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2 FUNDAMENTOS E PRINCIPIOS DA PESQUISA SOCIAL INTERPRETATIVA Nota preliminar. Em um breve exame das varias abordagens da pes- quisa social interpretativa, encontraremos grandes diferencas no que diz respeito & metodologia e aos métodos aplicados. A seguir nos concentra- remos, entretanto, naquilo que elas tém em comum. Essas abordagens compartilham, a principio, a ideia de que individuos agem com base em suas interpretagées da realidade social, a qual, por sua vez, 6 continuamente produzida na interagao, mas de acordo com determinadas regras. Como mostra Christa Hoffmann-Riem (1980), entre outros, essa ideia une dois principios fundamentais da pesquisa social interpretativa: o principio da comunicagao, que afirma ser a comunicagao cotidiana orientada por um sistema de regras, e o principio da abertura, segundo o qual “a estruturagao tedrica do objeto de pesquisa deve ser adiada até que ocorra a estrutura- cao do objeto de pesquisa pelo sujeito pesquisado” (p. 346). A principio, isso significa evitar a geracao e a coleta de dados a partir de hipsteses. 2.1 0 MUNDO SOCIAL INTERPRETADO Enquanto a ciéncia natural tem como objeto de andlise um mundo de objetos neutros em termos de sentido e nao estruturados de acordo com relevancias, o cientista social se volta para um mundo desde sempre inter- pretado. Essa diferenca entre os dominios especificos a cada uma dessas ciéncias e as implicagdes metodolégicas delas derivadas foram muito bem analisadas pelo sociélogo de orientacao fenomenolégica Alfred Schiitz, co- nhecido por seus trabalhos de sociologia do conhecimento. Em seu artigo publicado pri- meiramente em inglés no ano de 1953, Schittz afirma que o cientista social “Senso comum e interpretagao cientifica da agao humana’ A tradugao alema foi publicada em 1971 49 PESQUISA SOCIAL INTERPRETATIVA: UMA INT oouc se depara com um mundo ordenado e interpretado em correspondéncia a estruturas de relevancia préprias aos individuos que nele vivem: Nas diferentes construgdes da realidade cotidiana, eles (os individuos) ja contam com esse mundo preordenado e pré-in- terpretado, e sao objetos ideais desse tipo que determinam suas formas de comportamento, definem os objetivos de suas agdes € prescrevem 0s meios para a realizac&o dos mesmos - em suma: eles auxiliam as pessoas em seu mundo circundante natural e sociocultural a encontrar seus meios de vida e a se familiarizar com esse mundo (SCHUTZ 1971a, p. 6) A partir dessa diferenciagao, Schiitz desenvolve a ideia de que cons- trucdes préprias & sociologia tém como base construcées cotidianas, e que objetos ideais das ciéncias sociais devem ser compativeis com aqueles formados cotidianamente pelos individuos. Ele fala, nesse contexto, de construcées de primeiro e de segundo graus. De acordo com essa perspectiva, nos, cientistas sociais, temos como tarefa descobrir 0 modo com que os agentes do cotidiano constroem sua realidade, o modo com que vivenciam e interpretam esse mundo e quais métodos cotidianos de comunicagao aplicam. A constituigao da reali- dade social ocorre em processos de interagao, esses independentes da forma com que os agentes interpretam a situacdo. Essas interpretacées, todavia, nao tém carater arbitrério, tampouco se encontram baseadas em processos psiquicos individuais igualmente “isolados”; elas tém por fundamento, antes, estoques de conhecimento coletivamente comparti Ihados - internalizados no curso da socializacao -, constituidos também por regras de interagao e de ago e por suas diversas - de acordo com a situagao biografica - formas de aplicagao e interpretagao em contextos de ac&o concretos. Dito de outro modo: em suas interpretacées, em suas atribuigées de sentido, o individuo recorre a estoques de conhecimento coletivos, cujo entendimento varia segundo experiéncias de vida e que implicam, sobretudo, aplicacao criativa, reflexiva, na situagao concreta de agio. Nesse ato de aplicagao e de orientagao mitua do agente surge sempre algo de novo e de inesperado. Como frisado por Norbert Schréer (1994, p. 18), nessa énfase estruturalista de um principio importante da sociologia do conhecimento - tal como desenvolvida por Peter L. Berger e Thomas Luckmann na tradigao schittziana e na do pragmatismo da Escola de Chicago - “o sujeito nao esta, de forma alguma, [...] alheio”. 50 GABRIELE ROSENTHAL Com 0 conceito de “definicdo subjetiva da situagao” de William Isaac Thomas - expoente da Escola de Chicago brevemente apresentado no ca- pitulo anterior -, também foi objeto dessa discussao do método a nogao da “definicdo subjetiva de situacao”. A hipétese tratada por William Isaac e por Dorothy Swaine Thomas (1928, p. 572) viria a se tornar um dos teoremas mais importantes da pesquisa social interpretativa: “sempre que uma situa- cao for definida pelo individuo como real, ela sera, em suas consequéncias, real”, Entretanto, isso nao significa afirmar que as consequéncias das nossas agGes sejam antecipadas de acordo com a definicao da situacao. Imaginemos © seguinte cenario: viajo em um trem, no assento a minha frente viaja uma senhora. Defino essa viagem de trem como uma possibilidade de ler meu jornal sem incdmodo, ¢ nao como uma situagao de didlogo com outra pessoa. Retiro 0 jornal da minha pasta, acdo que, por sua vez, motiva a senhora a se dirigir a mim. Ela me pergunta por qual razao leio esse jornal, se hd no mercado jornais melhores. A senhora “define” o jornal que leio como opor- tunidade para dar inicio a uma comunicagao, e essa definigao situacional é a “consequéncia real ou verdadeira” da minha definic&o da situacao. A definigao da situagao, porém, nao é arbitraria, e 0 agente nao pode modificar a configuragao da situacao apenas por sua definicéo. Como afir- mam os socidlogos de Bielefeld (1976, p. 98): “O agente, caso nao queira correr 0 risco de nao aleangar o objetivo da agao, precisa planejar seus atos levando em conta, antes, os diferentes componentes da situacao - como a presenca e a expectativa de outros agentes, a desigualdade de poder entre eles, recursos materiais ¢ limitagées normativas a possibilidade do agir”. Posso, por exemplo, definir uma conversa com meu chefe sobre um pedido de férias no periodo do ano com trabalho mais intenso como uma conversa amigavel entre colegas, compreendé-la de forma mais ou menos implicita como tal e até mesmo me comportar em adequagio a essa ideia, perguntando ao meu superior sobre a itltima viagem que fez. Porém, esse comportamento pode ser interpretado por meu interlocutor como trans- gressao de limites. Enquanto chefe, ele tem o poder de definir a situacao de outra forma e fazer valer essa sua definigao. O teorema de Thomas, no que diz respeito a ideia da limitagao da liberdade de escolha individual e da capacidade de realiza¢ao do sujeito agente, foi criticamente discutido por diversos autores, entre eles Erving Goffman (1977), que, com seus conceitos de “frame” e “framing”, ou “en- quadramento” e “enquadre”, deu uma forma estruturalista ao problema. Goffman é enfatico: de fato, os atores definem a situagao, mas “em geral 51 PESQUISA SOCIAL INTERPRETATIVA: UMA INT oouc no as criam; em geral apenas notam o que a situacio, para eles, pode vir a ser, e comportam-se em adequacio a essa ideia” (GOFFMAN, 1977, p. 9). Sempre que entramos em alguma interacdo, a primeira questo com a qual nos deparamos é “o que ocorre aqui?” (p. 16). Na tentativa de responder a essa pergunta e de escolher e definir a ordenagao do agir, recorremos a um sistema de regras. Por exemplo, se noto, durante aquela viagem de trem, ser necessario sinalizar mais claramente a senhora sobre minha intengfo de ler 0 jornal, posso me mostrar estar pouco interessada na conversa evitando contato visual, direcionando meu olhar para a folha de jornal, mas também de forma paralinguistica (com “uhm” e “anhas”). Na maioria das vezes, tais processos, acées ou pequenas estratégias séo desenvolvidos e aplicados de forma mais ou menos automatica, sem pla- nejamento consciente. Além disso, o agente, como afirma Goffman (p. 31), “nao esta, na maioria das vezes, consciente da forma com que o recorte esta organizado, e, caso questionado, tampouco consegue descrevé-lo integralmente, mesmo que apenas de forma aproximada, embora isso no o impeca de aplicd-lo com alguma facilidade”. Somos conscientes de uma variedade de regras (por exemplo, para dar fim a conversas) que configuram, entretanto, em grande parte, saber implicito. Rotineiras, es- sas regras sao objeto de aplicacao nao planejada explicitamente. Porém, sempre que surge uma crise no interior da interacao, levantamos a questao explicitamente: “o que esta acontecendo aqui afinal?” ou “até que ponto minha defini¢ao de situag’o nao esta condizendo com a do outro?” Caso meu chefe, sentindo-se insultado, rejeite meu pedido de férias - enquanto que eu, de inicio, colocando-me em seu lugar, diria no haver razio para que ele nao se alegrasse comigo por minha viagem para a Turquia -, isso vai me obrigar a refletir sobre meu comportamento e minha definicao da situacao, a enxergar nesse contexto, ainda que contra minha vontade, uma conversa antes com um superior do que com um amigo. Além disso, talvez seja apenas nessa situacao de crise que eu acabe tomando consciéncia do fato de ter definido a situacao como uma conversa, de inicio, entre amigos, e de ter buscado me comportar de maneira correspondente a ela. Assim, podemos partir do principio de que, em geral, a percepcao daquilo que, de acordo com Goffman, “a situacao pode ser para nés” ocorre no interior da ago. Aqui é possivel falar de uma produgio ativa, pratica, da definicéo situacional ou do enquadramento, na qual nao apenas a definigao determi- naa situacdo, mas, antes, a primeira seja, do contrario, da mesma forma determinada pela acao enquanto processo. 52 GABRIELE ROSENTHAL Também de acordo com Goffman, nao se trata simplesmente da atua- lizagao de enquadramentos estabelecidos, mas, sim, de que cada desen- volvimento pragmatico da situacao acaba por dar origem a modificacées, novidades e variabilidades. A defini¢ao da situagao nao é nada de constante; antes, ela esta sujeita, ao longo do processo de interac’o, a pequenas ou, as vezes, até mesmo drasticas transformagées. Na coordenacdo mitua entre nossas agées e as acées alheias, ocorrem modificacées no recorte, na situagao definida. E possivel, por exemplo, que a senhora no trem e eu cheguemos a uma definicao de situacao compartilhada: ler e, de vez em quando, trocar algumas palavras. Também pode acontecer de a senhora comegar a contar algo de interessante para mim enquanto cientista so- cial - como algo que ela tenha vivido durante a Segunda Guerra Mundial -, algo que me leve a redefinir a situacdo, agora como uma espécie de entrevista com fins cientificos. Essa mudanca de perspectiva me leva agora a recorrer a outras regras, totalmente diferentes daquelas que eu aplicava na tentativa de evitar a conversa. A partir desse momento, busco contato visual, conduzo a conversa com questées: “e entao, o que acon- teceu depois?”. Enquanto pesquisadora, hé anos realizando entrevista e ensinando formas de conduzi-las, consciente dessas regras, para mim, 6, a principio, muito mais facil estimular do que evitar uma conversa no trem. Em alguns momentos, aplico tais regras de forma automatica, mesmo quando nao tenho o intuito de estimular grandes relatos. Nesses casos, tenho conscientemente de me perguntar o que devo fazer para evitar que a pessoa dé inicio a uma conversa mais longa. Com sua diferenciacao entre enquadramento e enquadre, Goffman busca explicitar a relacao entre aquilo que é desde sempre dado e aquilo que, na interagdo, 6 sempre novamente produzido: “Enquanto 0 enqua- dramento (frame) diz respeito a estruturas de sentido sociais pré-dadas as quais se destacam frente a (inter)agao fatica com base em objetividade, autonomia e imunidade” (WILLEMS, 1996, p. 444), 0 enquadre (framing) caracteriza uma encenagio®, no processo de interacio, desse pré-dar-se interpretado subjetivamente e em constante formacao atual. Para Hans- Hans-Georg Soeffner (1989, p. 151), autor de diversas criticas do conceito de “frame”, relaciona a expresso "encenagao” "nem acaso hidico, nem planejamento eficazmente instrumen- talizado ou instrumentalizavel”, mas “a intercorrelacao rotinizada entre, de um lado, interacao com vistas a um fim e, de outro, saber implicito sobre tipos de significado e sobre formas comu- nicacionais de representacao adquirido através da socializagao e por meio de experiéncia” 53 PESQUISA SOCIAL INTERPRETATIVA: UMA INT oouc Georg Soeffner (1989, p. 151), os conceitos nao explicam por completo esse aspecto da encenacao; enquadramento costuma ser metaforicamente associado a imagem de uma moldura, com isso também A ideia de que, se a moldura também determina a visdo geral da pintura, essa, por seu lado, existe independente da primeira. As metaforas “enquadramento” e “enquadre” transmitem também o significado de algo fixo e delimitado, © que pode dar origem a problemas sempre que busquemos descrever processos de interacao, j4 que 0 curso desses processos, ao contrario das interagées registradas por gravagées de audio, por exemplo, nao é fixo: “O enquadramento fixo é 0 resultado do registro, e ndo o aspecto primario do curso interacional originario a partir do qual, tendo em vista diferen- tes possibilidades, uma estrutura processual especifica foi realizada” (SOEFFNER, 1989, p. 144). Nés, enquanto intérpretes, temos no protocolo da interacao e na gravacao de Audio um resultado, algo de pronto, reali- zado; o agente, por seu lado, enxerga e apreende o sentido do processo no qual ele se encontra de forma diferente. O curso, a interacao em ato, ainda oferece um horizonte de possibilidades, est4 aberto. Soeffner busca mostrar, com isso, que o sentido da andlise sequencial (ver subcapitulo 2.5.4) consiste em reconstruir o processo de escolha entre interpretagdes possiveis e alternativas de acao. Christian Liiders (1994, p. 109), por sua vez, busca lidar com essa problematica relacionada aos conceitos “enqua- dramento” e “enquadre” de outra forma, sugerindo traduzi-los por “forma” (“Gestalt”) ou “figura” (“Figur”) - significados que essas palavras muitas vezes assumem na lingua inglesa Se o conceito de definigao da situacao recebe conotagao claramente intencional e cognitiva, a conceituacao de “enquadramento” e “enqua- dre” também nao deixa de estar associada a uma concepcao dualista, que ora faz referéncia a um recorte fixo, ora 4 concrec¢ao interativa e subjetiva. De todo modo, a questao é: se o carater processual da repro- ducao e da transformagio de estoques de conhecimento existentes 6 levado em conta, é menos conceitual do que de analise empirica. 2.2 O PRINCIPIO DA COMUNICAGAO Essas reflexdes tém por consequéncia metodolégica que o levantamento © a andlise so desenvolvides de forma a tornar manifestos os processos de enquadramento, esses produzidos e realizados na interagao, assim como as modificagées ocorridas. Isso acaba por exigir, para a pesquisa, como 54 GABRIELE ROSENTHAL mostram Fritz Schittze e outros membros ativos do grupo de trabalho dos sociélogos de Bielefeld, que lancemos mao de procedimentos comunica- cionais os quais, por sua vez, abrem espaco para processos cotidianos de entendimento e de producao, de negociacao de significado. As consequ- éncias metodolégicas especificas ao principio da abertura, ao qual essa ideia esta diretamente ligada, serao tratadas mais adiante. Antes de tudo é preciso ter em mente que a pesquisa social interpretativa - a excecao da andlise de registros ou documentos ja disponiveis -, implica processo comunicacional com agentes do cotidiano.* Quando inseridos no mesmo contexto dos agentes, os pesquisadores acabam por ajudar a moldar a realidade social que configura objeto do levantamento, seja esse levan- tamento uma observagio participante ou entrevista. “Geragao de dados é uma atividade comunicativa”, escreve Christa Hoffmann-Riem (1980, p. 347), mostrando-se alinhada a Fritz Schiitze, o qual, nesse sentido, aponta até mesmo para a possibilidade de uma “pesquisa social comunicativa”’ (SCHUTZE, 1978) que determine o processo comunicativo em consonancia As regras do cotidiano e ofereca ao agente a possibilidade de compreender sua viséo de mundo e também sua definicao de situacio da investigacao. Eles interpretam nao apenas o mundo da vida dentro do qual se comunicam conosco, pesquisadores, mas também a situaco de pesquisa - isto é, eles atribuem a ela, ao entrevistador e ao observador que participa da situacao, determinadas interpretagées. Nesse contexto, deve-se levar em conta que a definicao de situag’o do entrevistado pode ser bastante diferente da do entrevistador, e isso independente das definicdes de situacdo feitas por aquele que investiga, sejam elas evidentes ou nao. Enquanto os tiltimos definem a conversa como inserida em um contexto cientifico, os primeiros enxergam, ali, um bate-papo do cafezinho, uma espécie de consulta com © psicdlogo ou programa de entrevista. Assim, a entrevista acaba poden- do tomar rumo diverso, sempre que, por exemplo, o entrevistado veja no pesquisador um historiador interessado em acontecimentos de relevancia para a hist6ria de um grupo, ou um psicdlogo que dé valor a expressao de sentimentos por meio da fala. Além disso, caso o entrevistado imagine que a entrevista venha a ser publicada em wm jornal ou reproduzida em um programa de radio, é possivel que ele se apresente de outra forma. Tudo que 6 tematizado e, em especial, o modo com que 0 entrevistado se refere a seu Oconeeito “agente do cotidiano” faz referéncia ao pensamento de Alfred Schiitz ¢ a sua investigacéo fenomenolégica do cotidiano. 55 PESQUISA SOCIAL INTERPRETATIVA: UMA INT oouc dia a dia conservam relagao de dependéncia com esses enquadramentos, assim como com suas modificacées ao longo do levantamento ou registro. Na maioria das vezes, sempre que ocorrem mudangas no enquadramento ou na definic&o da situacAo, encontramos, na analise, claras referéncias a elas. A seguir, tratarei de esclarecer essa relacdo com base em uma entre- vista realizada por mim e por Michaela Kattig com uma familia do Kosovo em vistas de perder o direito de permanecer na Alemanha. 2.3 EXEMPLO EMP/RICO: ENQUADRAMENTOS VARIAVEIS NO. CONTEXTO DE UMA ENTREVISTA COM UMA FAMILIA. Inicialmente, a entrevista em questao foi considerada pelos membros da familia Morina‘ - nome ficticio - como uma espécie de au ncia como as que tiveram junto as autoridades alemas. A representagao, isto 6, o que e o modo com que isso foi apresentado, caracterizou-se de inicio por um enquadramento correspondente: ao longo da conversa, os entrevistados, por exemplo, buscaram a todo tempo frisar que nao desejavam permanecer na Alemanha indefinidamente. Sintomas que apontavam para a possibilidade de diagnéstico de um disturbio pés-traumatico na mae e de uma doenca de rins na nora - algo que exigiria assisténcia médica imediata - foram mais enfatizados do que as consequéncias psicolégicas do trauma para os outros membros da familia ou dos problemas enfrentados por eles em sua estadia na Alemanha. Isso se deveu ao fato de a legalidade de sua permanéncia no pais ter como pressuposto comprovagio dos efeitos traumaticos dos perigos e de tudo aquilo que vivenciaram no Kosovo. A familia se encontrava, assim, em situac&o de permanente necessidade de convencimento. Ao longo da en- trevista (de acordo com os métodos da escuta ativa de entrevista centrada no falante), na medida em que abordavamos seus medos e, em especial, 0 temor de, eventualmente, ter de deixar a Alemanha, a percepcao e a postura mudaram. Ficou evidente a dor dos membros da familia referente ao fato de ninguém, na Alemanha, se interessar por sua dor, tampouco por suas vivéncias traumaticas e pelo pavor da deportacao para o Kosovo.® A mudanca gradual no enquadramento da conversa ficava cada vez mais evidente na medida A analise dessa entrevista pode ser encontrada em Rosenthal (2002c). Nos dias de hoje, temor da deportagao é com frequéncia responsavel por despertar 0 medo da morte e de outras experiéncias de violencia semelhantes as ja vivenciadas. 56 GABRIELE ROSENTHAL em que falavam das visitas, para eles tao desgastantes emocionalmente, ao departamento de estrangeiros, cujos funciondrios, ao contrario de nés, nao teriam mostrado interesse pelos problemas que vivenciavam. Os sérios distarbios pés-trauma da mae e a experiéncia com as autoridades foram introduzidos na entrevista pelo filho mais velho, que, devido a seus bons conhecimentos da lingua e por ter recebido a cidadania apés ter se casado com uma alema, respondia pela familia no proceso junto & imigracao; ao meu comentario “acredito que o m: juntos aqui’, ele respondeu que as autoridades néo compreendiam a situagao da mesma forma, e contou em seguida sobre a conversa com o funcionario do departamento de estrangeiros: s importante para vocés ¢ poder estar Mas como que posso falar dquela pessoa sobre essas coisas, sobre esses sentimentos? Ele ndo quer nem saber, o funcioné- rio té nem af pra essas coisas... que pessoa mais fria... Eu fui bastante claro com ele: “me desculpa, mas ett quero saber, vocé no tem nenhum sentimento ou compaixdo com essa gente?” ‘Mas eu percebi logo que ele queria mandar a familia embora do pais, de qualquer maneira. Ai eu ndo consegui segurar, disse a ele pra deixar minha mée em paz, que ela precisa se esquecer de tudo (transcricéo, p. 28), Esse processo de mudanga dos enquadramentos ao longo da conversa nao é, pois, visto pelos representantes do paradigma interpretativo como ruido, como responsdvel por distor¢ées nos depoimentos, tampouco como algo que deva ser controlado de alguma forma. Também nao podemos achar que determinado enquadramento esteja na origem de declaracées mais relevantes sobre a realidade cotidiana da familia fora do contexto da situagao de conversa do que outra. Por sinal, é possivel objetar que a associacao com uma audiéncia nao constitui a realidade efetiva da familia, mas apenas a forma com que, de acordo com os entrevistados, se deve representar a si mesmo durante uma audiéncia com o departamento de estrangeiros. De todo modo, acaba que somos obrigados a nos ocupar, aqui, da questo sobre o significado de “realidade”. E possivel falar de uma realidade alheia a perspectiva daqueles que a percebem, independente da insercao em contextos situacionais especificos? Na pesquisa social interpretativa, partimos, pois, do principio da impos- sibilidade de que a vivéncia de uma situacao concreta, de sua recordagao ou relato, tenha alguma independéncia frente a perspectiva ou da defi- 37 PESQUISA SOCIAL INTERPRETATIVA: UMA INT oouc nico da situac&o daqueles que dela participa. Apenas os processos de enquadramento e de definigao possibilitam interagao; cada enquadramento de uma entrevista faz referéncia a outras realidades, a outras situacées recortadas de forma semelhante. Essa é, ali, a realidade do processo de reconhecimento, processo com o qual essa familia, assim como outros refugiados na Alemanha, teve de lidar. Essa realidade atual exerce, além do mais, grande influéncia sobre a lembranca das vivéncias traumaticas, e em especial sobre 0 modo com que sao descritas. E esse aspecto que assume a realidade de uma conversa enquadrada, como uma situagao na qual os ouvintes se voltam, empaticamente, a recordacées e relatos de sofrimento, situaco na qual essas experiéncias sao abordadas. Sempre que o levantamento esteja constituido de forma a tornar explicitos - tendo em vista a autonomia dos pesquisados nessa constituicao - os processos de enquadramento, teremos a possibilidade de produzir um texto que permita analisar as regras de interagao do mundo cotidiano. A entrevista com a familia Morina mostra, assim, como seus membros aprenderam ase apresentar para as autoridades, mas também como os critérios que regem processos desse tipo de reconhecimento na Alemanha determinam, para a familia, a percepcao de si mesmo e o arranjo da propria biografia. Além disso, 6 possivel notar a diferenca entre o modo de se representar frente ao representante do estado e a representacao frente a alguém interessado na vivéncia e especialmente na dor pessoal. Nao se deve ignorar, porém, que as mudangas no curso da entrevista se deram em correspondéncia ao ensejo de que nds, entrevistadores, talvez, de algum modo, protegessem. os membros da familia da ameaca de deportacao. De um modo geral, a analise de processos de enquadramento permi- te que se chegue a uma generalizacao desse modo de se apresentar, e isso para além da situagao de levantamento, da entrevista. Quando uma pessoa se apresenta em uma entrevista enfatizando, por exemplo, suas experiéncias de sucesso - contadas nos minimos detalhes, ao passo que sobre fracassos sao feitas apenas breves mencées, pois é de seu interesse impressionar a nés enquanto cientistas sociais -, essa estratégia de se fazer impressionar nos da dicas sobre 0 modo com que a pessoa possivelmente se comporta em outras situagdes semelhantes. James A. Holstein e Jaber F, Gubrium (1995, p. 30) mostram a partir do exemplo de duas mulheres adultas responsveis diretas pelos cuidados da mae com diagnéstico de deméncia, como as entrevistadas, ao longo da entrevista, passam a se apresentar nos mais diversos papéis (como o da dona de casa ou o da 58 filha atenciosa): “... cada papel conta a estéria de suas préprias atitudes, sentimentos e comportamentos” (p. 32). Questionar o entrevistado sobre esses processos de enquadramento n4o os torna visiveis, uma vez que 0 proprio ¢ os entrevistadores nao sao de todo conscientes deles. Além disso, mesmo que respostas as perguntas com as quais concluimos a entrevista (por exemplo: “Que vivéncia vocé fez dessa conversa?”) fagam referéncias importantes aos enquadres, nao temos acesso a todas as possibilidades de significagao. Antes, necessitamos de métodos - tanto de levantamento quanto de andlise - que permitam ao entrevistado aplicar regras de en- quadramento e enquadres préprios, e, com isso, oferecer a nés a possibi- lidade de expé-los na andlise. Para isso se exigem sobretudo métodos de Jevantamento que satisfagam ao principio da abertura. 2.4 O PRINCIPIO DA ABERTURA NO PROCESSO DE PESQUISA E NO LEVANTAMENTO A seguir, irei abordar o desenvolvimento de um processo de pesquisa e de situagées de levantamento comprometidas com o principio da abertura. 2.4.1 Abertura a alteracdes no plano de pesquisa Em termos gerais, no contexto de mudanga de nossos planos de pes- quisa, a abertura significa: + Perguntas de pesquisa abertas, com possibilidades de modifica- cao. + A construgao de hipéteses ocorre ao longo do processo de inves- tigagao. +O desenvolvimento de formas de verifi © desenvolvimento da pesquisa. o tedrica acompanha Ao contrario do que se nota no modo de proceder dedutivo - que conta com pressupostos tedricos e que parte de um leque de problemas de con- tornos claramente determinados -, a questo com a qual damos inicio & pesquisa nao apenas deve ser vaga em sua formulacdo, mas também pode se modificar ao longo da investigacao empirica, em comprometimento com uma logica da descoberta. Isso significa que, ao invés de darmos inicio ao processo de pesquisa com um conjunto de hipéteses, devemos, antes, colocar entre parénteses, isto é, tratar nossas suposicées cientificas e 59 PESQUISA SOCIAL INTERPRETATIVA: UMA INTRODUCAO, também nossos prejulgamentos do cotidiano a principio com reservas. Christa Hoffman-Riem (1980) fala de uma renuncia a geragao de dados a partir de hipdteses. Antes, 6 com base em observacées empiricas que se pretende geré-las, verificd-las, modificd-las e rejeita-las. Assim, nao ha como definir de antemao a amostragem, que sé é constituida no decor- rer da investigacao, a partir de suposicées que gradualmente ganham consisténcia (ver subcapitulo 3.2). Como enfatizado por Glaser e Strauss (1967), levantamento e analise nao devem ser concebidos como fases rigorosamente distintas. Antes, sugere-se realizar entrevistas ou obser- vacées prévias, avaliar textos (transcricdes ou protocolos) produzidos nesse contexto, e, a partir dessa andlise, retornar a campo com outras perspectivas, com questées e procedimentos de levantamento dos dados em parte modificados A respeito da desconsideracao de hipoteses no inicio da pesquisa, sempre foi dito, e de forma bastante critica, que se trata de pretender uma falsa auséncia de pressupostos, a qual, de acordo com Christel Hopf (1979, p. 27), acaba por “apresentar distorcées no proceso inves- tigatorio, esse conduzido, nolens volens, por modelos de interpretagao culturalmente determinados e por expectativas sobre o que sera apreen- dido”. Essa objecao - perfeitamente justificavel - contra uma auséncia de pressupostos compreendida enquanto tal resulta, porém, de uma forma equivocada de se considerar aquele “colocar entre parénteses”. Esse mal-entendido, por sua vez, pode se dever & linguagem tedrica de Glaser e Strauss (1967, p. 39) e outros, segundo os quais hipdteses “emergem do material” (em inglés “to emerge” ou “to arouse”), afirmacao que induz a ideia de que, para encontrar significados, bastaria ir a campo e realizar observagées - sem texto, sem levantar questées relativas a ele. Interpretagdes, no entanto, nao sao possiveis sem conhecimento prévio, sem questionamento, os quais, por sua vez, sao necessarios para a formagao de hipoteses. De todo modo, esse conhecimento pré- vio, tenha ele sua origem no cotidiano ou no conhecimento cientifico, encontra no método abdutivo da geracao de hipéteses - cujo ponto de partida é 0 texto, isto é, o dado empirico - aplicacdo por assim dizer heuristica (ver subcapitulo 2.5.2). Por “heuristico” entende-se que essas hipoteses assumem carater de explicagoes provisorias - entre outras explicacées possiveis - referentes aos dados a disposicao. Assim, nao se trata de verificar, de buscar no texto por comprovagées de hipoteses j4 formuladas. Segundo Glaser e Strauss (1967, p. 39): 60

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