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vl © DIALOGO: PERSONAGENS E NARRACOES Dedico-me ao didlogo apés os capitulos anteriores, justamente porque ele esta sempre presente, tanto na atividade do jogo quanto na narracao dos sonhos, ou nos comentarios dos deserihos, além de, naturalmente, na interacao verbal. ‘Alias, foi uma necessidade expositiva separar desenho/jogo/sonhio/didlogo, tratando-se de modalidades expressivas em continua passagem de uma a outra ‘e muitas vezes contemporaneamente presentes. Além disso, assim como acho util o exercicio de transformar em linguagem adulta uma comunicagao de uma crianga e, vice-versa, perguntar-me como uma ctianga colocaria a comunicagao verbal de um adulto, acho enriquecedor 0 exercicio de passar de uma forma de expresso a outra: perguntar-me como uma parte dialogada poderia ser proposta se tivesse que ser desenhada, ou como seria ‘um desenho se contado, ou um jogo se transformado num sonho, ou o jogo em desenho e assim por diante; isso me parece dtil tanto para encontrar chaves {nterpretativas mais elasticas, quanto para confirmar o conceito de unitariedade dos fatos psiquicos e so a multiplicidade das suas expressoes de acordo com 0 canal mais itil naquele momento. Existem diversos vertices de escuta no considerar o didlogo analitico: € possivel, por exemplo, considerar um nivel historico, eferencial, através do qual, assumimos informacées acerca da realidade externa, e também afetiva de uma crianga, que a0 contar-nos alguma coisa, nos colocara ao mesmo tempo em ontato com o seu mundo real externo, ¢ com os sentimentos que este ativa nela Certamente nos falara também do seu mundo fantasmatico e do modo como este entra em relagdo conosco, € com o nosso mundo interno. Mas existe um nivel que acredito nos interesses ainda mais do que aquele que nos faz considerar a estrutura mental ou o tipo de funcionamento que a crianga vive e atualiza conosco: “Vi um filme no qual cientistas cortavam um ovo em fatias para ver como era por dentro, mas assim o pintinho nao nascia” ¢uma 141 A. Ferro comunicagao que ativa em nos pensamentos sobre o tipo de funcionamento obsessivo da crianca, que racionalizando, fatiando os conteudos, impede que venham a tona tanto pensamentos originais quanto afetos; e, considerada na contratransferéncia, permite-nos assumir aos olhos da crianca a responsabilida. de por aquilo que acontece, interpretando-lhe que, as vezes, premidos pelo desejo de conhecer e de saber, intervirmos com a intencao de esclarecer as idéias ‘nas suas comunicacdes ¢ estados emocionais, impedindo porém que eles possam. exprimir todas as suas potencialidades. Ha um nivel, porém, que certamente nao pode ser postulado como 0 unico existente, mas que deve ser considerado em ressonancia e em oscilagao com os anteriores, que na minha opiniao € o mais especifico e o mais significativo da situacao analitica; isto €, assumir como “verdadeiro” o ponto de vista do paciente, {que nos indica um funcionamento do campo relacional no qual estamos ta0 implicados quanto ele, ¢ dentro do qual a interpretacéo nao tem muito valor, ‘mas sao de maxima importancia as capacidades de operar uma mudanga e uma transformacéo do nosso modo de colocar-nos com ele; assumit, por exemplo, por ocasiio da referida comunicagao, que de um seu vértice, nos comportamos com ele (ou ele conosco, pouco importa!) como cientistas que realmente partem em pedacos, cortam a comunicacao para mostrar como € feita, impedindo assim que possa continuat a se desenvolver e enriquecer-se: devemos a esta altura mudar o nosso modo de funcionar mentalmente e de interagir no campo, de maneira que se permita uma transformagio do proprio campo, sem que isso deva necessariamente ser interpretado, mas colocando-nos de modo diferente do “dos cientistas que fatiam 0 ovo". Isto é possivel trabalhando e transformando tno nosso working-through essa “capacidade dos cientistas”, até transformé-la, digamos, em “fatores que oferecem comida para o crescimento dos pintinhos Nao com interpretacoes, mas permitindo que se realizem as autenticas condigoes para um encontro mental diferente e fertil,oferecendo nossa mente modificada € capaz de fornecer aquilo de que o pintinho necessita para crescer, permitir que possa fazer uma realizacao emacional (G) at entio desconhecda e impensivel © quanto e como seremos capazes de fazer essa operacio, nos ser comuni- cado pontualmente pelo paciente, através dos personagens ou das outras poss veis comunicagoes que fara (ou faremos) entrar em campo. Este modo de ver nos aproxima, como dizia no Capitulo It, por um lado das concepgdes de campo postuladas pelos Baranger (1961-62, 1964) e com Mom. (1983) ¢ por Corrao (1986, 1988), mas sobretudo de Bion (1983), quando afirma que 0 paciente grave (cu diria as partes primitivas dos pacientes) sabe sempre conde estamos e como interagimos com ele. De um ponto de vista tedrico isto quer dizer simplesmente considerar que ‘existe sempre uma funcao alfa constantemente trabalhando, © que aos poucos A técnica na psicandilise infantil se formam pensamentos oniricos da vigilia (que algumas vezes, em situagdes particulares, podem fugir do continente mental e ser projetados para o exterior ‘como fotogramas oniricos da vigilia), que habitualmente sio a resposta “sonha- dda” as estimulagoes sensoperceptivas. Os personagens, as narracoes, as anedotas pertencem a esse nivel de comunicagao e constituem uma verdadeira holografia do funcionamento mental profundo do par, Equivale dizer, ¢ nao me canso de repeti-lo, que existe um nivel no qual, ‘continuamente, 0 paciente nos sonha (e nos narra) como somos para ele, de vertices desconhecidos: mas devemos assumir esta verdade pela qual somos corresponsaveis, para permitir ulteriores transformacoes do campo. Naturalmente, nao se trata de um nivel exclusivo, nem sobre o qual se possa permanecer constantemente: trata-se, como diz Hamon (1972), de permitir que exista uma pluralidade de modelos em continua oscilagao entre si 0 fato de ter ressaltado a espessura particular que atribuo ao “personagem” (nao importa como ele se coloque na sessio, naturalmente nao deve ser neces- sariamente antropomorfo para ter reconhecimento), convence-me acerca da utilidade de acenar como o “personagem” foi considerado nos varios modelos narratologicos € como ele me parece dentro dos varios modelos da mente: justamente na observacao que pude realizar de uma evolucao paralela entre as duas séries de estudos. Quanto aos aspectos narratologicos, eu distinguiria trés grupos, No primeiro, colocaria todos 05 estudos ditos psicologicos que consideram, dentro de um texto, um personagem como se fosse tuma pessoa viva, com uma espessura propria e uma propria psicologia, por isso no texto haveria encontros, acontecimentos entre pessoas com caracteristicas especificas proprias que po- deriam ser aprofundadas, na direcao do seu carater. {ise incluem todos os estudos pré-semioticos de carater idealista-romantico. Um segundo grupo muito amplo, eu o formaria a partir dos formalistas russos (Tynianon, 1924; Sklovskij, 1925; Tomasevskij, 1928 etc., que invertem a conceitualizagdo anterior, interessados nos procedimentos literarios, ¢ que teorizam em medida e modalidade diversas a subordinacao do personagem a trama), até incluir Propp (1928, com o seu interesse pela tipologia da narracao de historias), Bremond (1973, que elabora um codigo dos papeis e das acSes), Greimas (1966,1983) e o primeiro Todorov (1965, com 0 seu interesse pela estrutura da narragao, pelas combinacées das estruturas narrativase pela funcao do personagem no texto). Autores todos acomunados pelo estudlo do texto em si, considerado passivel de uma exploracdo objetiva por parte de um critico posto fora do proprio texto Consideraria como um terceito grupo 0 que compreende aqueles autores 143 memento ney A Ferro que, embora com diferente intensidade, acentuaram a necessidade de considerar a interrelagao constante e necessaria texto/leitor, cujos maiores representantes sto Eco (1979, 1990), 0 ultimo Todorov (1971, 1975) e Hamon (1972), Hamon pontualiza que o personagem € tanto uma construcao do texto, ‘quanto uma reconstrucéo do letor, distinguindo os personagens em: referenciais, comutadores e anaféricos. Sio referenciais os personagens historicos, mitologicos, alegoricos, sociais, “que remetem a um sentido pleno ¢ fixo”... terio 0 papel de ancoragem da narragdo, asseguram “o efeito de real”, como diz Barthes (1966), Personagens comutadores sio “os espides da presenca do autor no texto” personagens porta-voz Personagens anaforicos sto aqueles para os quais € indispensavel uma referéncia ao sistema peculiar interno da obra. Personagens que tecem no enunciado da trama narrativa uma série de apelos € evocacdes, para o leitor, em segmentos de enunciados separados...tém fungao organizadora ¢ de covsao, so os sinais mnemotécnicos do leitor. ‘Hamon faz notar que cada personagem pode pertencer simultaneamente, ow alternadamente, a mais de uma categoria: cada unidade tem uma polivalencia funcional no contexte. Hamon considera o personagem como um morfema descontinuo e acrescenta ‘com Todorov que a etiqueta semantica do personagem se coloca como uma construcdo que se realiza gradativamente, com base no tempo de leitura, (© personagem ¢ sempre, em medidas diferentes, um espaco em branco, um “assemantema’, nao catalogavel com um sentido ja dado; somente gradativamen- te oleitor podera conhecer o sentido daquele nome ou daquele personagem, que ‘ele mesmo ajudara a construir ‘A semantizagao depende do conjunto sistematico da historia, do relacionamen- to com todos os personagens da propria historia, da competencia intertextual do leitor (Eco, 1979) e dos mundos possiveis que se ativam na leitura (Eco, 1962) Convem notar como, nesse terceiro grupo, torna-se sempre mais interessante 6 debate entre os defensores de uma semiose ilimitada e de uma derivagao do significado, ¢ os defensores do “limite” em relagdo a todas a5 interpretacoes possiveis, pelo menos em termos de economicidade de leitura e de direitos do texto (Eco, 1990). (© mesmo tipo de evolucao e de triparticao em relagao ao personage, eu faria em relagao ao modelo estrutural nas varias dectinagoes, 20 modelo Kleinis- no e aquele que definitia “relacional insaturado”, como procurei defini-lo no Capitulo HL! 1 Naturalmente, ¢ ui atiicio colocar uma compuracao entre sitagies to diferentes como as da M44 A técnica na psicandlise infantil No modelo estrutural os personagens cle um sonho, por exemplo, repre- sentam um pensamento ou uma atitude de uma discussao que acontece na psique do paciente. E dever do analista mediar as varias vozes em conflito, permitindo que cada uma delas possa continuar a ser ouvida. Os personagens referidos durante a sesso aparecem como 0s reais externos (personagens referenciais) aos quais se remetem (por exemplo “irmao mais velho") € sio a ocasiao (ou o mével) de expressio de conflitos para com os mesmos. Conflitos historicos que na trans feréncia poderao encontrar uma reedi¢do ou uma solugto. As coisas de que fala o paciente nao sio, por sua vez, personagens do discurso mas sio vistas enquanto objetos concretos (por exemplo, um relogio) em toro dos quais giram ou se desencadeiam conflitos (vide “gengiva ¢ dente” no modelo relacional em que s30 modos de se referira fatos emocionais da sala, ou de personificar afetos). Assim, por exemplo, uma comunicagdo a respeito de nao usar as roupas do Papai seria pensada como se dissesse respeito as reais (da realidade externa) pecas do vestuario do pai, € 0s conflitos que as mesmas acendem em relagao 20 pai e ao relacionamento com ele... ndo sao pensados como se tivessem algo a ver com 0 modo do paciente de usar/nao usar as palavras do analista... ou da fangao filo do campo, de usar/nao usar 0 que provem da fungdo geradora de sentido (pai) do campo: isto ¢, nao remetem as interligagées do funcionamento mental do par, explicitado através das narragdes que comportam, como nos da rede, 0 uso de personagens nao necessariamente antropomorfos. No modelo kleiniano a referencia € a fantasia inconsciente subjacente comunicacao, que se confirma como verdadeiro “heroi", em sentido narratolo- gico de protagonista de maior evidencia emocional. Os personagens da sessio, nesta Sptica, sao decodificaveis, nao relagao-es- pecificos e correspondem a fantasias corporais. © destino da fantasia inconsciente ¢ entao o de ser entendida e depois explicitada na interpretagao de transferéncia’ apresentamse “personagens” com varios rostos que, uma vez “decodificados”, remeterdo na sua esséncia a fantasias inconscientes. Nao existe a construgio de uma “historia", mas a descricao, a interpretacdo de fantasias “do” paciente. Os personagens da sessao, portanto, poderao ser objetos internos do pacien- te projetados sobre o analista, que tem pouco ou nada a ver com eles, a nao set no constituir-se como tela pata tais projecoes, ¢ como decodificador/intérprete das mesmas, com base num codigo constituido pela teoria kleiniana narratologia€ da psicanalise; isto pela peculiaridade da situacao analic, caracterizada pela contemporane pesena de dts textos vos cq ineragem cntnamene ene anon 14s a A. Ferro Por exemplo, podemos, a titulo puramente exemplificador e como pura exercitagao sobre um texto escrito, considerar o inicio da vigésima sexta sessao 0 caso Richard, o entrar em cena de um personagem e 0 modo como & interpretado. Richard chega pontual a sessio, traz duas coisas na pasta, a frota ¢ os chinelos novos. Este segundo contetido da pasta, que nao é colhido, me parece ‘muito terno, como um desejo doméstico, de home, e substitui possivelmente as botas de borracha de Richard, Certamente, nas sessbes anteriores, Klein interagity com Richard para fazer com que desejasse abrir-se, como faz com a pasta, € colocar-se a disposicao, bem entendido, junto com a possibilidade de ataque-de~ fesa da frota, também com uma disposigdo terna ¢ familiar. Em seguida Richard fala da mae na cama (talvez esteja preocupado com Klein, sente uma apreensio afetuosa para com ela: "Tenho que fazer a sua parte”). Diz também, referindo-se a fantasia de fuga: “Que idéia boba, aquela de escapar”, tira as botas, abaixa as defesas. Klein (que esta empenhada na construcio do seu genial edificio teorico) parece no entanto seguir seu proprio fio: € muito ativa, fala de trés sessoes atras, dos lapis pontiagudos. Coisas essas que nao estavam no texto verbal ou cemocional do paciente de hoje. Klein insiste com interpretacdes muito ativas, parece que Richard se defende distraindo-se, escutando os barulhos da rua, Depois Richard acrescenta que recentemente, enquanto viajava num Onibus com a mae, entrara um rapaz hostil que o tinha imediatamente amedrontado. No fundo, € como se a sesso que podia nascer sobre dois eixos (ou sobre ambos), 0 dos chinelos e o da frota, tomasse somente o rumo da frota. De fato, fala-se de ataques. Mas como pensar no “rapaz hostil"? Creio que é, como direi mais adiante, uma holografia afetiva do funcionamento do par, que nao pertence nem a um nem ao outro, mas nasce do encontro: Richard sentiu as palavras de Klein como uma ameaca, de uma Klein em posi¢ao de combate, hostil; por sua vez, dentro dele, wva-se uma hostilidade contra aquele ataque. {A frota tem a ver com a situagao em que um dos dois nao esta disposto a escutar (nao Q) Richard tem medo desse clima, 0 rapaz mau ¢0clima-personagem-hostilidade: Suncao do par. ‘Mas Klein ndo interpreta “os rapazes maus sto as palavras que Ihe fizeram ‘medo”, mas sim que “sio as criangas nao nascidas dentro da mae que voce esta atacando”. Isto é, Klein interpreta os personagens da sessdo remetendo-os a fantasias inconscientes do mundo interno do paciente: como se ja existisse um texto a decifrar “dentro” do paciente: € também verdade que em parte ¢ assim, Richard tem uma historia sua, tem suas fantasmatizagoes, mas no fundo ele se A técnica na psicanétise infantil apresentava ao encontro sulicientemente insaturado para comecar a escrever diversas historias possiveis, de acordo com a interagao do outro. E verdade também que estamos no inicio de um modelo a ser edificado, € que isso atraia toda a atencao de Klein ‘Antes de continuar, gostaria de abrir um breve percurso colateral: por que com @ modelo Kleiniano encontramos frequentemente, nos pacientes, muita hhostilidade, perseguicao? A meu ver, porque nao havia ainda a reflexdo devida 2 Bion de lugar onde colocar as interpretacoes, como uma construcao necessatia para que as interpretacoes nao forcem, ou até mesmo rompam continente Premtal onde sio postas; creio que seja esta uma das raizes mais frequentes da perseguicao: o forcar antecipadamente imerpretagbes, muitas vezes corretas, hnum continente ainda inadequado para acolhé-las. Lembro que uma menina apreciava o cuidado que eu tinha de tornar adequada e doméstica (0s chinelos de Richard) uma interpretagao, contando-me dama recente viagem a China que ela tinha feito com 0 pai, € que tinha ficadlo siurpresa a0 consiatar que, embora a China fosse uma grande poténeia, dotada de armas € misseis, nas lojas as vendedoras confeccionavam os pacotes com muito capricho, com 0 papel espesso € robusto de antigamente, com um laco emfeito em volta, que tornava facil depois pegi-los ¢ transporta-os ‘Passo a considerar o modelo relacional insaturado, tal como © propus no Capitulo Neste modelo as duas mentes em sessio necessitam dizer-se, contar-se 0 que acontece entre elas, e sobretudo o que acontece em nivel profundo, no jogo ‘ruzado das identificacdes projetivas. Os personagens permitem que se cons: truam historias e narragbes, que se revelem holografias do funcionamento do par a criagio ou a apresentacio dos personagens na sessao responcle nao so a profundas exigéncias de comunicacao ¢ de aleto das mentes, mas ¢ também Tancio das posigoes defensivas das duuas mentes em sessio e da possibilidade dos seus acasalamentos profundos, por isso constitu-se uma historia necessaria quelas duas mentes, especifica ¢ irrepetivel ‘A situacdo do dialogo analitico (Nissim Momigliano, 1984) é multo mais complexa, no seu momento de geracao, do que a situacao narratolbgica de autor € leitor de um texto, porque nela nos deparamos com um redobramento da situagao de leitura descrita por Todorov: Conto do autor/Universo imaginario evocado pelo autor/Universo imaginario evocado pelo leitor/Conto do leitor; por nos encontrarmos diante de dois autores contemporaneamente na posicio Ue leitores: ou, como diria Nissim Momigliano, diante da execugao de uma iisica a quatro mios, em que os temas afetivos (do par) sao continuamente colocados, repropostos e transformados. © personagem asstume a peculiaridade de holagrafia afeiva de um funciona: 147 onsen A. Ferro ‘mento do par, com a caracteristica de uma extrema mobilidade. As emocoes do par fornecem cores tons, as palavras tém funcao de agregacao e organizacao, até permitirem que delas derivem formas e estruturas: esses figuracdes narrativo-afetivas, que mudam com a variagao da posicdo relacional, s40 0 ‘inico modo que tém as mentes de descreverem para si mesmas 0 que acontece entre elas. ‘As narragées do par através dos personagens servirao para transformar as emocoes subjacentes ¢ para consentir novas aberturas de sentido, mais do que decofidicagdes de significado. Fica estabelecido que nao ha motivo para que o “personagem” seja conside- rado de natureza antropomorfa, ou animal, mas que pode ser qualquer coisa que sseja comunicada de um modo ou de outro. Apo uma intervencio minha nao suficientemente calibrada, Doriana, uma menina ja ha muito tempo em anilise, disse que muito provavelmente teria que pular uma sessao porque tinha havido uma separacao entre dente e gengiva que necessitava de uma operacao dolorosa (o salto da sesso?) para que fossem reaproximados, senao haveria outros riscos (de transferéncia negativa, de come- ¢0 de reagao terapeutica negativa?) (Barale, Ferro, 1992). Nesse caso, ¢ claro que dente e gengiva sto “personages” da sessio, ‘Antes de propor exemplos, gostaria somente de comentar, como com 0 conceito de “agregado funcional’, eu definitivamente recolhia esta caracteristica do personagem de ser uma holografia do funcionamento profundo do par, e dar, alem disso, um exemplo do que entendo dizer quando falo de respeitar a textualidade da comunicacio do paciente. nae A ttextualidade da interpretacao a transformacdo narrativa dos elementos beta Carla ¢ uma adolescente que iniciara a andlise por uma patologia de tipo narcisista, concomitante com surgimento de manifestagées anoréticas, nao negligenciaveis tinham sido os problemas de identidade sexual, Carla vivia sem tum espago interno, e por muito tempo tinha-se pensado um garoto No trabalho com Carla, percebo logo que o amigo homosexual que aparece em cena indica um funcionamento das nossas mentes O'C, no qual as identifi: cacoes projetivas de um nao encontram lugar no outro, e no qual tento forcar interpretagdes num continente nao dispontvel, estando por minha vez nao disponivel para funcionar de modo plenamente receptivo (9). Durante muito tempo procuro assumir uma modalidade de escuta muito acolhedora, ficando muito no texto proposto por Carla, utilizando os persona 148 A técnica na psicanélise infanil gens que ela gradualmente propoe, efetuando uma atividade interpretativa fraca’, insaturada, muito dosada, ‘Apos anos de trabalho, um dia Carla, quando ja tina achado um rapaz com ‘© qual progressivamente se ajustavam os papéis afetivos e sexuais, testemunha aabertura ea disponibilidade de um espaco interno proprio e acolhedor, dizendo {que nao consegue mais, na analise, contar historias sobre os “outros”, como no teatro, e que sente a necessidade de mudar o estilo de narragdo e que gostaria de se exprimir agora como num diario intimo. Data desse periodo uma comunicacao explicita de Carla: “Decidi furar as orelhas”, Por um momento penso no narcisismo de Carla, na sua dificuldade de escutar as minhas palavras, no problema da indiferenciagdo sexual (quando dizia; “La em casa se diz traseiro da frente e traseito de tris” — para indicar genitais e bumbum — , quanto também no nosso relacionamento tinhamos sido “a bunda da frente e a de trés” num acasalamento esteril); em seguida penso no seu testemunhar-me agora uma diferenciacao marcada no sentido da feminilida- de e uma capacidade receptiva, desde sempre vivida de modo persecut6rio; no seu anterior fechamento a qualquer interpretacao e na guinada que representa esse aviso de que as suas orelhas se abrem para as minhas palavras e para os proptios sentimentos. ‘Com resposta, decido testemunhar-lhe, por meio da entonacio e do calor da voz, que aprecio sua comunicacdo, e dizer-lhe simplesmente: “Assim finalmente voce poderd usar muitos brincos lindos”. “Sim, contando que sejam de ouro, senao me farao ficar com caxumba.”" Ao dizer “brincos”, dentro de mim penso na conquistada capacidade de pendurar as minhas palavras nas suas orelhas, e no reconhecimento de um seu. espaco interno receptivo. © paciente melhor colega e a funcao de monitorizacao Ha sessoes que, do ponto de vista de contetido, podem ficar sem explicacao, nao ser que lhes consintamos adquiir significado considerando as communica oes do paciente como uma descricao, inconsciente para cle, de como, de wm vértice também desconhecido para nos, podem ser observaveis e descritiveis em imagens, narragoes e anedotas 0s movimentos emocionais da tltima sessao, a0 1 NT: em italiane as ues plavas tm ats comum, portanto maior apronimacdo:oechie/orec ‘hin/orecchint = ovelhas/brincos/caxumba, 149 A. Ferro lado de uma continua operagao de “coro” do que acontece no desenrolar da sessio, ‘Andreina inicia a sessao falando de um engarrafamento enorme que @ obrigara a esperar... depois de perseguigses que softeu por dever fazer as tarefas de outros colegas... em seguida pede uma pequena mudanca de sessao. Ea descricao pontual do engarrafamento emocional, que determina em mim tum retardamento do fluxo transformacional e, talvez, das interpretacoes inade- quadas que tinham aumentado o sex trabalho, ¢ depois, oexperimentar a minha disponibilidade para mudar, ao solicitar uma pequena mudanga de horatrio. ‘Com Marina, os personagens da sessio, de acordo com 0 nosso funciona- mento mental ¢ como as minhas capacidades metabolicas, mudam da “ia que faz bem 0 molho a siciliana, cozinhando-o muito ¢ acrescentando aguear”, ‘mesma tia “que pacientemente colhe amoras, uma por uma, para fazer gel 8 amiga “finge, embora nao o aprecie nem um pouco, que gosta de Kandinsky” (discos de cao = funcionamento automatico pré-gravado?), ao “hipopotamo que ela viu entorpecido, mas talvez perigoso”, a0 “colega violento que ameaca profanar as tumbas” (na hora em que eu tentava forgar um seu silencio), a0 ‘espelho unidirecional que montaram na escola”, a “mae que respeita sempre 0 diario fechado a chave, lendo somente algumas paginas quando a filha the da aabertamente a chave” Para nao falar de Laura, que por sua vez, € particularmente capaz de descrever, de modo imediatamente perceptivel atimo por atimo, tudo o que, de tum seu vértice, ela vé acontecer na sessao; se demoro um instante para abrir a porta, ela comeca a sessio dizendo: “Sara, quando volto para casa, ndo corre a0 ‘meu encontro, termina primeiro os seus joguinhos”; se comento com sons de assentimento 0 que me conta, diz logo: "Ha uma menina na classe que entende bem tudo, mas nao fala... expressa-se com palavras conglutinadas que parecem somente sons”; se demoro, segundo a sua expectativa, a dar-lhe resposta, conta imediatamente: "Sara hoje estava dormindo, deixeia dormir, assim quando acordar estara mais pronta para brincar, estando mais descansada” Se demoro a acolher um sew estado emocional, me repreende: “A diretora enraiveceu-se com a secretaria porque deixava na sala de espera uma senhora {que tinha um encontro importante”, Se tergiverso com conversas colaterais, nao acolhendo as emoghes € nao estando plenamente permeavel as identificacdes projetivas: “O professor hoje no veio, tera ido jogar tenis, como faz as vezes...” Naturalmente, diversamente do que sugere Langs (1975,1978) e por v. Rosenfeld (1987), seria inutil interpretar explicitamente esses “indicios’ do funcionamento e do regime de par que pouco a pouco se acendem:; seriam 130 seb A téenica na psicanélise infantil ‘Texto verbal do paciente Alessandro, logo 20 entrar, aproxima-e da «aixa de jogos, pega o edo eo elefante eos faz ‘brincar entre eles dizenda que etdo conten tes por reencontrarse Alessandro pega entio oelelane que espirra ‘gua no leto Sedento, ¢ em rapida sucessio pega a vaca eo eaval, fais caminhar pr ‘mos: "Vio ao bosque para comer” Pega os animais, coloca.os em volta de uma ‘manjedoura, uma senhora thes d de comer Cloca um cavalinho de lado, Sim, ha lugar para ele também... pega 0 cava linho ef: com que sejatranspartado nagar do cao: tem asma,¢ preciso segurilo 1S} Working hrough eimenpretaes do analista Colhendo a comunicagso mais superficial textual, erenunclando a qualquer decodifica- ‘20 em elagao a um possvel significado sobre 8 escolha dos animais ou sobre asa peri: losidade, comento: "Exatamente como dots amigos que se reencontram into me autote. zado a dizer “amigos’, porque elefantee eno “brincam” no texto de Alessandro, Penso que © que he disse, "os dois amigos”, 0 fezsenursealiviado, como oledosedentacom ‘8 4gua, Pensotambem que houve uma prime ra transformacao de algo de porencialmemte perigaso em algo de mais domestico (vaca € cavalo), tenho em mente as ansias persecut fias que a sede e a fome tinham ativado no cavalo ¢ na vaca no final ds sesso anterior aque se transformaram no leaa e eefante do Inicio da sesso. Eo queesperas que possamos fazer juntos Pergunto-me se tenho eto de responder qu. le increment de trabalho que Alessandra 5 licita, pedindo-me para passar a quatro esses ih algum tempo. igo que talvez tema que nao haja lugar paca © cavalinho junto com 0s outros, Penso ter verbalizado muito precocemente 0 que crt talvez uma preocupagdo sinda minha, como responder as suas soictages (vidas! leto?) pateanies(cavalinho?), mas talvez ele estes se disposto ater pacieneiacolocar sua pres: s pateante de lado, a darme tempo. ele Feconhecia que a senhora dava de comer a todos ow quase, somente @ cavalinho naa co. ‘mia imediatamente Penso que est angustiado pelo meu temor de rao responder as suas solicitacoes 0 met ‘speras), por eu ter interpretado a termor dt exelusio © mio que ele admitia que se estava ali-e que se teria trabalhado, eolocando pressa de lado sey | i A. Ferro Alast-se pasa a janela, Voli em minha diregao diz que quer dese that. pega o papel Caer todas as folhas de papel de Alessandro ‘Nao Sl mals desenisr! Recothe as folhas, pedeme que the coloque ‘tras para sustentar a sua, assim podera de senhar melhor. ‘Compreendo que se sente oprimido, que se alata, que procura ver", encontrar umavisto {que oti daangustia. Pergunto-me seo angus tte com @ que Ihe disse: "esperas”e“o temor de que nao haja lugar, tlvex tena the feito falar oar, quando ele a confi plenamente em «que trabalhemos juntos. Distraiome por um instante pensanda em como arranjar lhe um lugar. No texto emocio- nal ha agora uma-rgéncia que passa dentro ‘de mim por meio de idenificagoes projetives. Volo a estar plenamente presente. Digo 4 talver tena fcado preocupado porque me viradistratdo,e meu que nso me intressasse pelo seu desenho, nem pelo seu projeto de umentarmas as se550e5.Sinto que j8 posso colocar em palavras o que estava fo texto femocional, masta ainda odo texto explicit, io explicito que o pedido de outrasflhas ¢ © pedido de ateng2o e disponibildade para com seus desenhos © projetos, também na tualidade da sesso, Porem aumento a mia atencao para com as suas comunicagoes, (to cito passagens intermediirias em que wabalhamos de maneirasatisftiria sobre 6 problema ‘com que nos oeupavainos ) Desenfa uma casa, um dia bonito, umasntena sobre a casa, uma chamine,* uma janela Acrescenta um temporal ao desenho * CAMINO pode signtficarchamine ou laters, Penso que esta contente com o que ew the disse, e que me sinaliaa o estar em contato (antena), promims (a lareira afevs) © que vemos e entendemos (a jane), Digohe que ppensa que podemios nos entender e que temos ‘um lugar para falarmos juntos. Communic the que a sesso esta terminando e que continua emos na proxima vez, Digo que talves as minhas palaveas tenham aquebrado aquele momento trngiilo de en canto que acabara de acontecer Renuncio a uma expliiacao da angusti de separaci, ‘ara no aerescemtar mais vento aturbuléncia emocional Figura 23 ‘operagdes de efracdo do “diario”, ou pior, “profanacdes", 0 que € necessario € guardar zelosamente tais indicagoes para o ajuste dos sabores da cozinha interpretativa que deve ser continuamente modulada, de modo que os alimentos, ‘ow melhor, os sentimentos, sejam “tocaveis”, conceito este expresso por Molinari Negrini (1991) No fundo, 0 par continuamente narra a si proprio ¢ 0 seu proprio funciona. mento Se Marcella me fala de duas pessoas que se separam com grande dificuldade, dizendo que é um argumento que no fundo nao Ihe interessa, eeu lhe pergunto: “Estamos seguros? Ha as férias’, e ela imediatamente me conta sobre um menino que os pais querem tirar da escola porque se sente maltratado pelo professor, ¢ que ficou muito decepcionado pela intervencdo da psicdloga da escola, seria insensato explicitar 0 sentido proposto pela paciente, Este nao pode ainda ser tocado e necesita dos “pegadores”, de uma certa distancia e estranheza para ser aproximado. Para testemunhar 0 percurso realizado até as atuais conceitualizagoes, proporei agora blocos de sessoes, datadas variadamente, que me permitirao mostrar diversos modelos de trabalho que se transformaram no tempo, até uma situagdo de campo, como a entendo hoje, no illtimo exemplo ao qual remeterei, 0 do “pequeno bisio”, no qual, como faz notar Lussana (1991), existe um 153 7 eon ne nee a ttietn e-3e Figura 24 deslocar-se da atividade interpretativa do “elevar a consciéncia fantasias incons- cientes” para 0 “ajudar a colher, conter e digerit a experiencia emocional”. PARA UM “APRENDER COM A EXPERIENCIA" Interpretacdo ou transformacao? A.asma ¢ a necessidade de atencao de Alessandro ‘Tento transcrever agora algumas sequtencias de uma sessao qualquer de alguns anos atrés com um menino de sete anos, Alessandro, sem deter-me para apresentar o tipo de problema, sendo minha tinica intengao propor uma reflexao sobre o andamento do “didlogo analitico”, com as anotagdes que fiz naquela epoca [Na seqiigncia das figuras aparece o progressivo formar-se do continente (fig 25), apos os dois desenhos da parte nao exposta da sessio, onde aparecem uma tempestade (fig. 23) e em seguida a chegada da arca de No¢ (fig, 24), onde € possivel achar refigio,

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