme ao direito. Com isto, fica claro que a imputabilidade penal _constituium conceito juridico,.cujavaloragdo corresponde unicamente ao juiz, a quem o perito apenas ilustra com os dados de seu saber®, Kurt Shneider pretendeu que ao perito tocaria a valoragaio (Die Beurteilung der Zurechnungsftihigkeit), sendo replicado por Emnst Seelig (em Fest. f: Mezger, pp. 213 ss). A expresso “conviva de pedra” foi usada por Jorge Eduardo Coll e Nel- son Hungria (Comentarios, v. I, t. IL, p. 331). No Manual Diagnéstico ¢ Estatistico de Transtornos Mentais da American Psychiatrie Association (trad. M.I.C. Nascimento et ai., P. Alegre, 2014, ed. Art- med) consta uma adverténcia sobre sua utilizagao forense, na qual se observa que “um diagnéstico nfo traz em si quaisquer implicages necessérias com relagio (..) ao grau de controle do (paciente) sobre comportamentos que podem estat associados ao transtorno”, bem como que “o diagnéstico, por si s6, nao indica que a pessoa necessariamente é ou foi incapaz de controlar seu comportamento em determinado momento” (p. 25). Cabello, Vicente, Psiquiatria forense..., cit. , p. 124, 5 Cf. Jescheck-Weigend, p. 437; entre nds, Paulo Queiroz, Direito Penal, p. 324. Observam Bandini, Tullio - Lagazzi, Marco que desde uma perspectiva compa- rada tanto 0 método psicopatolégico quanto o normativo puro estdo plenamente refutados (Questioni sulla imputabilita, p. 54). ® Frias Caballero, Jorge, Imputabilidad Penal, pp. 127 ss.; Cabello, Vicente, op. cit,, pp. 73-74; Hungria, Nelson, Comentarios, v. I, t. H, p. 331; Fragoso, Heleno, 258 Digitalizado com CamScanner 4. Ocorreu com a idéia de doenga mental um fendmeno em certo sentido similar ao que se passou com 0 conceito de delito. A seguranga exibida pelo positivismo na configuragao de uma dano- sidade social, empiricamente demonstravel, do crime era andloga as pretensdes de uma psiquiatria que considerava 0 paciente como uma maquina decomposta. As teorias das localizagdes cerebrais do século XIX ¢ a fisiopatologia delas oriundas constituiram pro- fissiio de fé do saber psiquiatrico da época. O posterior avango da propria neurologia colocou em cheque as explicagGes das patolo- gias mentais através daquela unica via. Por isso, a fronteira entre o normal e o patoldgico perdeu ao longo do século XX os marcos de signo estritamente orgénico", ensaiando-se 0 caminho psico- dindmico da psicandlise que, a partir de Freud, apéds aprofundar os dilemas da neurologia da época, langou-se a investigagao das patologias do inconsciente. No paralelo desenvolvimento da so- ciologia tampouco passou desapercebida a importancia de fatores sociais na etiologia de doengas mentais, o que atualmente se reco- nhece como necessidade de sintese ou de consideragado simbidti- ca da problematica do portador de sofrimento mental. Chegou-se mesmo 4 negagao da psiquiatria, tomada como discurso da mo- dernidade que tende a segregar ou recondicionar individuos dissi- dentes de uma pretensa sociedade racionalista®. Por muito correto que seja assinalar as origens comuns da prisio e do manicémio como instituigdes ortopédicas destinadas a impor conjuntamente Ligdes, P.G., p. 206; Carbonell Mateu, J.C. - Gomez Colomer, J.L. - Mengual i Lull, J., Enfermedad mental y delito, p. 45. CE. Canguilhem, Georges, O Normal ¢ 0 Patolégico; sobre ele, Elisabeth Roudi- nesco, Filésofos na Tormenta, pp. 13 ss. © Foucault, Michel, Histéria da Loucura; do mesmo, Vigiar e Punir e Eu, Pierre Ri- viére, que degolei minha mae, minha irma e meu irmao...; Basaglia, Franco et alii, Los crimines de la paz; Machado, Roberto et alii, Danagdo da Norma: Medicina ¢ Constituigao da Psiquiatria no Brasil; Freire Costa, Jurandir, Historia da Psi- quiatria no Brasil; Birman, Joel, Arquivos do Mal-estar ¢ da Resisténcia; Rauter, Cristina, Criminologia e Subjetividade no Brasil; Genelhii, Ricardo, O Médico © Direito Penal, v, I; Fabricius, Dirk, Folter und unmenschliche Behandlung in Institutionem; Bercovitz, Rodrigo, La Marginalizacién de los Locos y el Derecho. 259 Digitalizado com CamScanner novas estratégias de socializagao, que jd nao se sustentariam no puro castigo corporal para o delinquente ou no encarceramento hospitalar para 0 louco®, o direito penal nao pode renunciar a dis- tingéio entre o doente mental e 0 sao, quando se trata de determinar a imputabilidade, As novas dimens6es assumidas pelas patologias psiquicas atualmente™ tornam imprescindivel a referéncia ao re- quisito valorativo da formula da inimputabilidade, a ponto de, em posigdo diametralmente oposta, postular-se desde 0 campo médi- co a supressdo da referéncia psiquidtrica. 5._Aqueles que ensaiaram elaborar um conceito juridico de doenga mental propiciaram aquilo ques € conhecido como bipola-_— dade do cor conceito-de-doenca mental”, chegando-se a sustentar que 0 conceito juridico seria mais abrangente que o médico® ou que as verdadeiras enfermidades mentais seriam apenas as psi- coses endégenas”. A expressio deméncia, empregada pelo Code_ Napoleon, levou-a-distingaio_entre deméncia em sentido psiqui-_ Atrico, ou_seja,-a-deterioracao_progressiva e irreversivel do psi- quismo com destruicdo do tecido nervoso, _¢ deméncia em ‘sentido juridico, como sinénimo. de.alienagao-mental_e de transtornos da consciéncia de andloga entidade. Tal bipolaridade da deméncia__ ‘encontra-se.em-todos os _cédigos influenciados pela tradigao fran-— cesa,.que dela se socorrem para evitar um absurdo estreitamento Tesar, Ottokar, Die symptomatische Bedeutung des verbrecherischen Verhaltens, p.229. Castel, Robert, A Ordem Psiquiitrica: a Idade de Ouro do Alienismo; também De la peligrosidad al riesgo (pp. 219 ss.), onde adverte que por exigéncias de carter econdmico se produz 0 deslocamento da idéia de sujeito perigoso para 0 fator de risco, o que resulta em nova estratégia de gestio da populacao (uma or- dem pés-disciplinar). Assim, para além de apartar os pacientes do corpo social ou reintegré-los, tratar-se-ia antes de atribuir destinos diferentes aos individuos em fiungdo de suas aptidées para a competitividade e a rentabilidade, o que conduz a uma sociedade dual (p. 241). Sobre isto, Rodriguez Devesa, Los delincuentes mentalmente anormales, pp. 521 ss. % Jescheck-Weigend, p, 442, O problema foi resolvido pelo CP alemao vigente com a referéncia a “outras graves anomalias psiquicas” (§ 20) Rudolphi, p. 157. a 260 Digitalizado com CamScanner do Ambito da inimputabilidade®, Para o dircito penal brasileiro, essa bipolaridade é dispensavel, desde que a cldusula legal doenga mental seja, como preconiza a doutrina, interpretada em sentido amplo, desatrelada do biolégico, entendido como limitagao ao que for organicamente reconhecivel. a 6. Ao lado da doenga mental, encontramos como causa de inimputabilidade 0 desenvolvimento mental incompleto ou retar- dado, sempre que em decorréncia dele o sujeito, no momento da ago ou da omissao, for inteiramente incapaz de entender o card- ter ilicito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendi- mento (art. 26 CP). Aqui estamos no campo do que hoje é conhe- cido por “deficiéncia mental”® ou “deficiéncia intelectual’”. A mais comum das deficiéncias mentais ¢ a oligofrenia, cujo concei- to difundiu-se a partir da escola alema — especialmente de Kraepe- lin — junto a outros, como a hipofrenia ou a frenastenia da escola italiana. Embora a oligofrenia sempre exprima um desenvolvi- mento mental incompleto da inteligéncia, as distintas intensida- des nas quais se manifesta implicam progndsticos ¢ tratamentos diferentes. Em outros tempos acreditou-se que a oligofrenia tinha origem puramente organica, mas atualmente aos antecedentes he- reditarios e congénitos associam-se fatores psicossociais como a miséria que, quando estrutural, pode ensejar deficiéncias de base organica provocadas na maioria dos casos por desnutri¢do infantil e por dissociacées afetivas e culturais impostas pela exclus&o so- cial. A presenga de déficits intelectuais ¢ adaptativos no periodo de desenvolvimento acarreta um retardamento mental, como ocorre com criangas que sofrem de cegueira ou surdez quando carecem de meios para uma educagao adequada’'. Também a caréncia afe- @ Rolland de Villargues, M., Les Codes Criminels, p. 604. © Nos Estados Unidos, a lei federal 111-256, chamada Rosa’ Law, substituiu a ex- pressiio “retardado mental” por “deficiéncia mental” (cf. Manual Diagndstico e Estatistico de Transtornos Mentais, cit., p. 33). 7 Manual Diagnéstico, ibidem. Cf. Zac, Joel, cap. I. 261 4 Digitalizado com CamScanner tiva pode produzir na crianga uma deficiéncia mental, como se passa na chamada sindrome de hospitalismo, que designa o fe- némeno de criangas privadas muito cedo do afeto materno”. Os casos paradigmaticos se apresentam nas mais radicais hipdteses de privagio de comunicagio e contacto humano, como o menino selvagem de Aveyron”, os “meninos-lobos”” ou o desventurado Kaspar Hauser”. 7. As situagdes menos estudadas na literatura penalistica correspondem as deficiéncias mentais leves, que na terminologia médica tradicional se chamam debilidade mental, a despeito do elevado percentual (ha quem fale em 85%) de deficientes encai- xaveis neste nivel. Embora haja muitas opinides no sentido de que esta oligofrenia superficial nao determina necessariamente plena incapacidade de culpabilidade”, resolvendo-se geralmente como semi-imputabilidade (art. 26, par. in. CP) ou mesmo como plena imputabilidade, sera sempre mais recomendavel nao gene- ralizar solugdes e sim mergulhar nos casos concretos. Como ja se observou, os débeis mentais ou “deficientes leves constituem um grande problema pericial” porque através de suas incipientes habilidades “dao aos menos avisados a impressao de conhecerem o valor de seus atos e sua capacidade de (auto)determinagio””. E ™ Sobre isso, Coriat, Lydia F., Carencias infantiles y deficiencia mental, em Enc. de Psiquiatria, p. 114; Spitz, René, El primer afio de vida del nifio; Golfarb, B. William, Consecuencias emocionales e intelectuales de la privacién psicolégica en la inféncia, Spitz introduziu a expressio “depresstio anaclitica” para designar © quadro que apresenta a crianga por falta do afeto maternal. Sobre os efeitos da institucionalizagao, Hepp, Osvaldo T., La internacién de menores y los problemas sociales. Cf. Giddens, Anthony, Sociologia, pp. 52.58. ™ Informagdo e bibliografia em Robert M. Maclver ~ Charles H. Page, Sociologia, pp. 45-46. 7% Cf. Feuerbach, Kaspar Hauser; A. Graf zu Dohna, Estructura, p. 68. Stanislav Krynski, Deficiencia mental, em Enc. de Psiquiatria, pp. 107 ss; Leyrie, Jacques, Manuel de Psychiatrie Légale, Paris, 1977, ed. J. Vrin, p. 56; Chalub, Miguel, Introdugdo a Psicopatologia Forense, Rio, 1981, ed. Forense, p. 104. 7 Soares Vargas, Heber, Manual de Psiquiatria Forense, cit., p. 319. 262 Digitalizado com CamScanner

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