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ERIC HOBSBAWM ERA DOS EXTREMOS O breve século XX 1914-199] Tradugio: MARCOS SANTARRITA Revisdo técnica: MARIA CELIA PAOLI 2 edigdo 26° reimpressdo SBD-FFLCH-USP ME 242500 COMPANHIA Das LeTRAS CEYaA?P cd | 2003 w DEDALUS - Acervo - FFLCH-HI Copyright © 1994 by Eric Hobsbawm Esta tradugdo & publicada por acordo com Pantheon Books, uma divisdo da Random House, Inc. ‘Titulo original: Age of extremes The short twentieth century: 1914-1991 Capa: Helio de Almeida Preparagao: Stella Weiss, Maria Laura Santos Bacellar, Marcos Luiz Fernandes, Sylvia Maria Pereira dos Santos Indice remissivo: Caren Inoue Aline Sanchez Leme Revisio: Carmen S. da Costa Touché! Editorial ‘Dados Intenavionais de Caalogago na Publicado (ew) sr, Brasil) Hobsbawm, Erie J. 1917. ra dos Bxremox o byeve séoulo xx 19)4-1091 / Ese Hobsbawm + tradugio Mateos Santarta ; revisio técnica Maria Célia Paoli, — Sio Palo : Companhia das Letras, 1995, Titulo original: Age of extremes «the show entcth cemary : 1914/1991, Bibliogefia, Isa 85-7161-468-3 1. Civitiagio modema- Século 20- Histéra L. Titulo. 98.2089 €00-909.42 909.82 900.82 Todos 0s direitos desta edigdo reservados & EDITORA SCHWARCZ LTDA. Rua Bandeira Paulista, 702, ¢j. 32 04532-002 — Sao Paulo — sp ‘Telefone: (11) 3167-0801 Fax: (11) 3167-0814 ‘www.companhiadasletras.com.br INDICE Preficio e agradecimentos . O século: vista aérea .... Parte um A ERA DA CATASTROFE “AL. A era da guerra total . 2. A revolugiio mundial ....... 3. Rumo ao abismo econdmico . 4, A queda do liberalismo . 5. Contra o inimigo comum 6. As artes 1914-45 7. O fim dos impérios Parte dois A ERA DE OURO 8. Guerra Fria ...... . 223 9.°s anos dourados . ». 253 10. Revolugao social » 282 LL. Revolugao cultural . . 314 12. O Terceiro Mundo .. .. 337 13. “Socialismo real” . 363 Parte trés O DESMORONAMENTO 14. As Décadas de Crise .. 0... 6.66 cece eee eee 393 15. Terceiro Mundo e revolugéo ......- Cee er erate ae 16. Fim do socialismo ....... 1 447 « 17, Morre a vanguarda: as artes apos 1950. = 483 18, Feiticeiros e aprendizes: as ciéncias naturais . 504 19. Rumo ao milénio ... _ 537 Bibliografia .......... face aoe 563 Outras leituras . "579 Hustragoes . 583 Indice remissivo ... 585 PREFACIO E AGRADECIMENTOS Nao & possivel escrever a histéria do século xx como a de qualquer outra época, quando mais no fosse porque ninguém pode escrever sobre seu pré- prio tempo de vida como pode (e deve) fazer em relacdo a uma época conhe- cida apenas de fora, em segunda ou terceira mao, por intermédio de fontes da €poca ou obras de historiadores posteriores. Meu tempo de vida coincide com a maior parte da época de que trata este livro e durante a maior parte de meu tempo de vida — do inicio da adolescéncia até hoje — tenho tido consciéncia dos assuntos ptiblicos, ou seja, acumulei opinides e preconceitos sobre a épo- ca, mais como contemporaneo que como estudioso. Este é um dos motivos pelos quais, enquanto historiador, evitei trabalhar sobre a era posterior a 1914 durante quase toda a minha carreira, embora nio me abstivesse de escrever sobre ela em outras condigées. “Minha época”, como se diz no jargio profis- sional, é 0 século xix. Acho que ja € possivel ver 0 Breve Século xx — de 1934 até o fim da era soviética — dentro de uma certa perspectiva histérica, mas chego a ele desconhecendo a literatura académica, para ndo dizer que desconhego quase todas as fontes primdrias acumuladas pelo grande nimero de historiadores do século xx. Claro, na pritica é completamente impossfvel uma s6 pessoa conhecer a historiografia do presente século — mesmo em uma Gnica lingua importante — como, por exemplo, o historiador da Antiguidade classica ou do império. bizantino conhece tudo que foi escrito sobre esses longos periodos, na época e depois. Mesmo pelos padrées de erudi¢do histérica, contudo, meu conheci- mento no campo da histéria contemporfnea é precério e irregular. O mximo que consegui foi mergulhar na literatura das questGes mais espinhosas e con- trovertidas — a histéria da Guerra Fria ou dos anos 30, por exemplo — 0 sufi- ciente para convencer-me de que as opinides expressas neste livro so defen- sdveis & luz da pesquisa especializada. Claro, posso nao ter conseguido. Deve haver intiimeras questdes quanto as quais demonstro ignorancia e defendo opi- nides polémicas. Este livro, portanto, assenta-se sobre alicerces estranhamente irregulares. Além da ampla e variada leitura de muitos anos, complementada por toda a leitura necessdria para dar cursos de hist6ria do século xx aos pés-graduandos da New School for Social Research, recorri ao conhecimento, as memorias e as opinides acumulados por uma pessoa que viveu 0 Breve Século xx na posi- gio de “observador participante”, como dizem os antropdlogos sociais, ou simplesmente como um viajante de olhos abertos, ou como 0 que meus ances- trais chamariam kibbirzer — e isso em intimeros paises. O valor hist6rico des- sas experiéncias nao decorre de ter presenciado grandes ocasides hist6ricas ou de ter conhecido ou encontrado destacados estadistas ou protagonistas da his- t6ria. Na verdade, minha experiéncia como jornalista ocasional em pesquisas neste ou naquele pais, sobretudo da América Latina, tem sido a de que em geral as entrevistas com presidentes ou outros tomadores de decisao nao sao compensadoras, pela raziio ébvia de que a maior parte do que essas pessoas dizem é para registro puiblico. As pessoas que nos esclarecem de fato so as que podem — ou querem — falar livremente, de preferéncia quando nao tém responsabilidade por grandes questdes. Apesar disso, meu conhecimento de pessoas e lugares, embora forgosamente parcial ¢ enganador, me foi de enor- me valia, mesmo tratando-se tao-somente de visitar a mesma cidade num intervalo de trinta anos — Valéncia ou Palermo —, fato que permite com- preender a rapidez ¢ 0 Ambito da transformacao social no terceiro quartel do presente século, ou mesmo tratando-se tdo-somente da lembranga de algo dito hd muito tempo em alguma conversa e guardado, as vezes sem motivo claro, para uso futuro. Se o historiador tem condigées de entender alguma coisa deste século é em grande parte porque viu e ouviu. Espero ter transmitido aos leitores algo do que aprendi por té-lo feito. Como nao poderia deixar de ser, este livro também se baseia nas infor- magées obtidas junto a colegas, estudantes, e todos a quem abordei durante sua elaboragao. Em alguns casos a divida é sistemdtica. O capitulo sobre as ci€ncias foi submetido a meus amigos Alan Mackay Rs — que além de cris- talégrafo & enciclopedista — e John Maddox. Parte do que escrevi sobre desenvolvimento econémico passou pela leitura de meu colega na New School, Lance Taylor, que foi do mrt [Massachusetts Institute of Technology — Instituto de Tecnologia de Massachusetts]; uma parte muito maior depen- deu da leitura de trabalhos, do acompanhamento dos debates e, de um modo geral, da atengZio dedicada as conferéncias organizadas sobre varias questées macroeconémicas no Instituto Mundial para Pesquisa de Desenvolvimento Econémico da Universidade da ONU (UNU/WIDER), em Helsinque, quando esse instituto se transformou num grande centro internacional de pesquisa e deba- tes sob a diregao do dr. Lal Jayawardena. Os verdes que tive ocasiao de pas- sar nessa admirdvel instituigdo, na qualidade de pesquisador visitante com bolsa da McDonnel Douglas, foram-me inestimaveis. inclusive por sua proxi- 8 midade da URSS € sua preocupagao intelectual com os tiltimos anos desse pais. Nem sempre aceitei 0 conselho daqueles a quem consultei e, mesmo quando o fiz, a responsabilidade pelos erros é exclusivamente minha. Beneficiei-me muito das conferéncias e coléquios durante os quais os académicos dedicam boa parte de seu tempo a encontrar seus pares, inclusive com 0 objetivo de estimular-se uns aos outros. Nao tenho como agradecer a todos os colegas que me ajudaram ou corrigiram em ocasides formais ¢ informais, nem toda a in- formagao que adquiri por acaso, por ter a sorte de ensinar a um grupo muito internacional de estudantes na New School. Contudo, penso que devo especi- ficar meu reconhecimento para com Ferdan Ergut e Alex Julca, pelo que aprendi em seus trabalhos sobre a revolugio turca e a natureza da migragio e mobilidade social no Terceiro Mundo. Devo, ainda, & tese de doutoramento de minha aluna Margarita Giesecke, sobre a APRA ¢ 0 levante de Trujillo em 1932. A medida que o historiador do século xx se aproxima do presente, fica cada vez mais dependente de dois tipos de fonte: a imprensa didria ou perié- dica e os relatérios econdmicos periddicos e outras pesquisas, compilagées estatisticas e outras publicagdes de governos nacionais e instituigdes interna- cionais. Minha divida para com jornais como 0 Guardian de Londres, 0 Financial Times ¢ 0 New York Times é mais que evidente. Minha divida para com as inestimdveis publicagdes das Nagdes Unidas e seus vérios organismos © para com o Banco Mundial esté registrada na bibliografia. H4 que lembrar, ainda, a antecessora destes. a Liga das Nagdes, que embora na pratica fosse um fracasso quase total, realizou admiraveis pesquisas ¢ andlises, que culmi- naram no pioneiro Industrialisation and World Trade [Industrializagdo e comércio mundial), de 1945, merecedoras de nossa gratiddo, Nenhuma histé- ria das mudangas sociais e econémicas ocorridas neste século poderia ser escrita sem essas fontes. Os leitores terdo de aceitar a maior parte do que escrevi neste livro na base da confianga, com excegao das Gbvias opinides pessoais do autor. Nao hé sentido em sobrecarregar um livro como este com um enorme aparato de refe- réncias ou outras marcas de erudig’o. Tentei restringir minhas referéncias 4 fonte das citagdes textuais, das estatisticas e outros dados quantitativos — fontes diferentes as vezes apresentam ntimeros diferentes — e A ocasional jus- tificago de afirmagées que os leitores possam achar pouco comuns, desco- nhecidas ou inesperadas e de alguns aspectos em que as opinides controverti- das do autor possam exigir uma certa corroboracio. Essas referencias estdo entre parénteses no texto. O titulo completo da fonte encontra-se no final do volume. Essa bibliografia nao passa de uma relagdo completa de todas as fon- tes efetivamente citadas ou mencionadas no texto. Ela ndo € um guia sistem: tico para outras leituras. Depois da bibliografia h um breve indicador de outras leituras. O conjunto das referéncias também foi concebido de modo a ficar bem separado das notas de rodapé, que apenas ampliam ou restringem 0 texto, fs Contudo, por uma questio de justiga, quero indicar algumas obras em que me apoiei bastante ou com que estou particularmente em débito. Eu niio gostaria que seus autores deixassem de sentir-se devidamente apreciados. De um modo geral, devo muito 4 obra de dois amigos: 0 historiador econdmico e infatig4vel compilador de dados quantitativos Paul Bairoch e Ivan Berend, ex- presidente da Academia Hungara de Ciéncias, a quem devo 0 conceito do Breve Século xx. Sobre a historia politica geral do mundo desde a Segunda Guerra Mundial, P. Calvocoressi (World politics since 1945 (Politica mundial de 1945 em diante]) foi um guia seguro e as vezes — compreensivelmente — cdustico. Sobre a Segunda Guerra Mundial, muito devo ao soberbo War, eco- nomy and society 1929-45 [Guerra, economia ¢ sociedade 1929-45], de Alan Milward, e, sobre a economia p6s-1945, achei utilissimos Prosperity and upheaval: The world economy 1945-1980 [Prosperidade e revolta: a economia mundial de 1945-1980], de Herman Van der Wee, e Capitalism since 1945 (Capitalismo a partir de 1945], de Philip Armstrong, Andrew Glyn e John Harrison. The Cold War [A Guerra Fria], de Martin Walker, merece uma aten- ¢&o muito maior do que a morna recepgdo que lhe reservaram os criticos. Sobre a historia da esquerda desde a Segunda Guerra Mundial, muito devo ao dr. Donald Sassoon, do Queen Mary and Westfield College, Universidade de Londres, que teve a bondade de me deixar ler seu vasto e esclarecedor estudo do assunto, ainda incompleto. No que diz respeito & histéria da URsS, minha divida principal é para com os textos de Moshe Lewin, Alec Nove, R. W. Davies e Sheila Fitzpatrick; no que diz respeito 4 China, para com os de Benjamin Schwartz e Stuart Schram; e no que diz respeito a0 mundo islimi- co, para com Ira Lapidus e Nikki Keddie. Minhas opinises sobre as artes muito devem as obras (e a conversa) de John Willett sobre a cultura de Weimar, bem como a Francis Haskell. No capitulo 6, penso ser ébvia minha divida para com 0 Diaghilev de Lynn Garafola. Meus agradecimentos especiais aos que me ajudaram concretamente a preparar este livro. Sao eles, em primeiro lugar, minhas auxiliares de pesqui- sa Joanna Bedford em Londres e Lise Grande em Nova York. Gostaria de acentuar sobretudo minha divida para com esta ultima, sem quem eu nao poderia ter preenchido as enormes lacunas em meu conhecimento nem confe- rido fatos ¢ referéncias lembrados apenas pela metade. Também sou muito grato a Ruth Syers, que datilografou meus rascunhos, e a Marlene Hobsbawm, que leu varios capitulos do ponto de vista do leitor nao académico com inte- resse genérico pelo mundo modero, a quem este livro se dirige. Ja mencionei minha divida para com os estudantes da New School, que assistiram as aulas nas quais tentei formular minhas idéias e interpretagdes. A eles dedico este livro. Eric Hobsbawm Londres — Nova York, 1993-4 O SECULO: VISTA AEREA Olhar panoramico DOZE PESSOAS VEEM O SECULO XX Isaiah Berlin (fil6sofo, Gra-Bretanha): “Vivi a maior parte do século xx, devo acrescentar que néio sofri provagées pessoais. Lembro-o apenas como 0 século mais terrivel da hist6ria”. Julio Caro Baroja (antropélogo, Espanha): “H4 uma contradigio patente entre a experiéncia de nossa propria vida — infancia, juventude e velhice pas- sadas tranqitilamente e sem maiores aventuras — e os fatos do século xx... oS terriveis acontecimentos por que passou a humanidade”. Primo Levi (escritor, Italia): “Nés, que sobrevivemos aos Campos, nio somos verdadeiras testemunhas. Esta é uma idéia incémoda que passei aos pou- cos a aceitar, ao ler o que outros sobreviventes escreveram — inclusive eu mesmo, quando releio meus textos apés alguns anos. Nés, sobreviventes, somos uma minoria nao s6 miniiscula, como também anémala. Somos aqueles que, por prevaricagao, habilidade ou sorte, jamais tocaram o fundo. Os que tocaram, ¢ que viram a face das Gérgonas, nao voltaram, ou voltaram sem palavras”. René Dumont (agronomo, ecologista, Franga): “Vejo-0 apenas como um século de massacres e guerras”. Rita Levi Montalcini (Prémio Nobel, ciéncia, Itdlia): “Apesar de tudo, neste século houve revolugées para melhor [...] © surgimento do Quarto Estado ea emergéncia da mulher, apés séculos de repressio". William Golding (Prémio Nobel, escritor, Gra-Bretanha): “Nao posso deixar de pensar que este foi o século mais violento da histéria humana”. Emst Gombrich (historiador da arte, Gra-Bretanha): “A principal carac- i] teristica do século xx é a terrivel multiplicagao da populagaio do mundo. E uma catdstrofe, uma tragédia. Nao sabemos o que fazer a respeito”. Yehudi Menuhin (miGsico, Gra-Bretanha): “Se eu tivesse de resumir 0 século xx, diria que despertou as maiores esperangas j4 concebidas pela huma- nidade e destruiu todas as ilusdes e ideais”. Severo Ochoa (Prémio Nobel, ciéncia, Espanha): “O mais fundamental € © progresso da ciéncia, que tem sido realmente extraordinério [...] Eis 0 que caracteriza nosso século”. Raymond Firth (antrop6logo, Gra-Bretanha): “Tecnologicamente, coloco desenvolvimento da eletrénica entre os fatos mais significativos do século Xx; em termos de idéias, destaco a passagem de uma visio relativamente racional e cientifica das coisas para outra nao racional e menos cientffica”. Leo Valiani (historiador, Italia): “Nosso século demonstra que a vitéria dos ideais de justiga e igualdade € sempre efémera, mas também que, se con- seguimos manter a liberdade, sempre é possfvel recomegar [...] Nao hi por que desesperar, mesmo nas situagdes mais desesperadas”. Franco Venturini (historiador, Italia): “Os historiadores nao tém como responder a essa pergunta. Para mim, o século xx é apenas o esforgo sempre renovado de entendé-lo”. (Agosti & Borgese, 1992, pp. 42, 210, 154, 76, 4, 8, 204, 2, 62, 80, 140 e 160) Petey Em 28 de junho de 1992 0 presidente Mitterrand, da Franga, apareceu de forma stibita, nao anunciada e inesperada em Sarajevo, que ja era o centro de uma guerra balcnica que iria custar cerca de 150 mil vidas no decorrer daque- Ie ano. Seu objetivo era lembrar a opinido piblica mundial a gravidade da crise bésnia. E, de fato, foi muito observada e admirada a presenga do conhecido estadista — idoso e visivelmente fragil sob 0 fogo das armas portateis e da artilharia. Um aspecto da visita de Mitterrand, contudo, embora claramente fundamental, passou despercebido: a data. Por que o presidente da Franga escolhera aquele dia especffico para ir a Sarajevo? Porque 28 de junho era o aniversdrio do assassinato, em Sarajevo, em 1914, do arquiduque Francisco Eerdinando da Austria-Hungria, ato que em poucas semanas levou & eclosdo da Primeira Guerra Mundial. Para qualquer europeu culto da geragio de 12 Mitterrand, saltava aos olhos a ligagéio entre data e lugar ¢ a evocagdio de uma atdstrofe hist6rica precipitada por um erro politico e de célculo. Que melhor maneira de dramatizar as implicag6cs potenciais da crise bésnia que escolhen- do uma data assim tio simbélica? Mas quase ninguém captou a alusio, exce- to uns poucos historiadores profissionais ¢ cidadios muito idosos. A meméria hist6rica j4 nao estava viva. A destruigao do passado — ou melhor, dos mecanismos sociais que vin- culam nossa experiéncia pessoal 4 das geragées passadas — é um dos fendme- nos mais caracteristicos e légubres do final do século xx. Quase todos os jovens de hoje crescem numa espécie de presente continuo, sem qualquer rela- Jo orgdnica com 0 passado ptiblico da época em que vivem. Por isso os his- toriadores, cujo oficio é lembrar 0 que outros esquecem, tornam-se mais importantes que nunca no fim do segundo milénio. Por esse mesmo motivo, porém, eles tm de ser mais que simples cronistas, memorialistas e compila- dores. Em 1989 todos os governs do mundo, e particularmente todos os mi- nistérios do Exterior do mundo, ter-se-iam beneficiado de um semindrio sobre 0s acordos de paz firmados apés as duas guerras mundiais, que a maioria deles aparentemente havia esquecido. Contudo, nao 6 propésito deste livro contar a histéria da época de que trata, 0 Breve Século xx entre 1914 e 1991, embora todo aquele que ja tenha ouvido um estudante americano inteligente perguntar-lhe se o fato de falar em “Segunda Guerra Mundial” significa que houve uma “Primeira Guerra Mun- dial” saiba muito bem que nem sequer o conhecimento de fatos bisicos do século pode ser dado por certo. Meu objetivo é compreender e explicar por que as coisas deram no que deram e como elas se relacionam entre si. Para qual- quer pessoa de minha idade que tenha vivido todo o Breve Século xx ou a maior parte dele, isso é também, inevitavelmente, uma empresa autobiografi- ca. Trata-se de comentar, ampliar (e corrigir) nossas préprias memérias. E falamos como homens e mulheres de determinado tempo e lugar, envolvidos de diversas maneiras em sua hist6ria como atores de seus dramas — por mais insignificantes que sejam nossos papéis —, como observadores de nossa época ec, igualmente, como pessoas cujas opiniées sobre 0 século foram formadas pelo que viemos a considerar acontecimentos cruciais. Somos parte deste século, Ele € parte de nés. Que ndo 0 esquegam os leitores que pertencem a outra era, por exemplo os estudantes que estao ingressando na universidade no momento em que escrevo e para quem até a Guerra do Vietna é pré-historia. Para os historiadores de minha geragdo e origem o passado € indestruti- vel, ndo apenas porque pertencemos & geragdo em que ruas e logradouros publicos ainda tinham nomes de homens e acontecimentos publicos (a estagao Wilson na Praga de antes da guerra, a estaco de metré Stalingrado em Paris), em que os tratados de paz. ainda eram assinados e portanto tinham de ser iden- tificados (Tratado de Versalhes) e os memoriais de guerra lembravam aconte- 13 ( cimentos passados, como também porque os acontecimentos ptiblicos so parte da textura de nossas vidas. Eles néo so apenas marcos em nossas vidas privadas, mas aquilo que formou nossas vidas, tanto privadas como ptiblicas. Para este autor, o dia 30 de janeiro de 1933 ndo é simplesmente a data, 4 parte isso arbitraria, em que Hitler se tornou chanceler da Alemanha, mas também uma tarde de inverno em Berlim. quando um jovem de quinze anos e sua irma mais nova voltavam para casa, em Halensee. de suas escolas vizinhas em Wilmersdorf, e em algum ponto do trajeto viram a manchete. Ainda posso vé- la, como num sonho. Mas nao apenas um velho historiador tem 0 passado como parte de seu presente permanente. Em vastas extensdes do globo todas as pessoas de deter- minada idade, independentemente de origens e historias pessoais, passaram pelas mesmas experiéncias centrais. Foram experiéncias que nos marcaram a todos, em certa medida da mesma forma, O mundo que se esfacelou no fim da década de 1980 foi o mundo formado pelo impacto da Revolugao Russa de 1917; Fomos todos marcados por ela, por exemplo na medida em que nos habituamos a pensar na moderna economia industrial em termos de opostos binarios, “capitalismo” e “socialismo” como alternativas mutuamente exclu- dentes, uma identificada com economias organizadas com base no modelo da URSS, a outra com todo o restante, Agora ja deve estar ficando evidente que essa oposi¢ao era uma construgao arbitréria e em certa medida artificial. que s6 pode ser entendida como parte de determinado contexto histérico. E no entanto mesmo hoje, quando escrevo, nao € facil considerar, inclusive retros- pectivamente, princ{pios de classificago mais realistas que aquela que reunia uA, Japao, Suécia, Brasil, Repiiblica Federal da Alemanha e Coréia do Sul num mesmo escaninho ¢ as economias e sistemas de Estado da regio soviéti- ca que desmoronaram depois da década de 1980 no mesmo compartimento em que estavam as do Oriente e do Sudeste Asidtico, que, como se constata, nao desmoronaram. Mesmo 0 mundo que sobreviveu ao fim da Revolugdo de Outubro é um mundo cujas instituig6es e crengas foram moldadas pelos que pertenciam ao lado vencedor da Segunda Guerra Mundial. Os que estavam do lado perdedor ou a ele se associavam nao apenas ficaram em siléncio ou foram silenciados, como foram praticamente riscados da histéria e da vida intelectual, investidos do papel de “o inimigo” no drama moral de Bem versus Mal. (E possivel que © mesmo esteja acontecendo hoje com os perdedores da Guerra Fria da segun- da metade do século, embora talvez ndo na mesma medida, nem por tanto tempo.) Esse € um dos precos que se paga por viver num século de guerras eligiosas, que tém na intolerdncia sua principal caracteristica. Mesmo os que Propalavam o pluralismo de suas ndo-ideologias acreditaram que 0 mundo nao, era grande o bastante para uma coexisténcia permanente com religides secula- tes rivais. Confrontos religiosos ou ideolégicos como os que povoaram este 14 & século erguem barricadas no caminho do historiador. A principal tarefa do his- toriador nao é julgar, mas compreender, mesmo o que temos mais dificuldade para compreender. O que dificulta a compreensao, no entanto, no sao apenas hossas convicgdes apaixonadas, mas também a experiéncia histérica que as formou. As primeiras sao faccis de superar. pois nao hé verdade no conhecido mas enganoso dito francés tout comprendre c’est tout pardonner (tudo com- preender € tudo perdoar). Compreender a era nazista na histéria alema e enquadré-la em seu contexto histérico nao é perdoar 0 genocidio. De toda forma, n4o € provavel que uma pessoa que tenha vivido este século extraordi- nario se abstenha de julgar. O dificil é compreender. oh Como iremos compreender 0 Breve Século xx, ou seja, os anos que vao da eclosao da Primeira Guerra Mundial ao colapso da URSs, que. como agora podemos ver retrospectivamente, formam um periodo histérico coerente ja encerrado? Nao sabemos 0 que viré a seguir, nem como seré o segundo milé- nio, embora possamos ter certeza de que ele ter sido moldado pelo Breve Século xx. Contudo, nao hd como duvidar seriamente de que em fins da déca- da de 1980 e inicio da década de 1990 uma cra se encerrou e outra nova come- cou. Esta é a informagdo essencial para os historiadores do século, pois embo- ra eles possam especular sobre o futuro a luz de sua compreensao do passado, seu trabalho nao tem nada a ver com palpites em corridas de cavalos. As tni- cas corridas de cavalos que esses historiadores podem pretender relatar e ana- lisar so as jé ganhas ou perdidas. Seja como for, nos tiltimos trinta ou quaren- ta anos o desempenho dos adivinhos, fossem quais fossem suas qualificagdes profissionais como profetas, mostrou-se téo espetacularmente ruim que sé governos ¢ institutos de pesquisa econémica ainda tém, ou dizem ter, maior confianga nele. E possivel mesmo que depois da Segunda Guerra Mundial esse desempenho tenha piorado. Neste livro, a estrutura do Breve Século xx parece uma espécie de tripti- co ou sanduiche histéric uma Era de Catastrofe, que se estendeu de 1914 até depois da Segunda Guerra Mundial, seguiram-se cerca de 25 ou trinta anos de extraordinario crescimento econémico e transformagao social, anos que provavelmente mudaram de maneira mais profunda a sociedade humana que qualquer outro periodo de brevidade comparavel. Retrospectivamente, pode- mos ver esse perfodo como uma espécie de Era de Ouro, ¢ assim ele foi visto quase imediatamente depois que acabou, no inicio da década de 1970jA ilti- ma parte do século foi uma nova era de decomposigao, incerteza e crisé— e, com efeito, para grandes areas do mundo, como a Africa, a ex-URSS e as par- tes anteriormente socialistas da Europa, de catastrof®. A medida que a década “1S de 1980 dava lugar & de 1990, 0 estado de espirito dos que refletiam sobre 0 passado e 0 futuro do século era de crescente melancolia fin-de-siécle. Visto do privilegiado ponto de vista da década de 1990, 0 Breve Século xx passou por uma curta Era de Ouro, entre uma crise ¢ outra, ¢ entrou num futuro des- conhecido e problemitico, mas nao necessariamente apocaliptico. Contudo, como talvez os historiadores queiram lembrar aos especuladores metafisicos do “Fim da Histéria”. haverd um futuro. A tinica generalizagao cem por cento segura sobre a historia é aquela que diz que enquanto houver raga humana haverd histéria. O roteiro deste livro segue esse preceito. Ele comeca com a Primeira Guerra Mundial, que assinalou 0 colapso da civilizagio (ocidental) do século XIX. Tratava-se de uma civilizagéo capitalista na economia: liberal na estrutu- ra legal ¢ constitucional: burguesa na imagem de sua classe hegeménica carac- terfstica; exultante com o avango da ciéncia, do conhecimento e da educagao ¢ também com 0 progresso material e moral; ¢ profundamente convencida da centralidade da Europa, berco das revolugées da ciéncia, das artes, da politica e da indéstria e cuja economia prevalecera na maior parte do mundo. que seus soldados haviam conquistado e subjugado; uma Europa cujas populagdes (incluindo-se 0 vasto e crescente fluxo de emigrantes europeus e seus descen- dentes) haviam crescido até somar um tergo da raga humana; e cujos maiores Estados constitufam o sistema da politica mundial.* Para essa sociedade, as décadas que vao da eclosdo da Primeira Guerra Mundial aos resultados da Segunda foram uma Era de Catastrofe. Durante quarenta anos, ela foi de calamidade em calamidade. Houve ocasides em que mesmo conservadores inteligentes nao apostariam em sua sobrevivencia. Ela foi abalada por duas guerras mundiais, seguidas por duas ondas de rebeliao e revolugiio globais que levaram ao poder um sistema que se dizia a alternativa historicamente predestinada para a sociedade capitalista e burguesa e gue | foi adotado, primeiro, em um sexto da superficie da Terra, e, apés a Segunda — Guerra Mundial, por um terco da populagiio do globo. Os imensos impérios coloniais erguidos durante a Era do Império foram abalados e rufram em po. Toda a histéria do imperialismo modemo, tio firme e autoconfiante quando da morte da rainha Vitoria, da Gra-Bretanha, nao durara mais que o tempo de uma vida humana — digamos, a de Winston Churchill (1874-1965). Mais ainda: uma crise econémica mundial de profundidade sem prece- dentes pds de joelhos até mesmo as economias capitalistas mais fortes e pare- ceu reverter a criagao de uma economia mundial nica, feité bastante notével (+) Tentei descrever e explicar a ascensio dessa civilizacdo numa histéria em trés volumes do “longo século xix” (da década de 1780 a 1914), ¢ analisar as razdes do colapso. O presente (exto [ard referéncia a esses volumes, The age of Revolution, 1789-1848, The age of Capital, 1843- 1875, © The age of Empire, 1875-1914, ocasionalmente, onde parecer ttl 16 do capitalismo liberal do século xIx. Mesmo os BUA. a salvo de guerra ¢ revo- lugao, pareceram préximos do colapso. Enguanto a economia balangava, as instituigdes da democracia liberal praticamente desapareceram entre 1917 1942: restou apenas uma borda da Europa e partes da América do Norte e da ‘Austrélia, Enquanto isso, avangavam o fascismo e seu corolério de movimen- tos e regimes autoritérios. A democracia s6 se salvou porque, para enfrentd-lo, houve uma alianga tempordria e bizarra entre capitalismo liberal e comunismo: basicamente a vit6ria sobre a Alemanha de Hitler foi, como s6 poderia ter sido, uma vitéria do Exército Vermetho. De muitas maneiras, esse periodo de alianga capitali ta-comunista contra o fascismo — sobretudo as décadas de 1930 e 1940 — constitui 0 ponto critico da histéria do século xx e seu momento decisivo. De muitas maneiras, esse € um momento de paradoxo historico nas relagdes entre capitalismo ¢ comunismo, que na maior parte do século — com excegéio do breve periodo de antifascismo — ocuparam posigées de antagonismo inconci- lidvel. A vitoria da Unido Soviética sobre Hitler foi uma realizagao do regime 14 instalado pela Revolugdo de Outubro, como demonstra uma comparagio do desempenho da economia russa czarista na Primeira Guerra Mundial com a economia soviética na Segunda Guerra (Gatrell & Harrison, 1993). Sem isso, © mundo hoje (com excegao dos EUA) provavelmente seria um conjunto de variagdes sobre temas autoritérios e fascistas, mais que de variagdes sobre temas parlamentares liberais. Uma das ironias deste estranho século é que 0 resultado mais duradouro da Revolugao de Outubro, cujo objetivo era a derru- | bada global do capitalismo, foi salvar seu antagonista, tanto na guerra qvanto na paz, fornecendo-Ihe o incentive — 0 medo — para reformar-se aps a Segunda Guerra Mundial e, ao estabelecer a popularidade do planejamento econémico, oferecendo-Ihe alguns procedimentos para sua reforma. Contudo, mesmo tendo sobrevivido — por pouco — ao triplo desafio da depressio, do fascismo e da guerra, 0 capitalismo ainda parecia enfrentar 0 avango global da revolugdo, que s6 podia arregimentar-se em torno da URSS, egressa da Segunda Guerra Mundial como superpoténcia. E no entanto, como agora podemos ver retrospectivamente, a forga do desafio socialista global ao capitalismo era a da fraqueza de seu adversério. | Sem 0 colapso da sociedade burguesa do século xix na Era da Catéstrofe, nao |; y teria havido Revolugéio de Outubro nem uRSS. O sistema econdmico improv sado na arruinada casca eurasiana rural do antigo império czarista sob 0 nome de socialismo nao se teria acreditado — nem teria sido considerado — uma alternativa global realista para a economia capitalista. A Grande Depressio de 1930 criou essa impressao, pois foi o desafio do fascismo que fez da URSS 0 instrumento indispensdvel para a derrota de Hitler e, em conseqiiéncia, uma das duas superpoténcias cujos confrontos dominaram e aterrorizaram a segun- da metade do Breve Século xx, estabilizando, ao mesmo tempo. em muitos 17 aspectos — como hoje podemos ver —, sua estrutura politica. A URSS nao teria estado durante uma década e meia, em meados do século, a testa de um “campo socialista” que compreendia um tergo da raga humana, com uma eco- nomia que por um breve instante pareceu capaz de sobrepujar o crescimento econdémico capitalista. Como e por que © capitalismo, apés a Segunda Guerra Mundial, viu-se, para surpresa de todos, inclusive dele proprio, saltar para a Era de Ouro de 1947-73, algo sem precedentes ¢ possivelmente anémalo? Eis, talvez, a ques- tao central para os historiadores do século xx. Ainda nao se chegou a um con- senso e nao tenho a pretensao de oferecer uma resposta persuasiva. Talvez seja preciso esperar que toda a “longa onda” da segunda metade do século xx possa ser vista em perspectiva para que surja uma andlise mais convincente, mas, embora hoje possamos ver a Era de Ouro, retrospectivamente, como um todo, no momento em que escrevo as Décadas de Crise que o mundo viveu desde entao ainda nao estio completas. Contudo, j4 podemos avaliar com muita con- fianga a escala e 0 impacto extraordindrios da transformagio econémica, social e cultural decorrente, a maior, mais répida e mais fundamental da hist tia registrada. Varios aspectos dessa transformagio serao discutidos na segun- da parte deste livro. E provavel que no terceiro milénio os historiadores do século xx situem o grande impacto do século na histéria como sendo o desse espantoso periodo e de seus resultados. Porque as mudangas dele decorrentes para todo o planeta foram téo profundas quanto irreversiveis. E ainda estio ocorrendo, Os jomalistas ¢ ensajstas filos6ficos que detectaram o “fim da his- tria” na queda do império soviético estavam errados. O argumento é melhor quando se afirma que 0 terceiro quarte! do século assinalou 0 fim dos sete ou oito milénios de histéria humana iniciados com a revolugao da agricultura na Idade da Pedra, quando mais no fosse porque ele encerrou a longa era em que a maioria esmagadora da raga humana vivia plantando alimentos ¢ pastorean- do rebanhos. Diante disso, € provivel que a histéria do confronto entre “capitalismo” ¢ “socialism”, com ou sem a intervengdo de Estados e governos como os EUA © a URSS pretendendo representar um ou outro, pareca de interesse hist6rico mais limitado — compardvel, a longo prazo, As guerras religiosas dos séculos XVI XVII ou as Cruzadas. Para os que viveram um pedaco qualquer do Breve Século xx, € natural que capitalismo e socialismo parecam enormes, ¢ assim 0 so neste livro, escrito por um escritor do século xx, para leitores de fins do século xx. As revolugées sociais, a Guerra Fria, a natureza, limitagées e falhas) fatais do “socialismo realmente existente” e seu colapso sdo discutidas a, exaustao. Mesmo assim, convém lembrar que o impacto maior ¢ mais dura,| douro dos regimes inspirados pela Revolugaio de Outubro foi a grande acele-| ragdo da modernizagiio de pafses agrarios atrasados. Na verdade, nesse aspec-| to suas grandes realizag6es coincidiram com a Era de Ouro capitalista. As| 18 estratégias rivais para sepultar 0 mundo de nossos antepassados foram efica- zes? Foram, inclusive, conscientes? Eis algo que nao precisamos examinar aqui. Como veremos, até 0 inicio da década de 1960 elas pareciam no minimo emparelhadas, visio que parece absurda a luz do colapso do socialismo sovié- tico, embora um primeiro-ministro britanico, em conversa com um presidente americano, ainda pudesse considerar a URSS um Estado cuja “exuberante eco- nomia [...] em breve ultrapassaré a sociedade capitalista na corrida pela rique- za material” (Horne, 1989, p. 303). Contudo, o importante é notar, simples- mente, que na década de 1980 a Bulgéria socialista e 0 Equador no socialista tinham mais em comum entre si que com a Bulgaria e o Equador de 1939. Embora 0 colapso do socialismo soviético ¢ suas enormes conseqiiéncias, por enquanto impossiveis de calcular por inteiro, mas basicamente negativas, fossem o incidente mais dramatico das Décadas de Crise que se seguiram a Era de Ouro, essas iriam ser décadas de crise universal ou global. A crise afetou as varias partes do mundo de maneiras e em graus diferentes, mas afetou a todas elas, fossem quais fossem suas configuragdes politicas, sociais e econd- micas, porque pela primeira vez na histéria a Era de Ouro criara uma economia mundial Gnica, cada vez mais integrada e universal, operando em grande medi: if da por sobre as fronteiras de Estado (“‘transnacionalmente”) ¢, portanto, tam: bém, cada vez mais, por sobre as barreiras da ideologia de Estado. Em decor-' réncia, as idéias consagradas das instituigdes de todos os regimes e sistemas ficaram solapadas. No inicio havia a esperanga de que os problemas da déca- da de 1970 fossem uma pausa tempordria no Grande Salto Avante da econo- mia mundial, e paises de todos os tipos e modelos econémicos e politicos buscaram solugées tempordrias. Porém, foi ficando cada vez mais claro que se tratava de uma era de problemas de longo prazo, para os quais os paises capi- talistas buscaram solugées radicais, muitas vezes ouvindo tedlogos seculares do livre mercado irrestrito, que rejeitavam as politicas que tio bem haviam ser- vido 4 economia mundial durante a Era de Ouro ¢ que agora pareciam estar falhando. Os fandticos do laissez-faire tiveram tanto éxito quanto os demais Na década de 1980 e inicio da de 1990, o mundo capitalista viu-se novamen- te as voltas com problemas da época do entreguerras que a Era de Ouro pare- cia ter eliminado: desemprego em massa, depressdes ciclicas severas, contra- posig&io cada vez mais espetacular de mendigos sem teto a luxo abundante, em meio a rendas limitadas de Estado ¢ despesas ilimitadas de Estado. Os paises socialistas, agora com suas economias desabando, vulnerdveis, foram impeli- dos a realizar rupturas igualmente — ou até mais — radicais com seu passado e, como sabemos, rumaram para 0 colapso. Esse colapso pode assinalar o fim do Breve Século xx, como a Primeira Guerra Mundial pode assinalar 0 seu ini- cio. Nesse ponto minha historia chega ao fim. * Chega ao fim — como todo livro conclufdo no inicio da década de 1990 y — com um olhar para a escuridao. O colapso de uma parte do mundo revelou 19 o mal-estar do resto. A medida que a década de 1980 passava para a de 1990, foi ficando evidente que a crise mundial nao era geral apenas no sentido eco- némico. mas também no politico. O colapso dos regimes comunistas entre Istria e Vladivostok no apenas produziu uma enorme zona de incerteza politi- ica, instabilidade, caos e guerra civil, como também destruiu.o sistema inter- ‘nacional que dera estabilidade as relagdes internacionais durante cerca de / quarenta anos. Além disso, esse colapso revelou a precariedade dos sistemas politicos internos apoiados essencialmente em tal estabilidade. As tensdes das economias em dificuldades minaram os sistemas politicos das democracias liberais, parlamentares ou presidenciais, que desde a Segunda Guerra Mundial vinham funcionando to bem nos paises capitalistas, assim como minaram todos os sistemas politicos vigentes no Terceiro Mundo. As préprias unidades basicas da politica, os “Estados-nagdo” territoriais, soberanos e independen- tes, inclusive os mais antigos e estiveis, viram-se esfacelados pelas forcas de uma economia supranacional ou transnacional e pelas forgas infranacionais de regides ¢ grupos étnicos secessionistas, alguns dos quais — tal é a ironia da histéria — exigiram para si o status anacronico e irreal de “Estados-nacio” em miniatura. O futuro da politica era obscuro, mas sua crise, no final do Breve Século, patente. Ainda mais ébvia que as incertezas da economia e da politica mundiais era a crise social e moral, refletindo as transformagées pés-década de 1950 na vida humana, que também encontraram expresso generalizada, embora con- fusa, nessas Décadas de Crise. Foi uma crise das crengas e supostos sobre os quais se apoiava a sociedade modema desde que os Modernos ganharam sua famosa batalha contra os Antigos, no inicio do século xvut: uma crise das teo- rias racionalistas e humanistas abracadas tanto pelo capitalismo liberal como pelo comunismo e que tornaram possivel a breve mas decisiva alianca dos dois contra 0 fascismo, que as rejeitava. Um observador conservador alemao, Michael Stiirmer, disse corretamente, em 1993. que as crencas do Oriente e do Ocidente estavam em questo: 1H um estranho paralelismo entre Oriente ¢ Ocidente. No Oriente, a doutrina de Estado insistia em que « humanidade era dona de seu destino. Contudo, mesmo ns acreditavamos numa versio menos oficial e extrema do mesmo slogan: a humanidade estava para tornar-se dona de seus destinos, A pretensdo de onipotén- cia desapareceu absolutamente no Oriente, ¢ 56 relativamente chez nous — mas 0 dois lados naufragaram. (De Bergdorf, 98, p. 95) Paradoxalmente, uma era cuja tinica pretensdo de beneficios para a humanida- de se assentava nos enormes triunfos de um progresso material apoiado na ciéncia e tecnologia encerrou-se numa rejeigéio destas por grupos substanciais da opiniio piiblica e pessoas que se pretendiam pensadoras do Ocidente. Contudo, a crise moral no dizia respeito apenas aos supostos da civiliza- 20 t gG0 moderna, mas também as estruturas hist6ricas das relagdes humanas que a sociedade moderna herdara de um passado pré-industrial e pré-capitalista ¢ que, agora vemos, haviam possibilitado seu funcionamento. Nao era a crise de uma forma de organizar sociedades, mas de todas as formas. Os estranhos ape- los em favor de uma “sociedade civil” nao especificada, de uma “comunida- de”, eram as vozes de geracdes perdidas ¢ & deriva. Elas se faziam ouvir numa era em que tais palavras, tendo perdido seus sentidos tradicionais, se haviam tornado frases insipidas. Nao restava outra maneira de definir identidade de grupo sendo definir os que nele nao estavam. Para 0 poeta explosio, mas com uma lamtiria”. O Breve Século xx se acabou com 0s dois. I > {Como comparar 0 mundo da década de 1990 ao mundo de 1914? Nele viviam 5 ou 6 bilhées de seres humanos, talvez trés vezes mais que na eclosio da Primeira Guerra Mundial, ¢ isso embora no Breve Século xx mais homens tivessem sido mortos ou abandonados a morte por decisdo humana que jam: antes na histria? Uma estimativa recente das “megamortes” do século menc’ na 187 milhée$ (Brzezinski, 1993), o equivalente a mais de um em dez da Populagao mundial total de 1900. Na década de 1990 a maioria das pessoas era mais alta e pesada que seus pais, mais bem alimentada e muito mais longeva, embora talvez as catistrofes das décadas de 1980 e 1990 na Africa, na América Latina e na ex-URSs tornem dificil acreditar nisso. O mundo estava incompa- ravelmente mais rico que jamais em sua capacidade de produzir bens e servi- gos e na intermindvel variedade destes. Nao fora assim, no teria conseguido manter uma populagao global muitas vezes maior que jamais antes na historia do mundo. Até a década de 1980 a maioria das pessoas vivia melhor que seus pais e, nas economias avangadas, melhor que algum dia tinha esperado viver, ‘ou mesmo imaginado possivel viver. Durante algumas décadas, em meados do século, chegou a parecer que se haviam descoberto maneiras de distribuir pelo menos parte dessa enorme riqueza com um certo grau de justiga entre os tra- balhadores dos paises mais ricos, mas no fim do século a desigualdade volta- va a prevalecer e também entrava macigamente nos ex-paises “socialistas”, onde antes imperava uma certa igualdade de pobreza. A humanidade era muito mais culta que em 1914, Na verdade, talvez, pela primeira vez na histéria a maioria dos seres humanos podia ser descrita como alfabetizada, pelo menos nas estatfsticas oficiais, embora o significado dessa conquista estivesse muito menos claro no final do século do que teria estado em 1914, em vista do fosso enorme — talvez crescente — entre 0 minimo de competéncia oficialmente aceito como alfabetizagao, muitas vezes descrito como “analfabetismo funcio- 21 S. Eliot, “é assim que o mundo acaba — nao com uma nal”, e o dominio da leitura e da escrita ainda esperado nas camadas de elite. O mundo estava repleto de uma tecnologia revoluciondria em avango constante, baseada em triunfos da ciéncia natural previsfveis em 1914 mas que |na época mal haviam comegado e cuja conseqiiéncia politica mais impressio- | Mante talvez fosse a revolugdo nos transportes e nas comunicagdes, que pral ‘\camente anulou o tempo e a distancia. Era um mundo que podia levar a cada residéncia, todos os dias, a qualquer hora, mais informagdo e diverstio do que dispunham os imperadores em 1914. Ele dava condigdes as pessoas de se fala- rem entre si cruzando oceanos e continentes ao toque de alguns botées e, para quase todas as questdes praticas, abolia as vantagens culturais da cidade sobre © campo. Por que, entao, o século terminara nao com uma comemoragao desse pro- gresso inigualado e maravilhoso, mas num estado de inquietagaio? Por que, como mostram as epigrafes deste capitulo, tantos cérebros pensantes 0 véem em retrospecto sem satisfacdo, e com certeza sem confianga no futuro? Nao apenas porque sem diivida ele foi o século mais assassino de que temos regis tro, tanto na escala, freqiiéncia e extensao da guerra que o preencheu, mal ces- sando por um momento na década de 1920, como também pelo volume tinico das cat4strofes humanas que produziu, desde as maiores fomes da hist6ria até © genocidio sistematico. Ao contrério do “longo século xix”, que pareceu, e na verdade foi, um perfodo de progresso material, intelectual e moral quase inin- terrupto, quer dizer, de melhoria nas condigées de vida civilizada, houve, a partir de 1914, uma acentuada regressdo dos padrdes entéo tidos como nor- mais nos pafses desenvolvidos ¢ nos ambientes da classe média e que todos acreditavam piamente estivessem se espalhando para as regides mais atrasadas ¢ para as camadas menos esclarecidas da populagao. isto que este século nos ensinou ¢ continua a ensinar que os seres huma- nos podem aprender a viver nas condigées mais brutalizadas e teoricamente intolerdveis, nfo é facil aprender a extensiio do regresso, por desgraga cada vez mais rapido, ao que nossos ancestrais do século XIX teriam chamado padroes de barbarismo. Esquecemos que 0 velho revoluciondrio Friedrich Engels ficou horrorizado com a explosdo de uma bomba republicana irlande- sa em Westminster Hall — porque, como velho soldado, afirmava que a guer- Ta se travava contra combatentes € niio contra ndo-combatentes. Esquecemos que os pogroms na Rissia czarista, que, com justiga, indignaram a opiniao publica e impeliram milhdes de judeus russos para 0 outro lado do Atlantico entre 1881 e 1914, cram pequenos, quase insignificantes, pelos padres de massacre modernos: os mortos contavam-se ds dezenas, ndo as centenas, € jamais aos milhdes. Esquecemos que no passado uma convengao internacional estabeleceu que as hostilidades da guerra “nao devem comecar sem aviso pré- vio e explicito, sob a forma de uma arrazoada declaragdo de guerra ou de um ultimatum com declaragio de guerra condicional”, pois quando foi mesmo a 22 iltima guerra iniciada com tal declaragao explicita ou implicita? Ou que aca- bou com um tratado de paz formal negociado entre os Estados beligerantes? Durante 0 século Xx as guerras tém sido, cada vez mais, travadas contra a eco- nomia e a infra-estrutura de Estados e contra suas populag6es civis. Desde a Primeira Guerra Mundial, o ntimero de baixas civis na guerra tem sido muito maior que as militares em todos 0s paises beligerantes, com excecdo dos EUA. Quantos de nés recordam que em 1914 se tinha por certo que A guerra civilizada, diz-nos 0 manual escolar, limita-se, até onde possfvel, & inca- pacitagiio das Forgas Armadas do inimigo: nao fosse assim, a guerra continuaria até o exterminio de uma das partes. “Ha boas razées (...] para que essa pritica se tornasse um costume nos pafses da Europa.” (Encyclopaedia Britannica, xi ed., 1911, arte: Guerra.) Nao é que ignoremos o ressurgimento da tortura, ou mesmo do assassinato, como parte normal das operagdes de seguranca ptiblica nos Estados moder- nos, mas é proviivel que nao avaliemos com preciso a dramética reviravolta implicita, considerando-se a longa era de desenvolvimento juridico, desde a primeira aboligado formal da tortura num pais ocidental, na década de 1880, até 1914, _» Eno entanto nao podemos comparar 0 mundo do final do Breve Século , XxX ao mundo de seu inicio, em termos da contabilidade hist6rica de “mais” ¢ | “menos”. Tratava-se de um mundo qualitativamente diferente em pelo menos! tés aspectos. \ Primeiro, ele tinha deixado de ser eurocéntrico. Trouxera o declinio e | queda da Europa, ainda centro inquestionado de poder, riqueza, intelecto e “civilizagdo ocidental” quando 0 século comegou. Os curopeus ¢ seus descen- dentes estavam reduzidos de talvez um tergo para no maximo um sexto da humanidade: uma minoria decrescente vivendo em paises que mal reprodu- ziam — quando reproduziam — suas populagées, uma minoria cercada e, na maioria dos casos — com algumas brilhantes excegdes, como os BUA até a década de 1990 —, erguendo barricadas contra a pressio da imigragiio das regides pobres. As indtistrias, em que a Europa fora pioneira, migravam para outras partes. Os paises do outro lado dos oceanos, que outrora se voltavam para a Europa, agora se voltavam para outras partes. A Austrélia, a Nova Zelandia e até mesmo os bi-ocenicos EuA, viam o futuro no Pacifico, seja 14 qual for o significado exato disso. As “grandes poténcias” de 1914, todas européias, haviam desaparecido, como a uRSS, herdeira da Russia czarista, ou sido reduzidas a um status regio- nal ou provincial, com a possivel excegao da Alemanha. O proprio esforco para criar uma “Comunidade Européia” supranacional tinica e inventar um senso de identidade européia a ela correspondente, substituindo as velhas lealdades a paises e Estados hist6ricos, demonstrava a profundidade desse declinio. Seria essa uma mudanga de grande significado, a ndo ser para os historia~ 23 dores politicos? Talvez nao, pois refletia apenas mudangas menores na confi- guragao econémica, intelectual e cultural do mundo. Mesmo em 1914, os BUA ja eram uma grande economia industrial, 0 grande pioneiro, modelo e forga propulsora da produgdo em massa e da cultura de massa que conquistaram 0 globo durante o Breve Século xx, e, apesar de suas muitas peculiaridades, eram a extensao da Europa no além-mar, enquadrando-se no Velho Continente sob & denominagao “civilizagao ocidental”. Quaisquer que fossem suas pers- pectivas futuras, os EUa da década de 1990 viam o “Século Americano” as suas costas, sua era de ascensao ¢ triunfo. O conjunto dos pafses da industrializa- gao do século xix continuava sendo, de longe, a maior concentragao de rique- za e poder econdmico e cientifico-tecnolégico do globo, além daquele cujos povos tinham. de Jonge, 0 mais alto padrio de vida. No fim do século isso ainda compensava fartamente a desindustrializagao e a mudanga da produgdo para outros continentes, Nessa medida, a impressio de um velho mundo euro- céntrico ou “ocidental” em pleno declinio era superficial. A segunda transformagio foi mais significativa. Entre (914 ¢ 0 inicio da década de 1990 o globo foi muito mais uma unidade operacional unica, como nao era e nao poderia ter sido em 1914. Na verdade, para muitos propésitos. notadamente em questées econdmicas, o globo é agora a unidade operacional basica, e unidades mais velhas como as “economias nacionais”, definidas pelas politicas de Estados tervitoriais, esto reduzidas a complicagdes das atividades transnacionais. O estigio alcangado na década de 1990 na construgao da “aldeia global” — expressao cunhada na década de 1960 (McLuhan, 1962) — nao pare- cera muito adiantado aos observadores de meados do século xx1, porém ja havia transformado nio apenas certas atividades econémicas ¢ técnicas e as operagées da ciéncia, como ainda importantes aspectos da vida privada, sobretudo devido a inimagindvel aceleragdio das comunicagdes ¢ dos transportes. Talvez a carac~) teristica mais impressionante do fim do século xx seja a tensdo entre esse pro- cesso de globalizago cada vez mais acelerado e a incapacidade conjunta das / instituigdes puiblicas e do comportamento coletivo dos seres humanos de se aco-! modarem a ele. E curioso observar que 0 comportamento humano privado teve menos dificuldade para adaptar-se ao mundo da televisio por satélite, ao correio eletronico, as férias nas Seychelles e a0 emprego transoceanico. A terceira transformagao, em certos aspectos a mais perturbadora, é a desintegracio de velhos padrées de relacionamento social humano. e com ela, alids, a quebra dos elos entre as geragdes, quer dizer, entre passado e presente, Isso ficou muito evidente nos pafses mais desenvolvidos da versao ocidental de capitalismo, onde predominatam os valores de um individualismo associal absoluto, tanto nas ideologias oficiais como nas nao oficiais, embora muitas vezes aqueles que defendem esses valores deplorem suas conseqiiéncias sociais. Apesar disso, encontravam-se as mesmas tendéncias em outras partes, reforgadas pela erosio das sociedades e religides tradicionais e também pela destruigdo, ou autodestrui¢ao, das sociedades do “socialismo real”. 24 ee Essa sociedade, formada por um conjunto de individuos cgocentrados sem outra conexiio entre si, em busca apenas da propria satisfagdo (0 lucro, 0 prazer ou seja Id o que for), estava sempre implicita na teoria capitalista. Desde a Era da Revolugao, observadores de todos os matizes ideolégicos previram a conseqiiente desintegracfo dos velhos lagos sociais na pritica e acompanha- ram seu desenvolvimento. E conhecido o elogiiente tributo do Manifesto Comunista 20 papel revolucionario do capitalismo. (“A burguesia (...] despe- | dagou impiedosamente os diversos lagos feudais que ligavam o homem a seus ‘superiores naturais’, e nfio deixou nenhum outro nexo entre homem e homem. além do puro interesse préprio.”) Mas nao foi exatamente assim que a nova ¢ revoluciondria Sociedade capitalista funcionou na pritica. Na pritica, a nova sociedade operou nao pela destruigdo maciga de tudo que o herdara da velha sociedade, mas adaptando seletivamente a heranga do ‘passado para uso proprio. Néo ha “enigma sociolégico” na disposigao da sociedade burguesa de introduzir “um individualismo radical na economia ¢ [...] despedagar todas as relagées sociais ao fazé-lo” (isto €, sempre que atra- palhassem), temendo ao mesmo tempo o “individualismo experimental radi- cal” na cultura (ou no campo do comportamento e da moralidade) (Daniel ‘Bell, 1976, p. 18). A maneira mais eficaz de construir uma economia industrial haseada na empresa privada era combind-la com motivagGes que nada tives- {sem a ver com a légica do livre mercado — por exemplo com a ética protes- | \itante: com a’abstencgao da satisfagao imediata; com a ética do trabatho érduo; ;com a nogiio de dever e confianga familiar; mas decerto no com a antinémi- ‘ca rebelido dos individuos.. <=. | Contudo, Marx e 0s outros profetas da desintegracao dos velhos valores ¢ relagdes sociais tinham razao. O capitalismo era uma forga revolucionadora; permanente continua. Claro que ela acabaria por desintegrar mesmo as par-} tes do passado pré-capitalista que antes achava convenientes, ou até mesmo | essenciais, para seu préprio desenvolvimento: acabaria serrando pelo menos | um dos galhos em que se assentava. Isso vem acontecendo desde meados do século. Sob o impacto da extraordindria explosio econémica da Era de Ouro & depois, com suas conseqiientes mudangas sociais e culturais — a mais profun- da revolugio na sociedade desde a Idade da Pedra —, 0 galho comegou a esta- lar e partit-se. No fim deste século, pela primeira vez, tomou-se possivel ver como pode ser um mundo em que o passado, inclusive o passado no presente, perdeu seu papel, em que os velhos mapas e cartas que guiavam os seres humanos pela vida individual e coletiva nio mais representam a paisagem na qual nos movemos, o mar em que navegamos, Em que nao sabemos aonde nos leva, ou mesmo aonde deve levar-nos, nossa viagem. E a essa situagdo que uma parte da humanidade ja deve acomodar-se no final do século: no novo milénio, outras deverao fazé-lo. Porém entao, quem sabe, ja seja possivel ver melhor para onde vai a humanidade. Olhando para 25

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