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edição especial . maio de 2012 . www.revistapesquisa.fapesp.

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50 anos
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1

A certidão de nascimento da FAPESP

Em 23 de maio de 1962, o governador Carlos Alberto Alves de Carvalho Pinto sanciona


a Lei no 5.918, de 18 de outubro de 1960, que organizou a Fundação de Amparo à
Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), e assina o Decreto no 40.132, que aprovou os
estatutos da nova instituição. Na foto, Carvalho Pinto (1), Hélio Pereira Bicudo (2), chefe
da Casa Civil, Fauze Carlos (3), secretário de estado da Saúde e membro da comissão de
governo que elaborou o projeto autorizando a criação da Fundação, Jayme Arcoverde
de Albuquerque Cavalcanti (4), primeiro diretor-presidente da FAPESP, de 1962 a 1976 e
Paulo Emílio Vanzolini (5), zoólogo, um dos articuladores da criação da FAPESP e membro
de seu conselho superior por 15 anos em 3 períodos.
John W. Jordan/Arquivo Pierre Kaufmann
uma imagem da história

O céu de Bagé, no Rio Grande do Sul, escureceu em plena tarde de 12 de novembro de 1966.
Ponto privilegiado para observação do eclipse solar completo, a cidade gaúcha acolheu astrônomos
do mundo todo. Entre eles, um grupo da Universidade Mackenzie, de São Paulo: na foto, Wilson
Lopes e Pierre Kaufmann. Junto a eles, o radiotelescópio adquirido pela FAPESP, um dos primeiros
grandes equipamentos entregues a um projeto de pesquisa. A bordo do fenemê (FNM, sigla da
Fábrica Nacional de Motores), primeiro caminhão da indústria brasileira, ele foi transportado ao sul
e forneceu medições durante o espetáculo celeste.

pESQUISA FAPESP maio de 2012  _ 3


Apresentação genÔmica biologia
6 Os 50 anos da FAPESP 44 Xylella 90 Ambiente
e o desenvolvimento Empreendimento pioneiro Lagarto da Amazônia reforçou
da ciência em São Paulo desvelou ao país sua face de proposta sobre refúgios
Carlos Henrique de Brito Cruz produtor científico competente
7 Meio século de Fapesp 94 Evolução
Celso Lafer 54 Genética Lagartos de dunas expressam
Projeto Genoma Cana abriu histórias evolutivas próprias
8 Para contar uma história caminho para novas variedades
exemplar Mariluce Moura 98 Biologia evolutiva
58 Doenças tropicais Gambás brasileiros antecederam
Pesquisadores identificam os cangurus australianos
alvos promissores contra
esquistossomose 100 Ecologia
medicina Formigas ajudam sementes a
62 Reparo de DNA germinar em florestas
12 Entrevista Sensor detecta lesões em genes
Luiz Hildebrando P. da Silva causadas pela radiação 104 Zoologia
Ação coordenada de O bico do tucano é um eficiente
instituições reduz os casos 66 Biologia estrutural dissipador de calor
de malária Cristalografia facilita a busca de
novos medicamentos 106 Biodiversidade
20 Biologia molecular Paulistas e paraenses colaboram
Pesquisadores apostam em 70 Biologia estrutural em estudos sobre venenos
fármaco nacional contra o mal Rede com 20 grupos definiu a
de Chagas em médio prazo estrutura de 200 biomoléculas

22 Hipertensão 74 Neurologia ciências


Equipe do Incor reduz de 2 mil
para 80 os genes candidatos a
Príon celular regula comandos
químicos nos neurônios
exatas
explicar a origem da hipertensão e da terra
78 Genética humana
30 Imunologia Grupo identifica genes de 112 Mudanças climáticas
Amplia-se a visão molecular doenças neuromusculares Pesquisadores se articulam
da sepse para examinar transformações
84 Câncer ambientais do planeta
34 Diabetes Células normais
Grupo desvenda conexões podem facilitar a evolução 120 Cosmologia
entre dieta e resistência à de tumores Análise de raios cósmicos
insulina avança e traz novos desafios

38 Psiquiatria 127 Nanociência


Alterações genéticas estão agora Partículas de ouro e prata
associadas à esquizofrenia formam joias nanométricas

132 Geologia
Laboratório ajuda a
reconstruir a história da
América do Sul
tecnologia 188 Biologia celular 230 Defesa nacional
Identificação de erro reorienta Legislativo ainda tem
140 Bioenergia estudos de reprodução animal participação fraca no destino
Programa Bioen amplia das Forças Armadas
conhecimento sobre 190 Pecuária
biocombustíveis Cruzamentos deixam bovinos 240 Antropologia
prontos para abate mais cedo Análise de etnografias
148 Indústria aeronáutica desfaz noção do antropólogo
Universidades e Embraer 194 Agricultura como tradutor
aperfeiçoam aviões Inseto é usado para eliminar
transmissor do greening 246 História da ciência
154 Biopolímero Transformação da alquimia
Plástico de cana-de-açúcar em química foi
degrada-se em um ano longa e suave

158 Semicondutores 252 Literatura


Filme ferroelétrico poderá Ressurge a complexidade
entrar nos computadores do escritor Monteiro Lobato

162 Novos materiais


Grupo faz vitrocerâmicas para humanidades 258
telescópios e ossos do ouvido A fapesp em 50 anos
202 Economia
166 Novos materiais País reduz abismo histórico
Diamante sintético é usado em entre campo e cidade
brocas e como bactericida
208 Sociologia
170 Engenharia naval Memórias de trabalhadores
Estudos da dinâmica de rurais elucidam fim do colonato
plataformas apoiam avanços na
exploração de petróleo 212 Sociologia
Centro de Estudos da Ao final de
174 Indústria petrolífera Metrópole desvenda múltiplas cada reportagem,
Programa aprimora produção faces de São Paulo apresentamos:
das refinarias
O Projeto refere-se
216 Direitos humanos
ao principal projeto
176 Tecnologia da Viés autoritário da mentalidade de pesquisa enfocado,
informação brasileira é um dos focos de com os valores
Projetos em colaboração núcleo de estudos da violência definidos na época de
viabilizam novos usos das sua contratação.
ciências da computação 220 Relações internacionais Artigos Científicos
apresenta os
Políticas norte-americanas principais trabalhos
182 Tecnologia da para a América do Sul são mais resultantes das
informação reativas do que proativas pesquisas publicados
Físicos fazem fibras ópticas para em revistas
unir circuitos de computadores 224 Ciência política científicas.
De nosso arquivo
Poder de legislar do
indica reportagens
186 Informática Executivo tende a amenizar anteriores publicadas
Revisor gramatical brasileiro é a imagem do governo como na revista Pesquisa
licenciado para a Microsoft clientelista FAPESP.

pESQUISA FAPESP maio de 2012  _ 5


Os 50 anos da FAPESP e o desenvolvimento
da ciência em São Paulo

Carlos Henrique de Brito Cruz, diretor científico

A
base de dados do ISI, acessível via Web of Science, solicitações concedidas anualmente entre a média verificada
mostra, em 1966, 42 artigos científicos de autores nos primeiros 10 anos da FAPESP e o valor realizado em 2011.
no Brasil. Desses, seis eram de autores no estado de
São Paulo, representando 14% do total nacional. Dez anos Média de concessões anuais entre 1962 a 1971 comparada com
depois, a produção científica brasileira era 26 vezes maior, as de 2011, classificadas segundo a área do conhecimento
(1.073 artigos). A de São Paulo cresceu 90 vezes (535 arti-
Área do Média anual 2011
gos, 48% do total nacional). Daí em diante, a participação conhecimento de 1962 a 1971
paulista ficou entre 47% e 52%.
Saúde 100 3.813
Não é difícil supor que a FAPESP, criada em 1962, tenha
CHS 98 2.174
tido um papel neste crescimento. Também não é difícil su- Engenharias 70 1.476
por que a FAPESP não seja a única responsável: a ciência Ciências biológicas 128 1.364
no Brasil e em São Paulo tem crescido e progredido graças Agronomia 58 1.285
à contribuição combinada de agências de fomento estaduais Química 54 513
e federais e graças ao desenvolvimento de algumas excelen- Física 72 422
tes universidades. Ciência e engenharia 0 309
Não se pode esquecer que as agências financiam equi- da computação
Matemática e estatística 28 298
pamento, material e formação de recursos humanos, mas
Geologia 25 268
quem faz e lidera a pesquisa são professores, pesquisado-
Arquitetura 7 198
res e estudantes de universidades e institutos de pesquisa. Economia 6 145
No Brasil, na década de 1966 a 1976 foi estruturada a pós- Astronomia e 8 57
-graduação, o que deu enorme impulso à capacidade cientí- ciência espacial
fica. Em São Paulo, a USP e algumas escolas, então isoladas Interdisciplinar 34
e que viriam a dar origem à Unesp, organizaram seus siste-
mas de pós e no mesmo período o governo estadual criou Além dos artigos publicados por cientistas paulistas em
a Unicamp. revistas internacionais terem crescido de 83 em 1972 para
A implantação da FAPESP se deu em meio a uma comu- 15.202 em 2007, seu impacto também aumentou. Os de 1972
nidade científica crescente, mais qualificada, exigente e ze- receberam, até 1977, 0,18 citação por artigo por ano (o mais
losa quanto à qualidade do apoio oferecido pela Fundação, citado recebeu 44 citações até hoje). Já os de 2007 têm rece-
conforme estabelecido na Constituição paulista. bido 1,5 citação por artigo por ano (78 deles com mais de 78
Em 1962, a FAPESP recebeu 428 solicitações de finan- citações e o mais citado de 2007 com 582).
ciamento e aprovou 329. Destas, 57 foram bolsas de várias A ciência em São Paulo tem crescido em quantidade e qua-
modalidades; as demais foram para auxílios à pesquisa. Os lidade. Os 50 anos de existência da FAPESP contribuem para
dados dos relatórios anuais elaborados pelo Conselho Téc- isso, e ao comemorarmos é bom lembrar que o desenvolvi-
nico Administrativo da Fundação e sua análise mostram uma mento científico no estado se deve à cooperação entre muitas
evolução notável: em 2011 foram recebidas 20.600 solicita- instituições. Se os 50 anos de FAPESP são fundamentais, é
ções de apoio, das quais 12.356 foram aprovadas. bom repetir que o desenvolvimento da ciência em São Paulo
Usando como referência o relatório comemorativo de não poderia ter acontecido sem o apoio do CNPq, da Capes
10 anos, publicado em 1973 por iniciativa do então diretor e da Finep, e sem o empenho da crescente comunidade de
científico, professor Oscar Sala, e coordenado pelo professor pesquisa ativa nas instituições de ensino superior e de pes-
Tamás Szmrecsányi, verifica-se que na sua primeira déca- quisa no estado.
da toda a FAPESP recebeu 10.500 solicitações, aproxima-
damente a metade da quantidade que recebeu apenas em * “Pesquisa e Desenvolvimento”, Tamás Smerecsányi (coord.),
2011. A Tabela ao lado* mostra a mudança no número de FAPESP, 1973.

6  _ especial 50 anos fapesp


apresentação

Meio século de FAPESP

Celso Lafer, presidente

O
conceito de estabelecer uma fonte permanente de de “peer review”, com bolsas destinadas à formação de
recursos para fomentar a ciência e a tecnologia e, pesquisadores e financiamento a projetos regulares pro-
com isso, apoiar o desenvolvimento econômico e postos por pesquisadores já formados.
social do estado de São Paulo começou a ser germinado Mas para “construir a autoridade” da FAPESP – no
há 70 anos, quando cientistas paulistas mostraram sua sentido que Hannah Arendt deu ao conceito – foi pre-
competência para solucionar questões técnicas e cientí- ciso agregar algo mais ao que já vinha sendo feito desde
ficas necessárias à defesa nacional quando chamados a a sua criação. Assim, além do exponencial aumento na
colaborar no esforço de guerra brasileiro. quantidade de projetos avaliados e selecionados, a atua-
Com a democratização resultante do fim do Estado ção da Fundação passou por importantes mudanças nos
Novo, a comunidade acadêmica e a Assembleia Cons- paradigmas de organização da pesquisa.
tituinte Estadual de 1946 foram capazes de se integrar Contribuiu para isto a decisão da Assembleia Consti-
para incluir na Constituição de 1947 dispositivo de apoio tuinte Estadual de 1988, em novo exemplo de integração
à pesquisa, patrocinado por deputados de partidos po- da comunidade acadêmica com o Legislativo, pela qual o
líticos com distintas perspectivas, em especial Lincoln percentual da receita anual do estado destinada à FAPESP
Feliciano, do PSD, e Caio Prado Júnior, do PCB. passou de 0,5% para 1% e se adicionou à sua missão o de-
O artigo 123 da Constituição Paulista estabeleceu que senvolvimento tecnológico, por iniciativa dos deputados
“o amparo à pesquisa científica será propiciado pelo es- Aloysio Nunes Ferreira e Fernando Leça, consubstanciada
tado, por intermédio de uma fundação, organizada em no artigo 271 da Constituição estadual de 1989.
moldes que forem estabelecidos por lei”. Os Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepids)
O parágrafo único do dispositivo previa o fundamento estabeleceram prazos para funcionamento autônomo de
que atribuiu à futura instituição autonomia para manter centros complexos em áreas estratégicas de pesquisa. Ou-
a regularidade no cumprimento de sua missão: “Anual- tros programas de pesquisa abrangentes, com estrutura
mente, o Estado atribuirá a essa fundação, como renda de organizacional complexa, foram criados. Alguns exem-
sua privativa administração, quantia não inferior a meio plos são o Biota-FAPESP, para estudo da biodiversidade e
por cento do total de sua receita ordinária”. proposição de políticas para seu uso sustentável; BIOEN,
A instituição efetiva da fundação foi incluída no Plano de pesquisas sobre bioenergia e o Programa FAPESP de
de Ação do Governo Carvalho Pinto (Page). Aprovado Pesquisas sobre Mudanças Climáticas Globais. A apro-
pela Assembleia Legislativa em 1959, o Page cumpriu es- ximação com o setor empresarial para estimular a ino-
sa meta com a Lei 5.918, de 18/10/1960, sancionada pelo vação na produção foi contemplada com os programas
governador. Dois anos mais tarde, a instituição começou da pesquisa em parceria (Pite) e o da pesquisa inovativa
a funcionar segundo os estatutos aprovados no Decreto em pequenas empresas (Pipe).
40.132, de 23/5/1962, assinado por Carvalho Pinto. A internacionalização da FAPESP, por meio de acor-
Ocorreu, então, novamente, um exemplar esforço de dos com entidades congêneres no mundo, tem sido uma
integração entre a comunidade científica e os Poderes constante nos últimos anos. É uma resposta ao desafio da
Legislativo e Executivo de São Paulo, que resultaram em importância, para o avanço do conhecimento, do potencial
princípios de ação sólidos e republicanos, consubstan- de interação entre pesquisadores nacionais e estrangeiros.
ciados nos Estatutos da FAPESP, que continuam atuais Com isso, a FAPESP, graças ao trabalho de todos os que
e eficazes até agora. participaram nesses 50 anos dos seus conselhos Superior
Ao longo deste meio século, a FAPESP manteve as li- e Técnico-Administrativo, de seus funcionários, da comu-
nhas básicas de ação dos que a conceberam e instalaram: nidade científica paulista, tem sido capaz de contribuir
apoiar a pesquisa de qualidade em todos os campos do para que o estado de São Paulo se situe melhor no país e
conhecimento, sem distinção entre teórica e aplicada, no mundo, com o conhecimento gerado pelas pesquisas
por meio de processo decisório realizado pelo sistema que ela patrocina.

pESQUISA FAPESP maio de 2012  _ 7


fundação de amparo à pesquisa do estado de são Paulo

Celso Lafer
Presidente

Eduardo Moacyr Krieger


vice-Presidente

Conselho Superior

alejandro szanto de toledo, Celso Lafer, Eduardo


Moacyr Krieger, Horácio Lafer Piva, Herman
Jacobus Cornelis Voorwald, joão grandino rodas,
Maria José Soares Mendes Giannini, José de Souza
Martins, José Tadeu Jorge, Luiz Gonzaga Belluzzo,
Suely Vilela Sampaio, Yoshiaki Nakano

Conselho Técnico-Administrativo

José Arana Varela


Diretor presidente

Carlos Henrique de Brito Cruz


Diretor Científico

Joaquim J. de Camargo Engler


Diretor Administrativo

issn 1519-8774

Conselho editorial
Carlos Henrique de Brito Cruz (Presidente), Caio Túlio Costa,
Eugênio Bucci, Fernando Reinach, José Eduardo Krieger,
Luiz Davidovich, Marcelo Knobel, Marcelo Leite,
Maria Hermínia Tavares de Almeida, Marisa Lajolo,

Para contar uma


Maurício Tuffani, Mônica Teixeira

comitê científico
Luiz Henrique Lopes dos Santos (Presidente),
Cylon Gonçalves da Silva, Francisco Antônio Bezerra

história exemplar
Coutinho, João Furtado, Joaquim J. de Camargo Engler,
José Arana Varela, José Roberto Parra, Luís Augusto Barbosa
Cortez, Luis Fernandez Lopez, Marie-Anne Van Sluys, Mário
José Abdalla Saad, Paula Montero, Sérgio Queiroz, Wagner
do Amaral, Walter Colli

Coordenador científico
Luiz Henrique Lopes dos Santos

Edição especial 50 anos


editora chefe Mariluce Moura, diretora de redação
Mariluce Moura

editor assistente Carlos Fioravanti

arte Mayumi Okuyama (diretora), Jussara Fino (editora)

O
Editores Carlos Haag, Fabrício Marques, Jorge Luiz de
Souza, Marcos de Oliveira, Marcos Pivetta, Neldson Marcolin,
Ricardo Zorzetto
planejamento desta edição especial de Pesquisa FAPESP
reportagem Carlos Fioravanti, Carlos Haag, Claudia
foi inteiramente norteado por uma concepção amadure-
Izique, Dinorah Ereno, Eduardo Geraque, Fabrício Marques,
Francisco Bicudo, Igor Zolnerkevic, Jorge Luiz de Souza,
cida numa reunião do Conselho Técnico-Administrativo
Marcos Pivetta, Marcos de Oliveira, Maria Guimarães,
Marili Ribeiro, Mariluce Moura, Ricardo Zorzetto, Salvador
(CTA) da Fundação, no segundo semestre de 2011, quando se
Nogueira e Yuri Vasconcelos
discutiam alguns detalhes das comemorações dos 50 anos da
revisão Mauro de Barros
instituição, completados em 23 de maio de 2012. Estavam ali
fotógrafos Eduardo Cesar, Léo Ramos
presentes o presidente da FAPESP, Celso Lafer, e os integran-
tes do Conselho, ou seja, o então diretor-presidente, Ricardo
ilustração e infográficos Abiuro, Daniel Bueno, Drüm,
Guilherme Kramer, Guilherme Lepca, Tiago Cirillo

apoio editorial Andressa Matias, Clair Marchetti, Ingrid Renzo Brentani (falecido em 29 de novembro e substituído em
Teodoro e Maria Paula Iliadis
fevereiro deste ano por José Arana Varela), o diretor científico,
É proibida a reprodução total ou parcial Carlos Henrique de Brito Cruz, e o diretor administrativo, Joa­
de textos e fotos sem prévia autorização
quim de Camargo Engler. Segundo essa concepção, a revista
Para falar com a redação (11) 3087-4210 especial deveria ter 50 reportagens relativas a 50 projetos apoia-
cartas@fapesp.br

Para anunciar (11) 3087-4212 mpiliadis@fapesp.br


dos pela Fundação ao longo de sua história, escolhidos como
Para assinar (11) 3038-1434 fapesp@acsolucoes.com.br
representativos do sucesso da ação da FAPESP na construção
Tiragem 47.000 exemplares do conhecimento científico em todas as áreas.
No passo seguinte, o diretor científico e seus coordenadores
IMPRESSão Gráfica Burti
distribuição Dinap

adjuntos teriam a tarefa nada fácil de bater o martelo sobre os


GESTÃO ADMINISTRATIVA INSTITUTO UNIEMP

PESQUISA FAPESP Rua Joaquim Antunes, no 727,


50 projetos que, a partir de uma lista de 100, elaborada pela
10o andar, CEP 05415-012, Pinheiros, São Paulo-SP
equipe da revista, seriam efetivamente escolhidos para figurar
na edição especial. Haveria que se considerar nesta seleção a
FAPESP Rua Pio XI, no 1.500, CEP 05468-901,
Alto da Lapa, São Paulo-SP

Secretaria de Desenvolvimento Econômico,


mesma proporcionalidade entre instituições de origem dos
Ciência e Tecnologia
Governo do Estado de São Paulo
projetos que, de fato, se observa na distribuição do apoio da
FAPESP, por mérito, às propostas que lhe são submetidas.
Na verdade, esse era só o começo do trabalho que esta edi-
ção iria exigir dos assessores, todos eles integrantes, junto com

8  _ especial 50 anos fapesp


carta da editora

os três diretores da Fundação, do comitê que Pesquisa FAPESP resulta sempre de mo, liderar um bom time dos melhores
científico da Pesquisa FAPESP. Até o fe- um trabalho de cooperação intensa e cria- jornalistas brasileiros de ciência, entre
chamento final dos arquivos que seriam tiva entre pesquisadores, nossas fontes os que fazem parte da equipe regular
enviados à gráfica, o último dos quais em principais, e jornalistas, mediadores da de Pesquisa FAPESP e os colaborado-
22 de maio, eles não cessaram de receber informação, para que se produzam os tex- res que convocamos de outros veículos,
– e atender sempre – as demandas sem tos mais claros que conseguirmos sobre a para compor esta alentada edição – não
fim dos jornalistas que elaboravam as re- produção científica mais relevante deste os nomeio aqui porque são muitos, mas
portagens por informações, entrevistas, país. Não foi diferente com esta edição. seus nomes constam da assinatura de
dados, indicações de artigos científicos e, Cabe, por fim, dizer algo aqui sobre cada texto a que se dedicaram. Destaco
mais adiante, leituras críticas, resolução o imenso trabalho jornalístico e de ar- o trabalho excelente de Carlos Fiora-
de dúvidas, luzes para a elaboração de te mobilizado por esta edição especial. vanti como meu assistente direto nesta
complexos infográficos. Nomeá-los aqui, Primeiro, será preciso lembrar que ele tarefa e, na arte, o belo trabalho da de-
portanto, com os agradecimentos da equi- se fez dentro da mais estreita coopera- signer Mayumi Okuyama, que já fora a
pe da revista, é indispensável e para isso ção com a gerência de comunicação da editora de arte da revista e busquei para
mantenho a ordem em que seus nomes Fundação, Graça Mascarenhas à frente, esta missão especial. Explico: esta edi-
aparecem na rubrica “comitê científico” a quem desde janeiro solicitamos inin- ção ia sendo preparada enquanto corria
no expediente da revista. São eles: Luiz terruptamente informações, dados, tex- o processo normal de elaboração das
Henrique Lopes dos Santos (presiden- tos e imagens, entregues sempre com a edições regulares da revista, portanto,
te), Cylon Gonçalves da Silva, Francisco maior eficiência. E também com o su- era crucial valer-se de recursos exter-
Antônio Bezerra Coutinho, João Furtado, porte diário do consultor de comunica- nos. Esperamos que a edição especial da
José Roberto Parra, Luís Augusto Barbosa ção da FAPESP, Carlos Eduardo Lins da revista para comemorar os 50 anos da
Cortez, Luís Fernandez Lopez, Marie-An- Silva, que, além disso, nos brindou vezes FAPESP se mantenha duradouramente
ne Van Sluys, Mário José Abdalla Saad, sem conta com excelentes ideias para na condição de um testemunho vivo e
Paula Montero, Sérgio Queiroz, Wagner aperfeiçoarmos a qualidade do produ- impresso do quanto esta Fundação con-
do Amaral e Walter Colli. Vale aproveitar to. E, por último, é preciso assinalar o tribuiu para o avanço do conhecimento
a oportunidade para reiterar aos leitores quanto foi gratificante, prazeroso mes- em seus 50 anos de existência.

pESQUISA FAPESP maio de 2012  _ 9


medi
cina
entrevista

hipertensão
Virando o jogo da malária 12 

Genes bailarinos 24
biologia molecular

defesas orgânicas
Previsões otimistas 20 

Quando o organismo se destrói

30  metabolismo do açúcar A trama por trás do diabetes 34  doenças mentais Desarmonia

celular 38

rede de veias e artérias que irrigam o músculo cardíaco/science photo library


entrevista  luiz hildebrando pereira da silva

Virando o jogo
da malária
Investigação científica, controle de áreas endêmicas e ação
coordenada de instituições reduzem os casos da doença em Rondônia

Claudia Izique

A
incidência da malária em Rondônia Piovesan Alves. Ela desenvolveu de outubro de
reduziu-se acentuadamente nas duas 1999 a dezembro de 2002, como projeto de dou-
últimas décadas em ritmo mais acele- torado, um estudo sobre a presença de malária
rado que no resto da Amazônia. Mas assintomática vivax em áreas hipoendêmicas da
no município de Porto Velho, capital Amazônia, orientado por Erney, profesor titular
do estado, ao contrário, o número de casos tem se na USP. E ele ampliou sua pesquisa de doenças
mantido e mesmo sofrido ligeiros aumentos nos tropicais negligenciadas para o levantamento da
últimos anos. Como explicar essas contradições? fauna de carrapatos de Rondônia e determinação
Deve-se registrar que no conjunto da região ama- da prevalência nesses artrópodes dos micro-orga-
zônica passou-se de mais de 600 mil casos em 1999 nismos Rickettsia, Erlichia e Borrelia, que podem
a menos de 300 mil em 2011. Em Rondônia, nas causar infecções em seres humanos. O projeto de
décadas de 1980 e 1990, o número de casos repre- Erney, que se estendeu de 2000 a 2004, envol-
sentava 40% do total de registros na Amazônia e veu também o diagnóstico dessas infecções e o
hoje equivale a 12%. Esse resultado deve ser cre- estabelecimento de um sistema de vigilância sa-
ditado às medidas de controle, que melhoraram nitária em Monte Negro. Quanto a Hildebrando,
sensivelmente nos últimos anos, à introdução de seu projeto apoiado pela FAPESP nesta área foi
novos medicamentos como o Artesunato, à as- o estudo de antígenos variantes de Plasmodium
sessoria técnico-científica das autoridades sani- falciparum e sua relação com formas graves de
tárias, à atuação do Centro de Pesquisas em Me- malária, de 1999 a 2001. Em valores da época, os
dicina Tropical (Cepem), da Secretaria da Saúde dois auxílios à pesquisa mais a bolsa de doutora-
do Estado, de um núcleo avançado do Instituto mento concedidos pela Fundação para esses estu-
de Ciências Biomédicas (ICB) da Universidade dos totalizaram um investimento de R$ 876 mil.
de São Paulo (USP), do Instituto de Pesquisa em Luiz Hildebrando estuda doenças tropicais des-
Patologias Tropicais de Rondônia (Ipepatro), e à de a década de 1950, publicou 80 artigos cientí-
obstinação de Luiz Hildebrando Pereira da Silva. ficos sobre malária e foi responsável pela criação
A FAPESP participou desse esforço em com- do Cepem e do Ipepatro. Ele foi professor de pa-
bater a malária, apoiando projetos de pesquisa rasitologia na Faculdade de Medicina da USP e,
de Hildebrando e de dois pesquisadores do ICB- ao longo de 32 anos, exilado na França, dirigiu as
-USP, Erney Plessmann de Camargo e Fabiana unidades de diferenciação celular e de parasitolo-

12  _ especial 50 anos fapesp


Tony Katsuragawa

pESQUISA FAPESP maio de 2012  _ 13


sintoma de malária, podem

mapa tiago cirilo


transmitir a doença. Isso se
319
Porto Velho unidade de vigilância
confirmou?
e atendimento –
bairro nacional Esse trabalho foi publicado
Brasília na inglesa Lancet, em 1999,
Porto Velho
unidade de vigilância
e referia-se a portadores as-
e atendimento –
bairro triângulo sintomáticos da malária vi-
vax. Os estudos avançaram
São Sebastião bastante nos últimos anos.
unidade de vigilância
e atendimento – Infelizmente, em 1997, a USP
engenho velho
decidiu retirar o ICB de Por-
unidade de vigilância to Velho e implantá-lo no in-
terior do estado de Rondônia.
e atendimento
364

Santo Ao mesmo tempo foi criado


Antônio em Porto Velho o Instituto de
Vila Amazonas Centro de
coordenação Pesquisa em Patologias Tro-
operacional
picais (Ipepatro), que obteve
recursos do Ministério da Ci-
nas ência, Tecnologia e Inovação
Amazo
(MCTI) para desenvolver
unidade de vigilância
pesquisas em malária com o
e atendimento –
cachoeira teotônio
Cepem. Foram mantidas as
Cachoeira do Teotonio
colaborações com pesquisa-
dores do departamento de
parasitologia e com vários
outros da USP de São Paulo
gia experimental do Instituto e de Ribeirão Preto e com as
Pasteur e investigou a biolo- universidades federais do Rio
gia molecular do parasita da de Janeiro (UFRJ) e de Mato
Grosso (UFMT). Verificou-
“A mobilidade das
malária na Guiana Francesa,
em Madagascar e no Senegal. -se, nessa nova fase, que ha-
Aposentou-se em 1997 e no via, nas áreas endêmicas de
ano seguinte voltou ao Brasil
e se fixou em Rondônia, onde
populações Rondônia, em particular nas
áreas ribeirinhas, portadores
assintomáticos de parasitas
amazônicas é o
até hoje, aos 84 anos, estuda
a imunologia e a epidemio- da malária vivax e da malária
logia da doença. falciparum. As pesquisas de
Pesquisa FAPESP o entre-
vistou duas vezes nos últimos
fator essencial na 2005 para cá deram origem a
16 publicações, três teses de
doutorado e 12 de mestrado
manutenção e
dez anos: em 2002, quando
o repórter Marcos Pivetta o no programa de pós-gradua-
visitou em Porto Velho, e em ção em biologia experimen-
2007 em São Paulo. Agora,
Hildebrando poupou o traba-
difusão da malária” tal mantido com a Universi-
dade Federal de Rondônia.
lho da repórter e respondeu Demonstrou-se o papel im-
de próprio punho às pergun- portante da mobilidade das
tas que seriam utilizadas em populações amazônicas na
reportagem que pretendia manutenção e disseminação
atualizar o avanço das pesquisas com malária em das áreas endêmicas da malária. Além de mostrar
Rondônia. Ele nos conta que resultados recentes de que os portadores assintomáticos de parasitas são
pesquisas das equipes de Rondônia em inovações fontes de infecção na manutenção da endemia,
nos métodos de controle o fazem pensar que é demonstrou-se o papel das recaídas de malária
mesmo possível erradicar a malária amazônica na vivax, mesmo após a utilização da Primaquina
próxima década. Autor do livro Crônicas Subver- no tratamento completo. Foi analisado o papel de
sivas de um Cientista, recentemente lançado, Luiz anofelinos de diferentes espécies na transmissão,
Hildebrando é senhor absoluto de suas histórias. concluindo-se pelo papel dominante, quase ex-
clusivo do Anopheles darlingi na transmissão da
Em março de 2002, o senhor contou que o Ce- endemia e foram descritos os ciclos de variação
pem identificara que vítimas do P. vivax, sem sazonal da densidade dos vetores.

14  _ especial 50 anos fapesp


Atualmente, qual é a pauta de pesquisa? assintomáticos devido, essencialmente, a recaí­
Nos últimos anos, temos nos concentrado no es- das clínicas (sintomáticas), observadas mesmo
tudo de dois fatores relacionados ao processo de entre portadores assintomáticos tratados. Essa
manutenção dos níveis elevados de incidência verificação levou à demonstração original de que
da malária na região: 1) o papel dos portadores a imunidade clínica em malária vivax é variante
assintomáticos de parasitas, tanto na malária fal- específica e não espécie específica, devido es-
ciparum como na malária vivax; e 2) no problema sencialmente ao caráter policlonal da população
das recaídas na malária vivax. Nos últimos cinco de hipnozoitas hepáticos (formas latentes de P.
anos, assiste-se a uma queda apreciável no nú- vivax no fígado dos pacientes infectados). Final-
mero total de casos de malária, em particular da mente, nos últimos anos foi possível desenvolver
malária falciparum, que representava, até o fim novo procedimento na prevenção das recaídas:
da década de 1990, cerca de 20 a 25% do total o tratamento de pacientes com formas clínicas
de casos e que, atualmente, está representando assintomáticas e sintomáticas é associado a um
apenas 10% a 15%. Esse sucesso se deu graças aos curto período de tratamento preventivo das reca-
esforços do Ministério da Saúde e à introdução ídas por cloroquina, que age não sobre os hipno-
do tratamento com dois medicamentos associan- zoitas hepáticos, mas sobre as formas assexuadas
do derivados do Artesunato. A partir dessa ten- sanguíneas oriundas do fígado na primeira infec-
dência, nossas pesquisas demonstraram o efeito ção ou nas recaídas. Com esse procedimento,
positivo suplementar do tratamento de pacientes inspirado em ações realizadas na Nova Guiné
assintomáticos portadores de Plasmodium falci- e na África subsaariana denominadas IPT (In-
parum em um projeto-piloto em localidades em termitent preventive treatment), realizamos uma
que a transmissão de malária falciparum foi ze- adaptação às condições amazônicas que denomi-
rada por cerca de um ano e reintroduzida apenas namos SIPT (Selective interrupted preventive tre-
por contaminação externa. O mesmo sucesso, atment) e obtivemos grande sucesso, reduzindo
no entanto, não foi obtido com a malária vivax. a transmissão da malária a níveis extremamente
Ao contrário: não houve variação significativa baixos em localidades ribeirinhas piloto. Trata-se
da incidência após tratamento dos portadores agora de reproduzir esse procedimento em áreas
mais extensas e, simultaneamente, em um maior
número de localidades. Registre-se que o sucesso
da operação é dependente do bom funcionamento
Vitória progressiva contra a malária das estruturas do Programa de Saúde da Família
(PSF) nas localidades em que é aplicado.
Ano Total de exames Total positivos (%)

exames realizados no cepem


Qual a taxa atual da malária assintomática?
2006 26.518 9.324 (35,2) Nas localidades ribeirinhas estudadas do rio Ma-
2007 26.956 7.671 (28,5) deira e do rio Machado, elas variaram de 10% a
2008 18.465 4.038 (21,9)
2009 18.319 3.299 (18,0)
40% dos residentes adultos.
2010 17.001 3.627 (21,3)
2011 13.202 3.047 (23,1) Quais são as áreas pesquisadas?
Em trabalhos anteriores mostramos que a inci-
PORTO VELHO dência de malária é particularmente elevada em
2006 142.188 34.865 (24,5) áreas ribeirinhas, onde a população anofélica, na
2007 137.529 32.932 (23,9)
2008 119.635 23.647 (19,8) estação chuvosa, sobe a níveis elevados de densi-
2009 141.469 20.591 (14,6) dade HBR (Hour bitting rate) superiores a 20 ou
2010 152.191 23.257 (15,3) 30 (picadas por pessoa por hora). O desenvolvi-
2011 122.531 19.266 (15,7)
mento da imunidade clínica natural, responsável
pela condição de portador assintomático, está
RONDÔNIA diretamente relacionado à frequência da exposi-
2006 407.997 101.646 (24,9)
ção a picadas infectantes e, portanto, ao tempo de
fonte tabela Dados de SIVEP Malaria do Ministério da Saúde

2007 372.167 81.929 (22,0)


2008 269.364 49.807 (18,5) residência nas áreas de transmissão. É, portanto,
2009 277.289 41.366 (14,9) essencialmente nas áreas ribeirinhas de Rondônia
2010 262.070 43.576 (16,6)
2011 212.146 35.120 (16,6) que temos realizado os estudos sobre portadores
assintomáticos de parasitas da malária. Estas áreas
BRASIL se situam ao longo do município de Porto Velho
2006 2.959.134 549.379 (18,6)
2007 2.983.535 457.433 (15,3) (35 mil quilômetros quadrados), que ocupa uma
2008 2.724.433 314.879 (11,6) nesga de terra de 500 quilômetros de extensão e
2009 2.618.715 308.407 (11,8) cerca de 60 quilômetros de largura ao longo do
2010 2.710.800 333.404 (12,3)
2011 2.562.497 293.520 (11,5) rio Madeira, da fronteira de Rondônia com Mato
Grosso até a fronteira com o estado do Amazonas.

pESQUISA FAPESP maio de 2012  _ 15


Quantos exames o Cepem realiz anual­mente? de Vila Amazonas, Cachoeira de Teotônio e São
Os exames de malária são realizados por nossa Sebastião. As amostras de sangue são transpor-
equipe de microscopistas instalada na unidade de tadas para o Cepem, onde são processadas, por
atendimento do Cepem para diagnóstico e trata- meio de frota de viaturas, utilizada igualmente
mento da malária, situada em anexo ao Hospital para os trabalhos de campo em entomologia e
Cemetron, uma unidade da Secretaria de Saúde do que foi bastante ampliada após a integração do
Estado (Sesau) especializada em patologias infec- Ipepatro à Fiocruz.
ciosas e parasitárias e que funciona 365 dias por
ano, 24 horas por dia, incluindo domingos e feria- Em 2007, o senhor estava preocupado com o
dos. Essa atividade de prestação de serviços e assis- efeito da migração para a expansão da doença.
tência à população também é útil para as pesquisas Essa preocupação se confirmou?
em fisiopatologia, imunopatologia e quimioterapia Em 2009, publicamos na PLoS ONE um artigo so-
da malária desenvolvida em colaboração direta e bre a dinâmica da transmissão e a distribuição es-
financiamento do Ipepatro/Fiocruz-Rondônia. pacial da malária nas áreas ribeirinhas de Porto Ve-
Nesse caso, são selecionados pacientes voluntá- lho. Chegamos a conclusões importantes: 1) apesar
rios, que participam de vários da transmissão poder ocorrer
programas de pesquisa, aten- intra e extradomicílio, a ma-
didos por médicos e técnicos nutenção da malária nas áreas
que dispõem de equipamen- endêmicas é essencialmente
tos para exames hematológi- dependente da transmissão
cos, bioquímicos, sorológicos, intradomiciliar na constitui-
imunológicos e moleculares ção, entre os residentes do

“Houve nos últimos


como FACS (fluorescent cell foco da endemia, reforçado
sorter), microscópio de fluo- pela presença das fontes de
rescência, equipamentos para infecção permanente (assin-
análises por Elisa, PCR e PCR
em tempo real. O Cepem dis-
anos uma redução de tomáticos); 2) a mobilidade
das populações amazônicas

50% no número
põe de uma equipe especial é o fator essencial da difusão
de controle ético de estudos e extensão da endemia malá-
envolvendo seres humanos. rica. No caso de duas localida-
Houve nos últimos anos
uma redução de 50% no nú-
de casos de malária des ribeirinhas, visitantes e
moradores temporários (pes-

atendidos no Cepem”
mero de casos de malária cadores sazonais) eram res-
atendidos no Cepem e de ponsáveis por um aumento de
mais de 85% no número de 2,6 vezes no número de casos
casos de malária falciparum. registrados. Em 2007 tinha
Isso reflete a situação geral havido 102 casos de malária
de evolução da malária no entre os 379 residentes e 265
conjunto da Amazônia, em casos entre visitantes e resi-
Rondônia e em Porto Velho em particular. O nú- dentes provisórios (pescadores), em particular nos
mero de casos em Rondônia, que nas décadas de meses de piracema, quando os peixes sobem o rio
1980-90 chegou a representar mais de 40% do para desovar e são mais facilmente pescados. Ora,
total de casos da Amazônia, passou a represen- esses pescadores eram moradores da periferia de
tar em 2006 apenas 18,5%, caindo ainda mais em Porto Velho e veiculadores de malária para as áreas
2011, para 12%. Entretanto, os dados do Sivep periféricas da cidade. Os resultados nos colocaram
Malária registram uma situação particular de em posição de contestar as proposições do progra-
aumento relativo da incidência da malária em ma Global Malária da OMS que, com base no mapa
Porto Velho, que representava 34,3 % do total de mundial elaborado pelas equipes da Universidade
casos do estado de Rondônia em 2006, passando de Oxford e considerando a “baixa incidência da
em 2009, 2010 e 2011 a representar, progressiva- malária falciparum na Amazônia”, propunham a
mente, 49,8%, 53,4% e 54,9% do total de casos no utilização dos meios tradicionais para o controle,
estado. Essa situação se deve em grande parte ao em particular o uso de mosquiteiros impregnados
movimento de populações provocado nos últimos associado ao tratamento da malária sintomática.
anos pelas obras das hidrelétricas do rio Madeira. Passamos a defender uma proposição diversa para
Além dos exames no Cepem, são realizados o controle, a de identificar os focos de alta endemi-
exames nos trabalhos campo, essencialmente cidade para concentrar os instrumentos de controle
nas áreas ribeirinhas do rio Madeira para estu- tanto vetorial nos domicílios, como o tratamento
dos epidemiológicos e de controle. Equipes de dos residentes permanentes dos focos, incluindo
microscopistas são instaladas nas localidades os portadores assintomáticos de parasitas.

16  _ especial 50 anos fapesp


Com a construção da Usina Hidrelétrica de San- rurais vizinhas, que teria permitido o controle da
to Antônio, no rio Madeira, e a consequente mi- malária nessa área e igualmente das patologias de
gração, a incidência da doença cresceu? transmissão hídrica como as diarreias infantis, a
Na verdade, o conteúdo do artigo da PLoS ONE febre tifóide, a amebiase, a leptospirose, a hepatite
foi fruto dos estudos e pesquisas que realizamos A, entre outras endêmicas na área.
de 2006 a 2007, já com a preocupação das obras Essa situação de falta de coordenação entre as
da construção da Usina Hidrelétrica de Santo An- instâncias federais, estaduais e municipais em
tônio. Fizemos o mapeamento das localidades saúde, como também sua interação com o setor
ribeirinhas em toda a área de impacto da hidrelé- privado,  que deveriam atuar inteiramente coor-
trica, com residências e residentes identificados e denadas segundo a política do SUS, continua a
projetamos a instalação das unidades de vigilân- dar origem a desacertos. Quando obtivemos do
cia e controle que julgávamos necessárias para Fundo Global da OMS, em 2010,  recursos para o
as operações de controle na área. Em meados de controle da malária,  fomos forçados pelo doador
2007, preparamos um longo documento, com 10 – o Fundo –  a reservar US$ 20 milhões do auxí-
proposições para prevenir o possível agravamento lio para a compra e instalação de mosquiteiros
e difusão da malária na região ribeirinha de Porto impregnados de inseticidas nas campanhas de
Velho e arredores. Convencidos de que o perigo controle. Ora, o uso de mosquiteiros impregna-
provinha dos focos de alta endemicidade existen- dos, tão apreciados pelo Fundo Global da OMS,
tes nas localidades ribeirinhas da área de impacto
das hidrelétricas, o documento propunha a insta-
lação de cinco unidades de atendimento e vigilân-
cia ao longo da área ribeirinha do Madeira, com
equipes PSF, além de uma unidade denominada
Centro de Coordenação Operacional, com uni-
dades móveis, centro de formação, laboratório de
entomologia para vetores e anexos operacionais.
A proposta sugeria a constituição de um processo
legitimando um mecanismo multiinstitucional de
cooperação técnica e corresponsabilidade execu-
tiva, reunindo os serviços de saúde do município,
do estado e das empresas construtoras, a partir do
qual seria o constituído o setor puramente téc-
nico de supervisão da saúde na área de impacto
da hidrelétrica. Infelizmente, a proposta não foi
adiante porque cada setor via interesses políticos
ou financeiros prioritários. Evoluiu-se para uma
fragmentação da autoridade e dos instrumentos
de ação. O consórcio da hidrelétrica ficou com a
autoridade sobre o canteiro de obras; o municí-
pio, a título de compensações, solicitou recursos
para a implantação de serviços de saúde básica,
dentro e fora da área de impacto; o estado, com
os mesmos argumentos, solicitou recursos para
obras hospitalares fora da área de impacto; o mi-
nistério designou responsável para “supervisio-
nar” as ações de controle que, pela dispersão de
atores e responsáveis, se tornou difícil de realizar.
Isso sem falar do direito à extraterritoriedade dos
atores, conferido às empresas privadas (as hidre-
létricas), de decidir no domínio da saúde, além
do que iriam fazer com seus empregados (o que
é legitimo), ficar livre para utilizar as medidas de
controle vetorial em áreas de residências das po-
pulações locais, utilizando métodos que não são
adotados pelo controle vetorial do Ministério da
Saúde. Com a dispersão da autoridade, ninguém
ficou responsável pelo saneamento, medida que
marcia minillo

devia ter sido prioritária para o controle de veto-


res nas áreas de impacto, urbanas, suburbanas e

pESQUISA FAPESP maio de 2012  _ 17


não tem nenhuma comprovação de utilidade para contra as formas amastigotas intracelulares. As
o tipo de malária que temos na Amazônia. Inde- pesquisas mostram que essas substâncias inibem
pendentemente disso, receber auxílio financeiro enzimas da via de biossíntese de ácidos nucleicos
carimbado com o tipo de medida a ser financiada do parasita. Essas substâncias estão sendo na-
e utilizada contraria  os mais básicos princípios nomontadas em nanoestruturas para dispersão
de autonomia  administrativa da República. Mais controlada e os resultados são muito promissores,
grave ainda é o fato de a OMS exigir que a ges- principalmente para as lesões cutâneas. Num futu-
tão dos recursos fosse feita não pelo Ministério ro próximo, teremos o prazer de anunciá-los. Com
da Saúde, mas por uma entidade privada que foi relação ao estudo dos anticorpos de camelídeos,
montada e credenciada. Curiosamente, depois há resultados promissores para neutralização da
de transferir uma primeira parcela do auxílio, a raiva e efeito local de envenenamento de toxi-
OMS descobriu que o Brasil era a sexta potência nas animais. As pesquisas sobre novos compostos
mundial em termos de PIB e não devia receber ativos obtidos a partir da biodiversidade, contra
auxílios;  rompeu o acordo e não transferiu a agentes de doenças negligenciadas, tiveram um
segunda parcela. Entretanto, o setor correspon- grande desenvolvimento a partir da implantação
dente do Ministério da Saú- do Centro de Estudos de Bio-
de já estava  organizando a moléculas Aplicadas à Medi-
distribuição de mosquiteiros cina (Cebio), sob direção de
Rodrigo Stabeli. Criado com
“Produzimos
impregnados e agora preten-
de obter recursos públicos  recursos obtidos inicialmen-
(inclusive do fundo setorial te pelo Ipepatro e pela Finep,
de CT&I do MS) para averi-
guar se os muitos  milhares 
anticorpos isolados foi instalado em colaboração,
com a Universidade Federal
de Rondônia. Quando o Ipe-
de lhamas e alpacas
de mosquiteiros impregna-
dos, comprados, distribuídos patro foi transformado em
e  instalados, serviram para Fiocruz-Rondônia, essa linha
alguma coisa em relação à
malária, sendo que, por ou-
contra os vírus da de pesquisa se tornou estraté-
gica, coordenando assim um
conjunto de pesquisas sobre
febre amarela e
tro lado, a larga utilização de
luz elétrica atrai toda a en- a biodiversidade para o isola-
tomofauna circulante. Com mento e o desenvolvimento
efeito, não se sabe o impac-
to deste equipamento na
da raiva e toxinas de protótipos de fármacos e
insumos imunológicos ativos
contra malária, leishmaniose,
de serpentes”
entomofauna da Amazônia.
Os mosquiteiros impregna- Chagas, raiva e outras pato-
dos estão sendo instalados logias negligenciadas como
sem prévio estudo de im- as produzidas por arbovírus
pacto no interior da maior biodiversidade do e toxinas animais. O Cebio desenvolveu uma sé-
planeta. Durma-se com um barulho desses. rie de novas tecnologias, utilizando aparelhos de
nanossensoriamento, espectrometria de massa e
Em 2007, o senhor contou que estava prestes eletroforese bidimensional, contra alvos molecula-
a registrar a patente de um quimioterápico res definidos para o isolamento e identificação de
baseado em drogas desenvolvidas a partir da produtos naturais bioativos ou imunobiológicos. Já
biodiversidade. A patente foi depositada? produzimos enzimas recombinantes por engenha-
Existem duas linhas de pesquisa. A primeira delas ria genética, correspondendo a três enzimas-chave
é a produção de anticorpos a partir de camelídeos como alvos moleculares de Plasmodium falciparum
e a segunda busca fonte, a partir da biodiversidade para o isolamento de produtos naturais ativos. Pro-
brasileira – principalmente da amazônica –, para duzimos enzimas recombinantes de Leishmania
a identificação de protótipos/produtos para pre- amazonensis com a mesma finalidade. O Cebio é o
venção e tratamento das doenças negligenciadas. único a demonstrar resultados de nanossensoria-
Neste último caso, estamos concentrando nossos mento a partir de enzimas triméricas no Biacore
esforços em malária, leishmaniose e Chagas. Te- (dados ainda em fase de proteção patente). A par-
mos dois pedidos de patentes aceitos pelo nosso tir da técnica de Phage display, temos produzido
núcleo de gestão da tecnologia, mas para ser re- anticorpos do tipo monomérico VHH, isolados a
gistrada definitivamente exigem-se ainda detalhes partir de camelídeos (lhamas e alpacas) contra os
relativos à toxicidade da droga. Existem duas subs- vírus da febre amarela e da raiva e contra toxinas
tâncias ativas promissoras contra Leishmania sp, de serpentes. As pesquisas dos anticorpos se con-
extraídas de plantas regionais, que se mostraram centram sobre a capacidade dos anticorpos VHH
ativas tanto contra formas epimastigotas como isolados de inativar os vírus e as toxinas in vivo.

18  _ especial 50 anos fapesp


OS PROJETOS
1. Antígenos variantes de
Plasmodium falciparum:
participação no fenômeno
de citoaderência e
repercussões na patogenia
da malária grave – nº
1998/12107-2 (1999-2001)
2. Levantamento da fauna
de carrapatos de Rondônia
e determinação da
prevalência de Rickettsia,
Erlichia e Borrelia nesses
artrópodes n. 1999/08589-
4 (2000-2004)
3. Estudo de malária vivax
assintomática em áreas
hipoendemicas da
Amazônia Brasileira nº
1999/06603-0 (1999-2002)
Modalidade
1. Linha regular a auxílio a
projeto de pesquisa
2. Projeto temático
3. Bolsa de doutorado
COORDENADORES
1. Luiz Hildebrando Pereira
da Silva – ICB/USP
2. Erney Felicio Plessmann
de Camargo – ICB/USP
3. Fabiana Piovesan Alves –
Em Candeias, Alguns desses resultados especialistas para estudos seletivos progressivos, ICB/USP
Rondônia, o pano têm perspectivas de che- consome centenas (ou milhares) de animais de INVESTIMENTOS
vermelho é o sinal 1. R$ 392.269,81
gar ao mercado? laboratórios e exige a utilização de equipamentos
de que há um caso 2. R$ 398.242,50
suspeito de malária Re s p o n d o c i t a n d o o extremamente dispendiosos de última geração 3. R$ 85.459,53
exemplo da Spirodolo- Essa digressão tem por objetivo destacar as
na, uma das únicas novas dificuldades das instituições científicas e aca-
drogas que a indústria farmacêutica internacio- dêmicas de desenvolver, no Brasil, estudos equi- ARTIGOS CIENTÍFICOS
nal está propondo contra a malária para entrar valentes, contando apenas com alunos e esta- ALVES, F.P. et al.
em fase de ensaios clínicos, com a previsão de giários que preparam memórias de graduação Asymptomatic carriers of
Plasmodium spp. as
um mínimo de três a quatro anos para chegar ou de pós-graduação e a quem os orientadores
infection source for malaria
ao mercado, se tudo der certo. Uma publicação não podem dar como tema atividades de rotina vector mosquitoes in the
na Science, em dezembro de 2011, descreve o para selecionar nas diferentes etapas, através Brazilian Amazon. Journal of
Medical Entomology. v. 42,
processo no qual colaboraram 29 signatários, de manipulações repetitivas as moléculas so-
p. 777-9, 2005.
entre os quais vários especialistas em malária, breviventes dos screenings progressivos. Como
LABRUNA, M.B. et al.
de 12 conceituadas instituições suíças, inglesas, nossa indústria farmacêutica não tem recursos Rickettsia belli and
americanas, tailandesa e singapurana, além de suficientes para investir em pesquisa “promete- Rickettsia amblyommi in
pesquisadores da Novartis. Para chegar à Spiro- dora” e as instituições de fomento financiam, em Amblyoma ticks from the
state of Rondônia. Journal of
dolona, partiu-se de 12 mil produtos sintéticos e geral, apenas a formação de iniciação científica Medical Entomology. v. 41, p.
naturais com indícios de atividade antimalárica, e de mestres e doutores, esse problema tem que 1073-81, 2004.
dos quais foram selecionados, num primeiro ci- encontrar soluções por meio do desenvolvimento GBOTOSHO, G. O. et al.
clo, 275 com toxicidade menor que 50% contra de bolsistas e cargos permanentes de apoio téc- Different Patterns of pfcrt
células humanas na concentração de 10uM e com nico. Sem isso, nossas descobertas de produtos and pfmdr1 Polymorphisms
in P. falciparum Isolates
atividade antimalárica a uma concentração me- promissores ficarão sempre no nível da primeira from Nigeria and Brazil: The
nor que 1uM. Dos 275 produtos, foram isolados descrição e, obviamente, quem sofrerá as conse- Potential Role of
17 mais ativos, a partir dos quais foram sinteti- quências seremos nós mesmos, uma vez que os Antimalarial Drug Selection
Pressure. The Am J Trop
zados 200 análogos, com pequenas variações de insumos relacionados às doenças locais ficaram Med and Hyg. v. 86, p. 211-
estrutura, testados in vitro e in vivo para chegar cada vez mais escassos, até que o surto desta ou 13, 2012.
à Spirodolona, que inibe seletivamente a síntese daquela doença hoje negligenciada comece a dar
proteica de Plasmodium falciparum. Em várias lucro. Não podemos seguir ou ficarmos reféns do
publicações recentes verifica-se que, entre as mercado farmacêutico diagnóstico local. O Brasil DE NOSSO ARQUIVO
indústrias farmacêuticas de ponta, um produto possui ótimas cabeças ligadas ao desenvolvimen-
Da malária às doenças
novo demora em média 13,5 anos, desde a pri- to de insumos para a saúde pública. É necessária
eduardo cesar

emergentes
meira descoberta até a proposição no mercado, uma política pública estratégica para o desenvol- Edição nº 73 – março de
e necessita de dezenas ou centenas de técnicos e vimento coordenado desta área. n 2002

pESQUISA FAPESP maio de 2012  _ 19


Membrana celular
_  b iologia molecular
Lisossomos

Previsões
Ca+
Ca+
Ca+ + Ca+
Ca
Ca+
Ca+
Ca+ Ca+

otimistas Ca+

Pesquisadores apostam no surgimento


de um fármaco nacional eficiente contra
o mal de Chagas em médio prazo

Eduardo Geraque

U
m bom candidato a fármaco contra a Desde os anos 1970, quando as pesquisas mo-
centenária doença de Chagas poderá leculares começaram com mais ênfase, poucos
surgir em quatro anos, segundo uma avanços no campo prático ocorreram. Fármacos
visão otimista dos pesquisadores do foram descobertos. Mas eles, até hoje, são con-
Centro de Biologia Molecular Estru- siderados bastante tóxicos. Os remédios no mer-
tural – um dos Centros de Pesquisa, Inovação e cado também não funcionam para a fase crônica
Difusão (Cepid) da Fapesp. da doença, a que mais preocupa os responsáveis
“Se um dia existir um medicamento eficiente pelos setores da saúde. A maior parte do pacien-
contra a doença de Chagas, ele será feito a partir tes registrados hoje está neste grupo.
de uma tecnologia que é 100% nacional”, afirma Dentro dos laboratórios, o processo é tentar iden-
Adriano Andricopulo, um dos coordenadores do tificar as proteínas que possam ser vitais para a
centro da USP de São Carlos. proliferação da doença. Depois de conhecida esta
O caminho tem muito obstáculos, e os bons etapa, então, será preciso tentar desligar bioquimi-
resultados obtidos nos últimos anos não são ga- camente este mecanismo. O que, na prática, poderá
rantia de que o tempo previsto para a chegada cessar a infecção causada pelo parasita.
do fármaco será realmente curto. Entre todas as proteínas-alvo testadas pela
Apesar de vários avanços no conhecimento equipe de São Carlos, a cruzaína, até agora,
biológico do problema nas últimas décadas, o mostrou-se a mais promissora. Ela tem impor-
comportamento do Trypanosoma cruzi ainda tância vital para o T. cruzi. As pesquisas mos-
impõe grandes desafios aos cientistas que se de- tram que a proteína tem a ver, por exemplo,
bruçam sobre o mal. com a replicação do parasita. Desestruturá-
O estágio atual das pesquisas para domar o pa- -la, então, pela ação de um composto químico,
rasita que causa a doença reforça a importância pode ser uma forma eficiente de controle da
de um casamento entre a biologia molecular es- doença. Números da Organização Mundial da
trutural, no campo da ciência básica, e a quími- Saúde (OMS) mostram que 18 milhões de pes­
ca medicinal para o desenvolvimento de novos soas têm Chagas. A maioria deste contingente
fármacos, do lado da chamada ciência aplicada. está na América Latina.

20  _ especial 50 anos fapesp


O início da infecção
Ceramida
Hipótese sobre como o parasita se instala no organismo

1
O T. cruzi provoca uma
lesão na membrana
2
celular. Os lisossomos soltam
Íons de cálcio entram uma enzima que ativa
na célula e fundem os a ceramida, um lipídeo
lisossomos – organelas presente na estrutura
responsáveis por destruir celular.
corpos estranhos – com Ao reparar a membrana,
a membrana celular a ceramida ajuda
o T. cruzi a entrar na
célula

3 Uma vez na
célula o T. cruzi
multiplica-se
até rompê-la

Depois de a pesquisa básica mostrar que o can- nistas da história da pesquisa sobre Chagas no
didato a fármaco realmente atinge o alvo já valida- país nestas últimas quatro décadas.
do pelos pesquisadores, é que novos desafios serão “No Brasil, o enfoque molecular começou a ser
vencidos. Um fármaco, para ser usado do ponto de dado realmente em São Paulo, nos anos 1970. O
vista clínico, precisa ser absorvido, metabolizado Trypanosoma cruzi é um modelo para estudos bio-
e distribuído no organismo. Ele precisa agir tanto lógicos. Nesse período, houve muita evolução no
em nível molecular quanto em escala sistêmica. Ou campo da pesquisa básica. Mesmo assim, estamos
seja, matar realmente o T. cruzi. E não provocar, muito longe de ter um conhecimento completo
junto, a intoxicação do paciente. da biologia do cruzi”, afirma, convicto, o cientista.
A importância da biologia molecular nas pes- A busca pelo entendimento de como a relação
quisas de Chagas está sedimentada desde os anos entre parasita agente transmissor e hospedeiro
1970, quando avanços importantes neste campo ocorre gerou muito conhecimento em pesquisa
começaram a ocorrer porque os grupos de pesquisa básica ao longo dos anos, diz Colli. Além de for-
paulistas passaram a focá-lo com bastante ênfase. O mar muitos profissionais qualificados nas áreas da
objetivo desse olhar voltado mais ao nível molecu- bioquímica e da genômica, principalmente. Um
lar era tentar barrar a proliferação de protozoários olhar mais molecular para o problema sucedeu a
dentro das células hospedeiras, no caso, humanas. visão morfológica, que era antes predominante.
O próprio grupo de Colli, no Instituto de Quí-

P
rojetos e programas de pesquisa voltados mica da USP, acabou, indiretamente, contribuin-
ao tema começaram a ser criados e incen- do para a descoberta de uma molécula nova, que
tivados pelos órgãos de fomento, como a acabou totalmente conhecida em 1979. A douto-
FAPESP. Os resultados científicos gerados nas randa Maria Júlia Manso Alves chegou à estrutu-
bancadas dos laboratórios paulistas desde aque- ra a partir de achados do próprio grupo. Ela de-
infográfico  tiago cirillo 

la época podem ser divididos em dois grandes monstrou que o cruzi era repleto de açúcares em
grupos, de acordo com o médico Walter Colli, sua forma. O pesquisador Michael Ferguson, da
professor titular do Instituto de Química da Uni- Escócia, repetiu o trabalho. E depois comunicou
versidade de São Paulo (USP) e um dos protago- aos brasileiros que as âncoras proteicas que ele

pESQUISA FAPESP maio de 2012  _ 21


O cientista Carlos Chagas
sobre as águas do rio
Negro, em expedição à
Amazônia (1913)

começara a estudar tinham propriedades muito A investigação minuciosa da genética do T.


parecidas com a molécula descrita no Brasil. O cruzi é algo que pode contribuir bastante, expli-
encontro de informações contribuiu para a iden- cam os pesquisadores, para o avanço das pesqui-
tificação das âncoras. Estruturas glicolipídicas sas em biologia aplicada. Muitos defendem que
que prendem as proteínas às membranas. este caminho, na verdade, é o grande atalho para O T. cruzi vem
As descobertas no campo molecular, que cres- combater o parasita e a sua invasão.
ceram ainda mais depois de as técnicas genômicas Saber que o sistema de leitura do DNA até a se revelando
ficarem mais sólidas, paradoxalmente, dificultam síntese de proteína, por exemplo, é diferente no
o avanço no segundo grande grupo, o da biologia protozoário causador de Chagas em relação aos
muito complexo.
aplicada. As pesquisas básicas vêm mostrando que seres humanos tem uma grande importância. Por isso,
o T. cruzi é muito complexo. Por isso, combatê-lo, Fármacos que venham interferir em um dos pro-
dentro da célula, é um desafio e tanto. cessos não devem, em tese, atrapalhar o outro. combatê-lo
Uma informação instigante, diz Colli, decifra- O caminho do desenvolvimento de compostos
da nas últimas décadas, é de como o protozoá- mais certeiros, trilhado, por exemplo, pelo grupo dentro da
rio lê as informações contidas em seu DNA. Na de São Carlos, é o mais viável para os próximos
maioria dos seres vivos, a transcrição (processo anos, diz Colli. A explicação para isso é o avan-
célula é um
em que o RNA é feito a partir da fita de DNA) é ço das pesquisas em genética molecular, área do desafio e tanto
onde ocorre a regulação gênica. Mas, no caso do conhecimento biológico em franca expansão.
causador do mal de Chagas, estudos feitos em

U
vários grupos de pesquisa, como os da equipe ma outra possibilidade, o desenvolvimento
do Instituto de Biologia Molecular do Paraná, de vacinas contra Chagas, já foi pratica-
vinculado à Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), mente descartada pela comunidade cien-
indica algo diferente. Grande parte da regulação tífica. “Não vai ser possível, por essa via, obter
da expressão gênica do T. cruzi ocorre depois da uma imunização 100%. Existe uma questão de
transcrição. O que seria um mecanismo novo de logística. Em quem aplicar, por exemplo, a va-
síntese de proteína a partir do DNA. cina? Em todos os 190 milhões de brasileiros?”
Vários grupos concordam que essa diferença Como a transmissão pelo inseto barbeiro pra-
importante entre o protozoário e outros seres ticamente acabou, diz Colli, não se tem um pú-
vivos no campo molecular pode ser uma ferra- blico-alvo bem delimitado para receber a vacina.
menta poderosa que explicaria boa parte do su- A forma de transmissão ativa hoje é por meio da
cesso do parasita em invadir as células de seus ingestão de alimentos contaminados pelas fe-
hospedeiros. zes do barbeiro. Os últimos casos, por exemplo,

22  _ especial 50 anos fapesp


estiveram relacionados com o consumo de garapa A doença pode matar na sua fase aguda. Ou
(caldo de cana) ou de açaí. Mas, neste caso, todos então arrastar-se por décadas e causar problemas
precisariam ser vacinados. “E não há, também, crônicos significativos nas pessoas. Nem sempre
como medir a eficiência desta vacina.” ela mata. O caso emblemático de Berenice Soares
Se os estudos sobre vacinas são escassos (ne- de Moura mostra bem isso. Carlos Chagas des-
nhum grupo científico dedica 100% do seu tempo creveu toda a doença com base em amostras de
a isso hoje), o desenvolvimento de novos fármacos sangue retiradas de Berenice, quando ela tinha
também é bastante complexo, por causa da falta dois anos de idade. A mulher, que vivia em um
de verbas para este tipo de pesquisa. ambiente rural quando criança, morreu aos 74
O mal de Chagas faz parte das chamadas doen- anos, de isquemia cerebral.
ças negligenciadas. Como a maioria das pessoas As estimativas indicam que, ainda hoje, cerca
com a doença é de países ou regiões pobres, sem de 5 milhões de brasileiros sofrem de Chagas. Na
poder aquisitivo para comprar medicamentos ca- O fato de América do Sul, o número sobe para 12 milhões
ros, a própria indústria farmacêutica não faz inves- a 13 milhões de doentes. No berço da descober-
timentos maciços neste campo da saúde pública. a doença ta científica da doença de Chagas, por exemplo,
centenas de casos são detectados todos os anos.
ocorrer em

E
stimativas indicam que um medicamento, para Não é que a transmissão esteja ativa. Mas são
ser colocado na praça, custa para uma empre- países pobres casos antigos, que começam a aparecer agora.
sa algo ao redor de US$ 1 bilhão. E o tempo Depois de o ciclo da doença ficar conhecido,
para ele ficar pronto é algo em torno de 20 anos. desmotiva os as formas de combater a doença passaram a ser
Outros dez anos devem se passar até o remédio mais ou menos delineadas. Ficou claro que eli-
começar a dar retorno comercial. Ninguém, diz investimentos minar o barbeiro, para cortar a transmissão por
Colli, está disposto a fazer isso no caso do mal de completo, seria certamente o método mais eficaz
Chagas. A maioria das pesquisas em biologia apli-
na pesquisa de frear o mal. Ou então, por meio da biologia dos
cada neste campo, nos últimos anos, é feita a partir de novos agentes envolvidos, impedir que o protozoário
de instituições sem fins lucrativos, que investem saísse do intestino do barbeiro para invadir as
grande quantidade de dinheiro a fundo perdido. fármacos células hospedeiras humanas poderia ser outra
A busca de medicamentos mais eficazes para boa estratégia de combate ao mal de Chagas. n
adultos é apenas parte do problema. Remédios para
crianças, por exemplo, que sejam seguros, também
são raros. Mas, em nível sul-americano, a própria
transmissão da doença, da forma tradicional, via O projeto
barbeiro, ainda é um realidade em várias regiões.
Centro de Biologia Molecular Estrutural – nº 1998/14138-2
O pior caso é na Bolívia, onde cerca de dez mil ca- (2000-2012)
sos novos são registrados a cada ano. Mesmo no Modalidade
Brasil, existem indícios de que a doença pode estar Programa Centros de Pesquisa (Cepid)
se instalando em algumas regiões da Amazônia. Coordenador
A aproximação do ser humano de áreas vege- Glaucius Oliva – IFSC/USP

tadas é que fez surgir a doença, como ocorreu no Investimento


R$ 28.449.954,27
interior de Minas Gerais.
A descoberta da relação entre parasita e hospe-
deiro é do início do século passado. Na época, na Artigos científicos
distante Lassance, no interior de Minas Gerais, DIAS, L. C. et al. Quimioterapia da Doença de Chagas:
o médico Carlos Chagas (1879-1943) elucidou o Estado da Arte e Perspectivas no Desenvolvimento de
mecanismo do mal que leva seu nome. Ele con- Novos Fármacos. Química Nova. v. 32, p. 2444-57, 2009.

cluiu o estudo em 14 de abril de 1909 (o artigo da BALLIANO, T. et al. Kinetic and Crystallographic Studies on
publicação científica é de 22 de abril do mesmo Glyceraldehyde-3-Phosphate Dehydrogenase from
Trypanosoma cruzi in Complex with Iodoacetate. Letters in
ano), descoberta considerada até hoje a mais im-
© Fundação Oswaldo Cruz-Casa de Oswaldo Cruz-IOC (AC-E)6-33

Drug Design & Discovery. v. 6, p. 210-14, 2009.


portante feita por um cientista brasileiro.
Ao contrário de outras doenças transmitidas
De nosso arquivo
por insetos, como a dengue ou a malária, no caso
de Chagas não é a picada do transmissor o pro- O parasita discreto
blema principal. O protozoário que causa o mal Edição nº 188 – outubro de 2011
entra na corrente sanguínea dos seres humanos Livre do barbeiro, não de Chagas
por meio das fezes. Ao coçar a pele, por causa da Edição nº 151 – setembro de 2008
picada, as fezes contaminadas entram em con- Reprodução desvendada
tato com a ferida. O T. cruzi vive no intestino do Edição nº 118 – dezembro de 2005
barbeiro. No ser humano, ele vai atacar principal- Identidades reveladas
mente órgãos vitais, como o coração e o fígado. Edição nº 76 – junho de 2002

pESQUISA FAPESP maio de 2012  _ 23


_  d oenças cardiovasculares

Genes bailarinos
Equipe do Incor reduz de 2 mil para 80
os fragmentos de DNA candidatos a explicar
a origem da hipertensão

Mariluce Moura e Ricardo Zorzetto

N
uma entrevista pingue-pongue con- numa rede, e vai ficar hipertenso.” É esse “o esta-
cedida em maio para a edição de ju- do da arte atual” sobre a hipertensão essencial ou
nho de 2012 de Pesquisa FAPESP, o primária. Sabe-se dessa “combinação do terreno
professor Eduardo Moacyr Krieger, com o meio ambiente” e não se sabe “mexer no
que em 1985 organizou a Unidade de terreno” preventivamente, mas é o que se quer
Hipertensão do Instituto do Coração (Incor) da conseguir. Se os genes envolvidos na hipertensão
Faculdade de Medicina da Universidade de São forem identificados, se for possível saber a carga
Paulo (FM-USP), origem de um dos mais impor- genética de cada um e com base nisso trabalhar
tantes grupos de pesquisa de hipertensão do país com aconselhamento genético, talvez a hiperten-
e com respeitada inserção internacional, voltou são essencial que atinge 50% dos adultos acima
a lembrar que o sistema de regulação da pressão de 60 anos se torne uma epidemia do passado.
arterial está intimamente ligado aos genes. “Re- Muitos anos antes, em 1999, outro Krieger, o
cebemos como carga genética os mecanismos professor José Eduardo, diretor do Laboratório
controladores da pressão, eles fazem a síntese de Genética e Cardiologia Molecular do Incor,
dos mecanismos pressores e depressores. Essa integrante da equipe e filho do professor Eduar-
carga pode facilitar a produção de substâncias do Moacyr, dissera a Pesquisa FAPESP (edição
pressoras ou formar menos substâncias hipoten- 47, outubro): “Não temos a ilusão de explicar a
soras. Aí começa a história: temos de saída alguma hipertensão por um único defeito genético”. Co-
predisposição para ser hipertenso ou não”, disse. ordenador de toda a parte de genética do projeto
Essa predisposição, entretanto, não basta. Pa- temático Bases fisiológicas da hipertensão: estudo
ra o problema eclodir, há que se ter o concurso integrado, apoiado pela FAPESP desde 1995, ele
decisivo do meio ambiente, “que está o tempo observou na época que, em nenhum problema
todo suscitando regulação da pressão arterial”. biológico complexo ou, mais exatamente, em ne-
E esse meio ambiente, Krieger detalhou, “é o sal, nhuma das doenças complexas que normalmente
a inatividade, a obesidade, o estresse, todas essas correspondem a grandes linhas dos programas de
coisas que de uma forma ou de outra mexem com saúde pública, caso de diabetes, câncer, asma, ate-
o sistema de regulação”. Alguém com um sistema rosclerose, epilepsia e esquizofrenia, encontra-se
SCIENCE PHOTO LIBRARY

de regulação muito bom pode ser submetido a to- um único gene responsável pelo mal. “O que as
das as pressões ambientais e seguir com a pressão explicam são defeitos em vários genes que, sob
normal. “Mas outro, com um sistema muito ruim, a influência de diferentes fatores ambientais,
pode ficar sem comer um grama de sal, deitado determinam as manifestações da doença”, disse.

24  _ especial 50 anos fapesp


Angiografia mostra
em finos detalhes as
artérias que irrigam
o coração

pESQUISA FAPESP maio de 2012  _  25


Substâncias naturais
vasoativas  Maurício Rocha e
Fisiologia e genética da hipertensão Silva, Eduardo Braun-Menéndez
e Irvine Page identificam,
respectivamente, a bradicinina,
a angiotensina e a renina

fisiologia da hipertensão
1940/
1950
biologia molecular

a Dupla hélice
Francis Crick e
James Watson
definem a estrutura
tridimensional do DNA

fornecem, a equipe de Krieger continua buscan-


do “o endereço”, como ele diz, ou endereços da
origem da hipertensão.

S
upõe-se hoje que a emergência da hiperten-
Quase 13 anos de estudos sistemáticos e mais são primária resulta de vários defeitos pe-
de 200 artigos científicos depois, publicados nas quenos em múltiplos genes ligados às vias
mais importantes revistas da área – relatando de regulação homeostática do organismo (que
avanços na compreensão teórica da fisiologia e da mantém o equilíbrio da temperatura, pressão, ní-
genética de doenças cardiovasculares, apresen- vel de glicose no sangue etc.). Há, em paralelo, um
tando dados novos para um perfil epidemiológico consenso de que, em 90% dos casos, essa epidemia
cardiovascular dos brasileiros ou explorando os contemporânea resulta de uma estreita interação
resultados da produção de linhagens cada vez entre fatores ambientais e genéticos. Diferente-
mais refinadas de ratos hipertensos –, ainda não mente, nos 10% restantes, em que se situam as
livraram o grupo do Incor, nem qualquer outro formas mais resistentes da hipertensão e aquelas
do mundo, de uma questão central e implacável produzidas por doenças raras, encontram-se ca-
que se mantém como desafio no campo das doen- sos sem nenhuma relação com fatores ambientais
ças cardiovasculares: quais são os determinantes e nos quais, tanto múltiplos genes quanto um só
genéticos da hipertensão primária, essa doença defeito, num único gene, podem determinar a
que atinge 22% da população brasileira adulta e condição patológica da pressão arterial.
um total de 970 milhões de pessoas no mundo? É surpreendente e um pouco frustrante, diz
“Já reduzimos para quatro as cinco regiões Krieger, que a busca incessante desde os anos
cromossômicas em que buscávamos experimen- 1990 pelos componentes genéticos da hiperten-
talmente os genes candidatos a desempenhar um são tenha levado a achados mais definitivos jus-
papel claro na emergência da hipertensão, após o tamente nessas situações de doenças raras e não
desenvolvimento de 12 gerações de ratos hiper- relativamente às manifestações mais gerais e
tensos, ou seja, de modelos animais para investi- comuns do problema. “Há estudos nesses casos
gação, em nosso laboratório”, diz José Eduardo de um só defeito descrito em todos os detalhes”.
Krieger, professor titular de medicina molecular Por exemplo, Richard Lifton,do Departamen-
na USP. E valendo-se de todo o sofisticado arse- to de Genética da Universidade Yale, e colegas
nal de ferramentas que a biologia molecular hoje descreveram nos últimos 15 anos uma série de
coloca à disposição para essa procura por genes, alterações genéticas que desencadeiam a hiper-
cruzando-as com estudos de fenótipos cardíacos tensão dependente da retenção indesejável de
e de fenótipos vasculares que os dados diretos sal e água no organismo.
de pacientes do Incor e mais estudos epidemio- No terreno dos casos alheios à hipertensão
lógicos em diferentes grupos populacionais lhe primária estão também aqueles que têm causa

26  _ especial 50 anos fapesp


o controle avança
anti-hipertensivo tropical A Squibb desenvolve e começa
Sergio Henrique Ferreira, estudando a testar os primeiros fármacos
a inflamação, identifica no veneno inibidores da enzima conversora
da jararaca o fator potenciador de angiotensina (ECA)
da bradicinina (BPF)

1960 1970

colas e tesouras mais adiante, também em genética da hiperten-


genéticas são, mas inclui ainda a investigação da remode-
Identificação e lagem por que passam as veias usadas para subs-
isolamento de enzimas tituir artérias bloqueadas por placas de gordura,
de restrição e de caso do implante de ponte de safena, e a linha de
ligases que permitem pesquisa com células-tronco para recuperação
cortar e colar o DNA, do músculo cardíaco.
abrindo caminho para a

U
engenharia genética tilizar veias, vasos especializados no trans-
porte de sangue sob condições de baixo
fluxo e pressão, no lugar de artérias, que
renal muito bem determinada. “Quando a razão transportam sangue sob pressões até 20 vezes
da hipertensão é a estenose renal, por exemplo, mais elevadas, limita a cerca de uma década
ela é curável. Corrige-se o defeito simplesmente a durabilidade de parte das pontes de safena.
com um stent, semelhante àquele que se aplica Ocorre o entupimento, ainda que parcial, do im-
em casos de estreitamento da artéria coronária”. plante de segmentos dessa veia retirada da perna
Mas o fato, segundo Krieger, é que a condição sine usado para restabelecer o suprimento de san-
qua non para que a hipertensão seja controlável gue do coração. Em uma série de experimentos
é o rim estar preservado. Seguidor em termos com ratos e vasos sanguíneos humanos, o grupo
teóricos do famoso fisiologista norte-americano de Krieger observou que a pressão do sangue
Arthur Guyton (1919-2003), Krieger defende que sobre as paredes do vaso altera a programação
o sistema nervoso e o estresse, por exemplo, só das células de veias submetidas às condições de
terão um papel permanente na manutenção da funcionamento das artérias. Como resultado,
hipertensão se o sistema renal estiver alterado. as paredes das veias se tornam excessivamen-
“O rim preservado possibilita ganho infinito na te espessas alguns anos depois da cirurgia de
batalha pelo controle da pressão”, diz. Essa vi- revascularização do coração. Essa investigação
são nem sempre foi tranquila e consensual entre já resultou na identificação de várias proteínas
os componentes do grupo do Incor e, pragmati- envolvidas no espessamento dos implantes, duas
camente, o chefe do Laboratório de Genética e delas caracterizadas completamente pela equipe
Cardiologia Molecular diz que “visões teóricas do Incor: a proteína produzida pelo gene p21,
conflitantes são muito saudáveis, até porque am- que inibe a reprodução celular e em geral está
pliam as possibilidades de avançar”. menos ativa nessas condições; e a produzida
Por mais que não se tenha posto a mão, diga- pelo gene CRP3, em geral ativo apenas nas ar-
mos assim, nos genes que desde regiões celula- térias, mas que também é produzida pelas veias
res remotas supostamente ajudam a empurrar a usadas na função de artérias, conforme relatou
coluna de mercúrio dos tensiômetros para além Krieger à Pesquisa FAPESP em junho de 2009
dos 90 milímetros, no movimento de diástole, e (edição 160).
acima dos 140 milímetros, na sístole, o inventá- O professor Eduardo Moacyr assumiu a chefia
rio do trabalho científico do grupo dos Kriegers da Unidade de Hipertensão do Incor depois de
infográfico  tiago cirillo

mostra avanços contínuos e consistentes desde 28 anos de uma respeitada carreira de professor e
que se instalou no Incor. Isso engloba os muitos pesquisador na Faculdade de Medicina da USP de
trabalhos teóricos e experimentais em torno dos Ribeirão Preto. Ali sua principal linha de pesquisa
mecanismos de controle da pressão arterial e, fora estudar em modelos de hipertensão expe-

pESQUISA FAPESP maio de 2012  _  27


novos vasoativos biologia de sistemas
Identificação de novas O conceito de sistemas vasoativos
substâncias vasoativas, como (e não de moléculas vasoativas)
o óxido nítrico, a endotelina e o permite avançar na compreensão do
fator natriunrético atrial desequilíbrio no controle da pressão

1980 1990

rimental (ratos, pioneiramente) os mecanismos apresentasse uma distribuição aleatória dos ge-
de regulação da pressão arterial, principalmente nes de cada um dos dois tipos”. Ao todo, o grupo
os mecanismos neurogênicos. Assim, ao chegar obteve 12 gerações de ratos e múltiplas sublinha-
ao Incor, ele trazia uma expertise considerável gens de animais congênicos. E nas experiências
para iniciar a formação de um grupo multidisci- a transição com essa geração procurou-se determinar com
plinar de pesquisa que se tornaria um dos mais Ferramentas e precisão, via marcadores moleculares, quais regi-
respeitados do mundo em seu campo. Em 1995, produtos da biologia ões cromossômicas os netos hipertensos haviam
liderando uma equipe de 11 pesquisadores, entre molecular, como o herdado de seus avós hipertensos.
biólogos moleculares, fisiologistas e médicos clí- PCR, começam a se A busca por genes vinculados à hipertensão
nicos, ele submeteu à FAPESP o temático Bases tornar commodities e não é uma aventura meio determinista como
fisiológicas da hipertensão, que se articulava a um toda a biologia passa pode parecer. Encontrá-los aumenta as chances
esforço internacional pelo estabelecimento das a incorporar conceitos de uma descrição precisa dos vários sistemas de
bases genéticas da pressão arterial. Em alguns de genética e biologia controle da pressão arterial, a exemplo do renina-
estudos específicos, a pesquisa brasileira contava molecular -angiotensina, descrito ainda em 1949, e amplia as
com a colaboração de pesquisadores do Medical possibilidades de compreensão dos fundamentos
College de Wisconsin e das universidades Har- das diferenças no comportamento dos sistemas
vard e da Carolina do Norte. de controle em pessoas igualmente hipertensas.
Por fim, permitiria estabelecer prevenção e tera-

E
m 1999, reportagem de Pesquisa FAPESP pias mais adequadas a cada paciente.
(edição 47, outubro) informava que se havia Apesar de o trabalho do grupo do Incor fechar
chegado a “alguns resultados muito concre- o cerco aos genes candidatos a explicar a hiper-
tos”. O primeiro, publicado em 1995 em artigo na tensão, o universo a ser descartado ainda é grande,
Genome Research, fora “a identificação de cinco pois cada uma das quatro regiões que identifica-
regiões cromossômicas em animais de experi- ram abriga cerca de 500 genes. Desde que chegou
mentação (ratos), que explicavam em grande par- a essas regiões, Krieger já conseguiu restringir o
te o aumento da pressão arterial nessas cobaias”. número de genes de interesse de quase 2 mil pa-

infográfico tiago cirillo  Fonte linha do tempo e infográfico: josé eduardo Krieger / incor-usp 
Parecia haver nessas regiões genes diretamente ra cerca de 80. E continua um trabalho ativo com
envolvidos com a hipertensão e eles seriam busca- ferramentas exploratórias variadas (chip de DNA,
dos por meio de múltiplas abordagens. Nos ratos, transcriptoma, micro RNA e outras) para selecio-
duas das regiões se encontravam no cromossomo nar genes candidatos nos ratos, aliadas aos estudos
2 e as demais nos cromossomos 4, 8 (que estudos de genótipos e fenótipos possibilitados pela obser-
posteriores descartaram) e 16. Havia então uma vação e exames dos pacientes do Incor e do mate-
forte disposição para buscar as regiões cromos- rial dos grandes estudos epidemiológicos como o
sômicas humanas correspondentes. estudo transversal da população de Baipendi, em
Chegou-se às cinco e, adiante, às quatro re- Minas Gerais, realizado com 1.700 pessoas (14%
giões cromossômicas num trabalho contínuo da população adulta) de 100 famílias. “Se chegar-
de cruzamentos e caracterização fenotípica das mos a um ou dois genes candidatos em cada um
cobaias, além da caracterização dos marcadores dos quatro modelos animais e, trabalhando com
moleculares usados na busca dos genes. Confor- técnicas de genômica comparativa, testaremos no
me a reportagem de 1999, “o cruzamento entre genoma humano se existe a alteração dos mesmos
hipertensos e normotensos (com pressão arterial genes ou ao menos das vias bioquímicas com a
normal) visou à obtenção de netos, isto é, de uma qual esses genes estão implicados”, diz Krieger,
segunda geração de animais cuja carga genética “vamos dar um grande passo”. n

28  _ especial 50 anos fapesp


novo status para o genoma humano os genes da hipertensão
a biologia Saem os primeiros A partir de 2 mil genes
O início do rascunhos do candidatos, chega-se a
sequenciamento do sequenciamento do 80 genes possivelmente
genoma humano trouxe genoma humano envolvidos no controle
a biologia para o campo e de outras espécies da pressão arterial
da big science

2000 2010

mapeamento de
síndromes Garimpagem genética
São identificadas várias
regiões cromossômicas Pesquisadores combinam genética e biologia molecular em
em animais de laboratórios, busca dos genes possivelmente envolvidos na hipertensão
associadas à gênese de
doenças complexas

Rato hipertenso Rato normal

Os projetos
Gene do rato hipertenso
Estudo integrado da hipertensão arterial: 5 regiões
caracterização molecular e funcional do sistema
cardiovascular – nº 2001/00009-0 (2001-2006) 2 4
Da bancada à clínica: desenvolvimento de
biomarcadores como preditores da resposta à
8 16
Genes Genes que
terapêutica e lesão de órgãos-alvo na hipertensão iguais diferem
arterial sistêmica – nº 2007/58942-0 (2009-2012)
GENE
Mapeamento genético de fatores de risco
cardiovascular na população brasileira – projeto Exon
corações de Baependi – nº 2007/58150-7 (2008-2012) Intron
Modalidade
Gene do rato normal
1. e 2. Projeto Temático Intron
3. Auxílio regular a projeto de pesquisa
Coordenador Em busca de uma linhagem ideal  O acasalamento de ratos com pressão
1. e 2. Eduardo Moacyr Krieger – Incor/FMUSP normal e outros hipertensos por sucessivas gerações permitiu identificar cinco
3. José Eduardo Krieger – Incor/FMUSP
regiões cromossômicas ligadas à hipertensão
Investimento
R$ 6.110.874,19
R$ 3.306.336,56
R$ 1.832.181,66
400 a 500 genes cantidatos em
cada região cromossômica
Artigos científicos

Storck, N. J. et al. A biometrical genome search in mistura de genomas  Animais das linhagens portadoras de cada região
rats reveals the multigenic basis of blood pressure
variation. Genome Research. 1995.
foram cruzados novamente com ratos hipertensos, o que possibilitou reduzir
o número de genes suspeitos
CAMPOS, L.C. et al. Induction of CRP3/MLP expression
during vein arterialization is dependent on stretch
rather than shear stress. Cardiovascular Research. 2009.

20 genes candidatos para cada animal


De nosso arquivo

Cerco à matadora silenciosa Ed. nº 47 – out. de 1999


Alarme molecular Ed. nº 69 – out. de 2001 fechando o cerco  Por meio de técnicas moleculares, os pesquisadores
Coração reconectado Ed. nº 160 – jun. de 2009 buscam identificar no tecido renal evidências de participação dos genes na
Efeito inesperado Ed. nº 171 – mar. de 2010 hipertensão arterial

pESQUISA FAPESP maio de 2012  _ 29


_ d efesas orgânicas

Quando o
organismo
se destrói
Amplia-se o conhecimento de mecanismos
moleculares da sepse, reação inflamatória
fatal produzida pelo sistema imunológico

Salvador Nogueira

Imagem obtida por


microscópio eletrônico de
Capnocytophaga canimorsus,
uma das causas de sepse

30  _ especial 50 anos fapesp


I
magine que, para expulsar um inimigo de “Normalmente é uma infecção secundária que
seu território, um exército empregue tanta leva à morte dos pacientes”, diz Alves Filho. “Pri-
força e selvageria que acaba por destruir meiro a pessoa é internada com uma infecção, é tra-
também a própria população que desejava tada, e aí pega uma segunda, no próprio hospital.”
defender. Isso é basicamente o que aconte- Quando o quadro se instala, o resultado é de-
ce quando alguém sofre de sepse. Trata-se vastador. Nos Estados Unidos, por exemplo, é a
de uma rea­ção inflamatória aguda causada pelo segunda causa de morte nas UTIs. São mais de
próprio sistema imunológico, ao reagir a uma 700 mil casos por ano, e cerca de 30% deles le-
infecção. Conhecida também como septicemia vam à morte. No mundo inteiro, são 18 milhões
(termo que está caindo em desuso), a doença de ocorrências anuais. Por essa razão, o tema se
costuma ser fatal, afetando múltiplos órgãos e tornou um exemplo clássico de um novo ramo de
levando-os à exaustão em pouco tempo. pesquisa denominado “medicina translacional”.
Aos poucos, os cientistas têm decifrado o que É o nome que se dá a uma linha de estudos que
acontece com o corpo quando há essa reação nasce da necessidade imediata dos médicos, volta
imunológica exagerada e desesperada. Isso es- à bancada do laboratório e então tenta retornar à
tá levando ao desenvolvimento de novos trata- origem, trazendo novas soluções. No caso, Quei-
mentos, que têm sido eficazes em aumentar a róz Cunha e Alves Filho buscam, ao desvendar os
sobrevida dos pacientes. Contudo, ainda conti- enigmas moleculares da sepse, identificar inter-
nua sendo muito difícil salvá-los, uma vez que a venções medicamentosas eficazes para cortar o
sepse se instaura. processo antes que ele leve à fatalidade.
“Os pacientes seguem morrendo, mas não nas No laboratório, a sepse é induzida em roedores,
fases iniciais da infecção”, afirma José Carlos Al- tentando de certo modo mimetizar o que acon-
ves Filho, da Faculdade de Medicina da USP em tece nos hospitais. Então, primeiro os animais
Ribeirão Preto. “O que estamos vendo é que a fase são submetidos a uma perfuração intestinal, que
tardia é bem diferente da fase inicial.” causa a infecção primária. Surge uma peritoni-
Alves Filho faz parte do grupo liderado por te. Depois, os pesquisadores provocam o ataque
Fernando de Queiróz Cunha, que trabalha há secundário – uma pneumonia. O resultado é um
anos na decifração de vários dos mistérios da rato acometido pela sepse. A partir daí começam
sepse em escala biomolecular. A equipe se con- as investigações do que está havendo e como
centra nos mecanismos que ocorrem nas células conter o problema.
e tecidos para levar o corpo a essa reação deleté-
ria ao identificar a presença de um patógeno. E Sistema imune
eles descobriram que a sepse, quando o paciente Na sepse, já está claro há mais de uma década
sobrevive por tempo suficiente, leva a um desli- que o grande problema não é a infecção em si,
gamento do sistema imunológico. mas a resposta imunológica exagerada, que não
só fracassa em conter as bactérias invasoras co-
Doença da UTI mo se espalha pelo corpo de forma generalizada
Não é toda infecção que causa a sepse. Na ver­ e provoca falência múltipla dos órgãos. Mas, ao
dade, a maioria das invasões de bactérias no orga­ intervir nesse problema, trata-se de uma escolha
Dennis Kunkel/Phototake/Glowimages

nismo é repelida com relativa facilidade pelo de Sofia: se os médicos atacam o sistema imune,
sistema imunológico. A infecção e a inflama- a infecção corre desimpedida. Se deixam que ele
ção generalizadas só costumam acontecer quan- atue, ele mesmo destrói o organismo.
do há algo errado com a rede de defesa do corpo. É preciso, portanto, uma estratégia mais fina,
Por isso, normalmente a sepse acomete quem já que manipule de forma mais sutil o sistema sem
está hospitalizado, sobretudo nas Unidades de desligar nada. É na busca desse conhecimento
Terapia Intensiva (UTIs). que está o grupo de Queiróz Cunha.

pESQUISA FAPESP maio de 2012  _ 31


Destruição celular
RESPOSTA INFLAMATÓRIA sepse
Num cenário de inflamação normal, os neutrócitos, A produção de óxido nítrico dispara e inibe a ação dos
com a ajuda do ácido nítrico, atacam as bactérias neutrócitos, deixando a infecção sem controle
estranhas ao organismo

Bactéria ação inibidora do ácido


estranha nítrico em excesso

óxido nítrico
ajuda a identificar
as bactérias

ativada a ação
ativada a ação
dos neutrócitos
dos neutrócitos

uínea
sang te
os neutrócitos corre
n
ingerem e
digerem as
bactérias
estranhas

Eles descobriram, por exemplo, que o nas revistas científicas Shock, Blood e

infográfico tiago cirillo,  fonte: FMRP/USP


óxido nítrico é um componente impor­ O óxido nítrico Critical Care Medicine, em 2006. No ano
tante da rede de relações químicas que seguinte, o grupo demonstrou por que
levam à sepse. Em circunstâncias nor- em excesso o óxido nítrico inibe a ação dos neutró-
mais, ele é usado pelos leucócitos (em filos: eles deixam de expressar certos
particular por uma classe deles, os neu­
inibe a receptores que os tornam sensíveis à
tró­filos) para atacar e destruir as bac- migração das inflamação. A migração das células é
térias. Além disso, o óxido nítrico tem interrompida, e é como se o exército de
um papel importante ao induzir o re- células de defesa do organismo declarasse unila-
laxamento vascular. Ele permite um teralmente um cessar-fogo. Enquanto
aumento no volume de sangue em cir­ defesa, o que o inimigo ainda avança.
culação e leva mais células de defesa ao
foco infeccioso.
ajuda a explicar Coração flácido
Contudo, é como bem sabe a sabedo- como o quadro Um desenvolvimento interessante acon-
ria médica, a diferença entre o remédio teceu quando a linha de pesquisa de
e o veneno costuma estar na dose. Num se generaliza Queiróz Cunha encontrou a de Marcos
quadro de sepse, a produção de óxido Rossi, patologista da Faculdade de Me-
nítrico vai às alturas. Chega a ser mil dicina da USP em Ribeirão Preto. Ros-
vezes maior que o normal. Aí a pressão si havia percebido, ao longo de muitos
arterial cai drasticamente. E o pior: qual- anos realizando necrópsias em pacientes
quer tentativa de inibir a produção da que morreram com sepse, que o cora-
substância no corpo do paciente elimina ção deles havia passado por mudanças
a principal arma dos leucócitos contra radicais. “Era diferente, meio flácido, o
as bactérias invasoras. que indicava que em vida havia apresen-
Para completar o drama, Queiróz tado problema de funcionamento”, diz
Cunha e seus colegas descobriram que Rossi, que contou com um projeto de
óxido nítrico em excesso também ini- equipamentos multiusuários no valor
be a migração das células de defesa, o de R$ 850 mil.
que ajuda a explicar como o quadro se Rossi e Cunha investigaram o que leva-
torna generalizado. Os detalhes desse va a essa devastação do músculo cardíaco.
processo foram publicados em artigos Adotaram o camundongo como modelo

32  _ especial 50 anos fapesp


animal para os estudos e constataram que, o número caiu para 50%. “Alguém pode
sob a sepse, havia uma redução expressiva dizer, ‘ainda assim morreu muito’. Mas Os Projetos
na quantidade de proteínas responsáveis o ponto é que melhoramos a sobrevida
1. Mediadores envolvidos na gênese da dor
por manter as células do coração forte- em cinco vezes.” e na migração de leucócitos e na sepse –
mente unidas. Como resultado, as células O principal problema é que a sepse é nº 2007/51247-5 (2007-2012)
se desconectavam umas das outras. um quadro generalizado. Ela afeta dras- 2. Sepse e choque séptico: alterações funcionais e
morfológicas do coração: estudo experimental em
Mais uma vez, o óxido nítrico em ex- ticamente o coração, mas também outros camundongos – nº 2004/14578-5 (2005-2007)
cesso apareceu como o vilão. Liberado órgãos. Os pesquisadores desenvolveram 3. Avaliação in vitro da expressão de distrofina
em excesso durante o processo inflama- um meio de proteger o músculo cardíaco, em cardiomiócitos submetidos a diferentes
estímulos – nº 2009/53544-2 (2010-2012)
tório, ele danifica a parede das células mas ainda assim, em boa parte dos casos,
Modalidades
cardíacas, tornando-as mais permeáveis os animais continuam a morrer – desta 1. e 2. Projeto Temático
ao cálcio. Em consequência, o excesso vez pela falência de outro órgão. 3. Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa
de óxido nítrico leva à morte celular. Coordenadores
Quanto mais células são afetadas, mais Volta ao hospital 1. e 2. Sergio Henrique Ferreira – FMRP-USP
3. Marcos Antonio Rossi – FMRP-USP
se reduz a capacidade de o coração bom- Para Rossi, ainda há muito que aprender
Investimento
bear sangue. sobre os mecanismos da sepse. Entre- 1. R$ 2.303.227,35
O achado foi publicado em 2010 na tanto, ele vê o trabalho específico com 2. R$ 153.565,78
revista científica Shock e levou a uma bloqueadores de cálcio pronto para tes- 3. R$ 310.920,30

estratégia promissora. Como diversos tes clínicos. Uma vez que essas drogas
medicamentos bloqueiam a absorção já foram aprovadas para alguns usos, Artigos científicos
do cálcio e são usados no controle da seria possível encurtar bastante o tempo
1. ROSSI, M. A. et al. Myocardial structural
pressão arterial e na regulação do ritmo de teste para convertê-los numa ferra- changes in long-term human sepsis/septic
cardíaco, Rossi e Cunha tiveram a ideia menta útil na proteção ao coração du- shock may be responsible for cardiac
de tentar usá-los, em animais, para ver rante um quadro de sepse – o que, por dysfunction. Shock. v. 27, n. 1, p. 1-18, 2007.

se havia como protegê-los da sepse. Os si só, já reduziria significativamente a 2. CELES, M. R. et al. Disruption of sarcolemmal
resultados, em colaboração com pequi- mortalidade, pelo menos na fase inicial dystrophin and beta-dystroglycan may be a
potential mechanism for myocardial
sadores do Albert Einstein College of da doença. dysfunction in severe sepsis. Laboratory
Medicine, em Nova York, foram muito Apesar desse potencial, nenhum gru- Investigation. v. 90, p. 531-42, 2010.
expressivos. po especializado em pesquisa com seres 3. CELES, M. R. et al. Reduction of gap and
O grupo demonstrou conclusivamente humanos o procurou para colocar a es- adherens junction proteins and intercalated
que há um aumento dramático de cálcio tratégia em prática. “Fala-se muito na disc structural remodeling in the hearts of
mice submitted to severe cecal ligation and
nas células cardíacas quando o organis- tal medicina translacional, mas não se puncture sepsis. Critical Care Medicine. v. 9,
mo passa por um quadro de sepse. Ape- pratica. A gente conduz a coisa no la- p. 2176-85, 2007.
nas dois minutos depois da instituição do boratório, mas falta quem pegue dali e 4. CELES, M. R. et al. Increased sarcolemmal
choque séptico, o cálcio aumenta 60%. leve de volta ao hospital. E no Brasil são permeability as an early event in experimental
septic cardiomyopathy: a potential role for
Passadas 24 horas, ele continua aumen- ainda mais temerosos”, critica.
oxidative damage to lipids and proteins. Shock.
tado em 20%. Mas, quando há tratamen- Enquanto a transferência não aconte- v. 33, n. 3, p. 322-31, 2010.
to, a história é outra. ce, Rossi e Cunha continuam trabalhan-
“Mostramos que há extrema melho- do para desvendar todos os mecanismos
De nosso arquivo
ra quando os animais são tratados com moleculares envolvidos nesse conflito do
bloqueadores de cálcio”, diz Rossi. En- organismo contra si mesmo. E seus es- Fora de controle
Edição nº 172 – junho de 2010
quanto no grupo controle (camundongos tudos seguem apresentando potenciais
sem nenhum tratamento), após 72 horas, alvos para intervenção médica no grande Resposta controlada
Edição nº 160 – junho de 2009
a mortalidade era de 90%, nos tratados desafio que é vencer a sepse. ■
fotos Marcos Rossi/FMRP-USP

A sepse altera a estrutura


da proteína distrofina
(em verde, à esquerda) e
prejudica o funcionamento
das células do coração
(situação normal, à direita)

pESQUISA FAPESP maio de 2012  _ 33


_ M etabolismo do açúcar

A trama por trás


do diabetes
Ao longo de vinte anos, projeto
desvenda as conexões entre dieta e
resistência à insulina no organismo

Maria Guimarães

H
á vinte anos esmiuçando o funcionamento bio-
químico de organismos que desenvolvem diabe-
tes tipo 2, o médico Mario Saad, da Universidade
Estadual de Campinas (Unicamp), descobriu que
a genética talvez seja a parte menos importante.
“Nós somos o que comemos, menos a quantidade de exercício
que fazemos, além do tipo de bactéria que temos no intestino”,
resume. Uma boa máxima, ele admite, para um médico que
pode assim aconselhar aos pacientes um estilo de vida que os
proteja contra a doença – que atinge 350 milhões de pessoas
no mundo todo e causa problemas como obesidade, risco de
amputações e até a morte – ou diminua sua progressão.
Mas não se trata de invenção para convencer pacientes: a
convicção de que o ambiente externo e as bactérias intestinais
sobrepujam a proteção genética no surgimento de obesidade
e diabetes está fundada em sólida pesquisa. O grupo de Saad
revelou, em artigo publicado em dezembro de 2011 na PLoS
Biology, que a população bacteriana inerente a qualquer in-
testino humano, além de benefícios à digestão, também pode
contribuir para a resistência ao hormônio insulina pelas cé-
lulas, a condição precursora do diabetes. Quando o problema
se instala, a insulina – mesmo que presente em altas concen-
trações – deixa de conseguir indicar às células dos múscu-
los e de outros tecidos que retirem a glicose do sangue para
estocá-la ou transformar em energia. Em experimentos com
camundongos, a equipe da Unicamp verificou que o proble-
ma pode ser causado por uma proporção atipicamente alta

34  _ especial 50 anos fapesp


Vilão quando em excesso,
o açúcar precisa ser
removido do sangue

de bactérias do filo Firmicutes, grupo que reúne dezenas de


espécies e, ao lado de outros grupos de bactérias, constitui a
microbiota intestinal. Parte do doutorado da bióloga Andrea
Caricilli, os resultados chamaram tanto a atenção que, nos
quatro meses em seguida à sua publicação, foi acessado mais
de 13.500 vezes no site da revista.
“A microbiota intestinal não é a única causa do diabetes e
da obesidade, nem provavelmente a mais importante”, co-
menta Saad. “Mas constatamos que ela contribui para gerar
uma inflamação no tecido adiposo que inicia um processo de
ganho anormal de peso que depois se perpetua.” As firmi-
cutes parecem facilitar a passagem pela parede do intestino
de moléculas que se soltam quando outras bactérias se rom-
pem. São os lipopolissacarídeos (LPS), compostos por açú-
cares e gorduras, que acionam no resto do organismo sinais
bioquímicos que ativam o sistema imunológico, causando
uma inflamação subclínica (não acusada por sintomas) tí-
pica de obesos. Quando a obesidade se instala, alterações na
parede do intestino aumentam ainda mais a permeabilidade
a LPS, reforçando a reação imunológica que, nas células do
fígado, dos músculos e do tecido adiposo, também desenca-
deia a resistência à insulina, reforçando assim a ligação entre
diabetes e obesidade.
A protagonista da história é uma proteína da família dos
receptores celulares toll-like (TLR), que identificam molécu-
las estranhas ao organismo e estimulam a reação do sistema
imunológico. Neste caso, os experimentos foram feitos com
camundongos sem TLR-2. Num experimento feito por pes-
quisadores do Canadá e da Suíça, esses camundongos, criados
em ambiente estéril, não engordavam nem desenvolviam dia-
betes, mesmo com uma dieta supercalórica. Já no laboratório
de Saad, aconteceu o contrário: eles ficaram obesos e diabéti-
cos, mesmo recebendo a mesma ração dos outros roedores. A
diferença estava no ambiente, que não era esterilizado – uma
situação mais semelhante à da maior parte dos organismos
que vivem fora de laboratórios, pessoas inclusive.
Análises genéticas das fezes desses camundongos revela-
ram uma microbiota muito diferente, em que quase metade
Ramesh Amruth/Imagebroker/Glowimages

eram bactérias Firmicutes. Nos outros animais, essa proporção


era de 14%. “Os receptores toll-like predispõem a microbiota
intestinal a um ou outro tipo de bactéria”, explica o médico,
que já tinha obtido resultados diferentes com o TLR-4. Quan-
do tratados com antibióticos, os camundongos voltaram a ter
uma proporção normal de tipos bacterianos e recuperaram a
função da insulina. “Achávamos que encontraríamos todas as

pESQUISA FAPESP maio de 2012  _ 35


O mais grave é que a ordem para ar-
Como o organismo mazenar acaba se tornando crônica, em
parte porque os mecanismos vão muito
aproveita os açúcares além do que acontece no cérebro, con-
forme mostrou ao longo dos anos o tra-
Por meio da insulina, o organismo captura a glicose da corrente balho da equipe de Saad, que hoje inclui
sanguínea e a converte em energia ou em gordura grupos liderados pelos pesquisadores
Lício Velloso e José Barreto Carvalheira,
também da Unicamp. Assim como acon-
tece no hipotálamo, num prazo de dez
dias as células dos músculos se tornam
Corrente sanguínea
resistentes à insulina em camundongos
A insulina aciona um receptor A proteína Glut-4** que recebem uma dieta rica em gordu-
e o IRS-1*, que ativa o Glut-4 adere à membrana
Glicose ras. Em seguida, o problema atinge o
celular e cria uma
Insulina entrada para a fígado e os vasos sanguíneos, também
Glicose glicose danificados pelos altos níveis de glico-
Receptor
se circulante. Mas não basta o chamado
de insulina
“pé na jaca” das comilanças de Natal ou
de umas férias gastronômicas para que a
incapacidade de responder ao hormônio
lular
a ce e capturar glicose do sangue se alastre
bran
m
Me IRS-1 mais e atinja o tecido adiposo – formado
Proteína ativa por células especializadas em acumular
Glicose
o Glut-4 4 gordura. Para isso, ratos em experimento
T- dentro
U no laboratório da Unicamp precisaram
GL da célula
GLUT-4 de cinco meses da dieta que simula maus
hábitos ocidentais, com alto consumo
Célula calórico. Daí surge a obesidade com fre-
Nos tecidos
* Substrato do receptor de insulina-1 ** Transportador de glicose-4 quência associada ao diabetes.

A
respostas no Projeto Genoma Humano, Em parte, são defeitos nesse meca- obesidade, os estudos reforçam
mas agora precisamos sequenciar o ge- nismo que causam o diabetes do tipo 2, cada vez mais, é um fator impor-
noma das bactérias para ver como elas aquele em que o pâncreas produz uma tante que age de várias formas no
interagem com o organismo humano.” quantidade suficiente de insulina, mas desenvolvimento do diabetes. Um desses
ela não consegue acionar a maquinaria elos é o angiotensinogênio produzido nas
Rebeliões internas celular responsável por capturar a gli- células adiposas. Essa proteína é precur-
A contribuição das bactérias para o de- cose. Parte do problema acontece nos sora da angiotensina, molécula que tem
senvolvimento de diabetes lembra a ação receptores de insulina nas células do função central no controle da pressão ar-
de alienígenas que invadem o corpo, mas cérebro, mais especificamente no hipo- terial. Em 1995, durante pós-doutorado
esses microrganismos na verdade estão tálamo. Problemas de sinalização nes- com Saad, Lício Velloso se embrenhou
dentro de um contexto muito mais amplo sa parte do corpo podem desregular, no problema e acabou por mostrar que a
de controle bioquímico do metabolismo por exemplo, o apetite, causando uma angiotensina também é um empecilho à
do açúcar, que pode dar errado por uma tendência a comer sem medidas. O que ação da insulina, por meio de alterações
longa série de motivos que vem rechean- hoje é uma falha no funcionamento po- na IRS-1. Estava estabelecida uma co-
do a carreira de Saad. “O que se sabia era de já ter sido importante na evolução nexão clara entre obesidade, diabetes e
que a insulina se encaixava nos recepto- do homem, explica Saad. “A fome e as hipertensão, um trio que costuma andar
res das células e alguma coisa acontecia epidemias causadas por doenças infec- de mãos dadas. Mais do que isso, o grupo
para causar um efeito biológico”, brinca, ciosas, que foram as grandes causas de mostrou também – no trabalho de Carla
resumindo o conhecimento no começo morte de nossos ancestrais, podem ter Carvalho, outra pós-doutoranda – que
dos anos 1990, época de seu pós-doutora- selecionado os genes que favoreçam o drogas anti-hipertensivas que reduzem
do no Centro Joslin de Diabetes, parte da armazenamento de energia e respostas os teores de angiotensina também con-
Escola Médica de Harvard, nos Estados rápidas às infecções.” O próprio acúmulo tribuem para um melhor funcionamen-
Unidos. Foi lá mesmo, durante a estadia de gordura pode ser visto como um me- to da insulina, causando uma melhora
do médico brasileiro, que foi identifica- canismo de defesa caso falte alimento, no quadro de diabetes. A importância
do o substrato do receptor de insulina como era comum nos tempos em que a da descoberta passou longe de desper-
(IRS-1), primeiro passo para entender o espécie humana vivia em cavernas. Hoje, cebida pela comunidade científica. Foi
mecanismo molecular de resistência ao porém, o organismo mantém a ordem de divulgada em 1996 na PNAS e é hoje o
hormônio responsável pelo equilíbrio da comer muito, mesmo que nem sempre a artigo do grupo de Saad mais citado em
glicose no organismo. comida seja escassa. publicações acadêmicas.

36  _ especial 50 anos fapesp


As células de gordura também se carac- “Um bloqueador de TLR-4 pode ajudar,
Onde surge terizam por serem palco de embates do mas como essa molécula tem uma fun-
sistema imunológico que geram a infla- ção importante no controle de infecções,
o diabetes mação característica do obeso. “‘Você está não podemos bloqueá-lo por inteiro”,
com um leve quadro inflamatório’ poderia explica Saad. Por enquanto, o médico ce-
São várias as origens da ser uma forma politicamente correta de lebra uma realização mais simples, mas
resistência à insulina dizer a um paciente que está obeso”, brin- que traz alívio real aos pacientes: uma
ca Saad. Ele detalha que o tecido adiposo pomada à base de insulina que acelera
produz citocinas – fatores inflamatórios a cicatrização, reduzindo os riscos de
TECIDO ADIPOSO
como a interleucina-6 e o TNF-alfa – que amputação comuns em casos avançados
Fatores inflamatórios (IL-6 e TNF-alfa) atraem os macrófagos, as células do sis- de diabetes. A descrição está prestes a
ativam proteínas que prejudicam o tema imunológico responsáveis por dar ser publicada na PLoS One.
funcionamento da IRS-1. A angiotensina
cabo de partículas invasoras por meio da Saad compara essa trama intrincada ao
contribui para a inativação dos
receptores. fagocitose (em termos genéricos, eles en- poema “Verdade”, de Carlos Drummond
golem e digerem esses visitantes indeseja- de Andrade. A verdade está sempre di-
dos). Apesar de não causarem alterações vidida em metades que não se encaixam
IL-6 de temperatura detectáveis nem dor, sin- perfeitamente. Cada pessoa que a pro-
TNF-alfa tomas comuns das reações inflamatórias, cura só tem acesso a uma dessas meta-
Angiotensina
JNK essas substâncias ativam as enzimas JNK des, e se tentar escolher a mais bonita
IKK-beta e IKK-beta, que por sua vez alteram a con- nunca poderá fazer uma escolha isenta.
figuração da IRS1. Outro fator a causar Não conformado, o (também mineiro)
resistência à insulina. médico continua encaixando as peças
da verdade que compõem o metabolis-

M
IRS-1 ostrando que essas relações nun- mo do diabetes, para quem sabe um dia
ca são lineares e que o organis- encontrar mais soluções. n
mo funciona como uma rede
GLUT-4 altamente complexa, essas enzimas –
assim como a óxido nítrico sintase in- Projetos
GLUT-4 duzível (iNOS) – também são acionadas 1. Mecanismos moleculares de resistência à
pelas proteínas de membrana celular insulina em hipotálamo e tecidos periféricos –
TLR-4. Estas, por sua vez, respondem nº 2001/03176-5 (2002-2006)
2. Instituto Nacional de Obesidade e Diabetes –
aos lipopolissacarídeos liberados pe- nº 2008/57952-5 (2009-2014)
INTESTINO la microbiota intestinal dominada por Modalidade
Firmicutes, aquela mesma que contribui 1. e 2. Projeto Temático
Os LPS* liberados por bactérias acionam o
TLR-4**, que ativa proteínas que alteram para a obesidade e o diabetes. O grupo Coordenador
os receptores de insulina. da Unicamp demonstrou o protagonismo 1. e 2. Mario José Abdalla Saad – FCM/Unicamp
LPS do TLR-4 com experimentos usando ca- Investimento
1. R$ 1.116.696,66
mundongos mutantes em que o receptor 2. R$ 3.241.614,71
para essa proteína não é funcional: esses
TLR-4 animais podiam se esbaldar numa dieta
JNK Artigos científicos
IKK-beta gordurosa, e mesmo assim não engor-
davam. Exatamente o contrário do que 1. VELLOSO, L. A. et al. Cross-talk between the
INOS aconteceu no mesmo laboratório, anos insulin and angiotensin signaling systems.
PNAS. v. 93, n. 22, p. 12490, 1996.
depois, com animais mutantes para o
TLR-2. O LPS, mesmo produzido em 2. TSUKUMO, D. M. L. et al. Loss-of-function
mutation in Toll-like receptor 4 prevents diet-
grandes quantidades, não causava pro- induced obesity and insulin resistance.
blemas. Essa importância do TLR-4 na Diabetes. v. 56, n. 8. p. 1986-98, 2007.
IRS-1
conexão entre dietas cheias de frituras 3. CARICILLI, A.M. et al. Gut microbiota is a key
GLUT-4
e o desenvolvimento de diabetes foi par- modulator of insuline resistance in TLR2
te do trabalho de doutorado de Daniela knockout mice. PLoS Biology. v. 9, n. 12,
infográfico  tiago cirillo, fonte: MARIO SAAD/UNICAMP

GLUT-4
e1001212, 2011.
Tsukumo. Publicados em 2007 na Dia-
* Lipopolissacarídeos  ** Receptor toll like
betes, os resultados renderam ao grupo
de Saad uma de suas publicações mais De nosso arquivo
citadas em artigos científicos. Da obesidade ao diabetes
Revelar esse papel dos receptores da Edição nº 82 – dezembro de 2002
família toll like é importante para a com- Dieta de alto risco
preensão de como a doença funciona, Edição nº 140 – outubro de 2007
mas ainda não chega perto de dar ori- Conexões viscerais
gem a terapias para controlar o diabetes. Edição nº 193 – março de 2012

pESQUISA FAPESP maio de 2012  _ 37


_  D oenças mentais

celular
Desarmonia

Mais de 300 alterações genéticas e funcionais


estão agora associadas à esquizofrenia

Ricardo Zorzetto

O
psiquiatra suíço Eugen Bleuler em outras partes do organismo. E identificaram
balançou o pensamento de sua modificações na estrutura e no funcionamen-
época ao propor em 1911 o termo to das células cerebrais que contribuem para
esquizofrenia para nomear as en- uma compreensão mais abrangente da origem
fermidades mentais marcadas por da esquizofrenia. Somados a trabalhos de grupos
uma dificuldade intensa de estru- estrangeiros, esses resultados deixam cada vez
turar o pensamento e estabelecer laços afetivos. mais evidente que, assim como em outras doenças
Para Bleuler, fragilidades emocionais estariam mentais, são vários os fatores biológicos que in-
na origem da esquizofrenia, até então vista como fluenciam a suscetibilidade e o desenvolvimento
um problema de causa exclusivamente biológica. dessa enfermidade que faz as pessoas sentirem
Desde que apresentou suas ideias, a explicação um profundo vazio emocional e provoca delírios
de como e por que surge a esquizofrenia mudou e alucinações. E, à medida que as investigações
outras vezes. Depois de as opiniões oscilarem entre avançam, mais elementos aparecem.
extremos, hoje, cem anos mais tarde, aparente- O grupo do psiquiatra Wagner Farid Gattaz na
mente se chegou a um meio-termo, que concilia a Universidade de São Paulo (USP) detectou cerca
visão psicológica e biológica. Acredita-se que essa de 300 alterações genéticas que podem compro-
enfermidade, que se manifesta em 1% da popula- meter o desempenho do cérebro e caracterizar
ção, seja o resultado do desenvolvimento – e con- a esquizofrenia; 25% desses genes estão ligados
sequentemente do funcionamento – inadequado à produção de energia e 20%, ao crescimento
das células do cérebro, agravado ou amenizado celular. “Esses dados tornam a compreensão da
por características emocionais do indivíduo ou por esquizofrenia mais realista”, afirma Gattaz.
fatores sociais e ambientais. Agora há sinais de que Talvez já fosse esperado encontrar tantos fatores
LOUISE WILLIAMS/SCIENCE PHOTO LIBRARY

na esquizofrenia há uma alteração no processa- biológicos. Há diferentes níveis de gravidade na es-


mento da glicose. Essa alteração é a possível razão quizofrenia, em que os sinais clínicos podem ir da
por que o diabetes é mais comum entre quem tem desorganização do pensamento à convicção de que
esquizofrenia do que no restante da população. se está sendo perseguido ou das alucinações visuais
Pesquisadores brasileiros trabalhando no país e auditivas à completa paralisia (catatonia). Muita
e no exterior participam dessa revisão concei­tual coisa pode dar errado desde que as células que vão
ao analisar a atividade de genes e a produção originar o cérebro começam a se formar no embrião
de proteínas em diferentes áreas do cérebro e até o momento em que se tornam especialistas, por

38  _ especial 50 anos fapesp


Fragmentação
mental, um
dos sinais da
esquizofrenia

exemplo, em transportar e armazenar informações,


caso dos neurônios. Alterações genéticas herdadas
dos pais ou surgidas ao acaso – somadas a fatores
sociais, como migrações, ou ambientais, a exemplo
de violência e abusos sofridos na infância – podem
interferir na produção de proteínas essenciais para
o funcionamento adequado dos neurônios e de ou-
tras células que formam o cérebro e outros órgãos
do sistema nervoso central.
Uma diferença entre as células cerebrais de
pessoas saudáveis e as das com esquizofrenia é
a consistência da membrana externa dos neurô-
nios, formada por uma dupla camada de lipídios.
Quando trabalhou no laboratório de Gattaz, o
pesquisador alemão Gunter Eckert analisou a
maleabilidade da membrana dos neurônios de
pessoas com e sem esquizofrenia, extraídos após
a morte. A superfície das células do córtex pré-
-frontal, área que coordena o raciocínio e cujo
funcionamento está alterado na esquizofrenia, se
apresentou mais fluida do que o normal. “O au-
mento da fluidez da membrana pode alterar o fun-
cionamento da célula”, comenta Evelin Schaeffer,
psicofarmacologista da equipe de Gattaz.
Esse achado ajuda a explicar algumas modifi-
cações anatômicas e fisiológicas observadas nos
últimos tempos por meio de exames de imagens
no cérebro de pessoas com esquizofrenia. E pa-
rece decorrer de um efeito observado quase 30
anos antes por Gattaz, quando fazia seu douto-
rado na Universidade de Heidelberg, Alemanha.
Naquela época ele verificou que a enzima fosfoli-
pase A2, responsável pela reciclagem de lipídios
da membrana, se encontra mais ativa do que o
normal nos neurônios de quem tem esquizofre-
nia – essa hiperatividade da fosfolipase pode
alterar a composição da membrana e contribuir
para que se torne mais flexível. Mais maleável, a
membrana pode abrigar uma concentração maior
de receptores D2, proteína que extrai do meio
extracelular o mensageiro químico dopamina.
Esse resultado favorece a hipótese mais antiga
e mais difundida para explicar os sinais clínicos
da esquizofrenia. A apatia e o embotamento das
emoções ou ainda os surtos de psicose seriam
consequência de alterações nos níveis de dopami-

pESQUISA FAPESP maio de 2012  _ 39


na no espaço entre as células, que provocaria um
Os rastros da esquizofrenia desajuste na comunicação entre os neurônios. O
excesso de dopamina no meio intercelular, que as
As células do cérebro, quando alteradas, produzem medicações que controlam a esquizofrenia ten-
proteínas em maior ou menor quantidade que o normal tam reverter, diminuiria a atividade de regiões
cerebrais como o córtex pré-frontal, situado na
parte anterior da cabeça, logo acima dos olhos,
e responsável pelo raciocínio complexo, a ca-
pacidade de expressão e a tomada de decisões.

E
stão se acumulando evidências de que na
B
esquizofrenia não é só a transmissão de in-
formação de uma célula a outra que está pre-
judicada. O funcionamento celular parece estar
comprometido, segundo estudos de proteômica
do biólogo Daniel Martins-de-Souza, atualmen-
te no Instituto Max Planck de Psiquiatria, na
Alemanha. Daniel comparou o funcionamento
do cérebro de pessoas com e sem esquizofrenia
C e verificou que algumas regiões cerebrais asso-
ciadas à doença parecem não processar adequa-
damente a glicose, principal fonte de energia do
cérebro. “A proteômica permite ver não apenas
o que está diferente na produção de proteínas,
mas também como, juntas, elas afetam caminhos
Cada ponto na imagem representa um aglomerado de proteínas iguais bioquímicos relacionados”, diz ele.
(separadas em um gel segundo a massa e as cargas elétricas) de uma região Daniel já descreveu potenciais alterações no
do cérebro de uma pessoa com esquizofrenia. metabolismo da glicose em células do córtex pré-
Pessoas não esquizofrênicas produzem mais proteínas identificadas pela letra -frontal e no tálamo, região cerebral que integra
C (de controle) e as com esquizofrenia produzem mais S (de Schizophrenia) informações sensoriais à consciência, e na área
de Wernicke, ligada à compreensão da lingua-
gem escrita. Quase sempre ele encontrou níveis
B C alterados – maiores ou menores que o normal
c8 c1 – de enzimas que participam do primeiro está-
c9
gio de conversão da glicose em energia. “Todo
c3 o metabolismo dessas regiões pode estar mais
c7
lento”, suspeita Daniel, que iniciou em seu dou-
c6 c2 torado os estudos de proteômica no laboratório
de Gattaz em 2004, sob a orientação do biólogo
Acima, sinas da expressão Acima, três proteínas do grupo Emmanuel Dias-Neto.
intensa das proteínas 1 alfa da controle (C1, supressora de O que Daniel viu até agora nas células cerebrais
tubulina (C6 e C7) e a 5 beta metástase de câncer de mama; pode ser uma característica da esquizofrenia com

Imagem Daniel Martins-de-Souza / Instituto Max Planck, Fonte: Martins-de-Souza, D. et al. 2009


da tubulina (C8 e C9), menos C2, tropomiosina 3; e C3, repercussão mais ampla no organismo e estar na
abundantes nas pessoas com ribonucleoproteínas heterogêneas), origem de um fenômeno que há pouco mais de
esquizofrenia (ao lado). produzidas mais intensamente 90 anos intrigou o neurologista Frans Hierony-
que nas pessoas com esquizofrenia mus Kooy. Na Holanda, Kooy havia submetido a
(ao lado) exames de sangue e urina 10 pacientes com es-
quizofrenia, na época mais conhecida como de-
mência precoce, do hospital em que trabalhava.
Ele notou que essas pessoas apresentavam níveis
elevados de glicose no sangue ou hiperglicemia,
um dos sinais típicos do diabetes. Em um artigo
publicado na revista Brain em 1919, Kooy afirmou
estar “inclinado a pensar que as emoções eram
responsáveis pelo aumento do açúcar no sangue”.
Mas ficou a dúvida: não se sabia se ela era causa
ou consequência do transtorno mental.
A ideia de Kooy começa a ser reinterpretada
agora, ante os estudos que investigam as cone-

40  _ especial 50 anos fapesp


xões entre diabetes e esquizofrenia em número e atuam como células de defesa, e nos oligoden-
maior de pessoas. Mais frequente em quem tem drócitos, que se enrolam em torno do principal Os projetos
o transtorno psiquiátrico do que no restante da prolongamento do neurônio e o isola eletrica-
1. Metabolismo dos
população, o diabetes parece não ser causa. Nem mente. Em abril, em um congresso na Itália, ele fosfolípides na esquizofrenia
apenas efeito colateral de algumas das medica- descobriu que ganha força a hipótese de que na e na doença de Alzheimer –
proc. nº 1997/11083-0
ções, que aumentam o ganho de peso, uma vez esquizofrenia ocorra algum grau de degenera-
(1998-2002)
que estudos feitos na última década com pessoas ção, ideia que havia sido posta de lado porque 2. Metabolismo de
antes do início do tratamento também mostraram exames de imagem não identificam alterações fosfolípides em doenças
neuropsiquiátricas –
alteração no processamento da glicose. Vistos anatômicas no cérebro.
proc. nº 2002/13633-7
em conjunto, esses dados mostram a resistência “Pode haver alguma perda, e não necessaria- (2003-2007)
à insulina e o diabetes como uma das manifes- mente de neurônios”, comenta Daniel. No con- Modalidade
tações da esquizofrenia. gresso, a pesquisadora russa Natalya Uranova 1. e 2. Projeto temático
Após verificar alterações no metabolismo em relatou uma redução no número de oligoden- Coordenador
1. e 2. Wagner Farid Gattaz –
diferentes regiões do cérebro, Daniel vale-se drócitos em algumas regiões do cérebro de pes-
Ipq/FMUSP
agora da análise de proteínas para investigar soas com esquizofrenia. E Daniel já observou no
Investimento
como está o processamento tálamo e no líquor alterações 1. R$ 1.655.007,34
da glicose nos tipos distintos no nível de proteínas que são 2. R$ 1.803.528,52
de células cerebrais. Suspeita- marcadores clássicos de escle-
-se de que os neurônios não rose múltipla, doença neuro- Artigos científicos
sejam as únicas células com degenerativa associada à perda
1. MARTINS-DE-SOUZA, D.
problemas na esquizofrenia. do isolamento elétrico promo-
et al. Proteome analysis of
Os astrócitos e os oligoden- vido pelos oligodendrócitos. schizophrenia patients
drócitos, dois dos três tipos de “Se surgirem mais evidências Wernicke’s area reveals an
célula da glia, também pare- O metabolismo de que essas células não fun- energy metabolism
dysregulation. BMC
cem não funcionar bem. Da- cionam bem na esquizofrenia,
niel faz testes com células em das células ela pode se caracterizar como
Psychiatry. v. 9, n. 17, 2009.

2. MARTINS-DE-SOUZA, D.
cultura em que acrescenta o uma doença das células da glia,
composto MK-801, que pro-
nervosas pode e não dos neurônios”, diz.
et al. The role of energy
metabolism dysfunction
voca sinais semelhantes aos ser mais lento Esses achados podem ser and oxidative stress in
schizophrenia revealed by
da esquizofrenia em animais relevantes para a compreen- proteomics. Antiox Redox
de laboratório. nas pessoas com são da esquizofrenia, mas, co- Signal. v. 15, n. 7, p. 2067-79,
2011.
Os resultados preliminares mo lembra Gattaz, não será
indicaram expressão alterada esquizofrenia fácil demonstrar se são causa 3. ECKERT, G. P. et al.
Increased Brain Membrane
de proteínas nos astrócitos, cé- ou consequência dessa doen-
Fluidity in Schizophrenia.
lulas que nutrem os neurônios ça complexa e devastadora. n Pharmacopsychiatry. v. 44,
n. 4, p. 161-62, 2001.

DE NOSSO ARQUIVO

Um quebra-cabeça
em construção
Edição nº 163 –
setembro de 2009

O peso do mundo
Edição nº 95 –
janeiro de 2004
FRANCIS LEROY, BIOCOSMOS/SCIENCE PHOTO LIBRARY

Um oligodendrócito,
cuja membrana se
expande, envolve
e protege os
prolongamentos
de neurônios

pESQUISA FAPESP maio de 2012  _ 41


genô
mica
xylella Afirmação tropical 30  genética de plantas O mapa da cana 54  doenças tropicais A

batalha contra um verme 58  reparo de dna Os sutis danos do sol 62  biologia estrutural

Para entender as proteínas 66  biologia estrutural A essência das moléculas 70  doenças

neurodegenerativas O porteiro das células 74  genética humana O centro das distrofias

78  câncer de mama Coadjuvantes inesperados 84

colônia de bactérias xylella dentro de laranjeira/elliot w. kitajima/usp


_ X ylella fastidiosa

Afirmação
tropical
O empreendimento pioneiro da genômica
nacional desvelou ao país sua face de
produtor científico competente e continua
a gerar conhecimento

Mariluce Moura

A
Xylella fastidiosa é a essa altura uma
velha conhecida dos biólogos e dos bra-
sileiros que acompanham as narrativas
da produção científica nacional, inde-
pendentemente de seu campo de atua-
ção. Mas a bem pesquisada doença que essa bactéria
produz em laranjeiras e outras plantas cítricas no
Brasil, a clorose variegada dos citros (CVC), mais
conhecida por praga do amarelinho, ainda resiste
às investidas dos cientistas que insistem há mais de
uma década em decifrá-la integralmente. “Sabemos
como começa a doença e como a bactéria ocupa
os vasos da planta e neles se expande, porém não
somos capazes de controlar eficazmente o estabe-
lecimento da doença”, diz Marie-Anne Van Sluys,
professora titular no Departamento de Botânica da
Universidade de São Paulo (USP) e chefe do Labo-
ratório de Genômica e Elementos de Transposição
(GaTE-Lab) da mesma universidade. Entretanto,
como o método científico não se deixa paralisar
pelo desconhecimento e faculta a quem o segue a Plantação no
proposição simultânea de diferentes hipóteses para interior paulista:
a citricultura é
um mesmo problema – ou o cerco a um mesmo ob- uma das bases
jeto por distintas abordagens –, há hoje, em parale- da economia do
lo, “uma forte percepção de que o momento-chave estado mais rico
para o controle da doença é quando a bactéria co- do país

44  _ especial 50 anos fapesp


cristiano mascaro

pESQUISA FAPESP maio de 2012  _ 45


Capa da Nature de tanto, de fazer ciência na fronteira do
13 de julho de 2000: conhecimento, levando a bom termo um
reconhecimento
projeto de biologia molecular.
internacional ao

O
empreendimento
brasileiro segundo objetivo era formar pes-
quisadores altamente qualifica-
dos, em grande escala e em curto
intervalo de tempo, ampliando em mui-
to a competência da pesquisa paulis-
ta e brasileira em biologia molecular. E
o terceiro era mobilizar a comunidade
científica para estudar problemas so-
cioeconômicos significativos que ela
poderia ajudar a resolver, como a pre-
ocupante praga do amarelinho, àquela
altura. Mal se poderia supor ali, entre
as falas que se sucediam no quarto an-
dar da sede da Fundação, a boa dose de
ousadia, autoconfiança e persistência
que seria requerida nos próximos meses
das pessoas e instituições que iriam se
embrenhar pelo indevassado terreno da
genômica no Brasil. “As chances de dar
errado eram enormes”, lembra sorrindo
o hoje empresário e então diretor cien-
meça a produzir o biofilme”, prossegue tífico da FAPESP, o físico José Fernan-
Marie-Anne. do Perez, um dos principais artífices do
Esse biofilme, pouco ressaltado quan- O momento-chave belo voo da biologia molecular no país
do a X. fastidiosa viveu seu grande mo- que o projeto da X. fastidiosa represen-
mento de estrela, no centro do projeto para o controle ta. “Aposto que foi o projeto de sequen-
pioneiro das pesquisas genômicas no ciamento de genoma que começou pior
Brasil, em 2000, é um material de apa-
da doença é preparado no mundo”, disse depois de
rência gelatinosa que se deposita junto possivelmente tudo concluído, com muito humor, o co-
à parede do vaso da planta, encostado a ordenador de DNA do projeto, o inglês
quando a bactéria

capa nature  reprodução  infográfico  tiago cirillo, baseado em roteiro original de ricardo bonalume/folha de s.paulo, ilustração drüm
uma outra substância que ela também Andrew Simpson.
produz: a goma xantana. Esta, sim, por Passados 28 meses dessa solenida-
seu visível papel no entupimento dos começa a produzir de de lançamento, em 21 de fevereiro
vasos e consequente impedimento da de 2000 os 192 pesquisadores que ti-
livre passagem da seiva no xilema da
o biofilme nham recém-concluído com sucesso e
planta, foi destacada como elemento im- explosões de alegria o sequenciamen-
portante para a caracterização da CVC to do genoma da X. fastidiosa viram-se
no artigo científico que tornou público aplaudidos com estonteante entusiasmo
o genoma completo da X. fastidiosa. “A por mais de mil pessoas reunidas numa
sensação que temos hoje é de que, se festa na bela Sala São Paulo, enquanto
for rompida a produção do biofilme no a revolucionar a ciência brasileira. Na- recebiam troféus, medalhas e diplomas
momento em que a bactéria começa quela manhã de 14 de outubro de 1997, o do mérito científico e tecnológico insti-
a produzi-lo ou se essa produção for público de professores, pesquisadores e tuídos especialmente para a ocasião pelo
afetada de algum modo, teremos uma empresários que superlotava o auditório governo do estado de São Paulo (é bem
boa condição para o controle da doen- da FAPESP soube com detalhes que a verdade, registre-se, que a mais prolon-
ça”, comenta Marie-Anne, hoje coor- ambiciosa iniciativa na qual a Fundação gada ovação da noite foi endereçada a
denadora adjunta da FAPESP na área investiria US$ 12 milhões, valor espan- Perez, espécie de regente titular da obra).
de Ciên­cias da Vida. toso para o financiamento de um projeto Já em 13 de julho de 2000, dois anos e
O controle stricto sensu, diga-se, era de pesquisa na época e para o qual o Fun- nove meses após o lançamento do pro-
um alvo desejável, espécie de cereja do do de Desenvolvimento da Citricultura jeto que ao longo desse período levan-
bolo, mas não estava entre os objetivos (Fundecitrus) aportaria mais US$650 tara algumas críticas acerbas de quem
centrais do projeto de sequenciamento mil, tinha como primeira meta sequen- achava que sequenciar genoma não era
do genoma da Xylella fastidiosa, apre- ciar o genoma completo do patógeno e fazer ciência, em meio aos mais nume-
sentado com justiça em seu lançamento descrever os novos achados científicos rosos comentários sobre o salto cientí-
como um empreendimento destinado obtidos nesse processo. Tratava-se, por- fico que ele poderia representar para

46  _ especial 50 anos fapesp


A Xylella fastidiosa e a laranjeira
A bactéria tem 2,7 milhões de pares de base e 2.904 genes, dos quais os pesquisadores
brasileiros conseguiram identificar as funções de 47%

Biofilme

2 
Outros genes
levam a bactéria
a produzir um
biofilme que se cola
1  Um grupo de genes produz a à parede celular da
goma xantana, que permite planta
à bactéria aderir à parede celular
dos vasos que transportam a seiva
Goma

Oxidantes 3 A planta


reage liberando
substâncias tóxicas
antibióticos que acionam
um mecanismo
de defesa da X.

Parede celular da planta


Fastidiosa

4  Outro grupo de genes


colabora na defesa e desarma
drogas potencialmente nocivas

5 Na membrana interna

Goma
concentram-se transportadores
Transportadores de substâncias, que expelem ou
“importam” alguns compostos

6 A Xylella
fastidiosa também
tem genes Toxinas
para produzir Fímbrias
toxinas contra
outras bactérias

7 As fímbrias
também servem
para a adesão
Metais da bactéria
provavelmente ao
aparelho bucal da
Ferro cigarrinha
9  Um grupo de
8 Alguns dos genes ligados genes absorve 10  Um conjunto de
certos metais, 67 genes é especializado
à adesão são semelhantes a
como o cobre na absorção de ferro,
micro-organismos que causam
doenças em seres humanos nutriente importante
para X. fastidiosa pESQUISA FAPESP maio de 2012  _ 47
A cigarrinha transmissora do amarelinho

o país, a Nature destinou sua capa ao ma completo de bactéria conhecido pela


projeto da Xylella. A revista publicou ciência e do primeiro de um fitopató-
na edição 6.792, volume 406, além do geno. O sequenciamento mostrou que
artigo científico de sete páginas com os o micro-organismo investigado possui
achados originais da pesquisa, assinado Acima de tudo, 2.679.305 pares de bases nitrogenadas
por 116 cientistas, uma notícia detalhada ou nucleotídeos em seu cromossomo.
a respeito do estudo na seção News and o projeto ajudou O cromossomo carrega 2.904 genes, re-
Views e um editorial no qual sintetizou giões codificadoras de proteínas, dos
o projeto pioneiro da genômica brasilei-
a ressituar o quais um terço era novo para a ciência
ra como “uma realização política tanto Brasil no mapa em 2000. Do total, 47% dos genes tive-
quanto científica”. ram suas funções precisamente descritas
da produção pelo grupo brasileiro, percentual que se

É
uma definição precisa. Primeiro, situou um pouco abaixo daqueles que
o projeto da X. fastidiosa inequi- científica outros grupos de pesquisa de genoma de
vocamente gerou conhecimento bactéria haviam obtido – por exemplo,
científico que continua se desdobrando,
internacional 54% dos genes com funções descritas
12 anos depois de concluído o sequen- na Thermotoga marítima, 52,5% na Dei-
ciamento da bactéria. E, em paralelo, nococcus radiodurans e 53,7% na Neisse-
ele cumpriu seu objetivo anunciado de ria meningiditis. Os autores atribuíram
ampliar rapidamente a capacitação bra- o resultado mais baixo à inexistência
sileira em biologia molecular, ao mesmo internet) tiveram um impacto evidente prévia de qualquer outra sequência
tempo que serviu de âncora a vários ou- no modo de se produzir ciência em São completa de genoma de bactéria fito-
tros projetos em genômica que vieram Paulo desde então, trazendo-o para a patogênica.
a compor o Programa Genoma FAPESP. velocidade contemporânea. E, por fim, Na virada do século, quando o Brasil
Mais: o projeto ajudou a ressituar o Bra- o projeto foi o ponto de partida para a era produtor de quase metade do suco
sil no mapa da produção científica in- criação de empresas relacionadas ao ne- de laranja concentrado distribuído no
ternacional e contribuiu decisivamente gócio da genômica, spin-offs hoje absor- mercado internacional, a receita nacio-
para um redesenho da imagem do país vidas pelo mercado. nal da citricultura alcançava US$2 bi-
na mídia interna e externa quanto à sua Um bom roteiro para resgatar a par- lhões anuais; as receitas de exportações
competência para criar conhecimento tir deste ponto alguns traços essenciais giravam em torno de US$ 1,6 bilhão por
científico. Não bastassem esses dividen- da experiência da Xylella pode come- ano e a atividade gerava no estado de São
fabio melo fontes/fundecitrus

dos políticos, a arquitetura do projeto, o çar pelas contribuições à genômica con- Paulo 400 mil empregos diretos e indi-
ritmo em que foi tocado e o uso de um tidas no artigo publicado pela Nature retos. Nesse cenário, o adoecimento das
novo meio pelo qual se fariam as trocas e ressaltadas na edição 55 de Pesquisa laranjeiras por CVC, que já atingia 34%
de informações e dados entre pesquisa- FAPESP, de julho de 2000. Nele está dos laranjais paulistas, produzia pre-
dores de três dezenas de laboratórios (a registrado que ali se trata do 24º geno- juízos estimados em US$ 100 milhões

48  _ especial 50 anos fapesp


cia antes postulada para fitopatógenos,
fornececendo novas percepções para a
generalidade desses processos”. Os re-
Tratava-se de aliar ciência à produção e sultados obtidos permitirão, diz o artigo,
o começo de uma detalhada comparação
aproximá-la do PIB, da riqueza nacional entre patógenos animais e vegetais. E,
para completar, “as novas informações
e do desenvolvimento social e econômico deverão fornecer bases para uma inves-
tigação experimental, acelerada e racio-
nal das interações entre a X. fastidiosa e
seus hospedeiros, que devem conduzir
anuais. Os dados de 2009 mostram uma provaram que elas estavam corretas, e a novos achados nas abordagens para
receita total da atividade ampliada para novas descobertas foram feitas. O grupo o controle da CVC, a famosa praga do
US$ 6,9 bilhões anuais, exportações em de pesquisa liderado por Marcos Macha- amarelinho”.
torno de US$ 3,15 bilhões, um número do e Alessandra de Souza, da Agência

E
bem menor de empregos diretos e indi- Paulista de Tecnologia Agrícola - Insti- ssa terminologia do paper estava
retos, ou seja, 230 mil postos de trabalho tuto Agronômico de Campinas (Apta- ainda no lugar do sonho quando
e a CVC atingindo proporção idêntica -IAC) identificou a existência de célu- ao abrir a solenidade do dia 14 de
dos laranjais paulistas, isto é, 35% deles. las persistentes nos vasos, o que resulta outubro de 1997, o então presidente da
No artigo da Nature abordava-se o em parte na dificuldade de controle e FAPESP e hoje seu diretor científico, o
metabolismo refinado X. fastidiosa, persistência da doença no campo. Eles físico Carlos Henrique de Brito Cruz,
com sua adaptação para o uso de açú- também demonstraram a ocorrência de classificou o genoma da Xylella como
cares encontrados livres na seiva do duas formas de vida da bactéria: a fase “um projeto singular, destinado a marcar
xilema e da glicose derivada da quebra planctônica e a fase de biofilme. A eles um lugar na história da ciência e da tec-
da celulose das paredes das células ve- se juntam os trabalhos realizados pe- nologia no estado de São Paulo e no Bra-
getais. Descoberta de peso do projeto lo grupo de Aline Silva, do Instituto de sil”. Justificou essa visão antecipatória
foi a identificação dos genes que codi- Química (IQ) da USP, que demonstram valendo-se de argumentos que integram
ficam moléculas envolvidas na adesão a importância da adesão da bactéria aos um pensamento que vem refinando ao
da célula. Tais moléculas, anteriormen- vasos e da sinalização por ferro, refor- longo dos anos sobre a construção das
te só vistas em patógenos de humanos çando a observação da existência de 67 sociedades do conhecimento. Assim, ob-
e de outros animais, encontram-se na genes dedicados à retirada de ferro e servou que o projeto iria reunir aspectos
superfície celular da bactéria, respon- outros metais da seiva da planta. da ciência básica e estudos na fronteira
dem pela aderência ao tecido epitelial A síntese do que fizeram os pesqui- do conhecimento teórico com trabalhos
nos hospedeiros, e encontrá-las na X. sadores brasileiros está clara nas con- de pesquisa aplicada e desenvolvimen-
fastidiosa ampliou a evidência de que clusões finais do artigo da Nature. Eles to tecnológico. “Com esse projeto vai se
os mecanismos de patogenicidade das determinaram “não só o metabolismo fazer o que tem sido uma das grandes
bactérias são os mesmos, infectem elas básico e as características de replica- preocupações da FAPESP e de outras
plantas, animais ou seres humanos. ção da bactéria, mas também numerosos instituições de ciência e tecnologia em
Os desdobramentos atuais das hipó- mecanismos potenciais de patogenicida- São Paulo e no Brasil: aliar a ciência à
teses e observações daquele momento de. Alguns jamais tiveram sua ocorrên- produção, aproximar a ciência do PIB,
da riqueza nacional, do desenvolvimento
social e econômico”, disse. Seguiu por
essa via até qualificar o projeto como
“revolucionário”.
As origens e a arquitetura do empre-
endimento da X. fastidiosa foram apre-
sentadas ao público pelo diretor cientí-
fico, José Fernando Perez, não sem ele
antes recorrer a alguns números para
dar suporte à sua visão de que se tornara
urgente e imprescindível a montagem
de projeto com tal dimensão. Divulga-

A laranja menor
foi colhida de
uma laranjeira
infectada pela
Xylella

pESQUISA FAPESP maio de 2012  _ 49


A Xylella mapeada
Main Chromosome Gene Map
LR-1 rRN A-operon
1

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 20 21 22 25 26 27 28 29 30 31 32 33 34 35 36 37 38 39 40 42 43 44 45 46 47 48 49 50 51 52 53 54 56 58 60 61 62 63 64 65 66 67 68 R 70 A 71 72 73 74 75 76 77 78 79 80
19 23 M 41 55 57 59 I
69
24 rRN A-operon
135001

134 136 138 139 140 141 142 143 144 145 146 147 148 149 150 15 11 52 153 154 155 156 157 159 161 162 164 16 51 66 167 168 169 A 17 0 1 71 172 173 174 175 176 177 178 180 181 183 184 185 186 187 188 189 190 191 192 193 195 196 197 198 199 200 202 203 204 205 206 2
135 137 158 160 16 3 I 179 182 194 201
LR-2 LR-3

270001

258 259 2602 61 263 264 266 267 268 269 271 273 274 275 276 277 278 279 280 281 282 284 285 286 287 288 289 290 291 292 293 294 295 296 297 298299 300 302 303 L 305 307 308 309 310 311 312 313 314 316 317 318 319 320 321 322 323 324 325 326 327 328 330 332 335 338 339
262 265 270 27 2 283 F 301 304 306 315 329 331 333 336
334 337
405001

392 M 393 394 396 397 398 400 401 402 404405 406 407 408 409 411 412 413 414 416 417 419 420 421 422 423 424 425 426 428 429 430 431 432 433 434 435 4 36 437 438 439 440 441 442 444 445 446 447 449 450 451 452 453 454 455 456 457 458 459 460 461 463 464 465 466 467 469 470 471 472 473 475 476 478
Q 395 399 403 410 41 5 418 427 443 448 462 468 474 477

540001

550 551 5525 53 554 556 557 559 561 562 563 565 566 567 568 569 570 572 573 575 576 577 580581 583 584 585586 587 588 589 590 591 592 593 594 595 596 597 598 599 600 601 602 603 604606 607 608 609 610 611 612 613 614 615 616 618 620 621 623 624 625 626 628 629 630 631 632 633 634 635 636 638 640 641 S 642 644 645 647 648 650
555 558 560 564 57 1 574 57 8 582 605 617 619 622 627 637 639 643 646 649
XfP1 579
675001

713 714 715 717 718 720 723 724 725 726 727 728 730 731 733 734 735 736 737 740 741 742 743 745 747 748 749 751 752 753 755 756 75 77 58 759 760 7 61 762 763 764 765 767 768 769 770 772 773 775 776 777 778 779 780 781 782 783 784 785 786 788 790 791 792 793 794 795 796 797 798 799 800 801 802
716 719 721 729 73 2 738 744 746 750 75 4 766 771 774 G 787 789
722 73 9 P LR-7

810001

848 849 851 852 853 854 855 856 857 858859 861 862 863 864 865 866 867 868 869 870 872 873 874 875 876 877 879 880 881 882 883 884 885 886 887 888 889 890 891 892 893 894 895 896 897 898 900 901 902 904 905 906 907 908 909 910 911 912 913 914 915 917 919 920 921 922 924 925
850 P 860 871 87 8 899 903 916 918 923
LR-4 LR-2

945001

986 987 988 989 990 992 993 994 995 996 998 999 1000 1001 1002 1003 1004 1005 100 6 1008 1010 1011 101 2 1014 1015 101 6 1018 1020 1022 1024 1025 1026 1027 1029 1030 1031 1032 1035 1036 1037 1038 1039 1041 1042 1043 1045 1046 1047 1048 1049 1050 1052 1053 1054 1056 1058 1060 A 1061 1062 1063 1064 1065 1066 1067
991 997 1007 1009 1013 1017 1019 1021 1023 1028 1033 1040 1044 1051 1055 1057 1059 L E
103 4
108000 1

1120 1121 1122 1124 1125 1126 1127 1128 1131 1132 1133 1136 1137 1138 1140 1141 1142 1143 1144 1145 114 6 114 8 1150 1151 115 3 1155 115 7 1159 1161 1163 1165 1167 1169 1171 1172 1173 1175 1176 1177 1178 1179 1180 1181 1182 L 1183 1184 1185 L 1186 1187 1188 1189 1190 1191 1192 1193 1195 1196 1197 1198 1200 1201 1202 1204 1206 1209 1210 1
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1130 1135 116 2 D 1208
121500 1

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1275 1285 1307 1343
135000 1

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1400 1404 1410 1412 1417 1420 1430 143 3 1436 1445 1472 1478 1481
REPEA T-IN-XfP3-AND-XfP4
1421 1432 XfP3
148500 1

1529 1530 1531 1532 1533 1534 1535 1536 1538 1539 154 0 154 2 1545 154 6 1548 1549 1550 1551 1552 155 31 554 1555 1557 1559 156 11 562 1564 1566 15681569 1570 1571 1572 1574 1575 1576 1577 1578 1580 1582 1583 1584 1586 158 71 588 1590 1592 1594 15961598 1600 1601 1602 1603 1604 1605 1606 1607 1609 1610 1611 1612 1614 1615 1617 1618 1620 1621 1622 1623 1624 16
1537 1541 1544 1547 1556 1560 1563 1565 1567 1573 1579 1581 1585 1589 1591 1593 1595 1597 1608 1613 1616 1619
XfP 4 1543 1558 1599
162000 1

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175500 1

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189000 1

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LR-7 2056 2072
202500 1

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2139 2148 2153 2158 2162 2167 2172 2180 2182 2187 2189 2191 2194 2198 2200 2203 2210 2212
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216000 1

2268 2270 2271 2272 2273 2275 2276 2277 2279 2280 2282 2283 2285 2286 2287 2288 2289 2290 2291 2293 2295 2296 2298 2300 2301 2302 230 3 2305 2306 2307 2308 2309 2311 2312 2313 2314 2316 2318 2320 2322 2324 2325 2326 2327 2328 2329 2330 2331 2332 2333 2334 2336 2338 2339 2340 2341 2342 2343 2344 2346 2348 2349 2350 2352 2354 2355 2357 2358 2359 2360 2361 2362 2363 23
2269 2274 2278 2281 2284 2292 2294 2297 2299 2304 G 2315 2317 2319 2321 2323 2335 2337 2345 2347 2351 2353 2356
2310
229500 1

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T 2424 2437 244 0 2458 2462 2464 2468 247 8 2481 2484 2489 2491 2493 2495
2415
243000 1

2552 2553 2554 2555 2556 2557 2558 2559 25612562 2563 2564 2567 2568 2570 2571 2572 2573 2574 2575 2576 257 72 578 2579 2580 R 2582 2583 2584 2585 2586 2587 2588 2589 2590 2591 2592 2593 2594 2595 25962 5972 598 2599 2600 2602 2603 2605 2606 2607 2608 26092610 2611 2613 2614 2615 2617 2618 2619 2620 2623 2624 2625 2626 2628 2629 2
2560 2565 2569 2581 2601 2604 2612 2616 2621 2627
2566 2622
2565001

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2698 2702 2718 2727 2730 2732 2737 2744 2749 2751 27
2719 2738

Plasmid pXF51 Gene Map Intermediary metabolism Macromolecule metabolism


REPEA T-2
REPEA T-2 REPEA T-1 REPEA T-1
Energy metabolism DNA processing
1 51158
Regulatory functions RNA processing
2 3 4 5 6 7 8 9 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 22 24 25 26 27 29 30 31 32 33 34 36 37 38 39 40 41 42 43 44 45 46 47 48 49 50 51 52 53 54 55 56 57 58 59 60 61 62 63 64
Biosynthesis of small molecules Cell structure
1
10 21 23 28 35

Amino acid biosynthesis Undefined Category


Plasmid pXF1.3 Gene Map Nucleotide biosynthesis Cellular processes
1 kb
1 128 5

1 2

dos havia pouco tempo pelo Ministé- ria o desenvolvimento desejável para o investimento nunca passou de 2,4% do

fonte: projeto genoma xylella


rio da Ciência, Tecnologia e Inovação, país deixar que se ampliasse a defasagem orçamento da Fundação”, enfatizou. Por
tais números indicavam que, enquanto a brasileira numa área científica essencial outro lado, as contrapartidas aportadas
participação brasileira em geral na pro- a várias outras, ditas pura ou aplicada, por instituições e empresas parceiras
dução científica mundial, registrada na pareciam destinados a refrear de saída das diferentes iniciativas do programa
base de dados do Institute of Scientific as críticas que grupos da comunidade atingiram US$11,7 milhões. Isso incluiu
Informations (ISI), praticamente dobra- científica ensaiavam contra o novo in- os aportes do Fundecitros, na Xylella, da
ra entre 1981 e 1995, passando de 0,44% vestimento da FAPESP. Não refrearam. Coopersucar, no genoma da cana (ver re-
para 0,82%, o desempenho em biologia Por um bom período a Fundação teve portagem na página 54), do Departamen-
molecular mostrara um avanço muito que entrar em debates exibindo outros to de Agricultura dos Estados Unidos,
lento. Em outros termos, se o número números para provar que não havia con- na Xylella da uva, do Instituto Ludwig,
total de artigos brasileiros indexados centração perversa de seus investimen- no genoma do câncer, além das empresas
crescera a um fator de 2,12, ante 1,35 para tos na pesquisa genômica, em detrimento Suzano, Ripasa, Voto­rantim e Duraflora,
a produção científica mundial, em bio- dos demais campos científicos. no projeto genoma do eucalipto, Embra-
logia molecular a relação entre os dois pa, no genoma do café, e Central Bela

U
fatores estava longe de confortável: 1,69 ma década mais tarde, em pa- Vista, no projeto genoma do boi.
para a produção brasileira e 1,89 para a lestra num ciclo organizado por Há quem veja por outro ângulo as crí-
produção mundial. Observe-se já aqui, Pesquisa FAPESP paralelamen- ticas dirigidas ao projeto da X. fastidiosa,
a propósito, que se em 1996 os artigos te à exposição “Revolução Genômica”, caso de seu primeiro mentor, ao lado de
de biologia molecular correspondiam montada pelo Instituto Sangari no atu- Perez, e depois um de seus coordenado-
a 4,20% do total de artigos científicos al Pavilhão das Culturas Brasileiras, no res, o biólogo Fernando Reinach. “O pro-
brasileiros registrados na base de dados Parque do Ibirapuera (ver Pesquisa FA- jeto era revolucionário”, disse em longa
Scopus, em 2007 eles representavam PESP, suplemento especial de setembro entrevista pingue-pongue na edição 100
6,68%, com sua produção apresentando de 2008), Perez observou que de 1997 da Pesquisa FAPESP. “Encontrou uma
crescimento contínuo a partir de 2002. a 2003, a FAPESP investiu, no conjun- resistência muito grande do pessoal mais
Os números exibidos por Perez, ar- to dos 20 projetos que integraram seu velho (...). Dizia-se que não era ciência.
ticulados ao argumento de que barra- Programa Genoma, US$ 39 milhões. “O Era, enfim, a resistência à mudança. E

50  _ especial 50 anos fapesp


infraestrutura, vamos fazer um projeto
de genoma, juntar todo mundo num ob-
jetivo único. Era uma ideia, para mim, 135000

muito estranha. Eu liguei para o Perez,


81 82 83 8485 86 87 88 89 90 91 92 93 94 9596 97 99 10 0 1 01 10 2 1 03 10 4 1 05 106 107 109 11 0 1 11 11 2 11 4 1 15 116 117 11 8 1 19 120 121 12 2 1 23 12 4 1 25 12 6 1 27 12 8 1 29131 132 13 3 1 34
98 10 8 11 3 S 13 0

270000

207 208 209 210 21 1 2 12 21 3 2 14 21 521 6 217


A
21 8
21 9
220 2 21 222 223 224 2 25 226 E 227 228 229 2 30 231 232 M 233 2 34 235 2 36 237 2 38 239

que estava em Santos, e ele veio até o sí-


2 40 241 2 42 243 2 44 245247 249 2 50 251
246 248
2 52 253 2 54 255 256 257 2 58

405000

340 342
341
343 344
345
346 3 47 348 351
349
350
3 52 353 3 54 355 356 357 3 58 359 361
360
362 363 364 365 3 66 367 368 3 69 37 0 3 71 37 2 3 73 374 37 5

tio. Conversamos e a ideia se cristalizou.”


3 76 377 37 8 380
37 9
3 81

LR-3
382
383
384 3 85 386 3 87 388 3 89 390 3 91 392

Já na semana mesmo após o feriado,


540000

479N 480 481 483 485 486 4874 88 490 492 494 496 4 97 499 5 01 503504 505 506 5 07 508 5 09 51 0 5 11 51 2 5 13 515 51 6 51 8 519 521 522 5 23 524 526 5 27 528 529 530 531 5 32 534 5 35 536 537 539 540542 5 44546 548 5 49 550
482 484 489 491 493 495 498 500 5 02 514 51 7 520 525 533 538 541 543 545 547
LR-4 LR-5 XfP1

Perez iniciou as gestões para organizar


675000

0 651 652 653 654 655 6 56 657 6 58 659 6 60 661 6 62 664 665 667 668 669 670 671 672 6 73 674 6 75 676 677V 679 6 80 681 683 6 84 685 6 86 687 689 691 693 695 696697 699 701 70 3 7 04 70 5 7 06 70 7 70 9 7 10 71 1 7 12 71 3
663 666 682 688 692 694 698 70 0 70 2 708
678
690

o projeto. O micro-organismo a ser se-


810000

803 804 805 806 8 07 809 8 10 81 1 8 12 81 4 81 6 8 17 818 819 820 8 21 822 8 23 824 825 826 8 27 828 830 8 31 832 8 33 834 8 35 836 8 37 838 839 840 841 842 843 844 8 45 846 847 8 48
808 81 3 81 5 829

quenciado ainda não estava escolhido,


945000

926 927 928 929 9 30 932 9 33 934 9 35 936 9 37 938 9 39 940 9 41 942 9 43 944 9 45 946 9 47 948949 950 9 51 952 9 53 954 956 957 959 9 60 961 9 62 963 964 966 9 67 V 968 9 69 972 97 3 9 74 97 5 9 76 97 7 9 78 979 980 982 984 9 85 986
931 955 958 965 97 0 981 983
97 1

mas om certeza seria uma bactéria, com


108000 0

7 1068 1069 1071 1072 1073 1075 1076 1077 1078 1079 1081 1082 1083 1085 1087 1088 1090 1091 1093 1094 1096 1097 109 8 1100 1102 1103 1104 1106 1107 110 8 1 10 9 1 11 0 1 111 1112 1113 1114 1115 1116 1117 1118 L 1119
1070 1074 1080 1084 1086 1089 1092 1095 1099 1101 1105 1120
LR-1

um genoma grande o suficiente para per-


121500 0

1211 1212 1213 1214 121 6 1 21 7 1219 1220 1221 1223 1224 1225 1227 1228 122 9 1 23 0 1 231 1 232 1 233 1 234 K 123 5 123 7 1239 1241 1242 1243 1244 1245 1247 1248 1250 1251 1252 1253 1254 1255 1257 1258 1259
1215 1218 122 2 1226 1236 1238 1240 1246 124 9 1256

1348
1349
1350 1351
1352
1353 1354 1355
1356
1357 1358 1359 1360 1361 1362 1363 1364 13651366 1368
136 7
1369 1370 1371 1372 1373 1374 1375 1376
1377
1378 1379 138 0 1 381 1 382 mitir o envolvimento de muita gente no
1383 1384 1385 1386 1388
1387
1389 1390 1391 1392 1393 1394 1397
1395
1398
135000 0

trabalho e pequeno o bastante para não


1396
148500 0

4 1485 1486 1487 1488 1489 1490 1491 1493 1494 1495 1496 1497 1498 1499 1500 1501 150 2 1 504 1 505 1 506 1 507 1 508 1509 1510 1511 1513 1514 1516 1517 1518 151 9 1521 1523 1524 1525 1527 1528 1529
1492 1503 1512 151 5 1520 1522 1526

inviabilizá-lo. Dos Estados Unidos, on-


REPEA T-IN-XfP3-AND-XfP 4
XfP 4
162000 0

625 1626 1627 1628 1629 1630 1631 1632 1633 1634 1637 1638 1639 1640 1641 1642 1643 1645 1646 1647 1648 164 91 650 1653 1655 1656 1658 1659 1661 166 3 1 6641665 1666 16671668 1670 1672 1674 167 5 1 676 1 677 1 679 1 680 1 681 168 2 1 683 1685 1687 1688 1689 1691 1692
1635 1644 1651 1654 1657 1660 1669 1671 1673 1678 1684 1686 1690

de então trabalhava três meses por ano,


1636 165 2 1662
175500 0

2 1783 1784 1785 17861787 1788 1790 1792 T 179 4 1 79 6 1 79 7 1 79 8 1 79 9 1 800 1802 1803 1804 1805 S 180 7 180 9 1811 1813 1814 1815 1817 1818 1819 1820 1821 1822 1823 1824 182 5 1 827 1 828 1829 1830 1831 183 2 1 833 1 834 1835 1836 1837 1838

Reinach enviou pouco tempo depois a


1789 1793 1795 1801 1806 180 8 1810 1816 1826
1812
1791
189000 0

1932 1933 1934 1935 1936 1937 1938 1940 1942 1943 1944 1945 1946 1947 1948 1949 1950 1951 1952 1953 1954 1956 1957 1958 1959 1960 196 1 1 962 1964 1965 1966 1967 1968 1969 1970 1971 1972 1973 1975 1976 1977 1978 1979

Perez, a seu pedido, o primeiro rascunho


1939 1941 1955 1963 1974

202500 0

075 2077 2079 2081 2082 2083 2084 2085 2086 20872088 2089 2090 2091 2092 2093 2094 2095 2096 2097 2099 2100 2101 2103 2105 2106 2107 C 2108 2110 211 1 2113 2115 2116 2118 2120 2121 2122 2123 2125 2127 212 8 2131 2133 2134

do projeto. Segundo o ex-diretor cientí-


74 2076 2078 2098 2102 2104 2109 2112 2114 2117 2119 2124 2126 2129 2132
2080
2130
216000 0

2220 2222 2223 2224 2225 222 6 2227 2229 223 0 2 231 2 232 2 233 223 4 2 235 2 236 2 237 2 238 2239 224 1 2 242 2243 2244 2246 2247 2248 2249 2250 2251 2252 2255 2256 2257 2258 2259 2260 2261 22622265 2266 2267 2268

fico da FAPESP, todas as ideias funda-


2221 2228 2240 2245 2253 2263
2254 LR-6LR-6 2264
229500 0

mentais que seriam usadas na estrutura


364 2365 2366 2367 2368 2369 2370 237 1 2 372 2373 2375 2376 2379 2381 2383 2384 2385 2386 2387 2389 23902392 2393 2395 2396 2397 2398 2399 2400 2402 2404 2406 240 7 2 408 2 409 2411 2412 2414
2374 2377 2380 2388 2391 2394 2401 2405 2410 2413
XfP 2 2378 2382 LR-5 2403
243000 0

que sustentaria o projeto já estavam lá.


497 2498 2499 2500 2501 2502 2504 2505 2506 2507 2510 2511 2512 2514 2516 2518 2521 2522 2 523 2 524 2 525 2 526 2528 2529 2530 2531 2532 2533 2535 2536 2537 2538 2539 2540 2542 2543 2544 2545 2 546 2 547 2 548 2 549 2550 2551 2552
2503 2508 2513 2515 251 7 2519 2527 2534 2541
2509 2520
2565000

As discussões sobre o projeto foram


2630 2632 2633 2 634 2636 2638 W 2640 T Y 2641 2642264 3 2 644 Q 2645 2646 2647 2648 26492650 2651 2 652 2655 2657 265926602662 2663 2664 2666 2668 2670 2671 2672 267 4 2676 2677 267 8 2 679 2 680 2 681 2682 2683 2685 2686 2687
2631 2635 2637 2639 G 2653 2656 2658 2661 2665 2667 2669 2673 2675 2684
LR-7 2654
267930 5

incorporando novos protagonistas, ao


2756 2758 2759 2760 P HK 2761 2762 2763 2765 2767 27692770 2772 2774 2775 2776 2778 2779 2780 2781
755 2757 R 276 4 2766 2768 2771 2773 2777 278 2

mesmo tempo que o assunto era leva-


Transport Frameshift/Point Mutation (FSPM)
Mobile genetic elements Intron
41.87

Pathogenicity and adaptation tRNA (letter indicates aminoacid)


Conserved hypothetical
do a debate no conselho superior da FA-
10.95

Hypothetical

PESP. Paulo Arruda, biólogo, professor


6.13

4.92
3.58

4.61
4.41
2.96

2.65

2.89
2.58

3.72

3.27
2.44

0.83
1.38

0.79

da Universidade Estadual de Campi-


nas (Unicamp) e
Marcos Machado,
só conseguimos fazer o projeto porque do Centro de Ci-
os jovens que tinham conseguido entrar tricultura Sylvio
no sistema já não estavam sob o domínio Buscava-se uma ideia que Moreira, estavam
do pessoal mais velho. Quando lançamos entre os primeiros
o edital para a seleção dos laboratórios, mudasse a biotecnologia, participantes das
foi esse pessoal novo que disse ‘eu faço’. discussões. Mais
Quando os mais velhos disseram ‘nós não
criando competência adiante Ricardo
vamos entrar’, isso foi muito sintomático Brentani sugeriu
do que estava ocorrendo.” a Perez que incor-
porasse ao grupo

D
etalhes saborosos sobre a gênese estratégica com capacidade para res- o pesquisador Andrew Simpson, inglês
do projeto da X. fastidiosa, ilus- ponder “às características econômicas, à que estava há alguns anos no Brasil. Era
trativos de como se dá no mundo biodiversidade, à agricultura, à pecuária preciso ter consultores internacionais de
real o processo de decisões que impul- e a problemas de saúde pública especí- peso já na fase da discussão das caracte-
sionam a produção do conhecimento ou ficos do país”. Eram nesse sentido suas rísticas do projeto e Paulo Arruda levou
as mudanças no ambiente da produção conversas com os assessores no come- à FAPESP Goffeau, entre outras qualifi-
científica, apareceram en passant na so- ço de 1997, em especial com Fernando cações, muito experiente em bioinfor-
lenidade de lançamento. Só mais adian- Reinach, então professor titular de bio- mática. Aliás, essa era uma área-chave
te, contados por Perez ou Reinach, eles química na Universidade de São Paulo num projeto genoma e poderia se tornar
se tornariam elementos da história do (USP) e um dos coordenadores de área crítica, dada a experiência praticamente
aparentemente mais narrado projeto de da diretoria científica da Fundação. E nula do país em suas técnicas. Uma das
pesquisa brasileira, dentro e fora do país. foi como continuação dessas conversas ideias propostas por Goffeau foi que se
“Precisávamos de uma ideia nova que ocorreu um telefonema decisivo de fizesse essa parte do trabalho na França.
que proporcionasse uma mudança na Reinach para Perez. Mas Reinach sugeriu uma conversa do
biotecnologia brasileira, criando com- “Num final de semana, em 1º de maio grupo com dois jovens do Instituto de
petência”, relembrou Perez na palestra de 1997, eu estava no sítio em Piracaia e Computação da Unicamp, João Setúbal
de 2008. Ele a percebia como uma área pensei: em vez de fazer um projeto de e João Meidanis, que já vinham lidando

pESQUISA FAPESP maio de 2012  _ 51


com bioinformática em simulação de ge-
nomas e tinham publicado um livro sobre
o assunto, ainda que nunca houvessem
trabalhado com genoma real. “Por isso Uma busca na PubMed traz mais de
havia uma insegurança no ar. Os assesso-
res internacionais não acreditavam que 300 artigos que citam a X. fastidiosa,
conseguiríamos resolver os problemas da
bioinformática, mas foi ela um dos gran-
dos quais mais de 100 são do Brasil
des sucessos do projeto”, comentou Perez
numa de suas avaliações posteriores do
empreendimento da Xylella. 
O grupo desses assessores externos, o humor, outros obstáculos que tiveram últimas peças do gigantesco quebra-ca-
steering committee, era composto, além de ser superados, uma vez começado o beça, uma palavra, espécie de senha re-
de Goffeau, por Steve Oliver e John trabalho. “Havia um coordenador que petida ao telefone, marcou sobre todas
Sgouros, também britânico. E foi numa nunca sequenciara um genoma, não tra- a comemoração que se repetiu por 35
reunião com Oliver, na FAPESP, que se balhara com bactéria e sequer sabia o laboratórios espalhados pelo território
definiu a estrutura de comando do pro- que era a Xylella fastidiosa. Havia um paulista: “Fechou!”.
jeto: haveria dois laboratórios centrais a coordenador de informática que nunca O salto imenso que deixava definitiva-
que se remeteriam todos os laboratórios havia lidado com um projeto de DNA na mente no passado os dias de manejo de-
envolvidos no trabalho de sequencia- vida e uma equipe espalhada por todo o sajeitado e lento dos sequenciadores im-
mento, mais o laboratório de bioinfor- estado de São Paulo. Vários não sabiam portados no começo de 1998 se comple-
mática e um coordenador geral. O edital quase nada de biologia molecular. Pior: tara quando o pesquisador Luís Eduardo
de chamada aos laboratórios, publicado ninguém no estado tinha a bactéria viva, Aranha Camargo enviou o read (parte da
pouco depois do lançamento do projeto, muito menos DNA, muito menos ainda biblioteca de clones) que fechou o geno-
seguiu exatamente essa orientação ao a biblioteca de DNA. Começamos sem ma. E tornou-se público quando Simpson
definir as vagas. Foi assim que Andrew qualquer evidência de que o trabalho anunciou esse fechamento aos cientis-
Simpson tornou-se o coordenador geral iria funcionar”. Segundo Simpson, foi tas reunidos no I Encontro de Genomas
de DNA do projeto, com a responsabili- a promessa de Bové de fornecer a bac- Microbianos Relevantes para a Agricul-
dade inclusive de garantir clones da bac- téria e o DNA necessário que deu con- tura, promovido pelo Departamento de
téria para todos os laboratórios, Reinach fiança para começar. “No final, Marcos Agricultura dos Estados Unidos, em San
e Arruda foram escolhidos coordenado- Machado, do Instituto Agronômico de Diego, Califórnia, nos dias 8 e 9 de janei-
res de sequenciamento e Meidanis e Se- Campinas (IAC), deu todo o DNA que ro. O Brasil ganhara uma expertise até
túbal, coordenadores de bioinformática. eu logo usei no projeto.” então dominada apenas por 14 outros
A seleção dos 30 laboratórios, de qua- grupos de pesquisa nos Estados Unidos,

M
se uma centena que atendeu à chamada esmo admitindo a falta de con- Europa e Japão.
do edital, considerou, segundo Reinach, dições prévias para fazer o que Hoje, uma busca simples pela X. fasti-
que 10 deles precisavam ter algum co- tinha sido anunciado, Simpson diosa para o período 1995/maio de 2012
nhecimento prévio de sequenciamento, não considerava uma “loucura de bra- na base de dados PubMed, referência
outros 10 deveriam ter pesquisadores sileiro” esse começo, onde até a ligação em publicações de qualidade na área de
ligados à agricultura, com alguma no- por internet para desenvolver um projeto medicina, faz retornar 343 artigos que a
ção sobre a Xylella, e mais 10 poderiam que dependia crucialmente dela apresen- citam, dos quais 330 publicados depois
ser comandados por pesquisadores que tava ainda uma enorme precariedade. do paper dos brasileiros na Nature. De-
nem conheciam a bactéria nem tinham “Foi confiança na habilidade da comu- les, 110 artigos, ou seja, um terço do total,
prática de sequenciamento, “mas eram nidade de executar qualquer tarefa dada. têm como endereço o Brasil. Trata-se
pessoas inquestionavelmente compe- Não há nada de loucura.” Para Simpson, de contribuição notável para o conhe-
tentes em termos científicos, sempre o momento mais difícil entre todos foi a cimento do tema.
com vontade de aprender mais, perfil, fase final, em que era preciso vencer os “As predições e hipóteses elaboradas
por exemplo, de José Eduardo Krieger”. gaps que restavam na sequência mon- naquele nosso primeiro artigo foram sen-
Na entrevista que concedeu à Pesquisa tada. “Primeiro, eu não tinha a menor do demonstradas ao longo dos anos”, co-
FAPESP depois de concluído o sequen- ideia de como fazer. Nunca havia feito e menta Marie-Anne Van Sluys. Hoje se
ciamento (Especial “O futuro da genômi- os papers não contam exatamente como indaga sobre a origem da CVC e o papel
ca no Brasil”, edição 51, março de 2000), fazer. Era preciso inventar uma solução. do biofilme na doença. “Há razões fortes
Simpson, que tinha orgulho de seu papel Segundo, tínhamos muito pouca infor- para suspeitarmos de que o controle po-
no projeto e já comemorara muito o fato mação sobre a Xylella antes de começar o de se dar pela intervenção na formação
de o Brasil ter “entrado numa festa seleta sequenciamento. Não sabíamos sequer o do biofilme – retoma o raciocínio Marie-
sem ter sido convidado e ter feito boni- tamanho dos gaps, porque não sabíamos -Anne –, há uma patente depositada pelo
to”, detalhou como foi difícil superar o o tamanho total do genoma”. Por isso, grupo coordenado por Marcos Machado
desconhecimento geral em relação à X. como na época observou Marie-Anne, e Alessandra Alves (INPI: 018110011623
fastidiosa e lembrou, sempre com fino encaixadas em 6 de janeiro de 2000 as PCT: BR/2012/000003 Data depósito:

52  _ especial 50 anos fapesp


Colônia de bactérias
Xylella infesta e entope
a parede de vasos
que transportam a seiva
da laranjeira

Os Projetos

1. 2. 3. e 4. Projeto Genoma – Fapesp:


Laboratório de Sequenciamento –
nos 1997/13451-6, 1997/13457-4, 1997/13475-
2 e 1997/13463-4 (1997-2000)
modalidade
1. a 4. Programa Genoma
Coordenadores
1. Andrew John George Simpson –
Instituto Ludwig
2. Fernando de Castro Reinach – USP
3. Paulo Arruda – Unicamp
4. Jesus Aparecido Ferro – Unesp
investimento
INPI 31/03/2011 PCT: 9/1/2012) que faz genômico de diferentes cepas da X. fas- 1. R$ 1.329.975,72
elliot w. kitajima/usp

2. R$ 1.535.926,46
uso de um análogo de cisteína para blo- tidiosa na América do Sul, três das quais
3. R$ 932.244,71
quear esse processo, estratégia já utilizada infestam citros e as demais, cafeeiros, 4. R$ 1.534.700,66
com sucesso para patógenos de humanos. ameixeira e hibiscos, respectivamente,
Por outro lado, dada a enorme quantidade avançando na pesquisa de genes pato-
de vírus que são encontrados nos geno- gênicos da bactéria. Artigo científico
mas das várias linhagens de Xylella, re-

A
SIMPSON, A.J. et al. The genome sequence of
sultados observados a partir dos estudos lém da continuidade da pesquisa, the plant pathogen Xylella fastidiosa. The
Xylella fastidiosa Consortium of the
de expressão por microarray realizados vale citar como outros atestados Organization for Nucleotide Sequencing and
pelos grupos da doutora Suely Gomes do sucesso do empreendimen- Analysis. Nature. v. 406, n. 6792, p.151-59,
2000.
(IQ-USP) e doutora Marilis do Vale Mar- to da Xylella, a criação, por pesquisa-
ques (ICB-USP), em conjunto com o se- dores ligados ao projeto, das empresas Silva, A.C. R. da et al. Comparison of the
genomes of two Xanthomonas pathogens
quenciamento de múltiplas linhagens de Alellyx, que levou tanto os recursos dos with differing host specificities. Nature.
Xylella coordenado pela doutora Aline genomas como outras ferramentas da v. 417, n. 6887, p. 459-63, 2002.
Silva, sugerem que condições ambien- biotecnologia para a agricultura, Scylla,
tais possam induzir a multiplicação das que presta serviços em bioinformática, e De nosso arquivo
partículas virais até matar a bactéria. “Se CanaVialis, especializada em novas va-
O salto quântico da ciência brasileira
o vírus sair do genoma e se propagar for- riedades de cana-de-açúcar. A primeira e Edição nº 100 – junho de 2004
mando capsídeos virais, ele pode explodir a terceira foram compradas a seu princi-
Da Xylella à Alellyx
a célula, matando a bactéria”, ela imagina. pal investidor, o fundo Votorantim Novos Edição nº 74 – abril de 2002
No ambiente bem fecundado pelo pro- Negócios, também formado na esteira do As descobertas se multiplicam
jeto pioneiro da genômica, grupos de projeto pioneiro da genômica e dirigido Edição nº 60 – dezembro de 2000
pesquisa que ali se consolidaram for- por Reinach, e em 2008 pela Monsanto. Resultado da cooperação
maram novas lideranças e estabelece- O editorial da Nature sobre a X. fas- Dificuldades superadas pela coragem
de arriscar
ram sólidas colaborações internacionais, tidiosa em 2000 observou, entre outros O futuro da genômica no Brasil
indagam-se hoje sobre isso e muito mais: pontos, que o sucesso do projeto da X. Bravo, cientistas!
Edição nº 51 – março de 2000
o grupo original de Marcos Machado, fastidiosa, somado ao fato incomum
no IAC, agora com Alessandra Alves de de uma agência do mundo avançado e Xylella – concluído o genoma da bactéria
Edição nº 50 – janeiro e fevereiro de 2000
Souza na coordenação da linha de pes- industrializado – o Departamento de
Brasil se afirma no seleto clube da genômica
quisa com a famosa bactéria, por exem- Agricultura dos Estados Unidos – ter mundial
plo, debruça-se sobre a interação com contratado a pesquisa genômica de uma Edição nº 48 – novembro de 1999
a planta. O grupo de Marilis do Valle variante da Xylella de um país em desen- Os primeiros resultados
Marques tem trabalhado na obtenção volvimento, “endossa a determinação do Edição nº 29 – março de 1998
de mutantes da X. fastidiosa, úteis para Brasil de entrar na idade pós-genômi- Um projeto para revolucionar a ciência
Aline Maria da Silva, do Departamento ca de mãos dadas com os cientistas dos brasileira
Edição nº 25 – outubro de 1997
de Bioquímica da USP, e lidera o estudo países mais ricos”. n

pESQUISA FAPESP maio de 2012  _ 53


_Genética de plantas

O mapa da cana
Projeto Genoma pavimentou caminho para o
desenvolvimento de novas variedades da planta

Fabrício Marques

delfim martins/pulsar imagens

ide
de
mo
das
Suc
A
corrida em busca de novas varieda-
des de cana adaptadas aos diversos
climas e solos brasileiros se benefi-
cia de uma grande articulação que
reuniu 240 pesquisadores de 22
instituições, entre 1999 e 2002. O
Projeto Genoma Cana, responsável pelo mapea-
mento de 238 mil fragmentos de genes funcionais
da cana-de-açúcar, pavimentou o caminho para
o uso de marcadores moleculares no melhora-
mento da cultura. A identificação dos fragmentos,
chamados de ESTs (ou Etiquetas de Sequências
Expressas), foi seguida por um trabalho de pros-
pecção de dados relacionados ao metabolismo da
entificação cana, de modo a obter variedades mais produtivas
marcadores e resistentes à seca ou a solos pobres. “Chegamos
oleculares a partir a 238 mil fragmentos de transcritos, partimos para
s sequências do a identificação da função dos genes, estudamos
cest as características agronômicas associadas e fize-
mos a análise do transcriptoma para ajudar na
geração de plantas transgênicas mais eficientes”,
resume Glaucia Souza, professora do Instituto de
Química da Universidade de São Paulo, uma das
participantes do Genoma Cana.

pESQUISA FAPESP maio de 2012  _ 55


em 1997 e teve como primeiro desdobramento o
sequenciamento do genoma da bactéria Xylella
fastidiosa, em 2000 (ler reportagem à página 44).
Mas logo se engajou em outros projetos no âmbito
do Programa Genoma da FAPESP – já em 1998,
a rede mergulhou em temas de grande interesse
social e econômico, como o mapeamento de ge-
nes associados ao câncer e ao genoma expresso
da cana-de-açúcar.
O Genoma Cana se caracterizou por uma forte
interação entre as universidades e o setor privado,
que marca o esforço de pesquisa em bioenergia até
hoje. Paulo Arruda, professor da Universidade Es-
tadual de Campinas (Unicamp) e coordenador do
projeto, lembra que foi convidado a liderar o projeto
depois que a Cooperativa dos Produtores de Açú-
car e Álcool do Estado de São Paulo (Copersucar)
e seu braço de pesquisa, o Centro de Tecnologia
Canavieira (CTC), procuraram a diretoria cientí-
fica da FAPESP e propuseram uma parceria entre
universidades e indústria a fim de sequenciar o ge-
noma da cana. “O professor José Fernando Perez,
diretor científico à época, me perguntou o que eu
achava. Eu observei que a cana tem um genoma
muito complexo e sugeri o mapeamento dos frag-
mentos funcionais do genoma”, diz Arruda, que
hoje é um dos coordenadores da área de Pesquisa
para Inovação da FAPESP. A cana é mesmo um
Glaucia hoje é coordena- organismo complexo. Seu genoma chega a ser três
dora do Programa FAPESP vezes maior do que o humano, com o agravante de

240
de Pesquisa em Bioenergia, o que, em vez de duas cópias de cada cromossomo,
Bioen (ver reportagem à pági- há de oito a doze cópias, nem sempre iguais. Essa
na 140), voltado para aprimo- peculiaridade fez com que o sequenciamento in-
rar a produtividade do etanol tegral do genoma fosse descartado, pois o processo
brasileiro e avançar em ciên- pesquisadores seria desgastante e demorado.
cia básica e tecnologia relacio-
de 22

O
nadas à geração de energia de projeto teve um financiamento da ordem
biomassa. Uma das vertentes instituições de US$ 4 milhões da FAPESP e outros
do Bioen agrega pesquisas de- US$ 400 mil da Copersucar. Reuniu, pe-
senvolvidas a partir do Geno-
trabalharam la primeira vez numa empreitada comum, labo-
ma Cana. As informações ob- em conjunto ratórios de São Paulo, Pernambuco, Bahia, Rio
tidas pelo genoma funcional de Janeiro, Paraná, Rio Grande do Norte, Minas
da cana também fertilizaram
no projeto Gerais e Alagoas. “Todos os laboratórios tiveram
outros estudos, como a identi- acesso ao banco de dados e puderam estudar os
ficação da canacistatina, uma genes identificados”, diz Arruda. “Foi realmente
proteína com propriedades antifúngicas, estu- inovador. Centrado em gente muito jovem, que
dada como possível inibidor de patógenos que tinha mais facilidade de lidar com tecnologia que
atacam plantas por um grupo liderado pelo ge- os pesquisadores mais experientes, o Genoma
neticista Flávio Henrique da Silva, do Centro de Cana mostrou que é possível identificar gran-
Biotecnologia Molecular e Estrutural (CBME) da des desafios e reunir talentos para resolvê-los”,
Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). afirma o professor. “A repercussão do projeto
Conhecido oficialmente como Projeto FAPESP foi enorme. Reunimos resultados de pesquisa
Sucest (Sugar Cane EST), o Genoma Cana foi um Estufa com numa edição especial da revista da Sociedade
mudas do
dos projetos vinculados à Rede Onsa, sigla para Centro de Brasileira de Genética, que foi a mais citada da
Organization for Nucleotide Sequencing and Tecnologia história da publicação”, afirma o professor. Em
Analysis, infraestrutura de laboratórios espalha- Canavieira: setembro de 2003, um artigo na revista científica
dos por várias cidades, dotados de sequenciado- interesse Genome Research apresentou o principal fruto do
da indústria
res novos e outros equipamentos. A rede, uma estimulou o programa: a descrição minuciosa da constituição
CTC/Basf

espécie de instituto virtual de pesquisa, foi criada Genoma Cana genética da cana-de-açúcar, a planta cultivada há

56  _ especial 50 anos fapesp


mais tempo em larga escala no Brasil. O artigo e pesquisadores da Universidade de São Paulo
mostrou que o genoma da cana é constituído por (USP) e da Unicamp, financiados pela FAPESP,
33.620 possíveis genes, dos quais cerca de 2 mil num projeto liderado por Glaucia. Outro proje-
parecem estar associados à produção de açúcar. to importante foi a identificação de marcadores
moleculares a partir das sequências do Sucest,

F
elipe Rodrigues da Silva, biólogo, e Guilher- sob a liderança da pesquisadora Anete Pereira de
me Pimentel Telles, formado em computa- Souza, do Instituto de Biologia da Unicamp. Os
ção, sabem como foi difícil chegar a esses marcadores podem ser usados na identificação
números finais, que encerraram a aventura inicia- de um gene específico, por exemplo, que esteja
da em abril de 1999. Para determinar inicialmen- ligado à produção de sacarose. “Os projetos da
te o número de genes, informação básica sobre Glaucia e da Anete foram dois marcos, porque
qualquer genoma, Silva, então um
doutorando com 29 anos, e Telles,
com 27, tiveram de resolver o que
ainda não havia sido solucionado O artigo da Genome Research
em nenhum outro laboratório do
mundo: descobrir como eliminar mostrou que o genoma
as repetições e aproveitar do me-
lhor modo possível as informações
da cana tem cerca de
contidas em cerca de 300 mil frag- 2 mil genes associados
mentos de genes. O Genoma Cana
foi um dos primeiros projetos de à produção de açúcar
planta no mundo a adotar essa téc-
nica de identificação de genes. Até
acertarem o passo, trabalharam pelo
menos 12 horas por dia, durante quatro meses, demonstraram haver uma comunidade de pes-
com programas segundo os quais a cana teria ora quisadores preparada a investir no tema. Seus
nove mil genes, ora mais de cem mil, ora um valor avanços viabilizaram mapear efetivamente o ge-
intermediário qualquer, que variava de acordo noma da cana, o que não era viável na época do
com critérios diferentes sobre o que é um gene. Sucest”, diz a geneticista Marie-Anne Van Sluys,
Num dos momentos cruciais, descobriram que professora do Instituto de Biociências da USP. n
estavam sendo jogados fora trechos de genes que
poderiam ser aproveitados.
Fundamentalmente, o Genoma Cana deu iní-
Os projetos
cio ao esforço, ainda em curso, de aprofundar
o conhecimento sobre o metabolismo da cana, 1. Proposal for DNA coordinator of the Sugarcane EST
de modo a obter mais rapidamente variedades Project (SucEST) – nº 1998/12250-0 (1998-2004)
2. Bioinformática para projeto EST cana-de-açúcar –
mais produtivas e resistentes à seca ou a solos nº 1999/02837-6 (1999-2002)
pobres. Pelas técnicas atuais de melhoramento 3. SucEST – data mining – nº 1999/02840-7 (1999-2002)
genético, uma nova variedade consome dez anos Modalidade
de trabalho, dos primeiros testes à aprovação pa- 1. 2. 3. Auxílio a Projeto de Pesquisa – Programa Genoma

ra uso no campo. “Ainda estamos na infância na Coordenadores


1. Paulo Arruda – CBMEG-Unicamp
compreensão do genoma da cana”, diz Arruda. 2. João Meidanis – IC-Unicamp
“A planta tem um potencial de produtividade três 3. Antonio Vargas de Oliveira Figueira – Cena-USP
vezes maior, mas a gente ainda não sabe até que Investimento
ponto o genoma representa um entrave para o 1. R$ 2.324.381,81
2. R$ 576.439,24
aproveitamento desse potencial. De todo modo, 3. R$ 52.496,22
o projeto mostrou que é possível enfrentar esse
desafio”, afirma.
ARTIGO CIENTÍFICO
A conclusão do projeto não arrefeceu o inte-  
resse dos pesquisadores e da indústria em seguir VETTORE, A. L. et al. Analysis and Functional Annotation of
buscando conhecimento sobre a planta. Depois an Expressed Sequence Tag Collection for Tropical Crop
Sugarcane. Genome Research. v. 13, p. 2725-35. 2003.
de 2003, Glaucia Souza assumiu a coordenação
do Sucest e iniciou o Projeto Sucest-FUN, com-
posto por uma rede de pesquisadores dedicados De nosso arquivo
à análise dos genes da cana. A identificação de Os arquitetos da nova cana
genes associados ao teor de açúcar foi realiza- Edição nº 59 – novembro de 2000
da em um projeto entre o Centro de Tecnologia Farta colheita
Canavieira, a Usina Central de Álcool Lucélia Edição nº 91 – setembro de 2003

pESQUISA FAPESP maio de 2012  _ 57


_  D OENÇAS TROPICAIS

A batalha
contra um
verme
Genes identificados por método
criado no país são alvos promissores
para novos medicamentos contra
esquistossomose

Salvador Nogueira

C
omo resultado da pesquisa genômica,
iniciada no país há cerca de 15 anos,
pesquisadores brasileiros encontra-
ram alvos promissores para o desen-
volvimento de uma vacina contra a
esquistossomose, doença que atinge mais de 200
milhões de pessoas no mundo. Uma equipe da
Universidade de São Paulo (USP) e do Instituto
Butantan identificou um conjunto de nove genes
que mostraram uma capacidade de reduzir em até
28% a quantidade de vermes em 22% no organis-
mo de camundongos inoculados, se comparado a
um grupo de animais não tratados.
Os agentes causadores da esquistossomose são
três vermes do gênero Schistosoma: S. haemoto-
bium, S. japonicum e S. mansoni. O terceiro é o
parasita encontrado no Brasil, trazido da África
com os escravos durante a colonização portugue-
Sem esgoto nem
RICARDO AZOURY

sa. Até hoje, tudo que se conseguiu para combatê- água encanada:
-la foram estratégias paliativas, não totalmente condições favoráveis
eficazes. Os medicamentos reduzem à metade o para a contaminação
risco de morte trazido pelo parasita, mas é pouco

58  _ especial 50 anos fapesp


pESQUISA FAPESP maio de 2012  _ 59
para conter o avanço da doença, o que,
na visão dos pesquisadores, justifica o
desenvolvimento de outras estratégias. A propagação e o contágio
A vacinação é, em tese, uma das mais
promissoras.
Um dos desafios à identificação de
formas de combate é o complexo ciclo
de vida do organismo.
Os ovos microscópicos
partem das fezes de um
hospedeiro humano in-
fectado e, em água doce,
eclodem e originam a for- Um dos genes
ma larvária denominada
miracídio, que infecta ca- aumentou em
ramujos e origina outra
forma do verme, as cercá-
28% a resposta
rias. Cada miracídio pode à infecção
produzir 10 mil cercárias,
que voltam à água e pro- causada pelo
curam hospedeiros verte-
brados – as pessoas. verme
Dotada de uma cauda
bifurcada, a cercária entra Eliminados com O ovo libera
pela pele e, em menos de as fezes humanas, miracídios, larvas
15 minutos, está na cor- ovos do Schistosoma que se alojam
rente sanguínea. Ao en- mansoni chegam a em caramujos de
trar no organismo, perde rios e lagos lagoas e riachos
a cauda, passa a ser cha-
mada esquistossômulo e
se aloja nas veias do intes-
tino, onde desenvolve sua forma de ver- 14 mil genes do parasita. O trabalho, haviam sido caracterizados em bases de
me e põe ovos. Alguns se acomodam no publicado na revista Nature Genetics, dados públicas. Para metade dos genes
fígado e outros atravessam a parede do entrou numa lista recente de artigos não se conhecia equivalente em outros
intestino e saem pela fezes, reiniciando quentes da ciência brasileira preparada organismos.
o ciclo de transmissão. por Marco Antonio Zago, pró-reitor de Trabalhando com esses trechos ex-
Com tantas transformações ao longo pesquisa da USP. clusivos do parasita – e supõe-se que
do caminho, a rota escolhida pelo grupo sejam porque são importantes do pon-
liderado por Sergio Verjovski-Almeida, DA GENÔMICA À APLICAÇÃO to de vista evolutivo –, a equipe de Ver-
pesquisador do Instituto de Quí­mica O transcriptoma produzido em 2003 foi jovski-Almeida, em colaboração com
da USP, para investigar os genes do possível graças a um método de identi- o grupo de Luciana Leite, do Instituto
Schistosoma mansoni foi a do chamado ficação de genes conhecido pela sigla Butantan, encontrou alvos promissores
transcriptoma. A expressão é derivada Orestes (de Open Reading frame ESTs), para o desenvolvimento de vacinas. O
de transcrição, pois somente os genes desenvolvido por Emmanuel Dias Neto trabalho, publicado no ano passado na
que estão sendo replicados (transcritos) e Andrew Simpson, então trabalhando revista científica Parasitology Research,
na forma de RNA para assumir um papel na filial brasileira do Instituto Ludwig ainda não representa uma solução cer-
ativo no metabolismo é que serão inves- de Pesquisa sobre o Câncer. A partir daí teira para a doença, mas um caminho
tigados. Dessa maneira, não só é possível a equipe de Verjovski-Almeida e seus que vale a pena ser investigado.
identificar uma parcela significativa dos colaboradores têm garimpado os dados
genes da criatura como também se po- em busca de informações que ajudem a NA FASE CERTA
dem efetuar correlações sobre quais ge- compreender, em termos moleculares, Sabe-se que uma vacina contra o Schis-
nes são ativados em quais fases do com- como o parasita age para burlar os sis- tosoma é possível em princípio pelo sim-
plexo ciclo de vida do verme. temas de defesa do organismo. ples fato de que há certos indivíduos que
Em 2003, o grupo registrou um avan- Em 2003, o grupo da USP já havia con- naturalmente mostram resistência à in-
ço ao publicar os resultados de dois seguido identificar funções de 45% dos fecção – sinal de que seu sistema imuno-
anos de trabalho decifrando o trans- genes sequenciados do verme. O proces- lógico consegue lidar com os invasores e
criptoma do Schistosoma mansoni, de- so de identificá-las foi feito basicamen- vencê-los. Baseando-se em estudos que
terminando, de forma integral ou par- te comparando os genes do S. mansoni tentam desvendar de que maneira os or-
cial, as sequên­cias de 92% dos cerca de ao de outros organismos cujos genes já ganismos resistentes debelam o ataque,

60  _ especial 50 anos fapesp


Os seis principais estágios do ciclo de vida do parasita

O miracídio origina As larvas assumem Ao atravessar Alojados no intestino,


milhares de células a forma jovem a pele, a cercária os vermes põem ovos,
germinativas, outra do parasita, a cercária, perde as caudas que serão liberados
forma do verme que contamina e migra para o com as fezes
o homem fígado, onde se
torna adulta

o grupo apostou na busca por genes que uma capacidade de reduzir a quantidade
fotos Departamento de Bioquímia e Imunologia/ FMRP-USP

estejam especialmente ativos numa das de vermes em 22% no organismo de ca- OS PROJETOS
fases do ciclo de vida do parasita, a de mundongos inoculados, se comparado a 1. Genoma/transcriptoma do Schistosoma –
esquistossômulo. É justamente nessa um grupo de animais não tratados. Mas nº 2001/04248-0 (2001-2004)
forma que, uma vez invadido o corpo, o o mais importante achado foi o gene 2. Schistosoma mansoni: caracterização
molecular da interação entre parasitas
patógeno passa a se desenvolver dentro Dif 4, que reduziu o nível de infecção e entre estes e o seu hospedeiro humano –
do hospedeiro. em 25%. E o número para esse gene es- nº 2010/51687-8 (2010-2012)
Garimpando os dados do transcrip- pecífico melhorou quando eles usaram Modalidade
toma em busca de alvos genéticos que um segundo protocolo, encapsulando Linha regular de auxílio a projeto de pesquisa –
Programa Genoma
fossem exclusivos do Schistosoma e que o material em microsferas, indo a 28%.
Coordenador
estivessem sendo mais expressados nessa Ainda não é o suficiente para dizer que Sergio Verjovski-Almeida – USP
fase, o grupo chegou a um conjunto de teremos uma vacina, mas é um sinal pro- INVESTimento
nove genes. O passo seguinte foi testar missor, por demonstrar que há resposta 1. R$ 564.829,31
o potencial protetor deles – ver se, ao imune aumentada. 2. R$ 429.444,90

serem injetados no organismo, eles po- Para Sergio Verjovski-Almeida e seus


deriam indicar ao sistema imune como colegas, as perspectivas são boas, a des- ARTIGOS CIENTíFICOS
reconhecer e destruir o S. mansoni. Para peito dos números relativamente mo- 1. VERJOVSKI-ALMEIDA, S. et al. Transcriptome
isso, o grupo do Butantan usou o proto- destos. “Na busca por vacinas contra o analysis of the acoelomate human parasite
colo conhecido como vacina de DNA, em Schistosoma, muitos estudos que usam Schistosoma mansoni. Nature Genetics. v. 35,
n. 2, p. 148-57, 2003.
que os genes são injetados no organismo vacinas de DNA começam com valores
e então replicados pelo maquinário ce- de proteção baixos, que depois são au- 2. FARIAS, L. P. et al. Screening the Schistosoma
mansoni transcriptome for genes differentially
lular, amplificando a produção de pro- mentados pelo uso de adjuvantes ou ou- expressed in the schistosomulum stage in
teínas que então são reconhecidas pelas tras estratégias de reforço.” E um aspecto search for vaccine candidates. Parasitology
defesas do corpo. interessante do trabalho é que ele acabou Research. v. 108, p. 123-35, 2011.

Em testes em camundongos, os pes- sendo possível a um menor custo, uma


quisadores constataram que dois dos vez que sua base primária de dados vem de nosso arquivo
genes podem, sim, ter um efeito pro- do transcriptoma de 2003, analisado por Por dentro do parasita
tetor. O gene designado Dif 5 mostrou técnicas de bioinformática. n Edição nº 92 – outubro de 2003

pESQUISA FAPESP maio de 2012  _ 61


_ r eparo de dna

Os sutis
danos do Sol
Sensor detecta as lesões
nos genes causadas pela
radiação solar

Carlos Fioravanti

E
nquanto construía um sensor de lesões de DNA é rompida e refeita, por meio de proteí­
da molécula de DNA em um dos labora- na de reparo, em cada célula do corpo humano.
tórios do Instituto de Ciências Biomédi- As lesões, quando não são consertadas, podem
cas (ICB) da Universidade de São Paulo levar a mutações genéticas indesejadas. E essas
(USP), o biólogo gaúcho André Schuch mutações, por sua vez, na medida em que geram
sentiu-se como quando era menino e desmon- células defeituosas que se multiplicam incessan-
tava seus carrinhos para tirar os motores e criar temente, podem levar a várias formas de câncer,
outros brinquedos em Santa Maria, interior do principalmente o de pele, responsável por um
Rio Grande do Sul. Nos primeiros três anos, pro- em cada quatro tumores malignos detectados
jetou, construiu e testou três protótipos que lhe no país. O Instituto Nacional do Câncer (Inca)
mostraram apenas o que não devia fazer. Depois estima que 134 mil brasileiros apresentem cân-
ele acertou a mão com o quarto protótipo, que cer de pele em 2012.
está indicando que temos boas razões para nos Outra verificação é que as regiões com maior
preocuparmos com o excesso de radiação solar incidência de UV-B são as de latitude mais bai-
que chega à pele normalmente pouco protegida e xa – e não as mais próximas dos polos, como
para não confiarmos tanto – principalmente quem seria esperado, já que o buraco da camada de
tem pele clara – no efeito dos cremes de proteção ozônio na alta atmosfera deixaria passar mais
solar ao sair para curtir um dia de praia no verão. radiação ultravioleta do tipo B da luz solar que
Nos testes iniciais, o sensor – ou dosímetro nas proximidades do equador. Em 2006, 2007
– indicou que a radiação ultravioleta do tipo A e 2008, Schuch expôs os sensores à luz natural,
(UV-A), que os protetores solares protegem bem das 10h às 14h, quando a radiação solar é mais
menos que a do tipo B (UV-B), mais energética intensa, em Punta Arenas, cidade do extremo
que a A, também pode causar lesões no DNA, a sul do Chile a 55 graus de latitude, em Santa
molécula que guarda o material genético de cada Maria, em São Paulo e em Natal, capital do Rio
ser vivo. Milhares de vezes por dia a molécula Grande do Norte.

62  _ especial 50 anos fapesp


Pele frágil: nos dias
mais quentes, filtros
solares podem não
proteger tanto quanto
gostaríamos

De modo inesperado, foi em Natal que ele re- nasse à luz natural – havia apenas experimentos
gistrou uma intensidade de radiação UV-B 13 de lesões em células, plantas e animais usando luz
vezes maior – e uma quantidade proporcional de artifical – e com mais precisão que os similares dos
danos ao DNA – do que em Punta Arenas, mes- Estados Unidos e do Japão. Já tinha, é verdade,
mo tendo observado um afinamento de 50% da experiência em medir radiação solar por meio de
camada de ozônio durante três dos sete dias em aparelhos chamados radiômetros, com que traba-
que fez as medições no Chile. “Temos de prote- lhara no Centro Regional de Pesquisas Espaciais
ger a pele das pessoas no Brasil, como já fazem de Santa Maria. Como resultado de uma coopera-
na Austrália e no Chile”, diz o geneticista Carlos ção com pesquisadores do Japão, os mesmos que
Menck, coordenador do laboratório de reparo de instalaram os equipamentos no sul, dois radiôme-
DNA do ICB da USP. tros estão instalados no teto de um dos prédios do
Menck conta que recebeu Schuch com muito ICB. “Já temos três anos de monitoramento”, diz
gosto, em 2003, inicialmente para um estágio de ele. “Nossa base de dados está ficando consistente.”
férias. Desde seu próprio doutorado, concluído em

A
1982, Menck estuda as lesões e os mecanismos de os 29 anos, voltando para Santa Maria
reparo de DNA. Há muitos anos ele queria encon- com a esperança de prosseguir a linha de
trar uma forma de medir as lesões nessa molécula, pesquisa materializada em seu doutorado,
mas não estava conseguindo. Mandou amostras ele acredita que as leituras dos sensores poderão
MARTYN F. CHILLMAID/SCIENCE PHOTO LIBRARY

para a Antártida, mas não deu certo. O erro básico, complementar as de radiômetros específicos, co-
que ele viu ao começar a trabalhar com Schuch, mo os que indicam as mínimas doses de radiação
é que usava DNA seco, cuja estrutura se altera e capazes de causar queimaduras de pele conheci-
não reproduz com precisão o que acontece com a das como eritemas. As perspectivas lhe parecem
molécula normalmente imersa em água. animadoras. “Criamos mais do que o protótipo de
Schuch não sabia ainda como, mas, já como par- um dosímetro”, diz ele. “Agora podemos avaliar
te de seu doutorado, queria fazer algo que funcio- os eventuais danos ao DNA submetido à radiação

pESQUISA FAPESP maio de 2012  _ 63


do espaço extraterrestre.” Seu próximo passo é ções e tumores nos olhos, comuns em
medir as lesões da luz solar diretamente em cul- pessoas com essa deficiência genética,
turas de células, não apenas em DNA. têm de usar óculos escuros, até mesmo
A versão atual dos sensores – feita com um para assistir televisão. Agora uma
silicone especial, transparente e arredondado, Em julho de 2010, Menck visitou pe-
com dois ou três furos centrais, lembrando la primeira vez o povoado de Araras, a prioridade da
botões de casacos antigos – indica a quanti- 242 quilômetros de Goiânia (GO), que
dade de cinco tipos de lesão de DNA causadas reúne um número elevado de pessoas
equipe do
pela radiação UV-A ou UV-B na molécula de com XP: 22 já diagnosticadas, em uma laboratório de
DNA. Uma solução com DNA circular, chama- população de cerca de mil pessoas da
do plasmídeo, preenche os orifícios do sensor. cidade de Faina, a que o povoado per- reparo de DNA
Exposto à luz natural, o DNA absorve a radia- tence. Nos últimos 50 anos, cerca de
ção que provoca as lesões, avaliadas depois em 20 haviam morrido por causa dessa é ajudar as
laboratório por meio de reações com enzimas doença, que ali apresenta uma alta pre-
de reparo de DNA. valência provavelmente por causa de
pessoas com
casamentos entre parentes. No Brasil, o Xeroderma

M
enck e Schuch estão usando o sensor total de pessoas com XP não deve pas-
de lesões de DNA para avaliar a eficácia sar de mil, dispersas pelo país. Schuch pigmentosum
dos protetores solares. “A maior parte também esteve lá, com os sensores de
dos protetores protege bem contra UV-B, mas DNA, e registrou níveis impressio- que vivem em
não tão bem contra UV-A”, diz Menck. Sem es- nantes altos de radiação e de lesões,
perar, eles viram que um tipo de lesão do DNA, mesmo para pessoas comuns – uma
Araras
a 6-4 pirimidina-pirimidona, uma das causas de constatação esperada, diante do vasto
mutações, também pode ser causada pelo UV-A, céu azul do cerrado do Brasil central.
de menos energia, e não apenas pelo UV-B, como Parte da equipe de pesquisadores de seu labo-
já se sabia. Por essa razão, provavelmente vão su- ratório também foi a Araras e se impressionou
gerir um reforço no índice de bloqueio dos raios com a fragilidade da pele dos moradores com
UV-A para a equipe de pesquisa e desenvolvimento XP, que, mesmo assim, continuam trabalhando
de uma empresa fabricante de cosméticos, ainda no campo sob o sol.
mantida em sigilo, com a qual estão colaborando. Uma série de reportagens publicadas no Cor-
Eles querem também encontrar o fator de pro- reio Braziliense em outubro de 2009 deu visi-
teção solar mais adequado para as pessoas com hi- bilidade às pessoas que não podiam tomar sol,
persensibilidade à luz solar, como as que possuem embora trabalhassem no campo durante o dia,
uma doença chamada Xeroderma pigmentosum chamou atenção para o desamparo em que vi-
(XP), causada por falhas em genes de reparo de viam, reconheceu lideranças locais como Gleice
DNA. As pessoas com XP apresentam um risco Machado, presidente da Associação dos Porta-
cem vezes maior de desenvolver tumores de pele dores de Xeroderma Pigmentoso do Estado de
que as pessoas sem esse problema. Para se prote- Goiás, e o trabalho de médicos como a dermatolo-
gerem, têm de usar roupas com mangas longas, gista Sulamita Chaibub, coordenadora do projeto
até mesmo dentro de casa, e passar protetor solar de atendimento multidisciplinar aos portadores
sobre o corpo todos os dias. Para evitar inflama- de XP de Araras no Hospital Geral de Goiânia,

Método para medir os danos no DNA


No laboratório,
Põe-se um V
avalia-se o tipo
sU
plasmídeo io e a quantidade
Ra
(DNA circular) UV
de lesões
s
io
nas cavidades Ra produzidas... UVB
doses
de um recipiente (KJ/m2) 2 3 4 5 6 7 8 9

específico

Com o ...por meio de enzimas específicas


recipiente e, depois, por eletroforese
exposto ao sol, a radiação (quanto mais intensa a lesão,
ultravioleta gera lesões maior a faixa escura)
no plasmídeo

64  _ especial 50 anos fapesp


Os PROJETOs

1. Reparo de DNA lesado e


consequências biológicas –
nº 1998/11119-7 (1999-2004)
2. Genes de reparo de DNA:
análise funcional e evolução
– nº 2003/13255-5
(2004-2009)
3. Respostas celulares a
lesões no genoma –
nº 2003/13255-5 (2011-2014)
Modalidade
1. 2. e 3. Projeto Temático
Coordenador
1. 2. e 3. Carlos Frederico
Martins Menck – ICB/USP
Investimento
1. R$ 979.444,88
2. R$ 1.442.484,59
3. R$ 1.532.835,80

Artigos Científicos

1. Schuch, A. P., Menck, C. F.


2
The genotoxic effects of
Da esquerda para DNA lesions induced by
a direita, Geni, e Rafael Souto, professor da tógrafos dos jornais que não usassem flash dian- artificial UV-radiation and
Claudia e Vanda sunlight. Journal of
Jardim: em Araras,
Pontifícia Universidade Ca- te das pessoas com XP, explicando que poderia Photochemistry and
Goiás, muitos têm tólica de Goiás. ser prejudicial para elas. Ele se comprometeu a Photobiology B. v. 99, n. 3,
hipersensibilidade Sensibilizado pela situa- voltar em julho para apresentar um conjunto de p. 111-16, 2010.
à luz ção, o farmacêutico Evandro trechos específicos de DNA – ou primers – capa- 2. Menck, C. F. et al.
Tokarski, proprietário de uma zes de detectar as mutações nos genes de reparo Development of a DNA-
dosimeter system for
farmácia artesanal em Goiânia, há nove meses do DNA dos moradores de Araras. “Está quase monitoring the effects of
começou a enviar, sem custos, um creme com pronto”, contou, animado, no início de março. solar-ultraviolet radiation.
alto poder de proteção solar, que ele próprio de- “Ajudar aquelas pessoas e entender por que elas Photochemical &
Photobiological Science.
senvolveu, para os moradores de Araras com XP. têm câncer e não têm envelhecimento precoce é v. 8, n. 1, p. 111-20, 2009.
“Envio mensalmente, para que não falte”, ele agora nossa prioridade total.”
diz. “Se temos condições de apoiar, por que não Ele e sua equipe acreditam que poderão encon-
De NOSSO ARQUIVO
apoiar?” Ele conta que está preparando, e pre- trar mutações novas nos genes causadores de XP.
tende apresentar em breve aos médicos à frente “Descrever uma nova mutação é uma contribui- À prova de luz
do atendimento àquela população, um creme hi- ção científica pequena, mas cada nova mutação Edição nº 106 –
dezembro de 2004
dratante que ajude a tratar a pele ressecada das permite compreender melhor por que as coisas
pessoas com essa deficiência genética. acontecem nos seres humanos”, diz Menck. Por Soldando o DNA
Edição nº 82 –
vezes, ele acrescenta, os genes de reparo de DNA

A
dezembro de 2002
senadora Lúcia Vânia (PSDB-GO), por sua ajudam a provocar a resistência dos tumores aos
infográfico  Tiago cirillo, Fonte: Carlos Menck e André Schuch / ICB-USP  foto WILSON PEDROSA/ae

vez, apresentou um projeto de lei prevendo medicamentos que deveriam destruí-los. Nesses
a concessão de auxílio-doença e aposenta- casos, o que se deseja é reduzir a ação desses ge-
doria por invalidez para os moradores de Araras nes, intencionalmente, para que os medicamen-
com XP. Aprovado por uma das comissões do Se- tos sejam mais eficazes; é o que ele também está
nado em novembro de 2011, o projeto de lei deve tentando, em uma linha de trabalho de resultados
agora seguir para a Câmara dos Deputados. Tam- mais distantes.
bém motivados pelas reportagens dos jornais, pes- Menck reconhece que avançou bastante e mon-
quisadores de universidades em Goiás, do Distrito tou uma equipe produtiva e criativa, que não he-
Federal e de São Paulo intensificaram o estudo das sita diante de propósitos ousados como ajudar os
formas de prevenir o crescimento dos tumores nas moradores de Araras a sofrer menos. Às vezes ele
pessoas com XP de Araras. A prevenção implica volta às origens, tira da estante e folheia um vo-
adaptar os vidros e outros materiais das casas e lume encadernado com capas cor de vinho – sua
de outras edificações para receberem o mínimo tese de doutorado, “Sobrevivência e Sistemas de
possível de luz solar. Ou mesmo construir quadras reparo em células de mamíferos”, com 95 pági-
cobertas para as crianças das escolas. nas, que o colocou na trilha de trabalho em que
Os cuidados são muitos, e muitas vezes imper- está até hoje – e diz: “Tem coisas aqui que ainda
ceptíveis. Quando estava lá, Menck pediu aos fo- não foram bem resolvidas”. n

pESQUISA FAPESP maio de 2012  _ 65


_  B iologia estrutural

Para entender
as proteínas
Rede reuniu 20 grupos que
definiram a estrutura e a
função de 200 moléculas
essenciais aos organismos

E
m 1989, o Moniliopthora perniciosa, um de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
fungo originário da bacia amazônica, (CNPq), mapeou o genoma do Moniliopthora
chegou à Bahia e infectou a plantação perniciosa. Nos anos seguintes, um grupo de
de cacau da região de Ilhéus e Itabuna. pesquisadores da Unicamp, entre eles Gonça-
Na década seguinte, a produção anual lo Amarante Guimarães Pereira, e Jorge Mon-
caiu de 320 mil toneladas para algo em torno de dego, do Instituto Agronômico de Campinas
100 mil toneladas, derrubando a participação do (IAC), identificaram 27 proteínas do fungo com
Brasil no mercado internacional de 15% para 4%. potencial para reduzir ou paralisar o efeito da
A força da doença é avassaladora: o fungo invade doença na planta.
as células do cacau, secreta proteínas que inte- Atualmente, essas 27 proteínas-alvo são ob-
ragem com outras proteínas da planta e o ramo jeto do projeto Estudos estruturais de proteínas-
da planta seca e hipertrofia. Este processo fisio- -chave para as doenças fúngicas do cacau – vas-
lógico consome o cacaueiro e, no caso da Bahia, soura-de-bruxa e monilíase –, desenvolvimento de
também exaure a vida de mais de dois milhões de estratégia de controle e entendimento de modelos
pessoas. A solução para deter o avanço da doen- de patogenicidade, aprovado no âmbito da Rede
ça, do ponto de vista da ciência, é compreender de Biologia Estrutural em Tópicos Avançados de
Andre Ambrosio/LNBio

a interação entre o fungo e a planta. Ciências da Vida, o SMOLBnet 2.0, lançado pela
Em 2000, um consórcio liderado pela Uni- FAPESP em 2010.
versidade de Campinas (Unicamp), apoiado pe- Esta rede de pesquisa, a rigor, começou a ser
lo governo da Bahia e pelo Conselho Nacional formada em 2001, quando a FAPESP apoiou a

66  _ especial 50 anos fapesp


Representações da
estrutura tridimensional
da proteína MpNEP2
(necrosis-and ethylene-
inducing peptide 2),
extraída do fungo causador
da vassoura-de-bruxa,
obtida por meio de uma
linha de luz especial do
LNLS. Na imagem maior,
a gradação de tons de
cores indica a sequência
de enovelamento da
estrutura da proteína, do
início, em azul, ao final,
em vermelho. Na imagem
menor as esferas coloridas
correspondem aos átomos
de carbono, nitrogênio e
oxigênio, que constituem
a molécula

pESQUISA FAPESP maio de 2012  _ 67


criação da Rede de Biologia Molecular Estrutural do em 1999 e dirigido
(SMOLBnet), formada então por 20 grupos de na época por Menge-
pesquisa e constituída com a missão de ampliar nhini –, que dispunha
o conhecimento sobre os genes mapeados nos de equipamentos de A rede permitiu a
projetos Genoma Humano do Câncer, Genoma ressonância magné-
da Cana e nos genomas das bactérias Xylella fas- tica nuclear e espec- formação de especialistas
tidiosa e Xanthomonas citri, entre outros. A mis- tômetros de massas
são envolvia o estudo da estrutura tridimensional para a cristalização
em biologia estrutural,
e a função de 200 proteínas, com o objetivo de de proteínas. uma área estratégica da
comparar suas manifestações em células normais O Cebime treinou
e em células doentes e buscar pistas para novos biólogos, bioquími- ciência mundial
diagnósticos e tratamentos. cos, químicos e mé-
dicos dos 20 labora-

A
Rede SMOLBnet reuniu equipes de pes- tórios paulistas nas
quisadores de laboratórios que já realiza- técnicas utilizadas. “Nosso objetivo era ensinar
vam a clonagem do gene até a sua expres- o processo de investigação da forma tridimen-
são em proteínas. Com a implantação do progra- sional das proteínas às equipes de pesquisadores
ma, puderam também desvendar a sua estrutura que frequentemente se deparam com a necessi-
tridimensional. “A estrutura das proteínas está dade de conhecer a estrutura dessas moléculas”,
diretamente ligada à sua função. É ela, aliás, quem contou Meneghini ao repórter Ricardo Zorzetto,
define a sua função, e essa é uma informação cru- em reportagem publicada na edição 113 da revista
cial para saber como age nos organismos vivos”, Pesquisa FAPESP de julho de 2005.
explica Rogério Meneghini, que coordenou a rede A constituição da rede, explica Marie-Anne
SMOLBnet desde o seu início até 2004, quando Van Sluys, do Instituto de Biociências da USP e
assumiu a coordenação científica do Programa coordenadora adjunta da área de ciências da vida
Scielo, também apoiado pela FAPESP. da FAPESP, instigou a formação de “massa críti-
Esses grupos puderam contar com uma fer- ca” em biologia estrutural, uma área de pesquisa
ramenta poderosa: o Laboratório Nacional de que ganhou reconhecimento em todo o mundo,
Luz Síncrotron (LNLS), em Campinas – úni- principalmente a partir dos resultados dos pro-
co na América Latina e aberto à comunidade jetos Genoma. “O SMOLBnet se constituiu numa
científica –, que, na época, além de uma linha de espécie de rede de contatos que, aos poucos, foi
luz Síncrotron de difração de raios X dedicada à ganhando movimento próprio”, diz ela.
realização de cristalografia de macromoléculas, Shaker Chuck Farah, bioquímico do Instituto
contava com um laboratório especializado nessa de Química da USP, estudou proteínas envolvi-
modalidade de investigação, o Centro de Biolo- das em sistemas de secreção e sinalização entre
gia Molecular Estrutural (Cebime) – inaugura- bactérias. “Incorporei técnicas de biologia estru-

Propostas selecionadas para a SMOLBnet 2.0


projeto coordenação investimento

Estudos estruturais de proteínas-chave para as doenças fúngicas do cacau – vassoura- André Luis Berteli Ambrósio, R$ 382.051,42
-de-bruxa e monilíase –, desenvolvimento de estratégias de controle e entendimento de ABTLuS
modelos de patogenicidade – nº 2010/51884-8) (2011-2012)
Determinação de estrutura tridimensional de inibidores de proteases e moléculas Aparecida Sadae Tanaka, R$ 155.542,56
anti-hemostáticas identificados em animais hematófagos, vetores de doenças – Unifesp
nº 2010/51868-2 (2011-2013)
Estudos estruturais de proteínas associadas à infecção de tripanossomatídeos, bem como de Eduardo Horjales Reboredo, R$ 281.738,33
seus complexos com moléculas que participam na infecção – nº 2010/51867-6 (2011-2012) IFSC/USP
Combinando genética e RMN para dissecar interações proteína-proteína fundamentais Frederico José Gueiros Filho, R$ 280.305,09
para o funcionamento do complexo de divisão bacteriana – nº 2010/51866-0 (2011-2012) IQ/USP
Estudos funcionais e estruturais de proteínas quinases envolvidas em câncer e doenças Jorg Kobarg, R$ 642.928,67
negligenciadas, visando ao desenvolvimento de novos inibidores – nº 2010/51730-0 (2011-2012) ABTLuS
Caracterização estrutural da proteína alfa-importina e de complexos proteicos importina – Marcos Roberto de Mattos Fontes, R$ 307.249,38
fatores de transcrição do fungo Neurospora crassa – nº 2010/51889-0 (2011-2013) IB/Unesp Botucatu
Estudos estruturais de fatores de transcrição reguladores dos genes de enzimas hidrolíticas Mario Tiago Murakami, R$ 341.802,40
e de “swollenin” em Aspergillus niger e Aspergillus fumigatus – nº 2010/51890-8 (2011-2012) ABTLuS
Estudo de estrutura de proteínas componentes e reguladoras do exossomo de Archaea Carla Columbano De Oliveira, R$ 693.392,06
e de levedura – nº 2010/51842-3 (2011-2014) IQ/USP
Determinação por cristalografia e ressonância magnética nuclear, da estrutura das proteínas André Luis Berteli Ambrósio, R$ 148.691,20
das famílias NEP (Necrosis and Ethylene inducing Peptides) e taumatina, além da oxidase ABTLuS
alternativa – nº 2010/51891-4 (2011-2012)

68  _ especial 50 anos fapesp


Quatro cenas de uma longa jornada

Etapas da identificação da estrutura espacial de um anticoagulante, o inibidor do fator XIIa: da esquerda para a direita, cristais vistos por lupa
(na escala, 100 = 1 mm) e por difração de raios X antecedem a reconstituição da molécula átomo a átomo

tural em minha linha de pesquisa, tive orienta- pesquisas podem estar vinculadas aos demais
imagens Sergio Schenkman, Aparecida tanaka e ivan campos/unifesp

ção de pesquisadores experientes e formei pes- programas da instituição”, explica Marie-Anne. O PROJETO
soas”, conta. A pesquisa sobre o fungo Moniliopthora perni- Structural Molecular Biology
Decidido a investigar a forma espacial de pro- ciosa que ataca o cacaueiro é prova disso. O pro- Network (Smolbnet)
teínas com que trabalhava havia anos, Sérgio jeto é coordenado por André Ambrósio, do Labo- COORDENADOR
Schenkman, com sua equipe da Universidade ratório Nacional de Biociências (LNBio). Junto Rogerio Meneghini – LNLS

Federal de São Paulo (Unifesp), detalhou a es- com Sandra Dias e Ana Zeri, também do LNBio, INVESTIMENTO
R$ 13.036.329,12
trutura de duas proteínas do inseto transmissor Ambrósio é responsável pelas investigações com
do protozoário Trypanosoma cruzi, causador da foco em biologia molecular estrutural, por meio
doença de Chagas. As proteínas atuam em fases de combinação de técnicas de cristalografia, res- Artigo científico
distintas da coagulação do sangue: uma inibe a sonância magnética nuclear, bioquímica e biofísi- Zaparoli, G. et al. The
ação da trombina e outra impede o funcionamen- ca, com o objetivo de entender a patogenicidade Crystal Structure of
to do fator XIIa. Ambas apresentam potencial da doença. O projeto teve início com o estudo Necrosis- and Ethylene-
Inducing Protein 2 from the
aplicação no tratamento de problemas provoca- das 27 proteínas-alvo identificadas por Gonçalo Causal Agent of Cacao’s
dos pelo aumento da coagulação do sangue, como Guimarães Pereira e Jorge Mondego e já resultou Witches Broom Disease
a trombose (veja ilustração acima). em um artigo publicado na revista Biochemistry Reveals Key Elements for Its
Activity. Biochemistry. v. 50,
em 2011. Várias outras das proteínas inicialmente

E
p. 9901-10, 2011.
m outubro de 2004, uma avaliação interna- propostas já tiveram suas estruturas resolvidas
cional dos resultados da SMOLBnet, reali- e estão sendo estudadas funcionalmente. Outras
de nosso arquivo
zada por uma comissão independente for- publicações estão sendo preparadas.
mada por especialistas do Instituto Pasteur, da O LNBio, aliás, teve origem no Cebime. Cons- Mapeamento de proteínas
França, da Universidade de Oxford, Inglaterra, tituído como laboratório nacional em 2009, in- Edição nº 65 –
junho de 2001
e do Laboratório Nacional de Brookhaven, Esta- tegra hoje o Centro Nacional de Pesquisa em
dos Unidos, mostrou que o esforço compensou. Energia e Materiais (CNPEM) e opera as duas Ourivesaria Molecular
Edição nº 113 –
“A taxa de sucesso desde a obtenção de clones linhas de luz de cristalografia de macromolé- julho de 2005
até a determinação das estruturas é comparável culas do LNLS e um conjunto de equipamen-
à de projetos internacionais”, afirmaram os es- tos de apoio à pesquisa em biologia molecular
pecialistas. Eles recomendaram a instalação de estrutural.
mais uma linha de luz síncrotron dedicada à cris- Determinadas as estruturas das proteínas e de-
talografia de macromoléculas para experimentos finidos os mecanismos de ação, o passo seguinte
que demandem o uso de SAD/MAD (Single and no projeto é o desenho racional de moléculas que
Multiple-wavelength Anomalous Diffraction), permitam inibir a ação dessas proteínas, desta
aberta aos usuários em 2006. feita com o apoio de Rafael Guido, do Institu-
A formação de especialistas, como resultado to de Física de São Carlos, e de Ronaldo Pilli,
da rede, permitiu a constituição do SMOLBnet da Unicamp, especialistas, respectivamente, na
2.0, em 2010. Nessa segunda chamada, o obje- identificação e síntese de pequenas moléculas,
tivo era estabelecer parcerias entre grupos de explica Ambrósio. “Estamos ainda tentando es-
pesquisa em biologia estrutural e grupos de pes- tudar, do ponto de vista estrutural, uma proteína
quisa em biologia molecular. Foram aprovadas associada à membrana mitocondrial de fungos,
23 propostas e, desta vez, não há uma coorde- processo desafiador que, pelo que se sabe, até
nação geral. “Os grupos estão emancipados e as então é inédito no País”, afirma Ambrósio. n

pESQUISA FAPESP maio de 2012  _ 69


_  B iologia estrutural

A essência
das moléculas
Cristalografia facilita o desenvolvimento de medicamentos

Eduardo Geraque

S
e há 20 anos eram poucos os laboratórios que
usavam a cristalografia no Brasil, hoje são dezenas
de centros de pesquisa que dominam esta técnica
usada para desvendar a estrutura tridimensional
das proteínas. Em São Paulo, o uso da cristalo-
grafia deu um salto em 2000 e 2001, com o lança-
mento do projeto Genoma Estrutural, lançado em conjunto
pela FAPESP e pelo Laboratório Nacional de Luz Síncrotron
(LNLS), ligado ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Ino-
vação. O projeto Genoma Estrutural injetou US$ 3,5 milhões
em dezenas de laboratórios. Com os recursos, os grupos de
pesquisa puderam financiar a compra de equipamentos para
expressão, purificação e cristalização de proteínas.
O Centro de Biologia Molecular Estrutural, do Instituto
de Física de São Carlos (IFSC) da Universidade de São Paulo
(USP), rapidamente se destacou como um dos protagonistas
do setor. O grupo já havia elucidado a estrutura molecular
de aproximadamente 20 proteínas, usando cristalografia
por difração de raio X. As macromoléculas estudadas eram
potenciais alvos de inibidores de doenças como hepatite B,
malária e alguns tipos de câncer.
Os primeiros passos do centro de cristalografia em São
Carlos ocorreram em 1989. “A área estava passando por um
boom em todo mundo, com muitos centros sendo criados.

70  _ especial 50 anos fapesp


A imagem acima representa
o oxigênio carregando
a mioglobina, uma das
primeiras proteínas a serem
examinadas por meio da
SCIENCE PHOTO LIBRARY

cristalografia; as esferas
coloridas representam os
aminoácidos da mioglobina,
que ajuda a estocar
oxigênio nos músculos

pESQUISA FAPESP maio de 2012  _ 71


Resolvemos fazer algo nosso. O laborató- equipe de Oliva fez outro experimento
rio tinha uma pia de azulejo e 16 metros pioneiro, ao elucidar as vias bioquími-
quadrados, ante uns mil que temos ho- cas de produção de glicose pelo Trypa-
je”, conta Glaucius Oliva, coordenador A técnica da nosoma cruzi, o protozoário da doença
do núcleo da USP de São Carlos. Atual de Chagas (ver reportagem à página 20).
presidente do Conselho Nacional de Pes- cristalografia A Biblioteca Virtual da FAPESP, que
quisa Científica e Tecnológica (CNPq), registra os projetos apoiados pela insti-
ele começou nessa área há trinta anos,
é usada para tuição desde 1992, cataloga 93 projetos
durante a graduação em física, sob a planejar novos de pesquisa, dos quais 17 estão em an-
orientação da professora Yvonne Mas- damento e 76 concluídos. Os pesquisa-
carenhas, que iniciou os trabalhos com fármacos e dores usam a cristalografia para estudar
cristalografia em São Carlos. Em 2000, proteínas que possam levar a novos fár-
seu grupo ganhou o status de um Centro decifrar a macos ou esclarecer o desenvolvimento
de Pesquisa, Inovação e Difusão (Ce- de alguns tipos de câncer.
pid) e, mais recentemente, de um Insti-
estrutura das O peso das técnicas modernas de cris-
tuto Nacional de Ciência e Tecnologia moléculas talografia é bem percebido por meio de
(INCT), com apoio do governo federal um simples exercício de inverter a lo-
e da FAPESP. do veneno de gística da produção de um fármaco. Um
remédio, para ser eficiente, precisa agir,

E
m 1992, pela primeira vez, uma serpentes como no caso da doença de Chagas, na
proteína, a glucosamina-6-fosfato relação entre parasita e hospedeiro. A
desaminase da bactéria Escherichia medicação precisa funcionar e, de prefe-
coli, foi inteiramente caracterizada no rência, matar o primeiro, sem interferir
país por meio da cristalografia. Em 1997, no segundo.
mesmo ano em que o grupo do Instituto Mas como enxergar todas estas in-
de Física da USP em São Carlos fez cres- terações biológicas, em nível molecu-
cer cristais em gravidade zero a bordo de lar? Só por meio de verdadeiras disse-
ônibus espaciais norte-americanos, uma cações moleculares de todo o processo.
linha de luz específica para estudos de Este é o papel da cristalografia, conjunto
cristalografia começou a funcionar no de técnicas que detalham a estrutura
LNLS, em Campinas. De acordo com de proteínas, por exemplo, por meio da
Oliva, além de ter crescido muito a for- difração (espalhamento) dos raios X em
mação de recursos humanos no setor a um cristal formado pelas proteínas que
partir dos anos 1990, pessoas que hoje se deseja estudar.
lideram grupos de pesquisa em vários

Q
estados do Brasil, a cristalografia passou uanto mais as pesquisas avançam,
por uma “evolução metodológica e tec- mais proteínas são identificadas
nológica muito grande nesse período”. e validadas pela cristalografia,
Se antes todas as soluções usadas para ampliando o banco de dados biológicos
fazer um cristal de uma proteína crescer sobre determinado problema. Assim, o
precisavam ser feitas de forma manual, número de opções que se terá em mãos
hoje existem robôs que praticamente para resolver certos desafios em nível
montam todo o experimento. A velocida- molecular tende a ser maior.
de e o rendimento são muito maiores, di- Este trabalho de montar e desmontar,
zem os especialistas. “Apesar disso tudo, em nível molecular, não existe apenas
a técnica ainda é bastante experimental. para a doença de Chagas, mas para vá-
Não existe teoria para a cristalografia. rias moléstias, além de permitir outras
Você não consegue antever se vai dar aplicações dentro da biologia em geral.
certo ou não”, afirma Oliva. O objetivo é sempre identificar macro-
Em paralelo ao amadurecimento do moléculas e, em laboratório, tentar sin-
centro de pesquisas em São Carlos, no tetizar outros compostos que se ligam
início dos anos 2000, também com a coor- aos chamados alvos biológicos. O que
denação do LNLS, começou a funcionar se pretende é bloquear aquele caminho,
a Rede de Biologia Molecular Estrutu- para que alguns desdobramentos nor-
ral (Smolbnet), facilitando o trabalho malmente desejáveis, como a morte do
de equipes de dezenas de laboratórios, T. cruzi, ocorram.
que identificaram a estrutura tridimen- Outra prova de que as técnicas de
sional de 52 proteínas em dois anos (ver cristalografia são vitais para o desen-
reportagem à página 66). Nessa época a volvimento científico vem do mundo

72  _ especial 50 anos fapesp


das serpentes. Vários projetos em cur- descritas como indutoras de uma sé-
so no estado de São Paulo nos últimos rie de efeitos tóxicos em sistemas bio- OS PROJETOS
anos usam exatamente esta ferramenta lógicos, como agregação plaquetária, 1. Instituto Nacional de Biotecnologia Estrutural
para decifrar os venenos desses animais. hemorragia, edema e apoptose. e Química Medicinal em Doenças Infecciosas –
A analogia que pode ser feita é fácil A evolução dessas técnicas e dos ban- INBEQMeDI – nº 2008/57910-0 (2009-2014)
2. Cristalografia, modelagem molecular e
de entender. Os componentes da pe- cos de dados de estruturas de proteínas, planejamento de substâncias de interesse
çonha – e vários projetos de pesquisa com suas informações moleculares co- biológico II – nº 1994/00587-9 (1995-1998)
contribuíram para essas descobertas nhecidas, é apenas parte do problema. 3. Centro de Biotecnologia Molecular Estrutural
– nº 1998/14138-2 (2000-2012)
recentemente – não são adequados para Também existem lacunas do lado da pes- 4. Caracterização bioquímica, estrutural e
ser usados clinicamente. Mas, se suas quisa aplicada. funcional de L-aminoácido-oxidase isolada do
estruturas moleculares forem bem co- Desde que a mioglobina, uma das veneno amarelo da serpente Crotalus durissus
terrificus – nº 2011/12267-6 (2012-2013)
nhecidas, os especialistas acreditam que primeiras estruturas de uma proteí-
MODALIDADE
poderiam trocar uma parte da molécula na totalmente conhecida por meio da 1 e 2 Temático
para alterar sua ação sobre o organismo. cristalografia, foi validada nos Estados 3. Programa Centros de Pesquisa – Cepid
Essa modificação planejada na estru- Unidos em 1960, começou uma evolução 4. Linha regular de auxílio a projeto de pesquisa

tura original de uma molécula poderá, paralela no setor empresarial, embora COORDENADORes
1. a 3. Glaucius Oliva – IFSC/USP
acredita-se, ter um uso terapêutico em no Brasil poucas empresas invistam em 4. Maurício Ventura Mazzi – Centro Universitário
muitas doenças. pesquisa de novos fármacos, a principal Hermínio Ometto (Uniararas)
área em que a cristalografia tem sido

U
INVESTIMENTO
m grupo de pesquisa da Fundação aplicada. 1. R$ 1.340.213,83
2. R$ 257.249,99
Hermínio Ometto, de Araras, es- As consequências dos avanços na bio- 3. R$ 28.449.954,27
tá trilhando este exato caminho. logia estrutural apenas conseguirão ter 4. R$ 301.426,83
Os pesquisadores estão interessados em um escoamento esperado, em termos de
isolar um grupo de enzimas do veneno saúde, se os processos de inovação tec- De nosso arquivo
da serpente Crotalus durissus terrificus, nológica e desenvolvimento de fármacos
a bem conhecida cascavel. Além de ou- estiverem totalmente azeitados, alertam Quebra-cabeças da vida
Edição especial Cepids – maio de 2007
tras ferramentas, a cristalografia por di- os pesquisadores. Eles acreditam que o
fração de raios X está sendo usada para desenvolvimento de moléculas que real- A chave para novos medicamentos
Edição nº 57 – setembro de 2000
elucidar as estruturas tridimensionais mente poderão atingir os alvos biológi-
das proteínas selecionadas. cos para os quais elas foram desenhadas Genes identificados podem ter relação
com a CVC
De acordo com o grupo, as enzimas vai ocorrer só se as universidades e as Edição nº 38 – dezembro de 1998
L-aminoácido-oxidases (LAAOs), que empresas conseguirem trabalhar em
Cooperação no espaço
conferem ao veneno da serpente uma conjunto. Só um produto classificado Edição nº 21 – junho de 1997
tonalidade amarelo-âmbar, apresenta- como rentável pelas empresas poderá
Viagem de reconhecimento
ram potencial citotóxico, bactericida e receber apoio financeiro e ser fabricado Edição nº 19 – abril de 1997
antiparasitário in vitro. Elas têm sido em escala comercial. n

Em três dimensões | Passo a passo da criação dos modelos espaciais de proteínas

2 3
A lâmina vai para um Pode-se então criar um modelo
aparelho de difração de tridimensional da proteína
raios X, que identifica
infográficos  tiago cirillo,  fonte: UNESP/ UFSCar/PROTEIN DATABASE

os componentes da
proteína selecionada

Rotação

Nitrogênio Detector

1 4 A partir do modelo gerado,


Raio x é possível desenvolver
A proteína é fármacos que modulem
isolada e posta em Lâmina com Construção simples de forma específica a ação
Modelo 3D
proteína da estrutura
uma lâmina da proteína-alvo

pESQUISA FAPESP maio de 2012  _ 73


_  D oenças neurodegenerativas

O porteiro
das células
Príon celular, a versão saudável da proteína
que causa o mal da vaca louca, controla a
entrada de comandos químicos nos neurônios

Ricardo Zorzetto

74  _ especial 50 anos fapesp


N
ada é gratuito na natureza, acreditava químicos disparados pelo príon celular orientam
o médico Ricardo Renzo Brentani. a se manter viva ou a emitir os prolongamentos
Esta certeza e uma intuição aguça- que a conectam a outros neurônios (ver infográ-
da levaram o oncologista, um dos fico na página 76).
pioneiros da biologia molecular no Além da compreensão abrangente de como o
Brasil, morto em novembro de 2011, a iniciar os príon celular age, o trabalho do grupo brasileiro
estudos sobre uma proteína essencial para o de- proporcionou uma nova interpretação de como
senvolvimento das células cerebrais e o equilíbrio surgem e avançam as encefalopatias espongi-
do sistema de defesa quando poucos a conside- formes, doenças ainda sem cura causadas por
ravam importante. defeitos na estrutura do PrPC. São enfermidades
A proteína que Brentani e seus colaboradores como a doença de Creutzfeldt-Jakob, que se ins-
começaram a investigar há 15 anos é o príon ce- tala no cérebro ao longo de décadas, mas evolui
lular ou PrPC. Produzida pelo organismo, essa e mata em menos de um ano. A destruição que
proteína está na superfície de quase todas as cé- provocam deixa o cérebro poroso feito esponja.
lulas – em maior abundância no sistema nervoso O conhecimento gerado aqui, somado ao re-
central e no imunológico. Graças ao trabalho dos sultado de pesquisas de outros países, indicou
pesquisadores brasileiros, sabe-se agora que o ainda existir uma conexão inesperada entre essas
PrPC é uma espécie de porteiro das células: ele enfermidades, raras e assustadoras, e outra bem
organiza e controla a passagem de informações mais frequente: a doença de Alzheimer, que atinge
do meio externo para o interno. É uma função uma em cada três pessoas com mais de 85 anos.
bastante nobre para uma proteína que, até pouco
anos atrás, se imaginava não ter importância. “A O início
natureza não desperdiçaria tempo nem energia Brentani viu a oportunidade de estudar o príon
para gerar uma proteína sem atividade biológi- celular – e entrar em área de pesquisa muito com-
ca”, comentou Brentani em 2008, pouco depois petitiva – no início dos anos 1990. Na época, pes-
de publicar, com parceiros de São Paulo, do Rio quisadores do mundo todo investigavam a versão
de Janeiro, de Minas Gerais e do Rio Grande do deformada do PrPC. Chamada apenas de príon,
Sul, a mais abrangente análise sobre o funciona- abreviação de proteinaceous infectious particle, a
mento do príon celular. proteína danificada era o principal suspeito de
Como um ímã seletivo ancorado no lado de fora causar uma doença que atingiu parte do rebanho
das células, o PrPC atrai determinadas proteínas bovino da Inglaterra e se tornou conhecida como
do meio extracelular – em alguns casos, mais de o mal da vaca louca.
uma ao mesmo tempo – e repassa para o interior O risco de que fosse transmissível para seres
a informação que elas codificam. De modo sim- humanos – os primeiros casos foram confirmados
plificado, a transferência de informação ocorre em 1996 – levou laboratórios mundo afora a iniciar
de duas maneiras. Em uma delas, a proteína ex- uma corrida para desvendar o funcionamento da
tracelular adere ao PrPC, que aciona uma proteí- proteína infecciosa. Essa versão da molécula, que
na atravessada na membrana da célula e dispara se propaga pelo contato com as proteínas saudá-
sinais químicos em seu interior. Na outra, o PrPC veis, causa nos seres humanos a forma de encefa-
riccardo cassiani-ingoni / spl

desliza para áreas mais delgadas da membrana lopatia espongiforme descrita nos anos 1920 por
e é tragado para o interior de vesículas, onde se Hans Gerhard Creutzfeldt e Alfons Maria Jakob.
Astrócito: produtor
conecta a outras proteínas e envia comandos para Mais estáveis que o príon celular, as moléculas de-
de proteína que ativa o núcleo ou outras regiões da célula. Nas células formadas aderem umas às outras, gerando longas
o príon celular cerebrais, em especial nos neurônios, os sinais fibras tóxicas para os neurônios.

pESQUISA FAPESP maio de 2012  _ 75


Enquanto só se estudava a proteína A proteína por eles apresentada –
defeituosa, Brentani decidiu investigar o mais tarde identificada como STI-1, sigla Ímã seletivo
que fazia o PrPC. Ele suspeitava que não de stress inducible protein 1 – era quase
se avançaria na compreensão de como es- duas vezes maior do que o príon celular. Como o príon celular importa a
sas doenças se instalam e progridem, nem Mas não se sabia o que ambas faziam. Co- informação para o neurônio
nas tentativas de as combater, sem que se mo não eram especialistas em neurônios,
soubesse como atua o príon celular. Havia ele e Vilma convidaram o neurocientista
até alguma indicação de que não fizesse Rafael Linden, da UFRJ, para colaborar
falta para o organismo. Por volta de 1990 nos testes seguintes. O complexo formado
o biólogo molecular Charles Weissmann pelo príon celular e a STI-1 se mostrou es- NEURÔNIO

criou uma linhagem de camundongos que sencial tanto para o amadurecimento e a


não produziam o PrPC e aparentemente formação dos prolongamentos dos neurô-
viviam sem prejuízo à saúde. nios como para protegê-los da morte (ver
Pesquisa FAPESP nº 94). Experimentos

M
as Brentani não se convenceu. com camundongos feitos em parceria com
Anos antes ele havia propos- Iván Izquierdo, pesquisador da Pontifícia MEIO
Proteína ativadora

to uma teoria segundo a qual a Universidade Católica do Rio Grande do EXTERNO

mesma região da dupla fita da molécula Sul, revelaram ainda que o príon celular e Proteína

de DNA conteria a receita para a produ- a STI-1 eram também fundamentais para Príon celular
transmembrana

ção de duas proteínas – e não uma. Sua a formação da memória.

fonte: Adaptado de LINDEN, R. et al.


ideia era que as proteínas codificadas Já no sistema imunológico ele mo- Membrana

por trechos complementares das fitas dulava a resposta às inflamações, ora Vesícula

de DNA também teriam papéis comple- aumentando, ora reduzindo a atividade Proteína

mentares e seriam capazes de interagir das células de defesa, como demons- Sinais
químicos
quimicamente. Mas era uma hipótese trou a equipe de Linden (ver Pesqui- MEIO
CÉLULA
na qual poucos acreditavam. sa FAPESP nº 148). Outras evidências, INTERNO

Até que em 1991 um pesquisador nor- como a de que o príon celular protege
te-americano publicou uma carta na Na- as células do coração contra agressões
ture dizendo que, se Brentani estivesse Vilma, Brentani e Linden recorreram
químicas, se somavam, mas ainda não
certo, o trecho do DNA complementar ao então à ajuda de Marco Antonio Prado, à
se compreendia por que, em certas si-
do gene do príon celular conteria infor- época professor na Universidade Fede-
tuações, o PrP C protegia e em outras
mação sobre a proteína que possivelmen- ral de Minas Gerais, onde investigava o
danificava os tecidos. Um passo impor-
te o acionaria. Estudioso de proteínas transporte de moléculas no interior das
tante era saber como essa proteína, que
associadas ao câncer, Brentani resolveu células. Em parceria com outros pesqui-
fica na superfície externa das células,
analisar o príon celular e a molécula que se comunicava com o interior. sadores, eles marcaram o príon celular
funcionava como seu interruptor. Ele, a de neurônios com um corante
bioquímica Vilma Martins e o biólogo fluorescente e acompanharam
Sandro de Souza, na época pesquisado- Bloquear atividade o caminho que percorria. Foi
res do Instituto Ludwig de Pesquisa so- quando flagraram que, uma
bre o Câncer, mais o bioquímico Vivaldo do príon celular pode vez ativado por certas proteí-
Moura Neto, da Universidade Federal nas, como a STI-1, o príon ce-
do Rio de Janeiro (UFRJ), deduziram a
deter avanço de lular desliza para áreas mais
estrutura dessa outra proteína e a des- doenças cerebrais delgadas da membrana e faz
creveram em 1997 na Nature Medicine. um mergulho temporário na
célula, durante o qual envia co-
mandos para o núcleo ou outras regiões.
O papel de ímã seletivo ou platafor-
ma de montagem de complexos de si-
nalização do PrPC explicava resultados
experimentais que pareciam contraditó-
rios e alterava a compreensão de como
foto glaucia hajj infográficos tiago cirillo

surgem as doenças causadas por príons.


Segundo a nova interpretação, na doença
de Creutzfeldt-Jakob os neurônios não
morreriam só porque a adesão dos príons
gera aglomerados tóxicos. A morte celu-
Príon celular,
marcado em verde
lar ocorreria também pela perda do príon
na superfície de celular, que deixaria os neurônios des-
neurônios protegidos contra agressões químicas.

76  _ especial 50 anos fapesp


Soluções possíveis
Duas estratégias para interromper a sinalização mediada pelo príon celular

GLIOBLASTOMA O QUE OCORRE ESTRATÉGIA DE AÇÃO


Produção de Usar peptídeo ASTRÓCITO
ASTRÓCITO
STI-1 estimula derivado da
proliferação STI-1, que se liga
celular ao príon celular,
sem acionar a

STI-1
multiplicação STI-1 Príon celular
Príon celular
dos astrócitos
Peptídeo

ALZHEIMER O QUE OCORRE ESTRATÉGIA DE AÇÃO


fonte: vilma martins / hospital a. c. camargo

Beta-amiloide NEURÔNIO Usar molécula NEURÔNIO


adere ao que compete
príon celular com o
Beta-amiloide Príon celular
e bloqueia Príon celular beta-amiloide
a sinalização para impedir
Beta-amiloide

protetora que se conecte


DEGENERAÇÃO
ao príon celular

O que se imaginou para essas enfermi- avanço da doença. Os primeiros testes fo-
dades, sugerem os brasileiros, parece ser ram promissores e os pesquisadores de- Os Projetos
aplicável aos estágios iniciais do Alzhei- positaram um pedido de patente para o
1. Papel da proteína príon celular em processos
mer. “Começamos estudando uma do- uso de um dos compostos que impedem fisiológicos e patológicos – nº 1999/07124-8
ença neurodegenerativa e encontramos a interação entre o oligômero e o príon (2000-2004)
conexões com outras”, comenta Marco celular (ver Pesquisa FAPESP nº 194). 2. Papel da proteína príon celular em processos
fisiológicos e patológicos II – nº 2003/13189-2
Prado, hoje pesquisador da Universidade Vilma também tenta combater o glio- (2004-2009)
de Western Ontario, no Canadá. blastoma, um tumor cerebral agressivo, 3. Mecanismos associados à função da proteína
causado pela proliferação descontrolada príon e seu ligante STI1/Hop: abordagens

O
terapêuticas – nº 2009/14027-2 (2010-2014)
elo entre as doenças causadas de células derivadas dos astrócitos. Célu-
Modalidade
por príons e a enfermidade que las que nutrem os neurônios e defendem 1. 2. e 3. Projeto Temático
apaga a memória é que, em am- o sistema nervoso central de invasores, Coordenadoras
bos os casos, a sinalização do PrPC está os astrócitos lançam no meio extracelu- 1. e 2. Vilma Regina Martins – Instituto Ludwig
truncada. No primeiro, por um defeito no lar a STI-1. Enquanto promove diferen- 3. Vilma Regina Martins – Hospital A. C.
Camargo
próprio PrPC. No segundo, por sua ação ciação dos neurônios e a autorrenovação
Investimento
ser bloqueada pelo beta-amiloide. “Não de células precursoras neuronais, a STI-1 1. R$ 2.353.958,10
estamos afirmando que a toxicidade não bloqueia a reprodução dos astrócitos no 2. R$ 1.738.518,72
mata a célula”, explica Vilma, hoje pes- cérebro saudável. Mas dispara a prolife- 3. R$ 1.699.903,33

quisadora do Hospital A. C. Camargo. ração tumoral no glioblastoma.


“Acreditamos que, além desse processo, Para esse caso, a estratégia de Vilma Artigo científico
a célula morre também porque o príon é bloquear a atividade do príon celular
LINDEN, R. et al. Physiology of the prion protein.
celular deixa de protegê-la.” com um fragmento sintético da STI-1 que Physiological Reviews. v. 88, p. 673-728, 2008.
Essa visão também abriu um novo ca- adere ao PrPC sem o ativar (ver infográfi-
minho para a busca de estratégias para co nesta página). Testado em camundon-
DE NOSSO ARQUIVO
combater essas doenças. Em um estudo gos, o peptídeo retardou o crescimento
ainda não publicado, ela e Marco testa- do tumor e preservou a cognição dos A liga dos neurônios
ram novas maneiras de interferir na co- animais. Por ora, no entanto, não é pos- Edição nº 94 – dezembro de 2003

municação entre o PrPC e o oligômero sível prever se essas estratégias levarão a Uma proteína fundamental
Edição nº 148 – junho de 2008
beta-amiloide, um aglomerado de frag- um medicamento. “O que funciona com
mentos de proteína tóxico que se forma animais”, lembra Vilma, “nem sempre Comunicação interrompida
Edição nº 194 – abril de 2012
no começo do Alzheimer, impedindo o produz os mesmos efeitos nas pessoas”. n

pESQUISA FAPESP maio de 2012  _ 77


_ G enética humana

O centro
das distrofias
Grupo paulista identifica novos genes e formas
de doenças neuromusculares no Brasil

Marcos Pivetta

riccardo cassiani-ingoni/science photo library

Microscopia de
fluorescência de
células-tronco
embrionárias
neuronais formando
redes neurais. Em
vermelho a proteína
tubulina e em azul
o núcleo celular
E
m 1978, a geneticista Mayana Zatz vol- As distrofias musculares eram (e ainda são)
tou ao Brasil depois de ter feito um pós- uma das doenças mais estudadas por Mayana e
-doutorado de dois anos na Universida- seus colaboradores. Quando iniciou suas pes-
de de Califórnia em Los Angeles (Ucla). quisas, eram conhecidas apenas sete formas de
Quatro anos mais tarde, foi contratada distrofias. Hoje sabe -se que há mais de 30. Até
como professora do Instituto de Biociências da os anos de 1980, seu laboratório trabalhava ape-
Universidade de São Paulo (IB-USP), endere- nas com enzimas, embora a biologia molecular
ço profissional que nunca trocou. Mais de três já tivesse despontado no exterior. Mas, no final
décadas de pesquisas bem-sucedidas nas áreas daquela década, com o retorno de duas alunas
de genética e mais recentemente no campo das que tinham ido ao exterior aprender novas téc-
células-tronco transformaram Mayana numa das nicas, Maria Rita Passos-Bueno e Mariz Vainzof,
cientistas brasileiras de maior visibilidade no país que se tornariam professoras e pesquisadoras do
e também no exterior. Desde o ano 2000, a pesqui- IB, Mayana estruturou um setor de biologia mo-
sadora comanda o Centro de Estudos do Genoma lecular para investigar as doenças neuromuscu-
Humano (CEGH) da USP, um dos Cepids criados lares. Maria Rita montou toda a parte de estudo
com financiamento da FAPESP. Em média, cem de genes e Mariz, a de pesquisa das proteínas
pesquisadores e técnicos estão ligados ao centro, de músculo. Desde então, o grupo identificou 15
cujo serviço de aconselhamento genético atende genes novos, boa parte deles ligada às distrofias.
anualmente de 2 mil pessoas. A produção cien- Os primeiros achados mais expressivos come-
tífica da equipe de Mayana é grande. “Às vezes, çaram a surgir em meados da década seguinte.
publicamos até 50 papers (artigos científicos) num Em 1995, a equipe identificou um gene ligado
ano”, afirma a geneticista, que também comanda a uma forma grave de distrofia de cintura, que
o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de costuma levar uma criança com 10 anos de idade
Células-Tronco em Doenças Genéticas Humanas, para a cadeira de rodas, e outro que, quando alvo
associado ao CEGH. de mutações, causa a síndrome de Knobloch, um
tipo raro de cegueira progressiva. Até hoje, todas
as mutações que provocam a síndrome ocorrem
nas duas cópias do gene COL18A1, que foi iden- Grupo localizou 15 novos genes,
tificado pela equipe do IB sob coordenação de
Maria Rita. A história da descoberta da associa- boa parte deles ligada ao surgimento
ção da doença ao COL18A1, gene localizado no
cromossomo 21 que codifica uma proteína cha-
de distrofias musculares
mada colágeno XVIII, incluiu trabalho, paciência
e uma dose de sorte, ingredientes essencias para
o avanço da ciência.
Ao se detectar uma família com distrofia de
cintura no município de Euclides da Cunha, na que recebeu o nome de ELA8. A disfunção no gene
Bahia, as pesquisadoras perceberam que havia foi encontrada em 34 indivíduos, pertencentes a
também muitos casos de cegueira nesse grupo de sete famílias: 16 pessoas tinham atrofia espinhal, 15
pessoas, formado por casais consanguíneos. Para apresentavam ELA8 e três manifestavam a forma
saber o que se passava com aqueles indivíduos, clássica de ELA. Posteriormente, foram identifi-
Maria Rita foi à cidade baiana, conversou com os cadas centenas de portadores dessa mutação no
familiares e coletou material para pesquisa. “Uma Brasil e também no exterior.
parte da família tem distrofia e a outra cegueira”, As três enfermidades são parecidas e, em cer-
recordou Maria Rita em 1997 em reportagem do tos aspectos, se confundem. A semelhança tal-
boletim Notícias FAPESP, embrião desta revis- vez se deva à descoberta de que a mutação no
ta. Como é praxe nesses casos, todas as famílias gene VAP-B pode ser a causa das anomalias. De
envolvidas nas pesquisas da equipe de Mayana forma genérica, são classificadas debaixo do
recebem aconselhamento genético para saber grande guarda-chuva das chamadas doenças
como lidar com a doença e serem informadas dos neurônios motores. São lesões que afetam
sobre o risco de transmissão de mutações para as células do cérebro e/ou da medula espinhal
eventuais novos filhos. especializadas em enviar impulsos elétricos para
os músculos. Estes contraem ou relaxam a partir

N
a busca por genes associados a doenças de comandos transmitidos pelos neurônios mo-
neurodegenerativas, a equipe da USP obte- tores superiores (cérebro) e inferiores (medula
ve alguns resultados surpreendentes. Esse espinhal). No caso dos doentes com a ELA8, os
foi o caso dos trabalhos com um gene denominado primeiros sintomas costumam aparecer por volta
VAP-B, presente no cromossomo 20. Num artigo Cachorros Ringo e da quarta década de vida e sua sobrevida varia
publicado em novembro de 2004 na revista Ame- Suflair: cães têm de cinco a 25 anos depois de feito o diagnóstico.
mutação que causa
rican Journal of Human Genetics, pesquisadores A principal responsável pela descoberta e ca-
distrofia muscular, mas
do centro paulista mostraram que uma mutação surpreendentemente racterização da nova forma de esclerose lateral
nesse gene podia causar três tipos distintos de do- não manifestam a amiotrófica, a pesquisadora Agnes Nishimura,
ença degenerativa nos neurônios motores: atrofia doença. Pesquisadores que era do centro da USP e hoje é pesquisadora
da USP estão tentando
espinhal progressiva tardia, a forma clássica de do King’s College em Londres, ganhou em 2007
encontrar genes que
esclerose lateral amiotrófica (ELA) e uma nova evitam o surgimento da o Prêmio Paulo Gontijo na categoria Medicina
variante atípica de esclerose lateral amiotrófica, distrofia no zebrafish pelos trabalhos com a doença.

fotos 1. zfin/oregon zebrafish laboratories  2. eduardo cesar

1 2

80  _ especial 50 anos fapesp


Células-tronco do
cordão umbilical (em
azul) se fundem com
células de paciente
com distrofia muscular
(cinza). A fusão (última
imagem) é necessária
para a formação de
células musculares

O
gene VAP-B e a nova forma de esclerose
lateral amiotrófica continuam sendo es-
tudados até hoje pela equipe de Mayana
– e resultados interessantes continuam surgindo.
No ano passado, o mesmo grupo da USP, em co-
laboração com colegas brasileiros e estrangeiros
de centros de estudos norte-americanos, encon-
trou uma pista do mecanismo que parece estar
envolvido na destruição dos neurônios motores
dos doentes. Os cientistas conseguiram gerar
neurônios motores de pacientes com ELA8 e
constataram que os níveis da proteína VAP-B se
encontravam mais reduzidos nesse tipo de célu-
la. “Foi a primeira vez que isso foi feito com essa
forma hereditária de esclerose lateral amiotró-
fica”, diz Mayana, que publicou um artigo com
os resultados do experimento em junho do ano
passado na revista científica Human Molecular
Genetics. Os neurônios motores foram derivados
in vitro de células-tronco de pluripotência indu-
zida (iPSC, na sigla em inglês) que, por sua vez,
haviam sido geradas a partir de um tipo de célula
da pele, os fibroblastos, de pacientes com a do-
ença e comparados com seus parentes normais.

Spoan e golden retriever


Em 2005, num feito cada vez mais difícil de ser
obtido na pesquisa genética, uma equipe do cen-
tro e do Hospital das Clínicas da USP descobriu logia, à revista Pesquisa FAPESP. “Pudemos ver
uma nova doença neurodegenerativa, batizada a evolução da doença. Com o tempo, as pessoas
de síndrome Spoan (em inglês, o nome significa se fecham como uma flor.”
spastic paraplegia, optic atrophy and neuropathy), Sem cura, a doença em si não é fatal e mantém
numa pequena cidade do interior do Rio Grande intacta a capacidade cognitiva dos doentes. Não
do Norte, Serrinha dos Pintos, onde há muitos provoca retardo mental, dor ou surdez. Mas seus
casamentos entre pessoas aparentadas. Assim efeitos sobre a qualidade de vida dos afetados,
que tiveram certeza de que se tratava de uma que se tornam deficientes físicos, são devasta-
condição clínica inédita na literatura científica, dores – sobretudo em populações rurais e caren-
originada por uma mutação genética que se ma- tes de serviços de saúde como a de Serrinha dos
nifesta devido a casamentos consanguíneos entre Pintos. Antes do trabalho dos pesquisadores, os
fotos 2009 Jazedje et al; licensee BioMed Central Ltd.

primos, os pesquisadores da USP iniciaram um moradores locais creditavam a origem da doença


trabalho de divulgação sobre a patologia e noções a uma sífilis hereditária que teria se espalhado
de genética para os 4.300 habitantes do municí- pelo sangue da família por meio de um ancestral
pio potiguar. A descrição da patologia até então mulherengo. Os pés entortam para fora e a cabe-
desconhecida saiu na revista americana Annals ça cai e os doentes acabam em cadeiras de rodas.
of Neurology. “Examinamos pacientes de várias Ainda não se sabe em qual gene está a mutação
idades com a síndrome, dos 10 aos 63 anos”, afir- que causa a doença. Mas os cientistas analisaram
mou, na ocasião, a bióloga Silvana Santos, princi- amostras de DNA de dezenas de familiares que
pal responsável pela descoberta da inédita pato- moram na cidade, entre doentes e sadios, e os re-

pESQUISA FAPESP maio de 2012  _ 81


sultados dos estudos indicam que o gene da Spo- centemente, Ringo teve um câncer de próstata,
an se encontra numa região do cromossomo 11. O que não guarda relação com a falta de distrofi-
problema é que, sete anos depois da descoberta da na e é algo normal para um animal da sua ida-
nova doença, os esforços ainda não resultaram na de. Suflair também não manifesta a distrofia.
localização do gene responsável pela síndrome. Apenas puxa um pouco as patas traseiras. Seus
Notícias mais animadoras vieram de um es- irmãos não tiveram a mesma sorte: morreram
tudo recente com uma dupla de cachorros da dias após nascer ou acabaram desenvolvendo
raça golden retriever, Ringo, de 9 anos, e seu fi- distrofia muscular de forma severa.
lho Suflair, de 6 anos. Os cães parecem carregar Num experimento feito em colaboração com
genes ou mecanismos protetores que neutrali- o laboratório de Sergio Verjovski-Almeida, do
zam total ou parcialmente os efeitos negativos Instituto de Química da USP, os pesquisadores
da mutação causadora da distrofia muscular. A viram que alguns genes dos cães assintomáticos
dupla de animais tem a alteração genética as- eram menos expressos (ativados) que os dos ani-
sociada à doença, que os impede de produzir mais doentes.  “Nossa hipótese é de que a menor
distrofina, proteína essencial para a manuten- Na cadeira de rodas um expressão desses genes pode conferir alguma for-
ção da integridade dos músculos. No entanto, doente com a síndrome ma de proteção aos cães e talvez ser importante
surpreendentemente nenhum deles apresenta Spoan: nova doença para encontrarmos uma forma de combater a do-
neurodegenerativa foi
os sinais clássicos da distrofia, como dificuldade ença”, afima Mayana Zatz. “Estamos quebrando
descoberta em Serrinha
para andar e deglutir, e hoje já deveriam estar dos Pintos (RN) pela um paradigma e mostrando que nem sempre a
mortos se tivessem desenvolvido a doença. Re- equipe do CEGH da USP falta da proteína leva à distrofia. A questão ago-
ra é descobrir o que os genes protetores fazem.”
Nessa tarefa, o zebrafish, peixe modelo da biolo-
gia, também tem sido usado.

N
a década passada, ao lado dos estudos ge-
néticos mais tradicionais, Mayana dire-
cionou uma parte dos esforços do CEGH
para as pesquisas com células-tronco. “Por ser-
mos um Cepid, tivemos agilidade administativa e
financeira para entrar muito rapidamente nessa
área”, conta a geneticista, que também partici-
pou ativamente nos últimos anos na luta pela
regulamentação das pesquisas nesse setor no
Brasil. Não demorou muito tempo e os primeiros
resultados apareceram. Num trabalho de 2009,
pesquisadores do centro e também da equipe de
Sergio Verjovski-Almeida, do IQ-USP, levantaram
indícios de que as células-tronco presentes no
sangue do cordão umbilical e na parede do cor-
dão, tecidos que podem ser armazenados para o
caso de futuras necessidades terapêuticas, têm
perfis genéticos diferentes. Em 2008, a equipe
já havia demonstrado que o cordão é muito mais
rico que o sangue em células-tronco mesenqui-
mais, um tipo especial de células com potencial de
formar vários tecidos. A particularidade de cada
tipo pode afetar o uso médico dessas células caso
fique comprovado que as diferenças genéticas
representam uma redução em sua versatilidade.
Em abril do ano passado, biólogos do CEGH,
num trabalho coordenado por Oswaldo Keith Oka-
moto, e neurocientistas da Universidade Federal
de São Paulo (Unifesp) publicaram um estudo na
versão da revista científica Stem Cell Reviews and
Reports mostrando que, em ratos com Parkinson
induzido, a presença de fibroblastos humanos anu-
la os possíveis efeitos positivos de um implante de
eduardo cesar

células-tronco mesenquimais, obtidas do tecido


do cordão umbilical de recém-nascidos.

82  _ especial 50 anos fapesp


projeto 80+ qualidade de vida. Um banco de dados com o ge-
“Quando administramos apenas as células-tronco, noma dos octogenários está sendo constituído no
os ratos melhoraram dos sintomas da doença”, CEGH. Amostras de DNA de 400 octogenários
diz Mayana. “Mas, quando injetamos também os sadios já foram recolhidas e serão confrontadas
fibroblastos, os efeitos benéficos desapareceram com o material genético de outras mil pessoas
e houve até uma piora. É possível que muitos saudáveis e doentes com mais de 60 anos. Com
resultados ruins em trabalhos científicos com essa abordagem, Mayana espera identificar, por
terapias celulares se devam a esse tipo de conta- exemplo, mutações em genes que possam auxi-
minação.” Os fibroblastos são um tipo de célula liar os médicos nos prognósticos sobre o futuro
da pele extremamente parecido com algumas de um paciente.
células-tronco, mas que tem propriedades total- Se ficar, por exemplo, comprovado que todos
mente diferentes. Eles são frequentemente usados ou boa parte dos octogenários saudáveis têm uma
como fontes de células-tronco de pluripotência determinada alteração genética, que se mostrou
induzida (iPSC), que têm propriedades parecidas inócua ou de efeito desprezível a longo prazo,
com as das células-tronco embrionárias. não há por que um sexagenário ou uma pessoa
Além de representar um avanço no conheci- mais jovem sadio ficar alarmado se essa mesma
mento básico sobre os eventuais benefícios das mutação for detectada nele. Provavelmente, a al-
terapias celulares num órgão tão complexo e de- teração não vai ser deletéria para esse indivíduo,
licado como o cérebro, o resultado assim como também não o foi para o de 80 anos. “A
do trabalho serviu de alerta para tecnologia de sequenciar um genoma está ficando
os familiares de pessoas com Par­ cada vez mais barata”, comenta Mayana, que tem
kinson. Não há, em nenhum país como parceiras na iniciativa Maria Lucia Lebrão
do mundo, tratamento oficialmen- e Yeda Duarte, da Faculdade de Saúde Pública da
te aprovado à base de células-tron- USP, especialistas em envelhecimento. “Esse bara-
co para combater essa ou outras teamento vai permitir que analisemos um grande
doenças neurodegenerativas. “É número de amostras.” O projeto 80+ também vai
preciso olhar com cuidado as pes- analisar a atividade cerebral de pessoas com mais
quisas com células-tronco e não de 60 anos por meio de exames de ressonância
fazer falsas promessas de cura”, magnética numa parceria com o Instituto Israelita
afirmou outro autor do artigo, o de Ensino e Pesquisa Albert Einstein. n
neurocientista Esper Cavalheiro,
da Unifesp, que encabeça os tra-
balhos do Instituto Nacional de
Neurociência Translacional, um Centro vai O Projeto

projeto conjunto da FAPESP e do


Ministério da Ciência, Tecnolo-
mapear genoma Centro de Estudos do Genoma Humano - nº 1998/14254-2
(2000-2012)

gia e Inovação (MCTI). “Antes de de octogenários Modalidade


Programa Centros de Pesquisa (Cepid)
propormos terapias, precisamos
entender todo o mecanismo de em busca de genes Coordenadora
Mayana Zatz – IB-USP
diferenciação das células-tronco
nos diversos tecidos do organismo que favorecem um Investimento
R$ 34.412.866,53
e compreender como o cérebro
faz para ‘conversar’ e direcionar a
envelhecimento
artigos científicos
atuação dessas células.” Até hoje mais saudável
as únicas doenças que contam com 1. NIGRO, V. et al. Autosomal recessive limbgirdle muscular
dystrophy, LGMD2F, is caused by a mutation. Nature
um tratamento à base de células- Genetics. v. 14, n. 2, p. 195-98, 1996.
-tronco são as do sangue, em espe-
2. NISHIMUARA, A.L. et al. A mutation in the vesicle-
cial os cânceres (leucemias). Contra esse tipo de trafficking protein VAPB causes late-onset spinal muscular
problema, os médicos lançam mão, há décadas, atrophy and amyotrophic lateral sclerosis. Am. J. Human
do transplante de medula óssea, rica em células- Genet. v. 75, n. 5, p. 822-31, 2004.

-tronco hematopoéticas, precursoras do sangue. 3. SECCO, M. et al. Multipotent stem cells from umbilical cord:
Parkinson, alias, é uma das doenças que podem cord is richer than blood! Stem Cells. v. 26, n. 1, p. 146-50, 2008.

ser beneficiadas pelo mais recente projeto do


CEGH. Trata-se da iniciativa 80+, que começou de nosso arquivo
no ano passado e tem como objetivo sequenciar
A fraqueza das células-tronco
o genoma completo de mil pessoas com mais 80 Edição nº 183 – maio 2011
anos que estejam bem de saúde a fim de even­
Spoan: uma nova doença
tualmente descobrir genes ou outros fatores fa- Edição nº 113 – julho 2005
voráveis ao processo de envelhecimento com boa

pESQUISA FAPESP maio de 2012  _ 83


léo ramos

84  _ especial 50 anos fapesp


_ câncer de mama

Coadjuvantes
inesperados
Células normais, como os fibroblastos,
podem facilitar a evolução de tumores
e dificultar o tratamento

Carlos Fioravanti e Salvador Nogueira

H
á mais de um século, médicos e pesquisadores têm
prestado uma imensa atenção nos tumores para
diagnosticar, tratar e entender a origem e o pos-
sível desenvolvimento de dezenas de formas de
câncer. As células tumorais continuam sendo os
atores principais do câncer, mas há alguns anos o olhar está
se ampliando e os coadjuvantes – células normais que podem
beneficiar o desenvolvimento de tumores – começam a ga-
nhar atenção, dando pistas sobre por que os tumores evoluem
de modo diferente ou por que os tratamentos funcionam de
modo distinto nas pessoas.
Em São Paulo, equipes de duas instituições – Faculdade
de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) e Hospi-
tal A.C. Camargo – estão verificando que células de suporte
de vários tecidos, conhecidas como fibroblastos, podem ser
encontradas no microambiente tumoral e produzir fatores
que favorecem o crescimento desses tumores. “O microam-
biente tumoral pode ser decisivo na evolução do tumor”, diz
Maria Aparecida Koike Folgueira, pesquisadora da USP. O
Mulheres mais jovens,
às vezes com câncer
microambiente é constituído pelas chamadas células estro-
de mama: causas mais, principalmente fibroblastos, e pela matriz extracelular,
ainda incertas que se encontram dentro ou ao redor do tumor. Em um dos

pESQUISA FAPESP maio de 2012  _ 85


experimentos, as pesquisadoras da USP Maria anos. Elas observaram que mutações de BRCA1
Mitzi Brentani e Maria Aparecida avaliaram o e BRCA2 são mais frequentemente encontra-
perfil de expressão gênica por meio da cultura das em pacientes jovens que referem história
de células cancerosas e fibroblastos obtidos de familiar de câncer, mas que a mutação de TP53
tumor mamário e linfonodo (centro de produ- é pouco frequente. Em uma extensão do estu-
ção de células de defesa) comprometido pela do, em conjunto com o Instituto do Câncer do
doença. Elas observaram uma influência recí- Estado de São Paulo (Icesp), Maria Aparecida
proca entre as células, que resulta na alteração está tentando identificar se hábitos, fatores am-
da expressão gênica tanto de fibroblastos quan- bientais e mutações somáticas (verificadas ape-
to de células cancerosas. Verificaram, também, nas no tumor e não hereditárias) poderiam ser
que os fibroblastos aumentam a proliferação e a outros fatores implicados no desenvolvimento
invasividade das células do câncer de mama. As da doen­ça em jovens.
equipes paulistas investem agora no sequencia-

O
mento dos RNA mensageiros dos fibroblastos utro braço da pesquisa tenta avaliar os
para desvendar alterações que possam ocorrer efeitos hormonais no câncer de mama. Os
nestas células encontradas no microambiente hormônios sexuais, estrógeno e progeste-
e que possam estar envolvidas no prognóstico rona, agem como fatores promotores do câncer
da doença. Em colaboração com o Hospital do de mama, ao estimular a proliferação das célu-
Câncer de Barretos, avaliam também qual las mamárias. Outro hormônio,
seria a influência das células estromais na a vitamina D, que é produzida
resposta à quimioterapia. na pele, a partir de 7-de-hidro-
colesterol, pela ação de raios

E
m outra linha de trabalho, investigam UVB, pode ter ação antiproli-
por que o câncer de mama, doença que ferativa. Este efeito, entretan-
se manifesta principalmente em mulhe- Marcadores to, foi demonstrado apenas em
res idosas, pode em certos casos se apresen- estudos in vitro com linhagens
tar em mulheres jovens. O câncer, por ser, genéticos celulares expostas a concentra-
entre outras causas, o resultado do acúmulo ções elevadas do hormônio, as
de mutações genéticas que fazem as células
se proliferarem sem controle, está normal-
poderiam quais podem ter efeitos colate-
rais indesejáveis in vivo, como
mente ligado ao envelhecimento, que por
sua vez está ligado ao acúmulo de defeitos avaliar hipercalcemia. Em vista dessas
evidências, o grupo da USP, em
na molécula de DNA. parceria com o Instituto Bra-
Chamados de supressores de tumor, os previamente sileiro de Controle do Câncer
genes BRCA1 e BRCA2 participam do re- (IBCC), está estudando a ação
paro do DNA lesado. Quando apresentam a eficácia da do calcitriol, uma forma ativa
defeitos, esses genes respondem por até 10% da vitamina D, em concentra-
dos tumores de mama e 15% dos ovarianos. quimioterapia ções não associadas a efeitos
Outro gene, denominado TP53, o chamado colaterais, na proliferação e ex-
guardião do genoma, monitora a prolifera- pressão gênica do tumor.
ção celular e a interrompe quando detecta
algo anormal, ao menos até que o sistema de hormônios e vitaminas
reparo de DNA possa entrar em ação e fazer Após verificar que pacientes
as correções de rumo necessárias (ver ilus- com câncer de mama apresen-
tração). Mutações neste gene podem levar tam tendência à insuficiência
a falhas em seu funcionamento e originar ou deficiência de vitamina D,
vários tipos de câncer. as pesquisadoras analisaram a
“Os fatores que influenciam o surgimen- ação da suplementação de cal-
to do tumor de mama em idade precoce ainda citriol por curto período (um mês) antes da ci-
são pouco conhecidos”, comenta Maria Apa- rurgia em mulheres com câncer de mama que já
recida. “Estamos examinando as mutações e o haviam entrado em menopausa. Nesse período
perfil molecular do tumor, para ver se ele tem a doença não progrediu – o tumor não cresceu.
alguma característica que o diferencie e ajude Entretanto, verificaram, a análise do tumor co-
a explicar seu surgimento mais cedo.” Dirce letado antes e após esta suplementação indica
Carraro e Maria Isabel Achatz, do Hospital A. que a ação da vitamina D na expressão gênica é
C. Camargo, e Maria Aparecida e Maria Mitzi muito sutil. O grupo avalia agora, em estudos de
Brentani, da USP, estão avaliando as mutações xenoenxerto (implante tumoral) em animais, se
nos genes BRCA1, BRCA2 e TP53 em mulheres a injeção intratumoral de vitamina D poderia ter
que tiveram câncer de mama entre os 20 e os 35 efeito antiproliferativo.

86  _ especial 50 anos fapesp


Controle de qualidade Os projetos

1. Marcadores moleculares
da resposta à quimioterapia
O gene p53 controla a qualidade da neoadjuvante do câncer de
cadeia de DNA. Quando detecta um erro, mama – nº 2001/00146-8
(2001-2004)
interrompe a replicação do DNA e ativa a
Sentido da 2. Expressão gênica de
eliminação da parte defeituosa replicação fibroblastos associados a
carcinomas de mama
classificados em subtipos de
acordo com receptores de
Polimerase estrógeno e progesterona e
RNA C-ERBB2 – nº 2009/10088-7
(2009-2012)
3. Sinalização heterotípica
Religação entre células epiteliais
tumorais e fibroblastos no
carcinoma de mama –
Eliminação nº 2004/04607-8
Polimerase Sentido da p53
não é ativada (2005-2008)
RNA vazio replicação
Modalidades
1. Linha regular de auxílio a
projeto de pesquisa
2. e 3. Projeto Temático
Polimerase
DNA Coordenadora
Maria Mitzi Brentani –
Eliminação p53 Faculdade de Medicina
da USP
Investimento
Quando o p53 tem um defeito, o erro não é
Polimerase 1. R$ 515.088,21
DNA eliminado e a cadeia continua a ser replicada, 2. R$ 1.492.318,72
o que leva à formação de células defeituosas 3. R$ 755.501,06

Artigos científicos

1. BARROS FILHO, M. C. et al.


Um dos trabalhos de destaque do grupo é a tes respondem da mesma maneira. Enquanto a Gene trio signatures as
busca por marcadores de resposta à quimiote- maioria realmente apresenta uma redução da molecular markers to predict
rapia. As equipes de São Paulo acreditam que massa tumoral pelo uso da doxorrubicina – o response to doxorubicin
cyclophosphamide
poderiam avaliar previamente a eficácia da qui- principal componente do coquetel usado na neoadjuvant chemotherapy
mioterapia por meio de marcadores genéticos. A quimioterapia –, cerca de 20% parecem não in breast cancer patients.
busca por marcadores moleculares de resposta ao reagir ao procedimento. E o mais dramático: Braz J Med Biol Res. v.43,
n. 12, p. 1225-31, 2010.
tratamento se tornou mais fácil com os chamados não há como saber de antemão para quem o
chips – também denominados de microarranjos tratamento seria benéfico. 2. FOLGUEIRA, M. A. et al.
Gene expression profile
– de DNA, que permitem a análise da expressão associated with response to
de muitos genes simultaneamente. teste de menor custo doxorubicin-based therapy in
Dois anos atrás, Maria Mitzi e Maria Aparecida breast cancer. Clin Cancer Res.

E
v. 11, n. 20, p. 7434-43, 2005.
m 2005, com os chips de DNA desenvolvi- demonstraram que era possível substituir os mi-
dos pelo Instituto Ludwig de Pesquisa so- croarranjos por uma técnica mais barata, chama- 3. ROZENCHAN, P.B. et al.
Reciprocal changes in gene
bre Câncer, Maria Mitzi e Maria Aparecida da PCR (sigla para polimerase chain-reaction, ou expression profiles of
testaram 4.608 genes de uma vez só em amos- reação em cadeia da polimerase), que amplifica o cocultured breast epithelial
tras de RNA extraídos de tumores de mama de sinal de genes ativados por meio da multiplicação cells and primary fibroblasts.
Int J Cancer. v. 125, n. 12,
51 mulheres entre 51 e 67 anos, em busca de di- das moléculas de DNA, e apresenta um custo me- p. 2767-77, 2009.
ferenças que pudessem indicar algo novo sobre nor que os chips. Entretanto, neste estudo ainda
a evolução da doença. Em meio a todos esses utilizaram tumores frescos congelados.
De nosso arquivo
dados, encontraram um conjunto de três genes Nos hospitais, porém, a amostra do câncer é
– PRSS11, CLPTM1 e MTSS1 – que poderiam se- colocada em parafina para então ser encami- Os primeiros sinais de alerta
lecionar pacientes responsivas ou não ao trata- nhada para exames. Portanto, o próximo passo Edição nº 115 –
setembro de 2005
mento quimioterápico, um dos grandes problemas é demonstrar que é possível obter os mesmos
enfrentados pelos oncologistas. Muitos tumores, resultados quando o RNA é extraído de material Mutação em gene pode
definir prognóstico
nos exames, parecem perfeitamente tratáveis. parafinado. Se conseguirem, será uma aplicação
infográfico  tiago cirillo

do câncer de mama
Uma das estratégias é começar pela quimio- médica de um conhecimento gerado em labora- Edição nº 26 –
terapia, para reduzir o tamanho da massa a ser tório para detectar e tratar com mais precisão novembro de 1997

extraída cirurgicamente, e depois partir para a uma doença complexa em seus detalhes e suas
operação em si. Contudo, nem todas as pacien- particularidades. n

pESQUISA FAPESP maio de 2012  _ 87


bio
logia
ambiente O fôlego de uma teoria 90  evolução A Galápagos brasileira 94  biologia

evolutiva Os pioneiros da América do Sul 98   ecologia Jardineiras fiéis 100   aves

brasileiras Refrigerador natural 104  biodiversidade São Paulo na Amazônia 106

detalhe de inflorescência de girassol/eduardo césar


Fontes de fonte  adaptado de vanzolini & williams, 1970 e Haffer, 2002  ilustração abiuro

diversidade
Áreas de especiação

Refúgios (proposta do zoólogo brasileiro)

Refúgios (proposta do geólogo alemão)

90  _ especial 50 anos fapesp


_ A MBIENTE

O fôlego de
uma teoria
Um lagarto da Amazônia estudado por
Vanzolini reforçou a proposta de geólogo
alemão sobre refúgios florestais

Eduardo Geraque

E
laborada há mais de 40 anos pelo geólogo alemão
Jürgen Haffer e indiretamente pelo zoólogo brasilei-
ro e sambista Paulo Vanzolini, a Teoria dos Refúgios,
que associa a diversidade biológica na Amazônia aos
períodos de clima seco e isolamento geográfico,  aca-
bou declarada como morta várias vezes ao longo destes anos
por vários outros pesquisadores. Mas, como diz a música do
próprio Vanzolini, ela deu a volta por cima e, com um certo
grau de atualização, é considerada válida por vários grupos de
pesquisa, não apenas para explicar o surgimento de espécies
na Amazônia, mas também na floresta atlântica, onde tem
sido aplicada.
Instalado em sua poltrona favorita na sala de seu sobrado
em uma antiga vila do bairro da Aclimação, zona sul de São
Paulo, Vanzolini, aos 88 anos, afirma que não fez teoria ne-
nhuma: “Era apenas um trabalho com uma espécie de bicho.
O que fiz acabou sendo trazer um exemplo prático, daquilo
que o Haffer havia proposto do ponto de vista teórico. Nada

pESQUISA FAPESP maio de 2012  _ 91


mais é do que um modelo [conceitual], das e razoavelmente regionais. É claro
que pode ser replicado, inclusive, para que extensas áreas de floresta pluvial,
outras regiões”. Em, 1970, um ano depois que é muito antiga, sempre existiram
de a revista Science ter publicado o artigo Teoria explica na Amazônia”.
de Haffer propondo a teoria, Vanzolini Nos últimos anos, estudos realizados
e o pesquisador norte-americano Er- a grande por grupos de pesquisa de São Paulo
nest Williams publicaram um estudo de sobre o surgimento de novas espécies
cerca de 300 páginas sobre o surgimen-
biodiversidade na mata atlântica ajudaram a reforçar
to de uma espécie de lagarto do gênero da floresta a importância do modelo teórico pro-
Anolis – e em momento algum usaram a posto no final dos anos 1960. Pelo me-
expressão Teoria dos Refúgios. amazônica nos a ideia de Vanzolini e do seu colega
Geólogo que havia estudado a distri- alemão ainda pode ser considerada vá-
buição geográfica das aves amazônicas, como resultado lida ou, no mínimo, é interessante para
Haffer teorizava que as mudanças na suscitar o debate.
vegetação seguiram reversões climáticas
de instabilidades Depois de trocarem correspondência
em virtude dos ciclos naturais duran- climáticas há sobre seus estudos por volta de 1970, eles
te algum período da história da Terra, ficaram amigos. Vanzolini gosta de dizer
causando fragmentação dos centros de milhões de anos que Haffer mostrou generosidade, além
origem das espécies e o isolamento de de ser um cientista de primeiro time. “E,
parte das respectivas biotas em refúgios como bom alemão, gostava muito de cer-
ecológicos separados entre si. Na prá- veja”, diz. Vanzolini conta que recebeu o
tica, o implacável curso das mudanças artigo do cientista alemão pelo correio
climáticas teria pulverizado zonas com quando seu artigo com Williams estava
floresta por áreas da Amazônia. Essas pronto. “Ernest, acharam que passaram a
manchas, separadas por zonas sem ve- perna na gente”, disse Vanzolini, quando
getação serviram de palco para novas es- leu a publicação. Em pouco tempo, Van-
pécies e subespécies se desenvolverem. zolini fez contato com Haffer, que ime-
É provável que três processos tenham diatamente abandonou uma pesquisa de
ocorrido nestas regiões: a especiação ou campo na África do Sul e veio ao Brasil
formação de novas espécies, a extinção para conhecer em detalhes os refúgios
de certas espécies e a adaptação de ou- dos lagartos de Vanzolini.
tras, que teriam passado sem mudanças

N
genéticas importantes pelas alterações ovos tempos e estudos seguem
do ecossistema. mais ou menos o mesmo cami-
nho. Em um artigo sobre saúvas
Manchas menos definidas na Amazônia publicado em 2008 na re-
Haffer, em uma entrevista que me con- vista PLoS One, cientistas brasileiros e
cedeu em 2005 para uma reportagem norte-americanos propuseram uma es-
no jornal Folha de S.Paulo, defendeu a pécie de reconsideração da teoria dos
Teoria dos Refúgios, mas não deixou refúgios. Na Amazônia, segundo Mau-
de propor algumas correções de rota rício Bacci Jr., bioquímico da Univer-
para o seu trabalho: “É provável que o sidade Estadual Paulista em Rio Claro,
tamanho dessas manchas de floresta a grande explosão de diversidade das
úmida durante os períodos secos fosse formigas ocorreu mesmo com a barreira
maior e bem menos definido do que é geográfica imposta no momento em que
mostrado em muitos mapas que ilustram os rios da região estavam em formação.
a localização dos refúgios na floresta Segundo ele, a superdiversificação de
pluvial tropical”. Haffer morreu em 2010, espécies de saúvas seria algo recente,
aos 77 anos. ocorrida por volta de 2 milhões de anos
Uma das críticas feitas ao longo dos atrás. Entre os rios da região, é possível
anos contra as propostas de Haffer e de que os ninhos de saúva tenham se des-
Vanzolini é exatamente sobre a locali- locado boiando, sobre plantas.
zação dessas tais áreas secas da Ama- As análises genéticas indicaram que,
zônia, que nunca teriam sido realmen- Anolis chrysolepis, além da Teoria dos Refúgios, outro pro-
te registradas. Haffer diz que, ao longo espécie em cesso importante – e anterior – de mu-
que Vanzolini
dos anos, muitas interpretações erradas dança na paisagem amazônica foi de-
se baseou para
foram feitas sobre a ideia dos refúgios: entender a terminante para a diversificação das
“Nossos dados indicam alterações cli- especiação na formigas na região. Há 15 milhões de
máticas pelo menos em áreas localiza- Amazônia anos, antes de o rio Amazonas se for-

92  _ especial 50 anos fapesp


centro, novas áreas secas surgiram. Elas
passaram a ficar florestadas por mais
tempo e, neste caso, a colonização por
parte das espécies também começou a
ocorrer nessas regiões. É mais ou menos
como Vanzolini e Haffer pensaram para
a questão da especiação que ocorreu na
região amazônica.
Independentemente de o modelo pro-
posto ser 100% válido, está claro que de-
finições como fragmentos, isolamentos,
alterações climáticas e estabilidade am-
biental estão sempre envolvidas com
o desenvolvimento de novas espécies.
O que significa dizer que o debate le-
vantado pelos refúgios passa a ser mais
atual do que nunca. Como as atividades
antrópicas estão aumentando a velocida-
de das mudanças climáticas e, também,
diminuindo a área florestada em várias
regiões do mundo, é provável que exista
um processo, até certo ponto oculto, con-
Aos 88 anos, tra a especiação também em curso. Os
Paulo Vanzolini resultados disso ainda são imprevisíveis.
está pessimista
Esses temas como mudança climáti-
quanto à
preservação da ca e extinção da biodiversidade deixam
Amazônia Vanzolini bastante pessimista com a pre-
servação do ambiente amazônico, que
mar, o aumento do nível dos oceanos fez A hipótese dos refúgios para a flores- ele conheceu tão bem em expedições
as águas marinhas invadirem a região, ta atlântica ganhou forma com base na quase anuais, durante décadas – cada
o que, para os cientistas, teria iniciado avaliação de dados genéticos de duas vez ele ficava por lá no mínimo três me-
o isolamento de certas áreas amazôni- espécies de rãs. O estudo de filogeogra- ses. “A Amazônia acabou”, diz ele. “Tem
cas, que viraram ver- fia (mapeamento das muita soja e gado por lá. O povo amazô-
dadeiras ilhas. A frag- diversidades genéti- nico, que precisa sobreviver, também é
mentação do ambien- cas de uma espécie o maior interessado em que essas ati-
te, depois, teria então ao longo do tempo) vidades econômicas entrem cada vez
sido realçada pelos indica que realmen- mais por lá.” n
refúgios. De acordo te algumas áreas da
com esse trabalho, a Modelo proposto mata permaneceram
Artigos científicos
grande diversificação florestadas e mais ou
de espécies de formi-
também é menos estáveis do 1. HAFFER, J. e PRANCE, G. T. Impulsos climáticos da
gas ocorreu entre 14 válido para a ponto vista climá- evolução na Amazônia durante o Cenozoico: sobre
milhões e 8 milhões tico por milhões de a Teoria dos Refúgios da diferenciação biótica,

de anos atrás. evolução anos. Nesses locais,


Estudos Avançados. v. 16, n. 46, 2002.

O modelo de áreas não houve grandes 2. SCHULTZ T. R. e BRADY, S.G. Major evolutionary

isoladas durante certo observada em secas, nem épocas de


transitions in ant agriculture. Proceedings of the
National Academy of Sciences of the USA. Early
desenho  estraído do artigo vanzolini & williams, 1970 foto  léo ramos

tempo proposto para frio excessivo. O nível


a Amazônia, guarda-
outras regiões, do oceano, também,
Edition (March 24), 2008.

3. VANZOLINI, P. E. e WILLIAMS, E. E. South American


das as devidas propor­ como a mata não registrou grandes anoles: the geographic differentiation and evolution
ções, pode ajudar a oscilações. of the Anolis chrysolepis species group (Sauria,

explicar muito o por- atlântica Ao longo dos úl-


Iguanidae). Arq. Zool. v.19, n. 1-2, p. 1-176, 1970.

quê de a mata atlân- timos 12 milhões de


tica ser tão diversifi- anos, vários refúgios De nosso arquivo
cada. A ecóloga Cinthia Brasileiro, da existiram em regiões geográficas dife- A obra de uma vida
Universidade Federal de São Paulo (Uni- rentes do litoral brasileiro, portanto. Edição nº 175 – setembro de 2010
fesp), defende que vários centros de es- No caso do litoral paulista, é provável Refúgios abalados
peciação, verdadeiros núcleos de fabri- que uma área tenha se formado entre Edição nº 129 – novembro de 2006
car espécies, devem ter existido entre a São Sebastião e Cananeia. Quando, por Um tesouro à beira do Velho Chico
Bahia e São Paulo. exemplo, o mar desceu ao redor desse Edição nº 57 – setembro de 2000

pESQUISA FAPESP maio de 2012  _ 93


_ e volução

A Galápagos brasileira
Os lagartos das dunas do São Francisco – alguns parecendo cobras
– expressam histórias evolutivas próprias

texto Carlos Fioravanti  fotos Miguel Rodrigues

T
rinta e dois anos depois da primeira em que o rio – ali, com 200 a 300 metros de
expedição às dunas do rio São Fran- largura – as separou.
cisco, o biólogo Miguel Trefaut Ur- Da primeira viagem já trouxe uma espécie no-
bano Rodrigues, da Universidade de va de lagarto, hoje chamada de Eurolophosaurus
São Paulo (USP), ainda se surpreen- amathites, que só vive ali. Em outras expedições,
de com “aquela fauna maluca”, como ele diz. ele e sua equipe encontraram animais que ainda
Em 1980, aos 27 anos, ainda mais magro que ho- não haviam sido descritos, como uma cobra de
je, ele percorreu os arredores de Santo Inácio, duas cabeças e uma cobra subterrânea, ambas
município então com 200 moradores no norte com espécies-irmãs do outro lado do rio. No Saa­
da Bahia, sob um sol impiedoso, e se admirou ra brasileiro, com 7 mil quilômetros quadrados
com a diversidade de animais semelhantes: as ao longo de 120 quilômetros do rio, já identifi-
espécies irmãs, com pequenas diferenças de caram quase 30 espécies e oito gêneros novos de
aparência ou constituição genética. Os bichos lagartos exclusivos (endêmicos): é mais do que
quase iguais entre si viviam nas dunas de cada nos desertos norte-americanos ou africanos. Ali
lado do rio, depois de terem se diferenciado a – e só ali – vive também um roedor de 20 cen-
partir de um ancestral comum e seguido cami- tímetros, o rabo-de-facho, e um bacurau de 20
nhos evolutivos próprios a partir do momento centímetros de altura igualmente adaptados às

94  _ especial 50 anos fapesp


dunas do São Francisco. As dunas exibem uma uma evolução de novo, porque os dedos que rea-
diversidade biológica comparável ao arquipélago parecem não são exatamente iguais”, diz Tiana.
de Galápagos, em cuja fauna Darwin se baseou Ela, Rodrigues e colegas da Universidade Yale,
para elaborar a teoria da evolução dos seres vivos. dos Estados Unidos, apresentaram essas conclu-
Nos últimos anos, Rodrigues e sua equipe de sões em 2006 na revista Evolution. Receberam
20 pesquisadores estão elucidando os mecanis- tantas críticas, que tiveram de contra-argumentar,
mos genéticos e evolutivos que nortearam a di- em 2010, também na Evolution, acalmando o de-
ferenciação de lagartos de no máximo 5 centíme- bate. “Com base nas ferramentas de análise es-
tros de comprimento. As espécies mais antigas de tatística que desenvolvemos”, diz Tiana, “grupos
um mesmo gênero taxonômico de lagartos ainda de outros países começaram a mostrar reversão
parecem lagartos, com o corpo curto e membros, de asas em insetos e em outros animais”.
digamos, normais. As espécies que começaram a Enquanto o debate corria, os biólogos da USP
se formar nos últimos milhares de anos, porém, verificaram que em pelo menos dois gêneros de
foram perdendo dedos, os membros encolheram lagartos exclusivos das dunas, Calyptommatus e
ou desapareceram e o corpo se alongou, a ponto Nothobachia, a perda de membros é irreversível:
de algumas espécies de lagartos parecerem uma os animais guardam apenas minúsculos apên-
cobra apenas com pequenos apêndices do que te- dices do que já foram membros anteriores e se
riam sido as patas dianteiras em seus ancestrais. parecem muito com cobras. “Não sabemos por
Os biólogos acreditavam que a perda de es- que só as Bachias conseguem reverter a perda de
truturas complexas como os membros não tinha membros”, reconhece Tiana.
volta – é a chamada lei da irreversibilidade da Juliana Rossito, pesquisadora do grupo de Ro-
evolução ou Lei de Dollo, em homenagem ao na- drigues, examinou embriões e adultos de Calyp-
turalista belga Louis Dollo, que a apresentou em tommatus em vários estágios de desenvolvimento
Seres das areias 1890. No entanto, uma das linhagens de lagartos para entender como a perda de membros poderia
do norte da Bahia, com membros reduzidos mostrou que a volta é ter ocorrido. Ela observou que o fêmur começa a
com e sem patas
possível. Em colaboração com Rodrigues, Tiana se formar no embrião, entre o quinto e o décimo
(da esquerda para a
direita): Tropidurus Kohlsdorf, com sua equipe da USP de Ribeirão sexto dia, mas depois desaparece. Suas análises in-
amathites, de Santo Preto, estudou 15 espécies de lagartos do gênero dicaram que os lagartos desse gênero estão pron-
Inácio; Nothobachia Bachia, que vivem por toda a América do Sul; as tos para nascer em um mês – e não seis, como os
ablephara e
mais antigas tinham membros com cinco dedos e das espécies mais próximas –, talvez por efeito da
Calyptommatus
leiolepis, de Alagoado; as mais recentes, com quatro, três, dois – e nova- temperatura ou da escassez de água. “Por meio da
Tropidurus pinima, mente três. “Há uma reversão, já que a informa- seleção natural”, diz Rodrigues, “essa espécie en-
de Santo Inácio ção genética não se perdeu, mas é como se fosse controu uma forma de acelerar o desenvolvimento”.

pESQUISA FAPESP maio de 2012  _ 95


S
egundo ele, a redução de patas e o alon- entre os lagartos comparando 10 genes. Muitas
gamento do corpo podem ter surgido na vezes as análises de DNA indicam que as aná-
história evolutiva dos lagartos da família lises obtidas com base em caracteres externos
Gymnophtalmidae, com 45 gêneros, incluindo Ba- precisam ser revistas.
chia e Calyptommatus, como uma consequência Rodrigues e seu grupo de trabalho estão vendo
de adaptações que lhes permitiram evitar tem- como ambientes restritos podem limitar a for-
peraturas extremas. Desse processo resultaram mação de espécies novas, com características e
espécies que conseguem se enterrar, fugindo de hábitos únicos. Os bichos que vivem nas dunas
predadores, do frio ou do calor, que pode chegar são tão especializados que não sobrevivem – nem
a 50 graus sobre a areia. Estima-se que em toda a entram – na caatinga vizinha; os animais típicos
história dos lagartos essas transformações devem da caatinga, por sua vez, só entram marginal-
ter ocorrido pelo menos duas dezenas de vezes, mente nas dunas. Mesmo ali dentro os animais
favorecendo a origem de lagartos peculiares, às se especializaram em ambientes diferentes. Al-
vezes um tanto repugnantes, e um grupo de ani- gumas espécies de lagartos vivem apenas sobre
mais com fama e hábitos próprios – as serpentes. grupos de rochas e não atravessam as áreas de
Para entender como e por que os lagartos estão caatinga que separam os afloramentos rochosos.
se tornando capazes de viver enterrados em túneis
ou cavernas, Agustín Camacho filmou e analisou do outro lado do Atlântico
centenas de testes comparando a locomoção, a Rodrigues observou o mesmo fenômeno – popu-
capacidade de fuga e os hábitos alimentares de lações isoladas de Platysaurus, lagartos de outra
12 espécies de lagartos da família Gymnophtal- família, mas muito parecidos com os de um dos
midae em câmaras com areia em laboratório. “O grupos de Tropidurus, que também têm corpo
corpo alongado e a ausência de patas parecem fa- achatado e só vivem entre pedras – em Moçam-
vorecer o desempenho dos lagartos fossoriais, que bique, para onde foi pela primeira vez em 2007.
conseguem fugir de predadores mais rapidamente, Seu plano é voltar em 2013 e fazer um levanta-
se alimentam mais e se enterram mais facilmen- mento de lagartos e cobras de norte a sul do país,
te que os com patas”, ele concluiu. “Mas ainda não com outros biólogos brasileiros e moçambicanos.
é possível dizer qual o morfotipo mais adaptado Querem ver se as populações de lagartos desse
à vida na areia, porque mesmo as espécies com gênero na África teriam se originado na mesma
quatro patas são abundantes, sobrevivem bem e época que os do Nordeste brasileiro; se sim, po-
podem ser vistas às dezenas nas dunas.” Segun- deriam contar histórias paralelas de terras que
do ele, lagartos de desertos da Austrália viveram estiveram próximas há milhões de anos.
uma história evolutiva semelhante.
Camacho representa a segunda geração de bió-
logos na trilha dos bichos esquisitos das areias do
norte da Bahia. Ele estudou biologia na Andalu- Os lagartos da Bahia
zia, Espanha, mas “estava louco para vir para os
trópicos”, ele conta. Veio para um curso rápido pernambuco
piauí
sobre animais peçonhentos e lagartos em 2002
Toca da Cabocla
em São Paulo, voltou à Espanha, terminou o curso (Serra das Confusões)

e no final de 2003 se mudou para Salvador pa-


ra fazer o mestrado na Universidade Federal da
Bahia. Seu orientador, Pedro Rocha, tinha feito Alagoado
co
o doutorado sobre ecologia de lagartos das du- ncis
Fra
nas do São Francisco, orientado, por sua vez, por São
Rio
Rodrigues. No final de 2007, ele se mudou para
São Paulo e agora trabalha em seu doutorado em
um mezanino sobre a sala de Miguel Rodrigues. bahia
Rodrigues mantém o mesmo método de tra- Campo de dunas
Serra do Estreito

Calyptommatus
balho de quando começou estudar cobras e la- Xique-Xique Queimadas confusuionibus
gartos, há 40 anos, comparando características
Calyptommatus
externas como o número e a forma de escamas, Vacaria leiolepis
o comprimento do corpo e a forma dos olhos, Mocambo Ibiraba
Calyptommatus
do Vento Ilha do Gado Bravo
para reconhecer uma nova espécie e construir nicterus
a filogenia – a ordem de aparecimento de um Barra Lagoa de Itaparica
Calyptommatus
Gameleira do Assuruá
grupo de animais semelhantes, começando pe- sinebrachiatus
los mais antigos. Kátia Pellegrino, professora na Santo Inácio Nothobachia
Universidade Federal de São Paulo, se vale de ablephara

outra abordagem e começou a ver o parentesco

96  _ especial 50 anos fapesp


Os projetos

1. Estudos sobre a ecologia


e diferenciação da fauna
de répteis das dunas do
médio rio São Francisco
(Lepidosauromorpha,
squamata) –
nº 1996/03554-0
(1997-2002)
2. Sistemática e evolução
da herpetofauna neotropical
– nº 2003/10335-8
(2004-2011)
3. Filogeografia comparada,
filogenia, modelagem
paleoclimática e taxonomia
e répteis e anfíbios
neotropicais –
nº 2011/50146-6 (2012-2016)
Modalidade
1. 2. e 3. Projeto Temático
Coordenador
1. 2. e 3. Miguel Trefaut
Urbano Rodrigues – IB/USP
Investimento
As dunas em Santo Inácio: espaço único que abriga espécies-irmãs, com histórias evolutivas distintas
1. R$ 388.398,04
2. R$ 975.589,35
3. R$ 1.747.802,04

B
ichos parecidos, porém, podem ter histórias pírito Santo, antes consideradas próximas, não
bem diferentes. Em 2008, comparando tre- se mostraram mais tão próximas, uma tem 38 e Artigos científicos
chos do DNA de 10 populações de lagartos outra 40 cromossomos. 
1. KOHLSDORF T. e
do gênero Eurolophosaurus, José Carlos Passoni, Antoine Fouquet, francês que fez o pós-dou- WAGNER G. P. Evidence for
Maria Lúcia Benozzati e Rodrigues, todos da USP, torado com Rodrigues, concluiu que as florestas the reversibility of digit loss:
mostraram que uma das espécies, o Eurolopho- da Guiana foram um refúgio biológico importan- a phylogenetic study of limb
evolution in Bachia
saurus divaricatus, um lagarto de 25 centímetros te para a diferenciação da fauna amazônica nos (Gymnophthalmidae:
de comprimento que vive na margem esquerda últi­mos milhares de anos. Curiosamente, veio das Squamata). Evolution. v. 60,
do São Francisco, teria surgido há 5,5 milhões Guianas a primeira espécie de cobra que Rodri- n. 9, p. 1896-912, 2006.

de anos. Os habitantes da margem oposta seriam gues identificou, em 1978, quando ainda cursava 2. FOUQUET, A. et al.
Molecular phylogeny and
mais recentes, o E. nanuzae com 3,5 milhões de biologia em Paris (ele fez a graduação no exterior morphometric analyses
anos e o E. amathites com pelo menos 1,5 mi- e a pós-graduação no Brasil). A primeira espé- reveal deep divergence
lhão de anos. cie brasileira, em 1980. Foram quantas, no total? between Amazonia and
Atlantic Forest species of
Os cálculos sobre a origem dessas espécies “Nunca contei”, desconsidera, entre a modéstia Dendrophryniscus. Molecular
de lagartos superaram largamente os modes- e a impaciência para cálculos. Em 2010, Peter Phylogenetics and Evolution.
tos 15 mil anos antes concluídos com base em Uetz, do J. Craig Venter Institute, dos Estados v. 62, p. 826-38, 2012.
dados geo­morfológicos. Teria sido nessa época Unidos, teve paciência e contou. Resultado: em 3. AMARO, R. C. et al.
que o rio, à medida que o relevo se modificava, um artigo na revista Zootaxa sobre os 40 biólo- Demographic processes in
the montane Atlantic
teria desviado seu curso do interior para o mar. gos que mais descreveram espécies de répteis no rainforest: Molecular and
As lagoas internas em cujas margens os lagar- mundo desde o século XVIII, Rodrigues é o único cytogenetic evidence from
tos tomavam sol podem ter se desfeito ou o rio brasileiro da lista, em 35º lugar, com 53 espécies the endemic frog
Proceratophrysboiei.
incorporado parte da margem esquerda ao se- descritas – hoje são mais de 60. Molecular Phylogenetics
guir para leste e não mais para oeste. Segundo Miguel Trefaut Rodrigues já pegou malária, and Evolution. v. 62,
Rodrigues, a separação entre as margens norte dengue e muitas outras doenças por andar no p. 880-88, 2012.

e sul deve ter se completado entre 10 milhões mato, geralmente à noite, atrás dos bichos que o
mapa tiago cirillo, Fonte: Miguel Trefaut Rodrigues/IB-USP

e 8 milhões de anos. deixam feliz; uma parte das agruras das viagens e De nosso arquivo
Agora lhe parece claro que os rios – e não só o da produção intelectual desse grupo está no site
Entre cobras e lagartos
São Francisco – funcionam como barreira geo­ do laboratório: www.ib.usp.br/trefaut. Ele sabe Edição nº 169 –
gráfica para a formação de novas espécies de que fez muito, mas também se inquieta diante do março de 2010
répteis e anfíbios. Anos atrás, Kátia, Rodrigues e que está por ser feito e do que já pode ter sido Aos pés dos dinossauros
outros biólogos mostraram a validade dessa idéia perdido. “Não sabemos nada. Cada vez mais per- Edição nº 154 –
dezembro de 2008
com uma espécie de lagartixa da mata atlântica, cebo que somos completamente ignorantes”, ele
a Gymnodactylus darwinii. As populações des- diz. “Há espécies irmãs de lagartos nos Andes e Um tesouro à beira
do Velho Chico
sa espécie encontradas ao norte e ao sul do rio na restinga da floresta atlântica. Cadê o resto? Edição nº 57 –
Doce, que drena áreas de Minas Gerais e do Es- Desapareceu!” n setembro de 2000

pESQUISA FAPESP maio de 2012  _ 97


_  B iologia evolutiva

Os pioneiros da
América do Sul
Gambás e outros marsupiais brasileiros
antecedem os cangurus australianos na
escala evolutiva

Francisco Bicudo

E
ntre levantamentos bibliográficos, análises em la-
boratório e coletas de campo, a jornada diária de
trabalho pode chegar a 12 horas. É cansativo, mas o
esforço extra se justifica: até o final de 2012, Arioval-
do Cruz Neto, pesquisador da Universidade Estadual
Paulista (Unesp) de Rio Claro, pretende recolher informações
preciosas sobre o metabolismo energético – produção e gasto
de energia, basicamente – de dez espécies de marsupiais que
vivem na América do Sul. Do outro lado do planeta, pesqui-
sadores australianos que participam do projeto aceleram o
passo e querem contribuir com descrições de outras trinta
espécies que vivem por lá.
“Na literatura internacional, já compilamos informações
para um banco de dados com trabalhos sobre cerca de 70
espécies, feitos nas três últimas décadas. Com as novidades,
vamos ultrapassar a centena”, comemora Cruz Neto. Ele ex-
plica que conhecer hábitos de consumo e identificar como os
marsupiais acumulam e queimam energias é fundamental para
compreender as relações que estabelecem com o meio em que
vivem, como se adaptam a diferentes condições de clima, como
respondem à disponibilidade de recursos naturais, de que ma-
neira partilham seus nichos com espécies similares, além dos
hábitos reprodutivos. A partir desses dados, torna-se possível
simular como se comportariam em cenários de dificuldades
e de rupturas, como mudanças climáticas, fragmentação do
hábitat ou presença de predadores ou de espécies exóticas.
“O metabolismo energético é uma medida altamente inte-
Catita (Marmosa sp./
grativa e representativa, que exprime tanto a pressão que o
Thylamys) na caatinga,
ambiente exerce sobre o animal como as respostas que os bi- no Parque Nacional da
chos desenvolvem para sobreviver naquele hábitat”, define o Serra da Capivara (PI)

98  _ especial 50 anos fapesp


pesquisador da Unesp. “Além disso, observando (Gracilinanus agilis e Micoureus paraguayanus),
e comparando o funcionamento do metabolis- constatou que a primeira apresentou tempera-
mo, conseguimos colaborar com o entendimen- tura corporal média de 33,5 graus Celsius; a ou-
to da história evolutiva das espécies e construí­ tra, de 33,3 graus Celsius. Foi avaliada também a
mos relações de parentesco”, completa. Ainda taxa metabólica basal, índice que mostra o nível
que preliminares, os estudos desenvolvidos pelo mínimo de energia de que o animal necessita
grupo coordenado por ele sugerem que os mar- para manter em bom funcionamento as funções
supiais da América do Sul são os pioneiros na vitais do corpo. Para alcançar esse número, as
escala evolutiva – os australianos vieram depois espécies gastam, respectivamente, 4,8 quiloca-
e são parentes mais jovens daqueles que vivem lorias (kcal) e 5,5 kcal por dia. Ao comparar os
no continente americano. números encontrados, Cruz Neto confirmou que
tanto a temperatura corporal quanto a taxa me-

O
enredo científico até aqui apurado pela tabólica eram muito parecidas com as verificadas
equipe de Cruz Neto, sempre em parceria em marsupiais australianos que já tinham sido
com os australianos, indica que os mar- estudados e descritos. Segundo o pesquisador, é
supiais surgiram na América do Sul, há aproxi- como se os marsupiais tivessem uma mala com
madamente 160 milhões de anos. Por conta da roupas que lhes permitissem viver em diferentes
competição estabelecida com os vorazes roedo- ambientes. “Uma vez marsupial, sempre marsu-
res (ratos, esquilos, castores e até a capivara), pial, apesar das evoluções diferentes”, sentencia.
procuraram refúgio em nichos chamados de bai- Estudo feito por pesquisadores da universida-
xa energia, onde de- de alemã de Müns-
senvolveram dietas à ter e publicado pela
base principalmente PLoS Biology em ju-
de pequenos insetos, lho de 2010 conse- O Projeto
o que foi suficiente Marsupiais procuraram guiu revelar que o
Energética de morcegos e
para dar conta das pequeno monito del
necessidades de so- refúgio em nichos de baixa monte (Dromiciops
marsupiais: bases estruturais
e significado funcional
brevivência deles e gliroides), que pesa da taxa metabólica basal –

para sustentar o me-


energia e escaparam da apenas 25 gramas
nº 2000/09968-8
(2001-2004)
tabolismo mais len- competição com roedores e vive nas matas do modalidade
to que caracteriza os Chile e da Argenti- Jovem Pesquisador
marsupiais. A maio- na, é provavelmente Co­or­de­na­dor
ria das quase 90 es- o ponto de encontro, Ariovaldo Pereira da Cruz
Neto – Unesp
pécies da América do Sul pesa entre 10 gramas e o ancestral vivo mais antigo e comum aos dois
investimento
1 quilograma e vive geralmente em florestas. Os grupos – é encontrado na América do Sul, mas é R$ 441.455,78
mais conhecidos são o gambá, a cuíca e a catita. fisicamente muito mais parecido com os repre-
Há 60 milhões de anos, por trechos da Antárti- sentantes australianos do grupo.
Artigos científicos
da que foram usados como pontes (os continentes

A
estavam ainda bem mais próximos), começaram a dispersão pelos continentes fez surgir ain- 1. ASTÚA, D. Cranial sexual
chegar à Austrália. Como não encontraram com- da exclusividades. A cuíca-d’água (Chirno- dimorphism in New World
marsupials and a test of
petidores que precisassem enfrentar por lá, tive- nectes minimus), que mede 30 centímetros, Rensch’s rule in Didelphidae.
ram liberdade para explorar outros ambientes, tem cauda longa e manchas negras espalhadas Journal of Mammalogy. v. 91,
como túneis, florestas mais úmidas e até desertos, pelo corpo acinzentado, é uma espécie aquática; n. 4, p. 1011-24. 2010.

diversificando a dieta e alimentando-se, além de já a cuíca-de-cauda-grossa (Lutreolina crassi- 2. COOPER, C.E.; WITHERS,
insetos, de açúcares, néctar, frutos e até de carne. caudata), parecida com a lontra, é semiaquática. P.C.; CRUZ-NETO, A.P.
Metabolic, ventilatory and
A Austrália abriga atualmente quase 200 espécies As duas são encontradas apenas na América do hygric physiology of a South
de marsupiais. A mais conhecida é o canguru, que Sul. Por outro lado, são endêmicas da Austrália American marsupial, the
pode alcançar o tamanho de um homem adulto a Tarsipes rostratus, popularmente conhecida long-furred woolly mouse
opossum. Journal of
e pesar até 70 quilos. No entanto, explica Cruz como gambá do mel, por se alimentar de néctar, Mammalogy. v. 91, p 1-10.
Neto, essa diversificação morfológica não signi- e o Sarcophilus harrisii, o famoso e temido de- 2010.
ficou mudanças no metabolismo energético. “O mônio da Tasmânia, que é carnívoro e recebeu
padrão fisiológico de baixo consumo e gasto foi o apelido justamente por ameaçar os rebanhos De nosso arquivo
mantido como marca da espécie. Nesse sentido, domésticos das regiões onde vive. “Nenhum mar-
não houve pressão de seleção”, reforça. supial da América do Sul segue essas dietas”, diz Os mamíferos da discórdia
Edição nº 192 – fevereiro
Na revista Pesquisa FAPESP nº 179, de janeiro Cruz Neto, reforçando que os dados são ainda de 2012
de 2011, o pesquisador da Unesp conta que, de- preliminares e que detalhes ainda mais precisos
fabio colombini

Buenos días, cangurus


pois de concluir as análises sobre os metabolis- poderão surgir até o final do ano, quando espera Edição nº 179 – janeiro
mos de duas espécies de cuíca da América do Sul concluir e publicar os estudos. n de 2011

pESQUISA FAPESP maio de 2012  _ 99


_  E cologia

Jardineiras
fiéis
Formigas ajudam sementes a germinar
na mata atlântica e no cerrado

Maria Guimarães

Q
uando viu a polpa de um fruto de O que acontece no chão, entretanto, passou Almoço bem pago:
jatobá aberto ser devorada por for- praticamente despercebido até Oliveira fincar aí ataque a lagartas e
transporte de frutos
migas numa floresta, em meados dos um dos fios condutores de seu grupo de pesquisa. trazem benefícios
anos 1990, o biólogo Paulo Oliveira, Um dos produtos vem do doutorado de Alexan- às plantas
da Universidade Estadual de Campi- der Christianini, agora professor no campus de
nas (Unicamp), começou a duvidar Sorocaba da Universidade Federal de São Carlos
da noção difundida de que esses insetos sociais (UFSCar). Ele e Oliveira mostram que no cerra-
têm um papel desprezível na ecologia das semen- do de Itirapina, no interior de São Paulo, formi-
tes. Cerca de 15 anos depois, o grupo de pesquisa gas de cinco gêneros recolhem as sementes que
imerso na intimidade das relações entre plantas e chegam ao chão e sugerem, em artigo de 2009 na
formigas mostra que os pequenos animais não só Oecologia, um papel importante para as formigas
arrastam as sementes para locais mais propícios depois que as aves transportaram as sementes
como as limpam, facilitando a germinação. “A para bem longe da árvore-mãe: o serviço mais
dispersão de sementes nos trópicos é muito mais detalhado de jardinagem. 
complexa do que se achava”, comenta Oliveira. Aves e macacos costumam depositar as semen-
Quase todos os holofotes dos estudos sobre eco- tes debaixo de alguma árvore. Os restos de polpa
logia de dispersão de sementes estão voltados para então atraem as formigas, que levam nacos para
aves, macacos e outros vertebrados atraídos pelos dentro do formigueiro. “A semente fica limpinha no
frutos coloridos e com polpa saborosa de nove entre chão da floresta”, conta Oliveira, “impedindo que
dez espécies de árvores e arbustos de grande por- fungos se instalem e acabem por matar o embrião
te. Esses animais carregam os frutos por grandes da planta”. Além disso, algumas formigas carregam
distâncias e lançam as sementes ao solo. Se o fruto as sementes até o formigueiro, que o pesquisador
cai por acidente, ele ainda pode estar quase intacto, descreve como “uma ilha de nutrientes”, já que ali
mas mesmo depois de passar pelo sistema digestivo estão pedaços descartados de plantas e restos de
muitas vezes ainda resta um bom tanto de polpa.  formigas mortas e outros insetos.

100  _ especial 50 anos fapesp


2

O jatobá (Hymenaea courbaril) despertou a por pequenas gaiolas para evitar que fossem re-
curiosidade do pesquisador. Num experimento, colhidas por animais maiores. Ficou claro que
com colegas da Universidade Estadual Paulista as formigas preferem as sementes com polpa
(Unesp) em Rio Claro e da Universidade Federal (71% da parte vermelha é gordura) e que essas
de Mato Grosso, ele mostrou que 70% das se- sementes germinam muito mais depressa depois
mentes limpas pelas formigas brotaram, o que só de semeadas pelos pequenos insetos, conforme
aconteceu com 20% das que não foram tratadas artigo destacado na capa do American Journal
pelas pequenas jardineiras. De 1995 para cá, essa of Botany em 1998.
linha de pesquisa deu origem a seis doutorados Provado que as formigas transportam semen-
que revelaram que essa relação é bastante gene- tes, restava verificar se essa dispersão é dire-
ralizada na mata atlântica e no cerrado. cionada ou aleatória. Durante o doutorado com
Oliveira, Luciana Passos investigou as relações
Presas fáceis entre plantas e formigas na mata de restinga da
Durante sua estadia no laboratório de Oliveira Ilha do Cardoso, no litoral sul paulista. Parte
nos anos 1990, Marco Pizo se concentrou so- da mata atlântica, essa floresta é menos exube-
bre interações entre plantas e formigas na mata rante por crescer em solo mais pobre e arenoso.
atlântica e mostrou que o arilo nutritivo vermelho Ela espalhou pedaços de sardinha pela ilha para
em torno das sementes da canjerana (Cabralea atrair formigas carnívoras, que a conduziram de
fotos: 1. andré freitas 2. Humberto dutra

canjerana) atrai formigas carnívoras. “Para as volta aos ninhos – 21 deles.


formigas carnívoras os frutos ricos em proteínas Em artigo publicado em 2002 no Journal of
e gorduras são como insetos que não brigam, não Ecology, Luciana conta o que acontece com os
mordem e não saem correndo”, compara Olivei- frutos ricos em óleo da árvore Clusia criuva, ou
ra. Pizo, agora na Universidade Estadual Paulista clúsia, que produz numa estação por volta de
(Unesp) de Rio Claro, espalhou sementes com 5.800 frutos com, ao todo, 25 mil sementes. Boa
e sem polpa pelo chão da floresta, protegidas parte delas (83%) acaba nas fezes de 14 espécies

pESQUISA FAPESP maio de 2012  _ 101


Passos da semeadura
Frutos podem percorrer caminhos diversos da árvore ao solo

Dispersão primária
Aves e mamíferos carregam alimento por grandes distâncias, mas não
retiram completamente a polpa

Dispersão secundária
As formigas limpam os frutos
caídos e transportam as
sementes até o formigueiro

diferentes de aves. A pesquisadora viu O mesmo acontece com a maria-fa- ta persistem, ante só 30% nas bordas.
que as sementes que caem ao chão são ceira (Guapira opposita), cujos frutos Como ali também as plantas germinam
transportadas por até 10 metros pelas pretos de cabo vermelho atraem aves melhor junto aos formigueiros, jovens
formigas Odontomachus e Pachycon- como o araçaripoca e a saíra-sete-cores plantas nas bordas têm cerca de 0,2% de
dyla, carnívoras da subfamília das po- e têm alto teor de proteínas (28%), de chances de sobreviver ao primeiro ano
neríneas, que “têm uma picada dolo- acordo com artigo de 2004 na Oecolo- de vida. Esses resultados deixam claro
rida como se fossem marimbondos”, gia. As formigas Odontomachus carre- que o desmatamento tem efeitos noci-
conta Oliveira.  gam as sementes por até 4 metros e em vos  tanto sobre as formigas como sobre
Mas a história não aca- torno de seus ninhos as plantas, e que esses efeitos se somam.
ba aí. Luciana investigou – onde a terra é muito Mas, com seu talento de jardineiras, as
mais a fundo e viu que es- mais fofa, além de mais formigas podem ajudar a recuperar uma

70%
sas formigas removem 98% rica em  potássio, fós- floresta alterada, contribuindo para a
das sementes que chegam foro e cálcio – se aglo- germinação das sementes.
às fezes das aves ainda não meram brotos.

I
completamente digeridas. Alexander Christia- sso quando as condições adversas não
A bióloga então contou os das sementes nini deu um passo além impedem seu trabalho. Na mata atlân-
jovens brotos de clúsias e demonstrou que o tica, a fragmentação prejudica os be-
e encontrou um número
limpas por desmatamento do cer- nefícios da população de formigas sobre
desproporcional junto aos formigas rado invalida o efeito a regeneração da floresta, segundo tese
formigueiros – o dobro do positivo das formigas de Gabriela Bieber defendida no início
que viu no resto da mata.
germinaram, na ecologia das plantas. de 2012. “As formigas grandes são mais
Além disso, ela manteve o e sem o Já se sabe que o mio- exigentes e não ficam nas bordas das
censo de plantas jovens ao lo das ilhas de floresta florestas”, explica Oliveira. Além disso, o
longo de um ano e viu que
tratamento, é mais fresco e úmido trabalho também mostrou que os insetos
ao redor dos formigueiros só 20% do que a fronteira com têm preferência por frutos já manusea-
elas têm chances significa- áreas desmatadas. O dos ou mordidos por animais maiores,
tivamente maiores de so- pesquisador mostrou cuja presença fica muito reduzida em
breviver. Luciana mandou que as formigas gran- trechos pequenos de mata.
amostras desse solo para análise no Ins- des também são mais comuns no inte- O grupo da Unicamp vem descobrindo
tituto Agronômico de Campinas e verifi- rior do cerrado, onde o solo é mais rico muito mais sobre as funções ecológicas
cou que ele é mais rico em nitrogênio e em nutrientes e mais macio. Ao longo desses soldados e operários em miniatu-
potássio do que o resto da floresta, graças de um ano de monitoramento, 92% das ra. Algumas plantas produzem substân-
aos detritos acumulados pelas formigas.  colônias de formigas do interior da ma- cias para atrair formigas, que retribuem

102  _ especial 50 anos fapesp


servindo como tropas de defesa. É o caso criam ali uma zona protegida de outros
do pequi (Caryocar brasiliense), planta inimigos, como aranhas ou vespas, o que
típica de cerrado que dá frutos muito para as borboletas em formação pode
apreciados na culinária da região central significar uma taxa de sobrevivência
do país. As formigas se deliciam com o seis vezes maior.
néctar que brota de glândulas nos botões Boa parte dessa história, com mais de-
das flores do pequi e atacam outros in- talhes, está no que Oliveira considera o
setos, como lagartas. Sebastián Sendoya, trabalho mais importante de sua vida:
aluno de Oliveira e André Freitas, mos- o livro The ecology and evolution of ant-
trou que as borboletas Eunica bechina, -plant interactions, que ele escreveu em
especializadas em depositar seus ovos parceria com seu colega mexicano Vic-
nas folhas do pequi, sobrevoam as plan- tor Rico-Gray. Publicado em 2007 pela
tas e detectam formigas predadoras. O Chicago University Press, o livro é uma
trabalho, publicado em 2009 na Ameri- ampla revisão das interações ecológicas
can Naturalist, indica que a sofisticação que se conhece entre formigas e plantas.
visual das borboletas lhes permite pôr “As pessoas dão mais importância aos
ovos em folhas seguras e até reconhecer vertebrados porque são os animais que
formigas inofensivas. enxergam com mais facilidade”, protesta
o biólogo da Unicamp, “mas na Amazônia

M
as formigas e lagartas nem sem- o peso seco de invertebrados é quatro ve-
pre são adversárias. Num exem- zes maior do que o de vertebrados”. E as
plo da rica diversidade dessas formigas, cujas colônias podem chegar a
relações, as borboletas Parrhasius po- milhões de operárias, são os mais nume-
libetes escolhem pôr ovos em plantas rosos entre os invertebrados. n
repletas de formigas, segundo trabalho
de Lucas Kaminski – outra coorientação
de Oliveira com André Freitas – publi-  
cado em 2010 na American Naturalist. Os Projetos 
O trabalho foi feito numa área de cer-
1. Ecologia e comportamento de formigas
rado na região de Campinas e mostrou neotropicais – nº 2008/54058-1 (2008-2011)
que as borboletas escolhem pôr ovos em 2. Estudos sobre formigas neotropicais:
Para a predadora ramos onde há formigas pastoreando interações com insetos herbívoros, ecologia
comportamental e organização social –
Pachycondyla striata, cigarrinhas (Guayaquila xiphias) pro- nº 2011/18580-8 (2012-2013)
outras espécies, como o
Odontomachus chelifer,
dutoras de uma secreção açucarada. Ao Modalidade
servem de alimento proteger seu precioso gado, as formigas 1. e 2. Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa
Coordenador
1. e 2. Paulo S. Oliveira – Instituto de Biologia,
Unicamp
Investimento
1. R$ 113.080,54
2. R$ 145.747,07

Artigos científicos 
foto  Paulo Oliveira/unicamp infográfico  tiago cardoso  fonte: Paulo Oliveira/unicamp

1. KAMINSKI, L. A. et al. Interaction between


mutualisms: Ant-tended butterflies exploit
enemy-free space provided by ant-treehopper
associations. The American Naturalist. v. 176,
n. 3, p. 322-34. set. 2010.

2. CHRISTIANINI, A. V. e OLIVEIRA, P. S. The


rele­vance of ants as seed rescuers of a primarily
bird-dispersed tree in the Neotropical cerrado
savanna. Oecologia. v. 160, n. 4, p. 735-45.
jul. 2009.

3. SENDOYA, S. F. et al. Egg-laying butterflies


distinguish predaceous ants by sight. The
American Naturalist. v. 174, n. 1, p. 134-39.
jul. 2009.  

De nosso arquivo

Jardineiras fiéis
Edição nº 161 – julho de 2009

pESQUISA FAPESP maio de 2012  _ 103


_  aves brasileiras

Refrigerador
natural
Q
uando o calor é intenso, nos apressamos a escanca-
rar as janelas e ficamos aliviados quando o vento
sopra forte; no outro extremo, se a temperatura é
O bico do tucano, quase do baixa, corremos para fechar as janelas, agindo ra-
pidamente para ajudar a esquentar o ambiente. É exatamente
tamanho de seu corpo, é um dessa maneira que funciona o bico do tucano, “uma eficiente
janela térmica, quase do tamanho do recinto a ser climati-
eficiente dissipador de calor zado”, como define o biólogo Augusto Abe, da Universidade
Estadual Paulista (Unesp) de Rio Claro, que compara o bico
Francisco Bicudo da ave a “um potente radiador de automóvel”. Essa capacidade
de atuar para regular temperaturas foi anunciada em julho
de 2009, em trabalho desenvolvido pela equipe coordenada
por Abe, em parceria com o canadense Glenn Tattersall, da
Universidade de Brock, e publicado na Science. Para chegar
a esta conclusão, no entanto, foi preciso percorrer caminhos
tortuosos – e curiosos.
A história começou em 1985, quando Abe ganhou de pre-
sente um tucano, que não tinha nome oficial, mas era chamado
de Amadeu por amigos mais próximos do biólogo. À noite, ao
se ajeitar para dormir, a ave procurava esconder o bico com a

104  _ especial 50 anos fapesp


cauda, cabeça virada para trás, usando as
asas como cobertores. A cena chamou a
atenção do pesquisador, que, ao segurar
o bico, o sentia aquecido. Logo imaginou
que aquele esforço todo feito pelo tucano
fosse um artifício que permitia manter
o corpo todo quente. Naquela época, no
entanto, não dispunha de equipamentos
adequados para medir a temperatura do
bico e para estudá-lo com mais detalhes.
Mas a cena da ave se cobrindo e prote-
gendo para dormir permaneceu guarda-
da na memória do biólogo.

E
m 2003, a equipe da Unesp recebeu
a visita de Tattersall, com quem
Abe já mantinha parcerias em vá-
rios trabalhos. O canadense trouxe na
bagagem uma câmera de infravermelho,
que naquela oportunidade seria usada 2

para avaliar a produção de calor em ser-


pentes após a alimentação. Abe teve um 1. De perto, é calor excessivo para Como desdobramento do trabalho ori-
estalo e, sem perder tempo, carregou o possível enxergar o ambiente. Depen- ginal, a equipe de Rio Claro conseguiu
os vasos que
colega canadense para o zoológico da dendo da situação, o mostrar que a capacidade de adaptação
irrigam o bico
cidade de Americana, no interior de São bico podia dissipar dos tucanos às mudanças de temperatu-
Paulo (região de Campinas), onde havia 2. Imagem de 25% a 400% de ras é bastante rápida – em cerca de dez
um viveiro de tucanos. Fizeram várias térmica mostra todo o calor produ- minutos, as aves conseguem se ajustar
onde o calor
imagens da ave, usando a máquina es- zido pela ave em re- e responder a temperaturas que caem
se concentra
pecial. “O resultado foi frustrante, nada (em amarelo) pouso. “Mudamos a bruscamente de 25 para 10 graus Cel-
acontecia”, lembra Abe. Já indo embora, percepção de que o sius. “É a confirmação de que o bico é de
no caminho para a saída, decidiram, por bico serve apenas fato um regulador térmico muito bom”,
desencargo de consciência, arriscar uma para alimentação, para descascar frutos reforça Andrade. Até o final do ano, o
última imagem. “Foi então que observa- ou atacar outros ninhos, e revelamos que grupo espera publicar novidades alvis-
mos que o bico esquentava e resfriava, o órgão tem outras funções relevantes”, sareiras a respeito da regulação térmica
com muita rapidez”, recorda o brasilei- afirma o biólogo Denis Andrade, também em vespas e moscas. n
ro. Combinaram assim de estudar o bico autor do trabalho e pesquisador da Unesp
dos tucanos. de Rio Claro. Para ele, essa capacidade
Em laboratório, os trabalhos come- ainda precisa ser mais bem estudada, pa- O projeto
çaram a ser desenvolvidos em 2005, em ra que se possa avançar na compreensão
um recinto climatizado, com tempera- mais detalhada da anatomia, da ecologia Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia
em Fisiologia Comparada – nº 2008/57712-4
turas entre 10 e 25 graus Celsius, e onde e da evolução do grupo. (2009-2014)
foi instalada uma máquina termográfi-

O
Modalidade
ca, que fotografava tucanos da espécie estudo foi financiado pelo Insti- Projeto Temático
Ramphastos toco, característica do cer- tuto Nacional de Ciência e Tec- Coordenador
rado brasileiro, e era responsável por nologia (INCT) em Fisiologia Augusto Shinya Abe – Unesp/Rio Claro

produzir imagens em espectros de cor Comparada, criado e mantido pelo Con- Investimento
R$ 1.084.648,98
que variavam do amarelo (mais quente) selho Nacional de Desenvolvimento
ao azul (mais frio). A temperatura era Científico e Tecnológico (CNPq) e a
aumentada ou reduzida de forma bem FAPESP, que estabelece parcerias com Artigo científico
lenta, durante 12 horas por dia. a Coordenação de Aperfeiçoamento de TATTERSALL, G. J. et al. Heat Exchange from the
As imagens mostraram com muita pre- Pessoal de Nível Superior (Capes) e com Toucan Bill Reveals a Controllable Vascular
cisão – quando o ambiente estava frio, o o Banco Nacional de Desenvolvimento Thermal Radiator, Science. v. 325, n. 5939,
p. 468-70, 2009.
tucano interrompia o fluxo de calor para Econômico e Social (BNDES), com in-
o bico, que também resfriava, exatamente tuito de fomentar e articular grupos que
para manter o corpo aquecido; na situa- atuam na fronteira do conhecimento Do nosso arquivo
fotos  thiago filadelpho

ção inversa, quando o calor do viveiro científico e em áreas estratégicas para Radiador eficiente
no laboratório era intenso, o tucano au- o país. Atualmente, há 128 institutos Edição nº 162 – agosto de 2009
mentava o fluxo de sangue para o bico, dessa natureza atuando nas diferentes Bico dos tucanos funciona como radiador
que se responsabilizava por dispersar o regiões do Brasil. Edição Online – 23/07/2009

pESQUISA FAPESP maio de 2012  _  105


_ B iodiversidade

São Paulo
na Amazônia
Equipes paulistas e paraenses colaboram na
formação de novos pesquisadores e em estudos
sobre animais venenosos da região Norte

Marili Ribeiro

106  _ especial 50 anos fapesp


‘L
embro bem quando apresentei o pro- que agora trabalham em conjunto lembram que
jeto aqui no Butantan, em 2005, e um Otávio Mercadante, diretor do instituto e coorde-
colega disse que, se conseguíssemos nador do programa na época de sua implantação,
formar um doutor, a missão estaria costuma repetir: “Não teria sentido fazer nada em
cumprida”, rememora Ana Moura paralelo, sem aproveitar as competências locais”.
da Silva, responsável pela integração Desde antes do primeiro encontro entre es-
das equipes paraenses com os pesquisadores do pecialistas do Butantan com estudantes e pro-
Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em fissionais de instituições do Pará, realizado em
Toxinas (INCT-Tox), sediado no Instituto Butan- Santarém em 2006, Mercadante costurou o apoio
tan, e coordenadora do Subprograma Ações da de prefeituras, governo estadual, fundações de
Amazônia do programa de pesquisas Butantan financiamento à pesquisa do Pará e de São Paulo
na Amazônia. “Conseguimos formar novos pes- e ainda dos ministérios da Educação e da Ciên-
quisadores e já estamos com uma perspectiva cia e Tecnologia para levar adiante os estudos
muito maior.” em três vertentes: a biodiversidade amazônica,
Houve avanços notáveis nas áreas de biologia, a ação de toxinas de animais e a história da saú-
bioquímica e farmacologia, entre os quais Ana de na região. De modo complementar, vem sen-
Moura enumera: o levantamento da diversidade do feito um trabalho com médicos e agentes de
de serpentes e escorpiões da Floresta Nacional saúde locais sobre tratamentos de acidentes com
(Flona) do Tapajós, próxima de Santarém; uma animais venenosos. A equipe do Butantan, inclu-
revisão da classificação e a ampliação da diversi- sive, já fez e distribuiu um livreto sobre animais
dade de aranhas neotrópicas do grupo Haplogy- venenosos na região.
nae; o detalhamento dos efeitos farmacológicos A convivência das equipes dos dois estados
do veneno do escorpião Tityus paraensis; o estudo tem se mostrado produtiva. “Neste ano, teremos
de plantas usadas como antídotos contra picadas a conclusão de uma pesquisa de doutorado, de
de cobras na Amazônia, vistas como possível ma- Hipócrates Chalkidis, do programa de pós-gra-
téria-prima para inibidores de toxinas animais; duação do Museu Goeldi, e uma de mestrado, de
na área médica, a ampliação do conhecimento Valéria Moura Mourão, do programa de pós em
sobre os sintomas e a evolução do envenenamen- recursos naturais da Amazônia da Universidade
to por toxinas animais, por meio dos relatos e do Federal do Pará (UFPA), que não é pouca coisa”,
acompanhamento de casos de pessoas atendidas festeja Ana Moura, que, além de pesquisadora do
no hospital municipal de Santarém, e estudo da Butantan, é professora do curso de pós-graduação
história da saúde em Belterra, no Pará. em recursos naturais da Amazônia da UFPA em
O trabalho chegou a esses resultados, mais do Santarém. Há outros quatro projetos de mestrado
Salamanta ou jiboia
que se previa inicialmente, porque conseguiu e três de especialização em andamento no Institu-
aproximar experientes pesquisadores do Insti- to Butantan, nas mãos de estudantes do Pará que
fabio colombini

vermelha (Epicrates
cenchria crassus), tuto Butantan e especialistas antes dispersos nos podem fazer parte de seu trabalho em São Paulo
Amazonas, 1989 centros de pesquisa do Pará. Os pesquisadores e depois voltam para atuar em sua própria região.

pESQUISA FAPESP maio de 2012  _ 107


‘A
partir de 2009, os encontros com compostos químicos biodegradáveis escorpiões e aranhas, que se tornaram
as comunidades e instituições do que pudessem ser usados para com- objeto de estudo e matéria-prima para
Pará avançaram com a entrada de bater escorpiões nas áreas em que são ampliar o conhecimento sobre a riqueza
verba específica do INCT-Tox e da FA- mais abundantes. biológica da região.
PESP destinada a pesquisas e bolsas para Das serpentes coletadas na Floresta O trabalho de coleta de venenos para
estudantes de Santarém e de São Paulo”, Nacional do Tapajós, os pesquisadores pesquisas sobre novas toxinas aproximou
diz Ana Moura. A cada ano o trabalho extraíram venenos, cujos efeitos estão especialistas de São Paulo dos centros
se tornou mais abrangente. “Acabamos sendo mais bem conhecidos, por meio científicos e médicos do Pará. Chalki-
de aprovar duas etapas de fôlego junto de estudos em animais de laborató- dis e sua equipe capturaram exempla-
à Coordenação de Aperfeiçoamento de rio. Hoje, um dos grupos do Butantan res do escorpião-preto do Pará, o Tityus
Pessoal de Nível Superior (Capes), com avalia a eficácia dos soros produzidos obscurus, que causa a maioria dos casos
valores que somam mais de R$ 7 milhões regularmente no instituto contra os notificados de picadas de escorpiões na
em projetos de pesquisa e bolsas de es- efeitos da picada dessas serpentes, es- região Norte. Com mais bichos à mão, a
tudos, que terão a participação de outros pecialmente sobre a coagulação do san- equipe do Butantan ampliou as informa-
centros de pesquisa do Rio de Janeiro e gue. “Estamos aprofundando os estu- ções sobre os soros produzidos contra
de Minas Gerais.” dos sobre as alterações na coagulação os seus venenos.
Cada vez mais nacional e interinstitu- produzidas pelas toxinas animais”, diz Em paralelo, também se aprofundan-
cional, atraindo o interesse até mesmo de Ana Moura. do na pesquisa sobre a biodiversidade da
grupos de pesquisa biomédica de outros Amazônia, Pedro Pardal, da Universida-
países, o programa de pesquisas do Bu- Cobras e escorpiões de Federal do Pará (UFPA), em Belém,
tantan na Amazônia reúne no momento O biólogo – e futuro doutor – Hipócrates começou a estudar os escorpiões dessa
mais de 50 profissionais qualificados e Chalkidis começou sua trajetória nesse espécie, para ver o que os diferencia ge-
pelo menos 12 instituições federais, es- projeto com viagens frequentes à Flo- neticamente, já que os escorpiões-pretos
taduais e municipais das áreas de am- resta Nacional do Tapajós, há mais de de diferentes regiões do Pará produzem
biente, ciência e saúde pública. dois anos, para coletar serpentes com venenos com maior ou menor grau de
A colaboração entre as equipes faci- estudantes de biologia das Faculdades letalidade.
lita a busca de novos medicamentos a Integradas do Tapajós (FIT), onde ele
partir de toxinas animais e de plantas é professor. As armadilhas montadas Aranhas
da Amazônia, aproveitando os investi- para atrair cobras trouxeram também Diferentemente dos escorpiões e das
mentos já feitos em prédios, cobras, que prevalecem na região, as ara-
equipamentos e recursos hu- nhas demoraram a entrar no projeto das
manos em São Paulo. Alguns toxinas da Amazônia porque não havia
pesquisadores trabalham pa- O trabalho de coleta bichos vivos em quantidade suficiente
ra conhecer melhor como os para fornecer veneno e tornar as pes-
venenos de escorpiões po- de venenos aproximou quisas viáveis. As coisas mudaram. O
dem agir no organismo hu- biólogo Antonio Brescovit, do Butantan,
mano e, a partir daí, desen-
os paulistas dos que percorreu as matas da região Norte
volver novas formas de evitar médicos do Pará há 20 anos, quando a viagem de Belém
o envenenamento, enquanto a Santarém só podia ser feita de barco e
outros pretendem chegar a demorava uma semana, agora está estu-

1. Surucucu
(Lachesis muta)

2. Espécie nova de caranguejeira


(Acanthoscurria geniculata)

1 2

108  _ especial 50 anos fapesp


tou o médico Jean Vellard para ajudar
na identificação de aranhas venenosas.
Vellard trabalhou com Vital Brazil no
soro contra o veneno de uma aranha-
-de-grama, a Lycosa raptoria, estudou a
toxidade de outras aranhas, identificou
espécies novas e fez muitas expedições
de coleta de animais à região amazônica.
Hoje, toda a Amazônia passa por um
desmatamento intenso, que, supõe-se,
está mudando as relações entre os ani-
mais e o ambiente. Para saber o que está
se passando, em março Lisle Gibbs, pro-
fessor de ecologia molecular da Universi-
dade de Ohio, dos Estados Unidos, esteve
em Santarém, participou dos trabalhos
de campo, deu palestras e conversou com
Escorpião-preto do Pará (Tityus obscurus) os pesquisadores do Pará e de São Pau-
lo, que e continuam trabalhando juntos.
fraco, praticamente inofensivo, “Entre outras coisas”, diz Ana Moura,
quando comparado ao das mar- “queremos saber que tipo de variação ge-
As caranguejeiras rons”. Esse gênero de aranha é nética está se processando naquela área,
constituído por 11 espécies en- que vem sendo intensamente desmata-
são praticamente contradas no Brasil – e a equipe da há 30 anos, e como isso deve afetar
do Butantan tem mais 14 ou 15 as espécies.” n
inofensivas quando novas para descrever.
comparadas às Parte desse trabalho depende
do conhecimento das espécies
aranhas marrons de aranhas que vivem no Pará.
Os projetos
Os pesquisadores já identifica-
ram uma espécie nova de uma 1. Subprograma ações na Amazônia –
aranha-caranguejeira da região nº 2008/57898-0 (2009-2014)
2. Sistemática de aranhas Haploginas
dando intensamente as aranhas do grupo amazônica, de até 30 milímetros, do gê- heotropicais (Arachnida, Araneae) –
haploginas de toda a América do Sul, por nero Acanthoscurria, que deve ser bati- nº 2011/50689-0 (2011-2016)
meio de um projeto temático aprovado zada com o nome da cidade em que foi Modalidade
no ano passado. encontrada, Belterra, onde o Butantan 1. e 2. Projeto Temático

deve instalar uma base avançada de pes- Coordenadores

‘P
1. Ana Moura da Silva – Instituto Butantan
retendo, com minha equipe, apro- quisas e laboratórios para atender estu- 2. Antonio Domingos Brescovit – Instituto
fundar o conhecimento sobre esse dantes e os professores. Butantan
grupo das aranhas mais primitivas, Faz tempo que o Instituto Butantan Investimento
que inclui a aranha-marrom, que causa tem contato com animais da floresta 1. R$ 345.000,00
2. R$ 814.653,03
problemas graves às pessoas e pode le- amazônica. Essa região permaneceu
var à morte”, diz Brescovit. “São bichos isolada das outras regiões do país até o
raros, difíceis de coletar e complexos de início do século XX, por causa da difi- Artigos científicos
trabalhar, porque estudamos a minúscula culdade de comunicação e transporte. 1. CALVETE, J. J. et al. Snake population venomics
genitália [para diferenciar as espécies]. Mesmo assim, de acordo com um levan- and antivenomics of Bothrops atrox:
fotos: 1 e 3  instituto butantan/ANTONIO COR DA COSTA 2  Rafael indicatti

Aliás, há poucos estudos sobre as ara- tamento de Maria de Fátima Furtado e paedomorphism along its transamazonian
dispersal and implications of geographic venom
nhas desse grupo na América do Sul e Myriam Calleffo, publicado nos Cader- variability on snakebite management. Journal of
muitas lacunas de conhecimento sobre nos de História da Ciência, Emília Sne- Proteomics. v. 74, n. 4, p. 510-27, 2011.
as espécies da região Norte.” thlage, então diretora do Museu Goeldi, 2. LUCAS, S. M. et al. Redescription and new
Normalmente as pesquisas se concen- de Belém, enviou em 1914 uma coleção distribution records of Acanthoscurria natalensis
tram em espécies mais vistosas de ara- de serpentes do Pará ao Butantan para (Araneae: Mygalomorphae: Theraphosidae).
Zoologia. v. 28, n.4, p. 525–30, 2011.
nhas, que fazem teias, e deixam de lado identificação e guarda. O envio de ani-
as de menor porte, como a marrom, o mais não parou mais, e hoje o instituto
que Brescovit considera “um erro, já que paulista reúne 6.625 exemplares de 213 De nosso arquivo
é essa espécie que pode ser perigosa”. localidades da região amazônica. Os venenos da floresta
Ele evidencia um paradoxo: “A maio- Em 1924, Vital Brazil Mineiro da Cam- Edição nº 167 – janeiro de 2010
ria das pessoas tem medo das aranhas- panha, o primeiro diretor e que então Amazônia em foco
-caranguejeiras, mas o veneno delas é reassumia a direção do instituto, contra- Edição Online – 11/01/2010

pESQUISA FAPESP maio de 2012  _ 109


ciências
exatas
e da
terra
Mudanças climáticas Em clima de globalização 112  Observatório Pierre Auger Raios

cósmicos, ainda um enigma 120  Nanociência Ourivesaria em átomos 127 Geologia

Nasce um continente 132

fotodetector de raios cósmicos do observatório pierre auger/miguel boyayan


_  m udanças climáticas

Em clima de
mobilização
Pesquisadores de várias áreas, das ciências
naturais às humanidades, articulam-se para ampliar
o conhecimento sobre as mudanças globais

Fabrício Marques

N
o maior e mais articulado esforço
multidisciplinar já feito no Bra-
sil para ampliar o conhecimento
a respeito das mudanças climáti-
cas globais, cientistas do estado
de São Paulo de múltiplas áreas
– das ciências físicas e naturais às humanida-
des – engajaram-se no Programa FAPESP de
Pesquisa sobre Mudanças Climáticas Globais
(PFPMCG). Iniciada em agosto de 2008, a ini-
ciativa prevê investimentos de R$ 100 milhões
ao longo de dez anos – ou cerca de R$ 10 milhões
anuais – em estudos básicos e aplicados sobre as
mudanças climáticas globais em curso e de seus
impactos sobre a vida da humanidade. É provável
que este valor seja ainda maior, pois só nos três
primeiros anos mais de R$ 40 milhões já foram
desembolsados.
O saldo dos três primeiros anos de progra-
ma contabiliza projetos de pesquisa em temas
abrangentes que envolvem as ciências naturais,
biológicas e sociais. Vários estudos envolvem a
compreensão dos efeitos da ação do homem na
alteração do padrão de chuvas e no aumento da
concentração de gases na atmosfera. Também são Enchente nas cidades
estudados o impacto das queimadas na colheita de Navegantes e Itajaí,
da cana-de-açúcar e a influência de práticas de em Santa Catarina, em
novembro de 2008: a
manejo agrícola nas emissões de gás carbônico população urbana será a
oriundas do solo. Outros temas importantes, como mais atingida pelos efeitos
a vulnerabilidade de municípios do litoral norte de das mudanças globais

112  _  especial 50 anos fapesp


São Paulo às mudanças climáticas e as alternativas geral do CPTEC. “Será utilizado para o nosso
na implantação da chamada “economia verde” trabalho em previsões climáticas, mas também
também são investigados. O PFPMCG dispõe de estará disponível a todos os grupos de pesquisa
18 projetos de pesquisa e almeja chegar a mais de do programa da FAPESP”. Em 2011, o Tupã era
uma centena. Atualmente, estão sendo incorpo- o computador número 29 da lista dos 500 mais
rados ao programa pelo menos duas dezenas de potentes do planeta.
projetos do âmbito de convênios estabelecidos
com as fundações de Amparo à Pesquisa do Rio Efeitos nos sistemas naturais
de Janeiro (Faperj) e de Pernambuco (Facepe). Os projetos vinculados ao programa vão utilizar
Uma das principais ambições do programa é a as simulações do supercomputador e aplicá-las
criação do Modelo Brasileiro do Sistema Climáti- em temas de diversas disciplinas, estudando o
co Global, um sistema capaz de fazer simulações impacto das mudanças globais e as maneiras
sofisticadas sobre fenômenos do clima global. A mais eficientes de mitigação de seus efeitos. Par-
necessidade de desenvolver competência nacio- te dos estudos aprovados na primeira chamada
nal nesse campo se explica: hoje, para projetar os de projetos, realizada em 2009, busca entender
efeitos das mudanças climáticas, utilizam-se fer- os efeitos das mudanças climáticas nos sistemas
ramentas computacionais que ainda são limitadas naturais. Reynaldo Victoria, por exemplo, lidera
e não levam em conta processos importantes para um grupo de pesquisadores que analisa o papel
o clima brasileiro. “Para a ciência abastecer a so- dos rios nos ciclos regionais de carbono. Seu
ciedade com informações fidedignas é essencial projeto tem interface com um outro, coordena-
termos um modelo que não seja calcado nos que do por Humberto Ribeiro da Rocha, professor
existem em outros países, mas contemple carac- do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências
terísticas e dados regionalizados”, diz Reynaldo Atmosféricas (IAG) da USP, voltado para quan-
Victoria, professor do Centro de Energia Nuclear tificar os ciclos de carbono e da água na floresta
na Agricultura (Cena), no campus da USP em Pi- amazônica, no cerrado e na mata atlântica, e em
racicaba, e coordenador executivo do programa. dois agroecossistemas, as plantações de cana e
Para utilizar e aperfeiçoar esse programa de de eucalipto. “Na Amazônia, em projetos ante-
modelagem foi adquirido, por R$ 50 milhões riores, realizamos medições de campo em sítios
(R$ 15 milhões da FAPESP e R$ 35 milhões do Mi- experimentais, de forma local. Agora queremos
nistério da Ciência, Tecnologia e Inovação), um fazê-las em escala maior, integrando toda a ba-
supercomputador da fabricante norte-americana cia”, diz Rocha. “Estamos analisando o que entra,
Cray, capaz de realizar 224 trilhões de operações o que sai ou fica de carbono na Amazônia, por
por segundo. Batizado de Tupã, foi instalado no meio de uma série de abordagens, como medi-
Centro de Previsão do Tempo e Estudos Climáti- ções das concentrações dos gases estufa com
cos (CPTEC) do Inpe e entrou em funcionamento sensores a bordo de aeronaves, em áreas de rios,
no início de 2012. “O Tupã colocou a meteorolo- em áreas de terra firme, utilizando uma com-
FILIPE ARAúJO/AE

gia brasileira no patamar dos principais centros binação de modelos calibrados assimilando os
mundiais”, diz Osvaldo Moraes, coordenador dados de campo”, afirma.

pESQUISA FAPESP maio de 2012  _ 113


Já o projeto de Paulo Artaxo, profes- “Vamos medir com
sor do Instituto de Física da USP, inten- detalhes inéditos as Dados colhidos no Atlântico
sifica uma linha de investigação a que se propriedades ópti-
dedica há bastante tempo: os efeitos no cas e radiativas das Sul vão abastecer o modelo
clima regional e global das partículas de partículas de aeros-
aerossóis emitidas no Brasil. Os aeros- sóis e seus efeitos na
climático brasileiro e apoiar
sóis podem ser formados naturalmente formação e desenvol- a exploração do pré-sal
pelas emissões da floresta ou gerados vimento de nuvens”,
pela ação humana, como a queima de afirma o pesquisador.
combustíveis fósseis ou o desmatamen-
to – e tem forte influência no clima, em As dimensões humanas
fenômenos como o da formação e de- Rendeu bons resultados a convocação
senvolvimento de nuvens. O projeto feita a pesquisadores para que estudem
tem como enfoque as regiões amazôni- as dimensões humanas das mudanças
ca e do pantanal. “Estamos estudando climáticas. Três dos projetos contem-
as propriedades físicas e químicas das plados encaixam-se neste perfil. Um
partículas e seus efeitos no balanço de deles, apresentado por Daniel Hogan
radiação atmosférica, na alteração dos (1942-2010), um dos precursores dos es-
mecanismos de formação e desenvolvi- tudos sobre dinâmicas sociodemográfi-
mento de nuvens e os impactos no ciclo cas e ambientais na Unicamp e no Brasil,
hidrológico”, diz Artaxo. Segundo ele, e posteriormente liderado pela ecóloga
os dados estão sendo levantados utili- e socióloga Lúcia da Costa Ferreira, do
zando medidas de satélite, modelamen- Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambien-
to atmosférico e por meio de estações tais da Unicamp, está enfrentando um O navio oceanográfico
de monitoramento em diferentes locais: dos mais inquietantes dilemas impostos Alpha Crucis, adquirido
com apoio da FAPESP:
uma próxima a Manaus, outra em Porto pelas mudanças climáticas no Brasil e no impulso à pesquisa
Velho, que é impactada por emissões de mundo. Como as zonas costeiras serão as sobre a relação entre o
queimadas, e uma terceira no pantanal. primeiras e as mais afetadas pelos even- oceano e o clima

114  _ especial 50 anos fapesp


tentados na alta emissão de carbono, en- pação e uso da terra na Amazônia. Esses
tre outros gases de efeito estufa?” atores incluem grupos como os grandes
Ainda segundo Lúcia, desde o projeto plantadores de soja e outras commodi-
original apostou-se que essas respostas ties, os criadores de gado, os pequenos
só poderão ser encontradas através de agricultores, os madeireiros predadores,
categorias relacionadas a problemas de os madeireiros que cumprem regras de
escala – de tempo e espaço – e aos múl- manejo, os trabalhadores na indústria de
tiplos níveis da organização humana nos madeira, os ambientalistas, os cientis-
processos decisórios do setor. Por isso tas e os assentados”, diz Câmara. “Cada
houve um grande investimento na aqui- um deles procura influenciar os gover-
sição e tratamento de imagens de alta e nos federal, estadual e municipal para
média resolução e em pesquisas de ter- beneficiá-los, adotando políticas de seu
reno nos primeiros anos do projeto. “Já interesse.” A hipótese é que todos eles es-
temos dados sobre biomassa, transição tão representados na luta política. Dessa
demográfica e florestal, sobre a estrutu- forma, a elaboração das leis que definem
ra institucional mínima já implantada o uso da terra na Amazônia e seu cumpri-
na região, além do levantamento e ca- mento depende da força relativa de cada
racterização dos atores e das arenas de grupo. “A mudança no Código Florestal
decisão locais, regionais e nacionais.” em 1994, que alterou a área de proteção
de 50% para 80% em propriedades pri-

T
ambém debruçado sobre as dimen- vadas na Amazônia, foi uma vitória dos
sões humanas, o professor Ricardo ambientalistas, causada pela taxa de des-
Abramovay, da Faculdade de Eco- matamento ter chegado a 29 mil quilô-
nomia, Administração e Contabilidade metros quadrados nesse ano. No entanto,
(FEA) da USP, coordena um projeto que os ruralistas, organizados politicamente,
busca levantar os impactos socioeconô- impediram que a lei fosse aplicada”, diz
micos das mudanças climáticas, também Câmara. Segundo ele, a variação anual
com o objetivo de auxiliar na formula- das taxas de desmatamento não é bem
ção de políticas públicas coerentes. A explicada por modelos estatísticos, que
iniciativa tem várias frentes. Uma delas tentam correlacionar preços de merca-
é a busca de ferramentas que ajudem a dorias com áreas desmatadas. “Buscamos
tos climáticos extremos, como foi o caso melhorar a capacidade de previsão dos um entendimento socioantropológico
do furacão Catarina, que atingiu a costa efeitos sociais e econômicos das mu- sobre os atores institucionais na Amazô-
catarinense em 2004, Hogan decidiu se danças climáticas. Um segundo foco é a nia e o desenvolvimento de modelos que
concentrar em cidades médias do lito- análise da disposição do setor privado de usem esse conhecimento para construir
ral de São Paulo. “Isso porque elas estão responder às mudanças climáticas. “Mui- cenários realistas.”
menos preparadas para enfrentar o pro- tas empresas têm explicitado intenções
blema do que as grandes cidades”, disse de reduzir as emissões de carbono em Impactos na agricultura e na fauna
Hogan à Pesquisa FAPESP, em maio de seus processos produtivos. Queremos sa- Alguns projetos seguem uma direção mais
2009. Segundo Lúcia , uma questão se ber se essas intenções são verdadeiras e aplicada, buscando compreender como
coloca depois de vários anos de pesquisa. quais são seus desdobramentos”, afirma sistemas biológicos em áreas cultivadas,
“Se as pesquisas apontam a percepção Abramovay . Outra frente é a análise dos como cana-de-açúcar, soja e eucalipto, in-
generalizada de que a influência da ação processos de negociação que podem le- terferem nos padrões de emissões de gás
humana sobre as alterações climáticas é var à formação de mercados de créditos carbônico. Siu Mui Tsai, pesquisadora do
um fato; que a vulnerabilidade de mu- de carbono, hoje instáveis. “Também nos Cena-USP, é a responsável por um projeto
nicípios do litoral a eventos extremos e debruçamos sobre questões decisivas, que busca monitorar a diversidade e as
desastres ambientais é conhecida pela como a do consumo sustentável. A in- atividades funcionais de micro-organis-
opinião pública, em especial as tão co- tenção é mapear como o modelo de pro- mos impactados pelo desmatamento e
nhecidas áreas de risco; se há uma estru- dução e de consumo será afetado pelas as mudanças do uso da terra em cultivos
tura político-institucional mínima para mudanças climáticas”, afirma. de soja e de cana-de-açúcar. O impacto
enfrentar esses desafios, então por que Um projeto liderado pelo pesquisador na atmosfera da região Sudeste do lan-
foto  neil rabinowitz/www.neilrabinowitz.com

as escolhas sociais, estejam elas no nível do Inpe Gilberto Câmara busca identifi- çamento de material particulado – par-
do comportamento individual ou cole- car os atores institucionais relacionados tículas muito finas de sólidos e líquidos
tivo, recaem sempre sobre as atividades aos desmatamentos da Amazônia e estu- suspensos no ar – é investigado pelo pro-
humanas sustentadas no petróleo e gás, dar os seus comportamentos, para cons- jeto do pesquisador Arnaldo Alves Car-
em ocupar áreas de risco, especialmente truir cenários mais eficientes de impactos doso, professor do Instituto de Química
em áreas de proteção à biodiversidade? de políticas públicas. “Chamamos de ato- da Unesp de Araraquara. “Nossa região é
E por que ainda há tanta esperança nos res institucionais os grupos organizados muito impactada por queimadas de cana,
planos de desenvolvimento regional sus- da sociedade que têm influência na ocu- mas ainda faltam estudos que mapeiem

pESQUISA FAPESP maio de 2012  _ 115


o lançamento de material particulado
na atmosfera proveniente de diferentes
fontes, como cidades, indústrias e ou- Investimento em pessoal e em
tras etapas do processo agroindustrial, e
quais as possíveis consequências para o infraestrutura nos anos 1990
ambiente”, diz Cardoso.
O grupo de Newton La Scala Júnior,
formou lideranças no estudo das
professor da Faculdade de Ciências mudanças climáticas
Agrárias e Veterinárias da Unesp de
Jaboticabal, analisa o impacto de prá-
ticas de manejo agrícola nas emissões
de CO2 oriundas do solo em áreas de zar de forma mais intensiva as emis- que têm muito a contribuir com a pes-
produção de cana-de-açúcar no inte- sões”, afirma. quisa em conservação e mudanças cli-
rior paulista. “Há aspectos distintos na Até que ponto a fauna silvestre é ca- máticas”, afirma Navas. “Nosso objetivo
emissão de CO2 do solo, principalmen- paz de se ajustar aos regimes de chuvas é estudar fisiologia animal no contexto
te nos sistemas agrícolas. Essa emissão e temperatura alterados pelas mudanças de extremos climáticos, por exemplo, de
varia no tempo e no espaço, é afetada climáticas? Carlos Arturo Navas, profes- temperatura, para entender e até ante-
pelo manejo, especialmente pelo prepa- sor do Instituto de Biociências da USP, cipar como populações animais pode-
ro do solo. O objetivo é mapear o papel coordena um projeto que busca iden- riam responder às mudanças climáticas.”
das diversas práticas de manejo sobre a tificar esse limite, particularmente da
emissão desse gás carbônico no solo”, perspectiva dos eventos extremos do Massa crítica para a pesquisa do clima
afirma La Scala. O projeto é uma se- clima. Há tempos Navas investiga a plas- A criação do PFPMCG foi possível gra-
quência de vários outros que o grupo de ticidade da fisiologia da fauna, ou seja, ças à massa crítica formada nas últimas
La Scala realizou na última década. São a sua capacidade de ajuste e adaptação décadas na pesquisa climática no país
analisados solos utilizados para explo- ao longo de gradientes ambientais – para – e a FAPESP teve um papel importan-
ração agrícola no período em que ficam entender, por exemplo, como uma popu- te neste esforço. Na década de 1990, o
desprovidos de vegetação. Nessa etapa, lação típica da base de uma montanha apoio da Fundação propiciou a forma-
o solo torna-se um emissor de CO2, pois pode dar origem a populações em zonas ção de recursos humanos e a criação de
não há vegetação presente e não ocorre de maior altitude. No ano passado, Navas infraestrutura avançada de pesquisa,
fotossíntese. “O objetivo é avançar nosso concluiu um projeto temático sobre esse ajudando a criar lideranças nacionais no
entendimento sobre as emissões de ga- assunto. “Há cerca de quatro anos me estudo das mudanças climáticas globais
ses de efeito estufa do solo em prá­ticas dei conta de que esse know-how de pes- num momento em que o tema ganhava
agrícolas. Diver- quisa teria utilidade também em relação importância e repercussão. O climatolo-
O supercomputador sos sistemas de às mudanças climáticas. E notei, ainda, gista Carlos Nobre, do Inpe e membro
Tupã: simulações manejo interfe­ que não estava sozinho, pois há pesqui- da coordenação executiva do PFPMCG,
para abastecer o
rem na perda de sadores dos Estados Unidos e da Europa cita dois exemplos dessa contribuição. O
modelo climático
brasileiro e previsões carbono e busca­ debruçados sobre o mesmo desafio. A fi- primeiro foi o investimento, em 1996, no
meteorológicas mos carac­t e­r i­ siologia animal desenvolveu ferramentas Laboratório de Instrumentação Meteo-
mais precisas rológica (LIM) do Inpe, em Cachoeira
Paulista, que se tornou referência para
pesquisadores das ciências ambiental
e meteorológica no Brasil. O segundo,
em 1999, foi a criação de um sistema de
dados e informações do Experimento de
Grande Escala da Biosfera-Atmosfera
da Amazônia (LBA), uma das maiores
experiências científicas do mundo na
área ambiental: soma 156 projetos de
pesquisa, desenvolvidos por 281 insti-
tuições nacionais e estrangeiras. “Foi a
primeira vez que foi possível reunir da-
dos de um experimento multidisciplinar.
Não tenho dúvidas de que o sucesso do
programa não teria sido o mesmo sem
esse sistema”, diz Carlos Nobre, que foi
o primeiro coordenador executivo do
PFPMCG e atualmente é secretário de
políticas e programas de pesquisa e de-
senvolvimento do Ministério da Ciência,

116  _ especial 50 anos fapesp


Casas atingidas
por deslizamento
em Teresópolis
(RJ) , em janeiro de
2011: pesquisadores
investigam a
vulnerabilidade das
cidades para propor
políticas públicas

Tecnologia e Inovação (MCTI). “O su-


cesso foi tão grande que serviu de ins-
piração para bancos de dados de outros
programas, como o Biota FAPESP e o
PFPMCG”, afirma. A FAPESP, observa
Nobre, também foi uma das principais
fontes de financiamento do LBA, ao pa-
trocinar projetos de pesquisa de cientis-
tas paulistas vinculados ao programa,
que é gerenciado pelo MCTI e coorde-
nado pelo Inpe e pelo Instituto Nacional
de Pesquisas da Amazônia (Inpa), man-
tendo parcerias com a Agência Espacial
Norte-Americana, a Nasa (na sigla em
inglês), e muitas outras instituições dos
Estados Unidos e Europa.

A
partir de 2000, a pesquisa sobre
mudanças climáticas no Brasil
ganhou mais volume e densida-
de, gerou um conjunto de contribuições
originais e alcançou visibilidade inter-
nacional significativa. Vários grupos do
estado de São Paulo se destacaram nesse
esforço, com apoio da FAPESP. Avan-
çou-se, por exemplo, na determinação
do papel das queimadas como fator de
perturbação do equilíbrio da atmosfera e
dos ecossistemas, em projetos liderados
por nomes como Paulo Artaxo, da USP,
Alberto Setzer e Karla Longo, pesqui-
sadores do Inpe. “Houve um enorme
avanço nesse campo”, observa Carlos
Nobre. A modelagem da integração en-
tre vegetação e clima também avançou,
mostrando os riscos das mudanças cli-
máticas para a manutenção dos grandes
biomas brasileiros, como a Amazônia e o
cerrado, sob a liderança de pesquisado-
res como Carlos Nobre e Gilvan Sampaio,
do Inpe, e Humberto Ribeiro da Rocha,
foto 1. eduardo cesar  2. fabio motta/ae

professor do IAG-USP. O entendimen-


to dos impactos ambientais nos ciclos
biogeoquímicos das plantações de cana-
-de-açúcar, principalmente nos siste-
mas aquáticos, sob a liderança de Luiz
Martinelli, do Cena-USP, e o balanço
detalhado das emissões de carbono pelo

pESQUISA FAPESP maio de 2012  _ 117


uso de biocombustíveis, notadamente o PFPMCG, coordenado por Tércio Am-
etanol, sob a liderança de Isaias Macedo, brizzi, do IAG-USP, usará o navio ainda Seca no rio Negro na
da Unicamp, também foram contribui- neste ano. O objetivo é analisar o impacto região da cidade de
Iranduba (AM), próxima
ções originais. Na oceanografia, houve do Atlântico no clima da América do Sul
a Manaus, em outubro
avanços no entendimento da circulação nos séculos XX e XXI. de 2010: fenômenos
de correntes oceânicas no Atlântico Sul, climáticos extremos
em pesquisas lideradas por Paulo Nobre, Debate mundial tornaram-se mais
frequentes
do Inpe, e Edmo Campos, do Instituto A consistência da produção científica
Oceanográfico da USP, com destaque pa- brasileira já garante ao país um espaço
ra a interação entre a corrente brasileira maior no debate científico mundial sobre
com a corrente das Malvinas. as mudanças climáticas. Na conferência
A compra de um novo navio oceano- Planet Under Pressure, realizada no final
gráfico para pesquisadores do estado de de março em Londres em preparação
São Paulo, financiada pela FAPESP e pela à Rio+20, foi assinado um memoran-
USP, também foi incorporada recente- do de entendimento para colaborações
mente ao programa. Batizado de Alpha em pesquisa sobre mudanças climáti-
Crucis, a embarcação será uma platafor- cas globais entre as agências de finan-
ma de pesquisas em alto-mar, com des- ciamento à pesquisa de países signatá-
taque para estudos sobre oceanografia, rios do chamado Belmont Forum. Um
biodiversidade marinha e, é claro, as mu- dos objetivos do grupo, integrado pela
danças climáticas. “O uso do navio em FAPESP e por algu-
diversos projetos de pesquisa permitirá mas das principais
explorarmos o papel do Atlântico Sul no agências financia-
clima brasileiro e global”, diz Reynaldo doras de projetos Elaboração de leis ambientais
Victoria. O Alpha Crucis serviu até re- de pesquisa sobre
centemente à Universidade do Havaí e mudanças climá- depende da força relativa de
foi completamente reformado num esta- ticas no mundo, é
leiro em Seattle após ser adquirido. Tem tentar mudar os
fazendeiros, trabalhadores,
capacidade de levar 40 pessoas a bordo, rumos da colabo- cientistas e ecologistas
sendo 25 pesquisadores e 15 tripulan- ração internacional
tes. Um projeto temático vinculado ao em pesquisa sobre

118  _ especial 50 anos fapesp


o tema por meio de chamadas conjuntas agências de financiamento à pesquisa de
Ricardo Azoury / pulsar imagens

de pesquisas interdisciplinares. Lan- países que compõem o G8 (grupo dos De nosso arquivo
çada em abril, a primeira chamada de sete países mais desenvolvidos mais a
propostas conta com recursos da ordem Rússia). A partir do segundo encontro, Clima de união
Edição nº 151 – setembro de 2008
de € 20 milhões, dos quais € 2,5 milhões em Londres, em 2010, o grupo passou a
serão investidos pela FAPESP, sendo contar com representantes de agências Cardápio energético
Edição nº 157 – março de 2009
€ 1,5 milhão para projetos de pesquisa de países emergentes como o Brasil, re-
sobre segurança hídrica e € 1 milhão pa- presentado pela FAPESP, China, Índia e Elenco eclético
Edição nº 160 – junho de 2009
ra pesquisas sobre vulnerabilidade cos- África do Sul. “O PFPMCG é um marco
O futuro da natureza e da agricultura
teira. Os projetos serão executados por importante de incentivo a pesquisas in-
Edição nº 164 – outubro de 2009
pesquisadores do estado de São Paulo terdisciplinares em uma área estratégica
Para evitar novos flagelos
nessas áreas em parceria com cientis- para o Brasil”, afirma Paulo Artaxo. “Par-
Edição nº 171 – maio de 2010
tas de, pelos menos, outros dois países cerias nacionais e internacionais estão
Rajendra Pachauri: O homem do clima
participantes do fórum. sendo articuladas no programa, incenti-
Edição nº 192 – fevereiro de 2012
Coordenado pelo International Group vando a internacionalização da pesquisa
A voz dos cientistas na Rio+20
of Funding Agencies for Global Change em São Paulo. O trabalho em conjunto Edição nº 193 – março de 2012
Research (IGFA), o Belmont Forum foi com os programas Biota e o Bioen, da
criado em 2009 durante uma conferência FAPESP, também é fundamental na es-
realizada pela National Science Founda- truturação de políticas públicas e no esta-
tion (NSF), dos Estados Unidos, e pelo belecimento de estratégias de mitigação
Natural Environment Research Council das mudanças climáticas que serão im-
(Nerc), do Reino Unido, na cidade norte- plantadas em nosso país. Tais estratégias
-americana de Belmont. Participaram necessitam de sólida base científica, e é
do primeiro encontro representantes de papel da FAPESP promovê-las”, afirma. n

Projetos do Programa FAPESP de Pesquisa em Mudanças Climáticas Globais


projeto coordenação investimento
Effects of emissions on current and future rainfall patterns in Southeast Brazil – Arnaldo Alves Cardoso R$ 772.087,94
nº 2008/58073-5 (2009-2013) IG/Unesp
Effects of global climate change of the Brazilian fauna: a conservation physiology approach – Carlos Arturo Navas Iannini R$ 1.092.786,44
nº 2008/57687-0 (2009-2013) IB/USP
Urban growth, vulnerability and adaptation: social and ecological dimensions of climate change on the Lúcia da Costa Ferreira R$ 1.181.736,80
coast of São Paulo – nº 2008/58159-7 (2009-2013) Nepam/Unicamp
Land use change in Amazonia: institutional analysis and modeling at multiple temporal and spatial Gilberto Camara Neto R$ 1.194.720,00
scales – nº 2008/58112-0 (2010-2014) Inpe/MCTI
Carbon tracker and water availability: controls of land use and climate changes – Humberto Ribeiro da Rocha R$ 1.884.704,99
nº 2008/58120-3 (2009-2013) IAG/USP
Impact of management practices on soil CO2 emission in sugarcane production areas, Southern Brazil – Newton La Scala Junior R$ 528.986,32
nº 2008/58187-0 (2009-2012) FCAV/Unesp
Aeroclima – direct and indirect effects of aerosols on climate in Amazonia and Pantanal – Paulo Eduardo Artaxo Netto R$ 2.535.758,04
nº 2008/58100-2 (2009-2013) IF/USP
The role of rivers on the regional carbon cycle – Reynaldo Luiz Victoria R$ 1.073.273,97
nº 2008/58089-9 (2009-2013) Cena/USP
Socio-economic impacts of climate change in Brazil: quantitative inputs for the design of public policies Ricardo Abramovay R$ 115.089,90
nº 2008/58107-7 (2009-2013) FEA/USP
Monitoring the microbial diversity and functional activities in response to land-use changes and Siu Mui Tsai R$ 1.017.172,18
deforestation under soybean and sugarcane cultivations – nº 2008/58114-3 (2009-2013) Cena/USP
Geração de cenários de produção de álcool como apoio para a formulação de políticas públicas Jurandir Zullo Junior R$ 547.722,00
aplicadas à adaptação do setor sucroalcooleiro nacional às mudanças climáticas – Cepagri/Unicamp
nº 2008/58160-5 (2010-2014)
Sistema de Alerta Precoce para Doenças Infecciosas Emergentes na Amazônia Ocidental: inovação Manuel J. C. M. Paiva Ferreira R$ 654.654,00
tecnológica visando à adaptação a efeitos negativos da mudança climática global sobre a saúde Unifran
humana – nº 2008/58156-8 (2010-2014)
Assessment of impacts and vulnerability to climate change in Brazil and strategies for adaptation option José Antonio Marengo Orsini R$ 1.021.109,52
– nº 2008/58161-1 (2010-2014) Inpe/MCTI
The evaluation of energy efficiency and CO2 equivalent abatement potentials according to different Gilberto De Martino Jannuzzi R$ 40.710,00
technology dissemination policies: guidelines to policy-makers – nº 2008/58076-4 (2011-2013) Cocen/Unicamp
Narrowing the uncertainties on aerosol and climate changes in São Paulo State - nuances-SPS Maria de Fatima Andrade R$ 1.646.883,47
2008/58104-8 (2011-2015) IAG/USP
The evaluation of energy efficiency and CO2 equivalent abatement potentials according to different Maria de Fátima Andrade R$ 1.646.883,47
technology dissemination policies: guidelines to policy-makers – nº 2008/58104-8 (2011-2015) IAG/USP
Brazilian Model of the Global Climate System Carlos Afonso Nobre R$ 571.200,00
nº 2009/50528-6 (2011-2015) CPTEC/INPE
Miniface climate-change impact experiment to analyze the effects of elevated CO2 and warming on Carlos A. Martinez y Huaman R$ 1.154.426,05
photosynthesis, gene expression, biochemistry, growth, nutrient dynamics and yield of two contrasting FFCLRP/USP
tropical forage species – nº 2008/58075-8 (2011-2015)
Impact of the Southwestern Atlantic ocean on South American climate for the 20th and 21st centuries – Tercio Ambrizzi R$ 3.034.727,23
nº 2008/58101-9 (2011-2015) IAG/USP

pESQUISA FAPESP maio de 2012  _ 119


_ Observatório Pierre Auger

Raios cósmicos,
ainda um enigma
Análise da origem e da identidade de partículas de altíssimas
energias avança e traz outras perguntas difíceis

Carlos Fioravanti

miguel boyayan

120  _ especial 50 anos fapesp


U
ma das notícias distribuídas pela Estadual de Campinas (Unicamp) e coordenadora
agência internacional Reuters em 8 da equipe paulista. Dos cerca de 450 autores dos
de novembro de 2007 foi “Cosmic artigos científicos com dados do observatório, 30
rays believed to start in black holes” são brasileiros, dos quais 19 são paulistas. Resul-
(em uma tradução livre, “Raios cós- tado de uma colaboração internacional que reúne
micos, acredita-se, se originam em buracos ne- hoje cerca de 500 físicos de 90 instituições de 19
gros”). A revista inglesa The Economist abdicou países, o observatório começou a ser construído
da habitual cautela e, no mesmo dia, estampou: há dez anos ao pé dos Andes em uma planície se-
“Eles vêm do espaço exterior – um mistério de midesértica dos arredores de Malargüe, noroeste
40 anos está solucionado”, referindo-se à pos- da Argentina. Os físicos começaram a coletar da-
sível origem dessas partículas. Os resultados do dos em janeiro de 2004, enquanto a construção
trabalho de uma equipe internacional de físicos seguia, até ser concluída em 2008.
e engenheiros do Observatório Pierre Auger, na A taxa de correlação entre os raios cósmicos
Argentina, ganharam uma imensa repercussão e os núcleos ativos de galáxias, que era de 69%
– o site do Auger selecionou 65 reportagens de em 2007, caiu para aproximadamente 40%, es-
jornais e revistas de todo o mundo que deram a tabilizando nesse patamar, nos anos seguintes,
novidade, detalhada no principal artigo científi- à medida que os detectores de superfície e os te-
co publicado na revista científica Science no dia lescópios detectavam mais partículas, mas ainda
seguinte –, mas o mistério ainda não se desfez. está acima dos 21% de que essa relação seja puro
Quatro anos depois, persistem as indicações de acaso. Diferentemente dos físicos dos acelerado-
que os núcleos ativos de galáxias, onde se formam res de partículas, que podem produzir colisões
os buracos negros, podem mesmo ser o berçário entre prótons quando quiserem, os do Pierre Au-
Uma planície ao pé
dos raios cósmicos de energia ultra-alta, acima ger têm de esperar que cheguem do céu. Por ano,
dos Andes: espaço
ideal para a captura
de 1019 elétron-Volt (eV). “O sinal se mantém, apenas umas poucas dezenas de raios cósmicos
de partículas que embora menos intenso”, diz a física Carola Do- de altíssimas energias chegam ao topo da atmosfera
vêm do espaço brigkeit Chinellato, professora da Universidade terrestre. Cada um deles atravessa a atmosfera e

pESQUISA FAPESP maio de 2012  _ 121


interage com os núcleos de átomos e mo- como o Fly’s Eye, que funcionou de 1981 RAIOS RAROS
léculas do ar, produzindo um chuveiro a 1992 nos Estados Unidos com 67 teles-
O físico francês Pierre Victor Auger
atmosférico formado de bilhões de partí- cópios, e o Akeno Giant Air Shower Array
identificou os chuveiros de partículas
culas. Parte dessas partículas irá atingir os (Agasa), no Japão, com 111 detectores de
em um experimento histórico realizado
1.660 detectores de superfície, os chama- superfície. “Vários detalhes inovadores do
nos Alpes em 1938. Tantos anos depois,
dos tanques Cerenkov, cada um com 12 mil projeto original estão mostrando valor ago-
ainda não se conhece a composição dos
litros de água puríssima. Os sensores dos ra”, observa o físico Carlos Escobar, profes-
raios cósmicos de altíssima energia. A
tanques detectam a luz azulada emitida na sor da Unicamp que coordenou a equipe
principal razão é que são bastante raros.
água quando as partículas eletromagnéti- brasileira e a negociação com as empresas
Quanto maior a energia, mais raras as
cas passam pelos tanques. (veja ilustração ao longo da construção do observatório na
partículas. “Quando a energia aumenta
na página seguinte). Argentina desde as primeiras reuniões de
dez vezes, o número de raios cósmicos
planejamento, participando como um dos
que chegam à Terra com energia acima

E
spalhados por 3,3 mil quilômetros dois representantes brasileiros, ao lado de
desse valor fica cem vezes menor”, diz
quadrados – o dobro da área da ci- Ronald Shellard, pesquisador do Centro
Carola. “Os raios cósmicos mais energé-
dade de São Paulo –, os detectores Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), do
ticos têm mais do que 1019 eV e somente
de superfície funcionam de modo inte- Rio de Janeiro, e atual coordenador da par-
uns poucos deles chegam à Terra por
grado com os 27 telescópios de fluores- ticipação brasileira no Auger. Desde abril
quilômetro quadrado por ano. Para as
cência, os chamados olhos-de-mosca, de 2011, Escobar trabalha como pesquisa-
partículas com energia acima de 1020 eV,
capazes de registrar a tênue luz emitida dor convidado no Fermilab, em Chicago,
essa taxa cai para uma partícula por qui-
pelas moléculas de nitrogênio da alta Estados Unidos. lômetro quadrado por século.”
atmosfera quando excitadas pelas par- Segundo ela, nas análises
tículas do chuveiro iniciado pelo raio dos raios cósmicos ultrae-
cósmico que chegou à Terra. Por serem nergéticos detectados no Ob-
tão sensíveis é que os detectores de fluo- servatório Auger, o resultado
rescência, instalados em quatro prédios, Só uma partícula de da correlação com os núcle-
só funcionam às escuras, em noites sem os ativos de galáxias refor-
lua, enquanto os tanques captam as par- altíssima energia chega ça a hipótese de que os raios
tículas do chuveiro o tempo todo. cósmicos sejam prótons, ou
O Pierre Auger foi o experimento pionei-
à Terra por quilômetro seja, núcleos de hidrogênio.
ro em integrar os dois métodos indepen- quadrado por século “O raciocínio por trás dessa
dentes de observação, até então adotados interpretação é que os raios
isoladamente em observatórios menores cósmicos teriam sido pouco
desviados pelos campos mag-
néticos que atravessaram, guardando,
assim, a proximidade angular com suas
Detectores em campo possíveis fontes”, diz. “Caso fossem nú-
cleos de elementos mais pesados, como
O Observatório Pierre Auger ocupa 3,3 mil quilômetros quadrados, o ferro, por exemplo, eles teriam sofrido
o dobro da área da cidade de São Paulo ou 10 vezes a de Paris deflexões maiores nos campos magnéti-
cos, o que acabaria com essa correlação.”
Mas não é assim tão simples. As ob-
servações do desenvolvimento dos chu-
veiros de partículas pelos telescópios
de fluorescência e comparações com
previsões teóricas indicam que os raios
cósmicos poderiam ser – ao menos al-
guns deles – núcleos mais pesados, co-
mo o ferro, ou seja, blocos de 26 pró-
Compartimentos
com os telescópios
tons e 30 nêutrons. “Essa interpreta-
de fluorescência
ção é bastante dependente da validade
Detectores de dos modelos teóricos na descrição do
desenvolvimento dos chuveiros”, ob-
superfície

serva Carola. “Os modelos teóricos são,


em parte, baseados em extrapolação de
observações em experimentos com ace-
leradores de partículas a energias bem
inferiores.” Na prática, por enquanto
não há como simplesmente optar por
uma conclusão ou outra.
Fonte: Observatório Pierre Auger

122  _ especial 50 anos fapesp


À espera das partículas
O Observatório Pierre Auger integra duas formas independentes de detecção de raios cósmicos

1 Ao chegarem à Terra, os raios cósmicos


colidem com o nitrogênio da alta atmosfera
e produzem um chuveiro de partículas

2 3

As partículas são
também registradas
quando reagem
com a água dos
tanques dos detectores
A colisão entre as de superfície
partículas produz
uma tênue luz
azul, captada pelos 4
telescópios de Um computador central reúne as
fluorescência informações dos telescópios e dos
detectores de superfície para definir
a possível origem e direção dos
raios cósmicos.

P
ara chegar a uma resposta menos Os patamares de energias totais nas ocupa é tão grande que mesmo o mais
dúbia, os físicos terão de ajustar, colisões das partículas que estão anali- alucinado dos motoqueiros que voam en-
corrigir ou ampliar essas aborda- sando são cerca de 100 a 200 vezes mais tre carros na cidade de São Paulo dificil-
gens teóricas para elucidarem a identi- altos que os das produzidas no Large mente conseguiria ver em apenas um dia
dade dos raios cósmicos. A física teórica Hadron Collider (LHC), o maior acele- todos os 1.660 tanques cilíndricos de 3,7
não explica como os raios cósmicos po- rador de partículas do mundo, situado metros de diâmetro por 1 de altura, cada
dem adquirir uma energia 100 milhões no Centro Europeu de Pesquisas Nuclea­ um a uma distância de 1,5 quilômetro de
de vezes superior à das partículas do res (Cern), em Genebra. Os grupos do outro, formando uma malha triangu-
mesmo tipo produzidas no Tevatron, o LHC também vivem avanços, recuos e lar. De dois anos para cá, conta Escobar,
mais poderoso acelerador de partículas desvios para confirmar a existência do os tanques ganharam mais dispositivos
do mundo, situado no Fermilab. Ou seja, chamado bóson de Higgs, uma partícula eletrônicos e, além de registrarem a luz
as ferramentas conceituais são limitadas hipotética que deveria conferir massa às produzida na colisão com a água dos
e as alternativas, ainda frágeis. “Nossos demais partículas e confirmar as fórmu- tanques, estão servindo para registrar a
dados de 2007 enfraquecem ainda mais las com que os físicos trabalham há 50 chegada das partículas formadas quan-
os modelos top down”, diz Escobar. De- anos. “Heráclito já dizia que a natureza do os raios cósmicos se fragmentam ao
fendidos por outros grupos de físicos, os ama esconder-se”, diz Escobar. “Para bater na atmosfera terrestre, reforçan-
modelos top down pressupõem a exis- sabermos com precisão se os raios cós- do a argumentação para desvendarem a
tência de partículas com energias ainda micos são prótons ou núcleos de ferro, identidade dos raios cósmicos.
infográficos  tiago cirillo  ilustrações drüm

mais altas que as detectadas, acima de precisaremos de mais 15 anos de toma-

O
1020 eV. Em oito a dez artigos científicos da de dados”, diz ele. “Na época em que s leitores eletrônicos dos tanques
publicados a cada ano, os físicos do Au- construímos o observatório não parecia, do Observatório Pierre Auger já
ger têm detalhado essas e outras con- mas 3 mil quilômetros quadrados, a área são capazes de detectar chuvei-
clusões, além de apresentarem as novas atual do observatório, é pouco.” ros iniciados por neutrinos e fótons na
possibilidades de uso dos equipamentos, Construído de 2002 a 2008, o Pierre alta atmosfera; neutrinos são partículas
como o monitoramento do clima ou do Auger é o maior observatório de raios com uma quantidade ínfima de massa e
movimento de placas tectônicas. cósmicos em funcionamento. A área que muito abundantes, só menos abundan-

pESQUISA FAPESP maio de 2012  _ 123


A participação brasileira no tes que as partículas de luz, os chama- por dia em média a serem trocadas. Ela
dos fótons. “Existem atualmente mode- conta que está acompanhando os testes
Observatório Pierre Auger los teóricos que preveem a produção de nos Estados Unidos com dez tanques
neutrinos e fótons nas mesmas fontes de experimentais, em novo formato e com
Investimentos raios cósmicos ou mesmo durante a pro- nova eletrônica, “também adquiridos
FAPESP, US$ 2,5 milhões; Finep/MCT, pagação dos raios cósmicos pelo espa- com apoio da FAPESP”, ressalta ela. Os
US$ 1 milhão; CNPq, US$ 300 mil; ço, mas até agora ainda não detectamos novos tanques usam apenas um leitor
FAPERJ: R$ 200 mil nenhum deles chegando à Terra”, diz da luz, em vez de três, como nos atuais.
Carola. “O fato de não os detectarmos

O
Instituições também é importante.” trabalho atual é relativamente
Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas Como atual coordenadora do projeto simples, diante da quantidade
(CBPF); Pontifícia Universidade Católica – temático ligado ao Auger (os projetos de imprevistos que já enfrenta-
Rio de Janeiro (PUC-RJ); Universidade de anteriores estavam sob a coordenação ram. No início, os tanques Cerenkov não
São Paulo (USP), Instituto de Física, São de Escobar), ela está acompanhando a funcionavam por uma razão simples:
Paulo; Universidade Estadual de Campinas troca das baterias dos tanques Cerenkov. as vacas do pasto se interessaram pelos
(Unicamp); Universidade Estadual de Feira As baterias armazenam a energia produ- novos vizinhos, os tanques, e algumas
de Santana (UEFS); Universidade Estadual zida pelos painéis solares e usada por começaram a mastigar os fios de trans-
do Sudoeste da Bahia (Uesb); Universidade um miniprocessador que detecta os si- missão de dados. Foi o argentino Ricardo
Federal da Bahia; Universidade Federal do nais dos raios cósmicos e os transmite Perez, responsável pela manutenção dos
ABC (UFABC); Universidade Federal do Rio ao computador central, a quilômetros tanques, que usou seu conhecimento de
de Janeiro (UFRJ) de distância. ex-técnico em mineração e bolou uma
“O trabalho de trocar as duas baterias caixa de proteção dos fios – e as vacas
Empresas de cada um dos 1.600 tanques, à medi- nunca mais atrapalharam a ciência.
Alpina Termoplásticos; Rotoplastyc Indústria da que vão se esgotando as suas vidas “Quando esse projeto começou”, re-
de Rotomoldados; Equatorial Sistemas; úteis, é contínuo, e a reposição durante corda-se Carola, “tudo parecia um so-
Schwantz Ferramentas Diamantadas; e os próximos quatro anos está garantida nho inatingível”. O maior observatório
Acumuladores Moura pelo apoio da FAPESP”, diz Carola. São de raios cósmicos do mundo começou a
em média 600 baterias por ano ou duas ser planejado em 1992 pelo físico norte-

124  _ especial 50 anos fapesp


Ciência em campo:
o norte-americano
Patrick Allison e o
francês Xavier Bertou
instalam a eletrônica
em um detector de
superfície. À esquerda,
um dos fotodetectores
de raios cósmicos

-americano James Cronin, professor da pela Unicamp e agora a acompanha co- observatório, um belíssimo prédio com
Universidade de Chicago premiado com mo professor da Universidade Federal do largos vidros no lugar de paredes, como
o Nobel de Física em 1980, e pelo escocês ABC. “A participação brasileira teria sido parte dos passeios de finais de semana.
Alan Watson, da Universidade de Leeds, menor se tivesse sido escolhido um dos Conhecida como principal região produ-
da Inglaterra. Como a necessidade de co- outros dois países candidatos, a África do tora de vinhos da Argentina, Mendoza
operação internacional se tornava clara Sul ou a Austrália.” A participação brasi- avançava também no campo científico.
em vista das proporções que o projeto leira, oficializada em 17 de julho de 2000

L
original assumia, eles convidaram uns na Unicamp, traduziu-se em investimen- ogo começaram a chegar os cami-
poucos colegas inte- tos de cerca de US$ 4 nhões – muitos caminhões – com
ressados e experien- milhões, na forma de equipamentos. Desde o início de
tes na área de física equipamentos com- 2001, a Alpina, uma empresa de São
de partículas para uma prados de indústrias Paulo, fabricou e despachou os tanques
primeira conversa, em nacionais e no custeio Cerenkov, em viagens que não levavam
junho de 1995. Um dos de bolsas de pós-gra- menos de duas semanas e estavam su-
partici­pantes era Esco- duação e de despesas jeitas a todo tipo de imprevisto, de bu-
bar, na época profes- Em 2011 de viagens. racos em estradas estreitas a guardas
sor da Universidade de Malargüe, cidade rodoviários que pediam para ver o que
São Paulo (USP). começou a de 23 mil habitantes havia dentro dos tanques. A Rotoplastyc,
Em uma reunião e dois cruzamentos uma empresa do Rio Grande do Sul, fez
realizada na sede da
troca das com semáforo a 420 parte dos tanques em operação e parti-
Unesco, em Paris, em baterias dos quilômetros de Men- cipou do desenvolvimento e produção
novembro de 1995, doza, o centro urbano dos tanques em novo formato.
Escobar, Ronald Shel­ 1.600 detectores mais próximo dotado A Schwantz, de Indaiatuba (SP), fez e
lard, do Centro Bra- de linhas aéreas regu- enviou as lentes corretoras dos telescó-
sileiro de Pesquisas de superfície lares, começou a mu- pios de fluorescência; feitas com vidro
Físicas (CBPF), e Ar- dar com o início das alemão, as lentes convergentes em for-
mando Turtelli, da obras, em meados de mato de trapézio, com 25 centímetros
Unicamp, e os cole- 1999. Começaram a de altura, formam um anel corretor ao
gas argentinos Alber- chegar os pesquisa- longo das bordas do diafragma, que re-
to Etchegoyen e Alberto Filevich defen- dores estrangeiros, vindos dos Estados gula a entrada de luz, como o diafragma
deram arduamente a possibilidade de o Unidos, Itália, Alemanha, Polônia, Es- de uma câmera fotográfica, e aumenta o
fotos  miguel boyayan

novo observatório ser construído na Ar- lovênia e muitos outros países. Depois raio da lente de 85 para 110 centímetros,
gentina. “Esse foi um momento crucial”, de vencerem o estranhamento inicial, sem perder a qualidade da imagem. A
conta o físico Marcelo Leigui, que parti- os malarguenses correram para apren- Equatorial, de São José dos Campos (SP),
cipou dessa pesquisa como pós-doutor der inglês e incluíram visitas à sede do fabricou o protótipo de um dispositivo

pESQUISA FAPESP maio de 2012  _  125


O físico indonésio
Richard Randria
analisa chuveiros de
partículas na central
de aquisição de dados

Os Projetos
1. Estudo dos raios cósmicos
de mais altas energias com o
Observatório Pierre Auger –
nº 2010/07359-6 (2010-2014)
2. Observatório Pierre Auger
– nº 1999/05404-3
(2000-2007)
modalidade
1. e 2. Projeto Temático
Co­or­de­na­dores
1. Carola Dobrigkeit
Chinellato – Unicamp
2. Carlos Ourívio Escobar
de 2,5 metros de diâmetro que permite a regula- largüe. Com ele estava José Roberto Leite, físico
investimento
gem automática das lentes dos telescópios e os da Universidade de São Paulo (USP) e diretor da 1. R$ 3.064.952,43
shutters (obturadores), que expõem o telescópio Sociedade Brasileira de Física (SBF), que faleceu 2. R$ 6.034.341,71
para observação noturna. A Moura, de Recife, inesperadamente no ano seguinte.
tem feito as baterias para os painéis solares dos A construção guarda algumas coisas notáveis. artigo científico
detectores de superfície. A primeira é que os dados já eram coletados à
medida que os equipamentos eram instalados. The Pierre Auger

C
Collaboration. Correlation of
ada um dos 17 países participantes contri- Outra, que os físicos e engenheiros não hesitavam the Highest-Energy Cosmic
buiu com o envio de equipamentos e de em fazer qualquer trabalho que fosse necessário. Rays with Nearby
pesquisadores, de modo que o observatório “Temos de fazer o que for preciso”, disse-me em Extragalactic Objects.
Science. v. 318, n. 5852,
guarda um pouco da melhor tecnologia do mundo. 2003 o francês Xavier Bertou, coordenador de p. 938-43, 2007.
A Argentina entrou com a infraestrutura, com as operações científicas. Bertou deixara Paris no
máquinas para purificação de água dos tanques ano anterior, instalara-se em Malargüe e não dis-
De nosso arquivo
e uma parte dos tanques e das baterias para os pensava mais o chimarrão no final de tarde. Ele
painéis solares que alimentam os detectores de e outros físicos, na maioria pós-doutores na casa Mais massa para os raios
dos 30 anos, montavam equipamentos durante o cósmicos
superfície, numa divisão de tarefa com os mexi-
Edição nº 170 – abril de 2010
canos e os norte-americanos. Da Austrália saíram dia nos tanques ou nos prédios dos telescópios
Enigmas do espaço
os detectores de nuvens e da França, os dispositi- e à noite, muitas vezes até 3 da madrugada, nas
Edição nº 167 –
vos eletrônicos para os detectores de superfície. oficinas do prédio da cidade. janeiro de 2010
Os tchecos enviaram os espelhos dos telescópios “Mostramos que é possível executar um projeto
Pierre Auger é inaugurado
e os espanhóis, os painéis solares dos tanques. Os de grande porte com um orçamento inferior ao Edição nº 154 –
detectores de luz fluorescente dos telescópios planejado”, disse Escobar em 2007. Os gastos to- dezembro de 2008
integraram câmeras italianas e comandos eletrô- tais foram de US$ 54 milhões, US$ 6 milhões abai- Pierre Auger, agora pronto
nicos feitos por ingleses e por alemães. xo do previsto. Como conseguiram, se a maioria Edição nº 149 –
julho de 2008
Os leitores desta revista acompanharam a cons- dos projetos estoura os orçamentos? Negociando
trução do Pierre Auger. Em agosto de 2000, a preços com os fornecedores de equipamentos e A longa jornada dos raios
cósmicos...
matéria de capa de Pesquisa Fapesp, escrita por economizando o máximo possível. Em 2005, ao Edição nº 142 –
Mariluce Moura, contava dos bastidores das ne- ver que estavam gastando muito, Escobar decidiu dezembro de 2007
gociações e do início da construção. Em abril de que os integrantes da equipe brasileira deixariam Chuva de partículas
2002, outra matéria descrevia o ritmo das obras: de ir para o Observatório Pierre Auger por meio de Edição nº 116 –
“Neste momento, num espaço que às vezes lembra dois voos e começariam a ir de avião só até Bue- outubro de 2005
o refinamento de uma nave espacial e outras, as nos Aires, de onde poderiam tomar um ônibus e Os olhos do deserto
obras robustas de uma hidrelétrica, dezenas de chegar a Malargüe depois de 16 horas de viagem. Edição nº 90 –
agosto de 2003
operários, técnicos e pesquisadores trabalham Ninguém contestou. Em um ano, Sérgio Carme-
intensamente na montagem dos equipamentos lo Barroso, como pós-doutor da Unicamp, teve Os raios cósmicos estão
chegando
de medição dos raios cósmicos”. Nessa época, de ir dez vezes a Malargüe para montar e testar Edição nº 74 – abril de 2002
José Fernando Perez, então diretor-científico equipamentos. Ele continua participando desse
Cerco no ar, captura na terra
da FAPESP e presidente do comitê financeiro trabalho, agora como professor da Universidade Edição nº 56 –
do Observatório Auger, visitou as obras em Ma- Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb). n agosto de 2000

126  _ especial 50 anos fapesp


_  n anociência

Ourivesaria
em átomos
Um punhado de partículas de
ouro e prata pode formar
intrigantes joias nanométricas

Igor Zolnerkevic

U
m momento histórico para a ciência brasi-
leira aconteceu no dia 17 de dezembro de
2001. A edição daquela semana da mais
importante revista de física do mundo,
a Physical Review Letters (PRL), estampava pela
primeira vez em sua capa uma pesquisa 100% tu-
piniquim. A simulação por computador descrita no
artigo em destaque, assinado por Edison Zacarias
da Silva, da Universidade de Campinas (Unicamp),
e Adalberto Fazzio e Antônio José Roque da Silva,
ambos da Universidade de São Paulo (USP), re-
velou pela primeira vez como um amontoado de
300 átomos de ouro esticado pelas pontas pode se
distender formando um fio, que só se rompe após
se afinar, até criar um colar feito de apenas cinco
átomos enfileirados.
Esse trabalho teórico foi inspirado nos resultados
de experimentos realizados em microscópios eletrô-
nicos, na época sob administração do Laboratório
Nacional de Luz Síncrotron (LNLS), e que hoje fa-
zem parte do Laboratório Nacional de Nanotecno-
logia (LNNano), em Campinas. Os experimentos fo-
ram idealizados pelo criativo físico argentino Daniel
Ugarte. Desde que chegou ao Brasil em 1993, para
trabalhar no LNLS, Ugarte, que atualmente é profes-
sor da Unicamp, formou uma equipe cuja pesquisa
rende até hoje artigos na PRL e em outras revistas
fernando sato

de alto impacto. Depois de observar os nanofios de


ouro – uma façanha que outros grupos experimen-

pESQUISA FAPESP maio de 2012  _ 127


A receita dos fios de ouro
Esticando contatos de ouro Furando filmes de ouro

Filme de ouro

Dois filamentos Filme de ouro


de ouro são é colocado em
postos em microscópio
Pontas de filamentos contato em eletrônico
de ouro em contato ambiente de
ultra-alto vácuo
Feixes de elétrons
Pressão
nanométrica

Uma ponta Feixes de elétrons


metálica aplica abrem buracos
uma pressão no filme
Afastamento sobre o contato

Buracos

Corrente elétrica Os dois buracos se


nos filamentos dilatam, esticando
sinaliza a os átomos de ouro
Corrente formação de entre eles, formando
elétrica nanofios os nanofios

tais no exterior já haviam conseguido – o drigues, que construiu um instrumento elétrica pelos filamentos. Diferentemente
time de Ugarte passou a última década capaz de criar nanofios e medir suas pro- de um fio macroscópico, a corrente elétri-
descobrindo e explicando a formação de priedades elétricas, o chamado experi- ca em um nanofio não diminui de maneira
estruturas completamente inéditas, do mento de quebra mecânica controlada suave e linear à medida que seu diâmetro
tamanho de poucos nanômetros (isto é, de junções. Para tanto, o maior desafio foi se reduz. Em vez disso, a corrente elétrica
de milionésimos de milímetros), feitas criar uma câmara de ultra-alto vácuo, um permanece constante em certas faixas de
do encadeamento de átomos de metais compartimento sem ar e extremamente tamanho e cai em vários saltos abruptos.

infográfico  TIAGO cirillo, fonte: USP/Unicamp/LNLS  simulação  zacarias da silva, roque da silva e adalberto fazzio
nobres: as menores ligas metálicas já limpo, onde puderam analisar as mais pu- Cada tipo de nanofio tem um padrão de
construídas e o menor nanotubo de prata ras possíveis amostras de seus materiais. saltos diferente, que funciona como uma
possível na natureza. impressão digital.

N
Entender essas nanoestruturas metá- o equipamento desenvolvido por Enxergar os nanofios só foi possível a
licas se torna cada vez mais importante à Rodrigues, as pontas afinadas de partir de 1998, quando Ugarte começou a
medida que a miniaturização dos micro- dois filamentos metálicos de apro- coordenar no LNLS a montagem do que
chips dos dispositivos eletrônicos chega ximadamente um décimo de milímetro seria, dentro de dez anos, o laboratório
cada vez mais perto da escala atômica. de espessura são encostadas uma na ou- de microscopia eletrônica mais com-
É bem provável que nos próximos anos tra. No ambiente de ultra-alto vácuo, as pleto do país. Utilizados por centenas
sejam construídos transistores feitos de duas pontas ficam grudadas pela força de pesquisadores de todo o Brasil, seus
uma única molécula. E para conectar atrativa entre seus átomos. Em seguida, seis instrumentos, com poder de am-
uma série dessas moléculas em um mi- os pesquisadores forçam de leve o contato pliação de mais de um milhão de vezes,
crochip, os engenheiros precisarão de entre elas. É nesse momento que os nano- custaram R$ 8 milhões, financiados pela
fios nanométricos que conduzam eletri- fios se formam, como o queijo derretido FAPESP. Ugarte supervisionou o pro-
cidade bem e sejam resistentes. entre dois pedaços de pizza sendo sepa- jeto especial do prédio e das salas que
rados, pendurados entre as pontas dos fi- abrigam os microscópios, construídos
Nanoartesanato lamentos. O instrumento não permite ver com R$ 6 milhões da Financiadora de
Ugarte começou a estudar nanofios de os nanofios, o que é possível apenas por Estudos e Projetos (Finep), e que isolam
cobre, ouro, prata e platina em 1996, com meio de microscópios eletrônicos. Para ao máximo os delicados instrumentos
seu então estudante de mestrado e hoje detectar sua presença, os pesquisadores de vibrações mecânicas, mudanças de
colega professor na Unicamp, Varlei Ro- monitoram a passagem de uma corrente temperatura e campos eletromagnéticos.

128  _ especial 50 anos fapesp


“Grosso modo, o microscópio eletrô- são, se alongando até formar uma fileira
nico de transmissão funciona como um de cinco átomos antes de arrebentar. Um nanofio se
retroprojetor”, explica o pesquisador O trio de físicos teóricos descobriu
Jef­ferson Bettini, do LNNano. Em vez da ainda que, nas pontas dessa fileira atô- forma e se rompe
luz de uma lâmpada, é um feixe de elé- mica, os átomos de ouro formam uma
trons focalizado por lentes magnéticas estrutura muito estável que batizaram
que atravessa uma lâmina de material, de chapéu francês, por lembrar a figura
interagindo com ele. O feixe resultante do chapéu de soldado de brincadeira
da interação é então projetado por outras que as crianças fazem com jornal. Em
lentes e registrado por uma câmera de trabalhos posteriores de Fazzio e sua
vídeo. Soa fácil de usar, mas na verdade equipe, o grupo de Simulação Aplicada
um estudante pode levar de dois a três a Materiais e Propriedades Atomísticas
anos para dominar o instrumento e obter (Sampa), da USP, a nova estrutura foi
imagens relevantes. “Microscopia não é usada para construir em simulações de A
apertar botão”, afirma Ugarte. “É você computador as pontas conectando um
no comando, pilotando.” transistor feito de uma única molécula
com uma superfície de ouro. A descober-

P
ara criar os nanofios no microscó- ta também motivou Fazzio e sua equipe
pio eletrônico, Ugarte usou o pró- a desenvolver técnicas que simulam de
prio feixe de elétrons da máquina. maneira realista a passagem dos elétrons
Focalizado em sua máxima intensidade, por moléculas orgânicas, nanofios metá-
o feixe é capaz de abrir buracos na su- licos, nanotubos, nanofitas e superfícies
perfície de lâminas metálicas finas, com de carbono, que renderam várias publi- B
apenas algumas dezenas de átomos de cações, inclusive na PRL.
espessura. Depois de perfurar a lâmina Enquanto isso, o grupo de Ugarte ini-
até que ela ficasse como um queijo suí- ciou uma parceria que perdura até hoje
ço, o físico ajustava rapidamente o feixe com a equipe do físico teórico Douglas
eletrônico para explorar sua superfície. Galvão, da Unicamp. “A gente se reúne
É em pontes estreitas, na borda entre com os alunos, os dele e os meus, e discute
dois buracos muito próximos, em ques- o que é possível medir e calcular”, conta
tão de segundos, que o metal se distende Ugarte. “É uma colaboração extremamen- C
espontanea­mente até formar os nanofios. te frutífera”, diz Galvão. Além de realizar
Ugarte e Rodrigues descobriram que, alguns cálculos similares aos da equipe de
dependendo de sua orientação em rela- Fazzio, que simulam no máximo algumas
ção à maneira como os átomos se orga- centenas de átomos, Galvão desenvolveu
nizam no metal, os nanofios podem se junto com Fernando Sato, Pablo Coura e
romper abruptamente ou aos poucos, Sócrates Dantas, todos da Universidade
se esticando até formarem cadeias de Federal de Juiz de Fora, um método mais
átomos enfileirados. Além disso, usando aproximado, que, no entanto, permite si-
um modelo geométrico simples, foram mular milhares de átomos e assim compa- D
os primeiros a conseguir relacionar as rar o resultado dos cálculos diretamente
estruturas atômicas dos nanofios vistas com as medidas experimentais.
ao microscópio com suas impressões di- O primeiro desafio encarado em con-
gitais de condução elétrica. O resultado junto pelos gru­pos de Ugarte e Galvão foi
foi publicado em 2000, na PRL. tentar explicar as distâncias extremamen-
te longas entre os átomos de ouro das ca-
Teoria na prática deias atômicas. Enquanto em um pedaço
Nenhum modelo teórico simples, entre- de ouro qualquer os núcleos dos átomos
tanto, conseguia explicar como se forma- se encontram 0,3 nanômetro distantes uns
vam os fios de ouro com apenas um áto- dos outros, Ugarte E
mo de espessura, até que, incitados por observou nas cadeias A simulação
Ugarte, Zacarias da Silva, Fazzio e José distâncias de até 0,5 publicada na revista
Physical Review
Roque decidiram realizar uma simulação nanômetro entre os
Letters em 2001
extremamente detalhada, a partir de so- átomos de ouro. A revelou, passo a
luções exatas das equações da mecânica explicação propos- passo (A a F), as
quântica. A simulação que saiu na capa ta em 2002 em um ligações e posições
dos átomos de ouro
da PRL finalmente conseguiu mostrar artigo na PRL por
durante a formação
passo a passo os arranjos que assumem Ugarte, Rodrigues, e rompimento F
um conjunto de átomos de ouro sob ten- Galvão e Sérgio Le- de um nanofio

pESQUISA FAPESP maio de 2012  _ 129


goas, da Universidade Federal de Ro- Ligas e tubos na prestigiosa Nature Nanotechnology.
raima, foi que átomos de carbono, com Outra questão que Galvão e Ugarte ten- Os editores da revista elegeram a pesqui-
bem menos carga elétrica que o ouro, e, taram responder, desta vez com inegável sa como sendo uma das mais importan-
portanto, invisíveis ao microscópio ele- sucesso, foi como se formam os nanofios, tes do ano. Na mesma época, os pesqui-
trônico, teriam se infiltrado nas cadeias não de um elemento puro, mas de uma sadores também conseguiram observar
atômicas, se alojando entre os átomos de liga metálica. As simulações da formação nanoligas de ouro e cobre.
ouro. Fazzio e seus colaboradores, entre- de cadeias atômicas de ligas com compo- Em 2005, um novo estudante, o peru-
tanto, rejeitaram a explicação em outro sição variada de ouro e prata feitas pela ano Maureen Lagos, aceitou outro desa-
artigo publicado no ano seguinte na PRL, equipe teórica de Galvão revelaram um fio: usar nitrogênio líquido para refazer
argumentando que a impureza entre os estranho comportamento. Por mais prata a uma temperatura de 150° C negativos
átomos de ouro não era carbono, mas sim que a liga tivesse, o estiramento dos na- os experimentos de Ugarte e Rodrigues,
átomos de hidrogênio. nofios expulsava os átomos de prata, fa- que haviam sido feitos a temperatura am-
A polêmica continua acesa, com am- zendo com que as cadeias atômicas con- biente. Os pesquisadores esperavam que,
bos os grupos publicando artigos e co- tivessem somente ouro. Apenas quando a resfriados a esta temperatura extrema,
mentários, muitos na PRL, defendendo concentração de prata ultrapassava 80% os átomos se arranjariam de maneiras
suas teorias. Ugarte comenta que a dis- do total é que surgiam cadeias atômicas diferentes, criando nanofios com pro-
cussão “é bem agressiva, mas é a forma mistas de ouro e prata. priedades inéditas.
com que se trabalha em ciência: a gen- De início, Ugarte achou que seria im-

L
te discorda e não se ofende com isso”. possível verificar o resultado dessas si-
agos passou dois anos modifican-
Faz­zio, por sua vez, comemora os frutos mulações, uma vez que os átomos de do o equipamento criado por Ro-
do que chama de “briga salutar”. Por ouro e prata são praticamente indistin-
drigues para medir a condutância
exemplo, estudando o efeito de vários guíveis nas imagens preto e branco do
elétrica dos nanofios resfriados. Depois,
tipos de impurezas nos nanofios, o grupo microscópio eletrônico. Mas seu cole-
adaptou o método de criar e observar
de Fazzio mostrou em outro artigo pu- ga Bettini passou um ano aprimorando
nanofios ao microscópio eletrônico para
blicado na PRL em 2006 que a inserção os sistemas de detecção e tratamento
baixas temperaturas. Por conta de vibra-
de átomos de oxigênio tornava as cadeias de dados do instrumento, até conseguir
ções das peças do microscópio causadas
atômicas de ouro mais resistentes – um a sensibilidade para discernir entre as
pelo processo de resfriamento, o experi-
efeito verificado posteriormente por ex- tonalidades de cinza dos dois tipos de
mento exigia que Lagos passasse quatro
perimentos de outros pesquisadores. átomo e obter as primeiras imagens das
dias trancado em uma sala escura até
Agora, Fazzio e sua equipe esperam re- menores ligas metálicas já observadas.
conseguir a estabilidade necessária para
solver de vez a questão desenvolvendo Os resultados foram publicados em 2006
suas medidas. Foram anos de trabalho
métodos de simulação ainda mais de- para obter poucas deze-
talhados, que levam em conta efeitos nas de filmes com alguns
quânticos do movimento dos núcleos segundos de duração, em
atômicos e de flutuações térmicas – mé- A polêmica continua, que se podem ver clara-
todos que poderão ser aplicados em mui- mente os nanofios.
tos outros estudos. Do ponto de vista da com os grupos publicando O mais espetacular
contenda entre os dois grupos, porém, dos nanofios observados
os resultados ainda preliminares desses artigos e comentários foi um tubo oco de seção
cálculos não parecem animadores. “Tal-
vez Ugarte tenha razão”, admite Fazzio.
em defesa de suas teorias quadrada, feito de átomos
de prata. A estrutura sur-
ge e desaparece em ques-
tão de segundos, durante
o esticamento de um bastão de alguns
átomos de espessura, um pouco antes
deste se afinar criando uma cadeia atô-
mica e arrebentar. Galvão explica que é
a menor estrutura tridimensional que a
prata pode formar. “Nem teoricamente
foi especulado que esse nanotubo podia
existir”, ele diz. “Foi realmente uma des-
coberta inesperada.”
Embora o surgimento da curiosa es-
O curioso formato trutura pareça óbvio nos vídeos filmados
quadrado dos por Lagos, não foi nada fácil para os pes-
fotos  fernando sato

menores nanotubos
quisadores determinarem sua verdadeira
de prata possíveis
foi uma descoberta natureza. Só através de muito raciocínio
inesperada e simulações computacionais, eles con-
firmaram que o tubo que enxergavam de

130  _ especial 50 anos fapesp


OS PROJETOS

1. Centro de Microscopia
Eletrônica de Alta
Resolução –
nº 1996/04241-5
(1998-2002)
2. Conductance
quantization in
metallic nanostructures
– nº 1996/12546-0
(1997-2000)
3. Synthesis and
characterization of
nanostructured
materials –
nº 1997/04236-4
(1997-1999)
4. Analytical
transmission electron
microscope for
spectroscopic
nanocharacterization
of materials –
nº 2002/04151-9
(2004-2009)
5. Simulação
computacional de
As menores ligas materiais
2 metálicas já nanoestruturais –
construídas valeram-se nº 2001/13008-2
do encadeamento (2002-2006)
de átomos de 6. Simulação e
metais nobres modelagem de
nanoestruturas e
materiais complexos –
nº 2005/59581-6
(2006-2010)
7. Propriedades
eletrônicas,
ARTIGOS
perfil nas imagens era realmente oco e esticados até formarem cadeias atômi- magnéticas e de

científicos
formado por uma série de quadrados, cas. O segredo dessa plasticidade é que transporte em
nanoestruturas –
feitos de quatro átomos de prata. Com- os átomos dos nanofios se movem mais nº 2010/16202-3
1. SILVA, Z. da et al.
How do Gold
parando seus cálculos com as imagens, devagar a baixas temperaturas. Assim, (2011-2011)
Nanowires Break?. explicaram também como os quadra- eles não podem se rearranjar abrupta- MODALIDADEs
Physical Review dos de prata podem se mexer, girando, mente, o que provocaria o rompimento 1. a 4. Auxílio Pesquisa
Letters. v. 87, p. 25610, – Regular
2001.
contraindo e expandindo o nanotubo. do fio. Em vez disso, planos de átomos se 5. a 7. Projeto Temático
“Conseguir ver e entender isso foi uma deslocam no fio, criando degraus na su- COORDENADORes
2. LAGOS, M. J. et al.
Observation of the
maravilha”, diz Ugarte. A descoberta foi perfície. São esses defeitos na superfície 1. a 4. Daniel Mário
smallest metal publicada em 2009 na Nature Nanotech- que permitem que o fio se alongue mais, Ugarte – Laboratório
Nacional de Luz
nanotube with a nology, enquanto os detalhes do modelo sem se romper. Os cálculos dos pesqui- Síncrotron
square cross-section.
Nature Nanotechnology.
da dinâmica do nanotubo, executado por sadores demonstraram como o tamanho 5. a 7. Adalberto Fazzio
v. 4, p. 149-52, 2009. Pedro Autreto renderam um artigo na e a forma dessas superfícies defeituosas – Instituto de Física
da USP
PRL, em 2011. controlam a deformação dos nanofios.
INVESTIMENTO
De nosso Também em 2011, na PRL, os pesqui­ É no estudo da influência desses de- 1. R$ 2.621.484,09
arquivo sadores publicaram uma explicação feitos nas propriedades mecânicas dos 2. R$ 113.921,64
para a conclusão principal da tese de materiais que Galvão, Rodrigues e Ugarte 3. R$ 69.251,70
Ponte delicada 4. R$ 5.039.090,12
Edição nº 115 –
doutorado de Lagos, considerada como planejam se concentrar a partir de agora, 5. R$ 924.102,48
setembro de 2005 uma das melhores de 2010, pelo Prêmio investigando a relação entre o mundo 6. R$ 607.550,62

As impurezas do ouro
Marechal-do-Ar Casimiro Montenegro nanométrico e o macroscópico. “A fadi- 7. R$ 1.324.211,88

Edição nº 85 – Filho, concedido pela Secretaria de As- ga e a fratura de metais são fenômenos
março de 2003 suntos Estratégicos da Presidência da ainda não completamente entendidos e
Desafios para o futuro República. Lagos observou que, resfria- que têm a ver com a propagação desses
Edição nº 74 – dos a -150 °C, os nanofios não se tornam defeitos na escala nanométrica”, explica
abril de 2002
quebradiços como se poderia imaginar. Galvão. A nova pesquisa poderá ajudar a
Átomos de ouro Muito pelo contrário, fios que se rom- desenvolver novos materiais mais resis-
entram no circuito
Edição nº 72 – periam bruscamente a temperatura am- tentes, para serem usados, por exemplo,
fevereiro de 2002 biente ficam mais flexíveis, podendo ser na fuselagem de aviões. n

pESQUISA FAPESP maio de 2012  _ 131


_ g eologia

Nasce um
continente
Laboratório pioneiro ajuda a reconstruir
a história geológica da América do Sul,
determinando a idade das rochas

Igor Zolnerkevic

É
difícil imaginar que as fundações rochosas susten-
tando os continentes não sejam eternas e estáticas.
Ao longo da segunda metade do século XX, porém,
ficou claro para os geólogos que os continentes se
movem lentamente, abrindo e fechando oceanos
à sua volta, e que sua estrutura interna é fruto de
uma complexa colagem de imensos blocos de rocha que foram
crescendo e sendo embaralhados na superfície do planeta ao
longo de mais de 4 bilhões de anos.
Impulsionados pelo calor do interior da Terra, esses blocos
às vezes se fragmentaram em unidades menores, às vezes se
fundiram em supercontinentes, constantemente modificando
as feições do mapa-múndi. Essa conturbada dinâmica, expli-
cada pela chamada teoria da tectônica de placas, ergueu várias
cordilheiras de montanhas, hoje completamente erodidas,
mas que já foram tão altas quanto os atuais Andes e Himalaia.
Também criou e destruiu inúmeros oceanos ancestrais, até
esculpir o contorno atual dos continentes.
Destrinchar cada passo dessa história é literalmente um
quebra-cabeça de proporções globais, cujas peças ainda estão
para serem totalmente compreendidas. Funcionando há qua-
se 50 anos, o Centro de Pesquisas Geocronológicas (CPGeo),
do Instituto de Geociências (IGc) da Universidade de São
Paulo (USP), foi o pioneiro na América Latina em dominar a
lalo de almeida

arte da geocronologia – a determinação precisa da idade de


eventos geológicos gravados nas rochas –, essencial para se Chapada dos Veadeiros,
reconstruir a evolução dos continentes. norte de Goiás

132  _ especial 50 anos fapesp


“O que se conhece de geocronologia sobre a América do
Sul começou conosco”, lembra Umberto Cordani, um dos
fundadores do CPGeo e até hoje um de seus pesquisadores
principais. Por meio de suas datações de rochas, os pesquisa-
dores do CPGeo contribuíram para a consolidação da teoria
da tectônica de placas, bem como ajudaram a esclarecer a
história dos blocos rochosos que se amalgamaram para for-
mar a América do Sul.
O centro nasceu de uma iniciativa do geólogo Viktor Leinz,
então professor catedrático da Universidade de São Paulo
(USP), em conjunto com o físico John Reynolds, da Univer-
sidade da Califórnia, em Berkeley, Estados Unidos. Reynolds
foi um dos pioneiros em desenvolver métodos de geocronolo-
gia e responsável pela implantação de laboratórios em vários
países. Com apoio da National Science Foundation, o físico
norte-americano adquiriu os equipamentos necessários, en-
quanto Leinz obteve junto à FAPESP e o CNPq os recursos
para a instalação e manutenção do laboratório na USP.
Inaugurado em 1964, o laboratório foi operado inicial-
mente por Reynolds, pelo físico Koji Kawashita e pelos então
recém-formados geólogos Gilberto Amaral e Cordani. Já na
primeira datação realizada pelo laboratório, os pesquisado-
res fizeram uma descoberta importante, publicada em 1966
na revista Geochimica et Cosmochimica Acta: de acordo com
suas medidas, as rochas vulcânicas da Formação Serra Geral,
na bacia do Paraná, deveriam ter se formado no período Cre-
táceo Inferior (entre 100 milhões e 150 milhões de anos atrás)

pESQUISA FAPESP maio de 2012  _ 133


Chapada Diamantina (BA), 1,4 bilhão de anos

– muito tempo depois do que supunham 1968, porém, uma série de artigos cientí- há pouco mais que 100 milhões de anos.
os geólogos da época. A pesquisa desen- ficos foi publicada, exibindo as principais “Contribuímos para a mudança de pa-
cadeou discussões sobre a evolução da evidências e propondo pela primeira vez radigma das geociências”, diz Cordani.
bacia do Paraná, um tema que, segundo quais seriam os mecanismos por trás da
Cordani, continua sendo um dos pro- teoria da tectônica de placas. Cronômetros geológicos
blemas em aberto da geologia brasileira. O artigo na Science foi resultado de uma A geocronologia se baseia na medida de
Em 1967, a revista Science publicou o colaboração entre uma equipe do Ins- quantidades ínfimas de certos elementos
artigo científico que Cordani considera a tituto de Tecnologia de Massachusetts químicos aprisionados dentro de mine-
principal contribuição (MIT), liderada pelo rais nas rochas. Chamados de isótopos
do CPGeo à ciência. geólogo Patrick Hur- radioativos, esses elementos se transfor-
Embora a deriva dos ley, e os pesquisado- mam em outros, ao longo de bilhões de
continentes já tivesse A evolução res da USP Fernando anos. No primeiro método desenvolvido
sido proposta em 1912, de Almeida, Geraldo no CPGeo, chamado de potássio-argônio,
pelo geocientista ale- da bacia do Melcher, Paul Vando- por exemplo, os pesquisadores sabem
mão Alfred Wegener, ros, Kawashita e Cor- exatamente quanto tempo demora para
até o início dos anos
Paraná dani. No trabalho, os uma quantidade do isótopo radioativo
1960 predominava en- continua pesquisadores compa- potássio-40 se transformar no isótopo
tre os geólogos a teoria raram as idades de vá- argônio-40. Assim, a proporção entre
verticalista – a ideia como um dos rias formações rocho- as quantidades de potássio-40 e argô-
de que os continentes sas do Nordeste brasi- nio-40 funciona como uma espécie de
sempre permaneceram problemas leiro com formações cronômetro, marcando o tempo desde
no mesmo lugar, sendo semelhantes na África que o argônio foi formado e aprisionado
que a estrutura das ro-
em aberto Ocidental, contribuin- no mineral contendo potássio.
chas, suas dobras e fa- da geologia do para demonstrar Para tanto, os geocronólogos usam ins-
lhas podiam ser expli- que os dois continen- trumentos chamados de espectrômetros
cadas exclusivamente brasileira tes formavam um só, de massa, capazes de separar e medir
pelo afundamento e so- antes de o nascimen- as abundâncias de diferentes isótopos
fabio colombini

erguimento dos blocos to do oceano Atlântico de elementos químicos. Dentro dos es-
rochosos. Entre 1964 e começar a separá-los, pectrômetros de massa, as amostras são

134  _ especial 50 anos fapesp


aquecidas a altas temperaturas, liberan- deformaram as rochas. Já nos anos 1990, nentais menores, além do recente cintu-
do seus elementos, cujos átomos perdem com a compra de mais equipamentos, fi- rão da cordilheira dos Andes, ainda em
seus elétrons, se tornando ionizados. nanciada pela FAPESP, foram implanta- constante crescimento devido ao embate
Campos magnéticos então separam esses dos mais métodos, tais como o samário- entre a placa tectônica oceânica de Naz-
núcleos ionizados de acordo com suas -neodímio, que determina o momento ca e a placa continental sul-americana.
massas e cargas elétricas, os conduzindo em que o magma que deu origem à rocha Esse esforço de décadas, que contou
até sensores que os contabilizam. subiu até a crosta terrestre, e o método sempre com apoio da FAPESP, principal-
Além do método potássio-argônio, urânio-chumbo, que diz quando o mag- mente em sua etapa final, por meio de
atual­mente os laboratórios do centro ma se resfriou e cristalizou em rocha. Há dois projetos temáticos, coordenados por
realizam quase todas as técnicas de da- ainda muitos outros métodos (argônio- Cordani – “Evolução Tectônica da Amé-
tação de rochas, que foram sendo desen- -argônio, chumbo-chumbo, rênio-ósmio, rica do Sul”, de 1993 a 1996, e “Evolução
volvidas ao longo dos anos, à medida que etc.), cada um ideal para determinar a Crustal da América do Sul”, de 1996 a
seus pesquisadores realizavam estudos data de certo evento geológico registrado 2000 –, culminou com a publicação do
no exterior para aprendê-las ou recebiam em um certo tipo de rocha. livro Evolução Tectônica da América do
pesquisadores visitantes estrangeiros que Sul, durante o 31º Congresso Geológico

C
ajudavam a implantá-las – intercâmbios ordani explica que os primeiros 30 Internacional, na cidade do Rio de Ja-
possíveis graças a bolsas da FAPESP. “Ho- anos do CPGeo foram dedicados neiro, em 2000. Escrito em colaboração
je somos um dos centros de geocronologia a um extensivo mapeamento das com dezenas de pesquisadores de várias
mais completos do mundo”, afirma Ben- idades das rochas dos principais blo- universidades do Brasil e do exterior, o
jamin Bley de Brito Neves, pesquisador cos que formam a crosta continental da volume apresentou a síntese mais com-
do CPGeo. “Cada método tem suas quali- América do Sul: os antigos, imensos e es- pleta até aquele momento da evolução
dades, defeitos e finalidades”, ele explica. táveis blocos de rochas conhecidos como de cada núcleo rochoso do continente,
O método potássio-argônio data dos crátons, formados em sua maioria entre delineando a história de como cresceram
episódios em que as rochas passaram por 500 milhões e 4 bilhões de anos atrás, e se juntaram.
mudanças de temperaturas, desde a sua sendo o maior deles o cráton amazônico,
formação. Implantado no começo dos contendo 52% do território brasileiro, Um novo patamar
anos 1970, o método rubídio-estrôncio, seguido dos crátons do São Francisco e Embora as linhas gerais da história da
fornece a idade de movimentações que do rio de La Plata, e fragmentos conti- formação da América do Sul já sejam
bem compreendidas, ainda há muitos
detalhes importantes a serem desven-
dados. “A geologia vive de interpretar as
Vestígios de Rodínia informações disponíveis no momento”,
explica Miguel Basei, do CPGeo, que co-
Fragmentos se espalham pela América do Sul ordenou o mais recente projeto temático
do centro, “A América do Sul no Contex-
to dos Supercontinentes”, iniciado em
2005 e concluído em 2011.
Graças à reforma e ampliação do
CP-Geo realizados durante o projeto,
seus pesquisadores obtiveram um nú-
mais de 2,5 bilhões de anos mero recorde de dados sobre a idade e
2,35 a 2,3 bilhões de anos a composição química de rochas. Foram
2,2 a 2 bilhões de anos milhares de datações realizadas todo ano
2 a 1,8 bilhão de anos que permitiram confirmar ou refutar
1,8 a 1,5 bilhão de anos uma série de hipóteses sobre a evolução
1,3 a 1 bilhão de anos dos blocos que se fundiram para formar
menos de 1 bilhão de anos a América do Sul, bem como suas antigas
conexões com blocos em outros conti-
nentes, especialmente na África.
“O patamar do nosso conhecimento
mudou”, afirma Colombo Tassinari, do
CPGeo. As novas visões da história geo-
lógica foram publicadas em capítulos de
A - Cráton São Luís
livros e duas centenas de artigos científi-
Benjamin Bley Brito Neves / USP

B - Província Borborema J - Terreno Punta del Este


C - Bloco Parnaíba K - Microbacia Falkland cos. Entre as publicações se destacam as
D - Cráton São Francisco L - Terreno Granja
E - Cráton Paranapanema M - Terreno Cuyana edições especiais de 2011 do International
F - Bloco Rio Apa N - Terreno Pâmpia Journal of Earth Science e do Journal of
G - Cráton Luiz Alves O - Terreno Arequiça
H - Maciço Curitiba P - Terreno Antofalla South American Earth Sciences, inteira-
I - Cráton Rio da Plata Q - Cráton Amazônico mente dedicadas às conclusões do projeto.

pESQUISA FAPESP maio de 2012  _ 135


A maior revolução veio com a insta- para serem analisados no espectrômetro Cânion do Itaimbezinho (RS),
lação do Shrimp – sigla em inglês para de massa. Assim, é possível descobrir a uma cicatriz geológica
de 130 milhões de anos
Microssonda Iônica de Alta Resolução –, idade de cada evento de recristalização.
um tipo de espectrômetro de massa pro- O interesse da Petrobras em financiar
jetado para realizar principalmente o a compra do Shrimp é sua utilidade na
método de urânio-chumbo com extre- busca por petróleo. Por meio das data-
mo detalhe. Só existem 16 desses ins- ções detalhadas feitas pelo instrumento,
trumentos em operação no mundo, sen- os geólogos descobrem como se forma-
do o da USP o único da América Latina. ram as rochas sedimentares de uma cer-
Fabricado pela Australia Scientific Ins- ta região e quais foram as mudanças de
truments, foi adquirido em 2005, com temperatura que elas sofreram ao longo
financiamento da FAPESP (1,5 milhão de sua história – dados importantes pa-
de dólares) e da Petrobras (1,5 milhão ra se determinar a possibilidade de elas
de dólares). Em 2010 foi inaugurado um conterem reservas petrolíferas.
novo prédio ao lado do IGc, construído Enquanto cada análise isotópica do
especialmente para abrigar o Shrimp e Shrimp demora em torno de 15 minutos,
seus equipamentos periféricos. os pesquisadores muitas vezes optam por
realizar essas medidas com um pouco

U
m deles é um microscópio de ca- menos de precisão, mas em 50 segundos
todoluminescência, que obtém e com um custo de operação um terço
imagens de cristais de zircão (o mais barato, usando o Neptune – um es-
mineral que contém o Urânio), cujo ta- pectrômetro de massa de ablação por
manho varia de 30 a 300 micrômetros laser adquirido em 2009 com verba da
(milésimos de milímetro). As imagens Finep e instalado com apoio da FAPESP. tro de massa convencional, o Triton. Um

CARLOS GOLDGRUB / OPÇÃO BRASIL IMAGENS


revelam a estrutura interna do zircão, É um dos quatro instrumentos desse aparelho mais simples, mas de última
que guarda o registro dos vários cresci- tipo funcionando no país. Em vez de um geração, o Triton analisa amostras de
mentos e modificações a que foi sujeito feixe de oxigênio, o Neptune usa um fei- minerais dissolvidos após um demorado
desde a sua primeira cristalização. Como xe de luz laser para arrancar dos zircões tratamento químico. O passo lento de se-
as várias camadas de uma cebola, cada pedaços de 20 a 30 micrômetros a serem te análises por dia, entretanto, compensa
camada externa do grão corresponde a analisados pelo espectrômetro. Além pela alta precisão da medida.
um episódio que fundiu e depois recris- disso, os nove coletores de isótopos do
talizou o mineral. “Um único grão de zir- Neptune permitem medir a quantidade Passado supercontinental
cão pode às vezes contar a história com- de vários elementos químicos diferentes Os pesquisadores do GPGeo estudam
pleta de uma região”, explica Tassinari. ao mesmo tempo. A velocidade do Nep- todas as eras da Terra. No último projeto
O Shrimp funciona disparando um tune permite aos geólogos datarem mais temático, entretanto, suas pesquisas se
feixe de íons de oxigênio, capaz de acer- de 60 zircões em um dia, um ritmo ideal concentraram em um período crítico da
tar um ponto específico escolhido pelos para estudos preliminares de reconheci- história da crosta continental sul-ame-
pesquisadores no grão de zircão, com mento e para datar rochas sedimentares, ricana, quando muitos de seus pedaços
uma precisão de até cinco micrôme- formadas dos detritos de outras rochas. fizeram parte de dois supercontinentes.
tros. O feixe libera os átomos de urânio Dentro do projeto temático, o CPGeo No começo, por volta de 4,5 bilhões de
e chumbo aprisionados no ponto do grão adquiriu ainda um terceiro espectrôme- anos, a superfície do planeta era cober-
ta por um mar de lava. “A Terra é uma
bomba térmica e é o seu resfriamento
Cristais de zircão, usados para determinar a idade de rochas que produz as rochas”, explica Bley. Há
4 bilhões de anos, o planeta esfriou o su-
ficiente para que surgissem as primeiras
massas de terra firme (as rochas mais
antigas conhecidas foram descobertas
em 2008, na província de Quebec, no
Canadá, com 4,28 bilhões de anos). En-
tretanto foi só há 2,5 bilhões de anos que
as massas continentais atingiram tama-
nhos consideráveis, embora ainda fos-
sem menores que os continentes atuais,
separadas por enormes oceanos.
“Pelo menos seis vezes na história da
Terra, essas massas continentais se reu-
niram supercontinentes e depois se frag-
CPGeo/USP

mentaram”, diz Bley. O projeto temático

136  _ especial 50 anos fapesp


Os projetos

1. Evolução tectônica da América do Sul –


nº 1992/03467-9 (1993-1995)
2. Evolução crustal da América do Sul –
nº 1995/04652-2 (1996-2000)
3. A América do Sul no contexto
dos supercontinentes – nº 2005/58688-1
(2006-2011)
4. Laboratório de geocronologia com
microssonda iônica de alta resolução:
suporte para o desenvolvimento de Projetos
de Alta Tecnologia em Exploração de Petróleo –
nº 2003/09695-0 (2005-2008)
Modalidades
1. 2. e 3. Projeto Temático
4. Parceria para Inovação Tecnológica (Pite)
Coordenadores
1. e 2. Umberto Giuseppe Cordani – IGC/USP
3. Miguel Ângelo Stipp Basei – IGC/USP
4. Colombo Celso Gaeta Tassinari – IGC/USP
Investimento
1. R$ 200.000,00 (FAPESP)
2. R$ 800.000,00 (FAPESP)
3. R$ 3.611.085,27 (FAPESP)
4. US$ 1.500.000,00 (FAPESP) e
US$ 1.500.000,00 (Petrobras)

focalizou principalmente certa região do globo Artigos científicos


um período aproximada- pode sugerir que outras
mente entre 1,3 bilhão e Por volta de áreas hoje distantes, mas 1. AMARAL, G. et al. Potassium-Argon dates of
basaltic rocks from Southern Brazil. Geochimica
500 milhões de anos atrás, que estavam próximas há et Cosmochimica Acta. v. 30, p. 159-89, 1966.
quando todas as massas do 4,5 bilhões milhões de anos, também 2. HURLEY, P. M. et al. Test of continental drift
planeta, incluindo terrenos contenham as mesmas
que hoje constituem grande
de anos riquezas. Igualmente, a
by means of radiometric ages. Science. v. 144,
p. 495-500, 1967.

parte do Brasil, se amalga- atrás, a determinação precisa da 3. FUCK, R. A. et al. Rodinia descendants in
South America. Precambrian Research. v. 160,
maram em um supercon- idade das rochas auxilia
superfície
p. 108-26, 2008.
tinente conhecido como a exploração desses mi-
Rodínia. Bley, junto com nérios. Tassinari cita co-
Reinhardt Fuck, da Univer- do planeta mo exemplo a datação de De nosso arquivo

sidade de Brasília (UnB), e rochas de uma mina de


Carlos Schobbenhaus, do
era coberta ouro da região do Qua-
E a América do Sul se fez
Edição nº 188 – outubro de 2011

Serviço Geológico Brasi- por um mar drilátero Ferrífero, em As idades da Terra


leiro, participaram de uma Minas Gerais, que re- Edição nº 108 – fevereiro de 2005

colaboração internacional de lava velaram ter 2 bilhões de A História do planeta contada pelas rochas
que publicou, em 2008, na anos. As companhias de Edição nº 30 – abril de 1998

revista Precambrian Rese- mineração devem agora


arch, a reconstituição mais buscar rochas dessa mes-
detalhada até agora da for- ma idade para prospec-
mação e desmembramento de Rodínia. tar possíveis novas jazidas.
Os principais continentes formados Outra conquista importante do pro-
pela fragmentação de Rodínia foram qua- jeto foi a descoberta por Bley, Fuck e
tro: Báltica, Laurentia, Sibéria e Gond­ Elton Dantas, da UnB, das rochas mais
wana. Este último incluiria o que hoje antigas da América do Sul, com 3,6 bi-
é boa parte da América do Sul, África, lhões de anos, encontradas na cidade de
Índia, Austrália e Antártida. Os quatro Petrolina, em Pernambuco. Com o que
continentes ancestrais teriam ainda se ainda falta para ser explorado no Brasil,
fundido mais uma vez, formando o fa- entretanto, Bley suspeita que o recorde
moso Pangea, há 230 milhões de anos, deve ser quebrado em breve. “Como a
que então se desmembrou dando origem Terra é muito dinâmica, essas rochas
aos continentes atuais. velhas estão muito ocultas, precisa de
A reconstituição desse passado remoto sorte para encontrá-las”, afirma o ge-
é mais que uma curiosidade intelec­tual. ólogo. “Mas acredito que ainda vamos
A descoberta de jazidas minerais em uma chegar nos 4 bilhões de anos.” n

pESQUISA FAPESP maio de 2012  _  137


tecno
logia
bioenergia Do genoma à usina 140  indústria aeronáutica Em busca de segurança e

conforto 148  biopolímero Útil, sem poluir 154 semicondutores A memória do futuro

158  novos materiais Fragilidade superada 162  novos materiais Diamantes versáteis

166  engenharia naval Desafios em águas profundas 170  indústria petrolífera Métodos
refinados 174  tecnologia da informação Mil e uma aplicações 176  tecnologia da

informação Fios mais finos 180  revisor gramatical Idéia ou ideia? 186  biologia

celular A herança do clone 188  pecuária Maturidade precoce 190  agricultura

Vespas soltas nos laranjais 194 

cana-de-açúcar /léo ramos


_ bioenergia

Do genoma à usina
Programa Bioen faz avançar o conhecimento sobre
cana-de-açúcar e biocombustíveis

Fabrício Marques

P
esquisadores da Universidade de São A pesquisa é um exemplo de como o conhe-
Paulo (USP) e da Universidade Estadual cimento sobre cana-de-açúcar e etanol avançou
de Campinas (Unicamp) desvendaram nos últimos anos. Por meio do Programa FAPESP
em 2011 cerca de 10,8 bilhões de pares de Pesquisa em Bioenergia (Bioen), iniciado em
de bases do DNA da cana, 33 vezes o 2008, do qual Glaucia Souza é coordenadora, a
produto dos dois anos do projeto Genoma Cana, Fundação vem patrocinando um grande esforço
encerrado em 2001, que mapeou os genes expres- de investigação, que articula pesquisadores de
sos da planta. O resultado faz parte de um proje- várias áreas do conhecimento, para aprimorar a
to temático, coordenado pela bióloga molecular produtividade do etanol brasileiro e avançar em
Glaucia Souza, da USP, e com conclusão prevista ciência básica e tecnologia relacionadas à geração
para 2013, que busca o sequenciamento dos genes de energia de biomassa.
da cana-de-açúcar. Dada a complexidade do geno- Um dos objetivos do Bioen é superar entraves
ma, 300 regiões já estão organizadas em trechos tecnológicos e ampliar ainda mais a produtivida-
maiores que 100 mil bases, que contêm de 5 a 14 2007da
de do etanol de primeira geração, feito a partir
genes contíguos de cana, em um projeto temáti- fermentação da sacarose, que aproveita um ter-
co da geneticista Marie-Anne Van Sluys, também ço da biomassa da cana. Outro mote é participar
professora da USP. Os pesquisadores querem ir da corrida internacional em busca do etanol de
além do Genoma Cana, tanto na quantidade de segunda geração, produzido a partir de celulose
dados como nas perguntas sobre como funciona – o que tornaria possível obter o biocombustí-
o genoma da planta que se tornou sinônimo de vel também do bagaço e da palha da cana e de
Delfim Martins/pulsar imagens

Plantação de energia de fonte renovável. Estudos de gramíneas diversas outras matérias-primas. O programa
cana-de-açúcar como sorgo e arroz mostraram que para melho- tem cinco vertentes. Uma delas é o de pesqui-
em Lins, interior
rar a produtividade das plantas é preciso saber sa sobre biomassa, com foco no melhoramento
paulista:
produtividade como a atividade dos genes é controlada, função da cana. A segunda é o processo de fabricação
crescente de trechos do DNA conhecidos como promotores. de biocombustíveis. A terceira está vinculada a2

140  _ especial 50 anos fapesp


3

pESQUISA FAPESP maio de 2012  _  141


Um software denominado OneMap
voltado para a utilização de marcadores
genéticos em programas de melhoramen-
to, explorando a genética e a fisiologia
da cana, foi desenvolvido por Augusto
Garcia, da Escola Superior de Agricul-
tura Luiz de Queiroz
(Esalq), da USP. “Essa
é uma das grandes ex-
pectativas de obtenção
Expansão dos de cultivares mais ra-
pidamente”, diz Glau-
biocombustíveis cia Souza. A cada ano,
o Centro de Tecnologia
na América Latina Canavieira (CTC) testa
não compromete 1 milhão de mudas em
busca de plantas mais
a produção produtivas. Demora 12
anos para que surjam
de alimentos duas ou três variedades
promissoras.

“Planta energia”
A produtividade atual
da cana, que é de 80
toneladas por hecta-
Colheita manual em re/ano em média, po-
Cordeirópolis (SP), em deria alcançar 381 to-
2010: estudos buscam
conhecer e amenizar
neladas por hectare/
impactos econômicos ano, com o desenvol-
e sociais vimento de variedades
talhadas para a produ-
aplicações do etanol para motores auto- ções moleculares com potencial para o ção de bioenergia, dotadas, por exemplo,
motivos e de aviação. A quarta é ligada desenvolvimento de marcadores”, diz de alta produtividade, alto conteúdo de
a estudos sobre biorrefinarias, biologia Marie-Anne, que é professora do Ins- açúcar, tolerância à seca e resistência a
sintética, sucroquímica e alcoolquímica. tituto de Biociências da USP e uma das pestes e doenças. Esse cálculo foi publi-
E a quinta trata dos impactos sociais e coordenadoras do Bioen. cado num artigo científico de autoria de
ambientais do uso de biocombustíveis. um grupo de pesquisadores do Bioen e

U
m projeto liderado por Ricardo do Centro de Pesquisa em Agricultura
Genética Zorzetto Vêncio, da Faculdade do Havaí. Segundo o estudo, a chamada
Em quase quatro anos de existência, de Medicina de Ribeirão Preto, “planta energia” precisa de crescimento
os resultados do programa Bioen são da USP, desenvolveu a versão-piloto de rápido, necessidade reduzida de insumos
palpáveis e variados. A experiência em um software para tentar caracterizar as para o crescimento e ser adaptada para
genômica de Marie-Anne Van Sluys, da funções de genes da cana-de-açúcar. A a colheita mecanizada. Para fazer esse
USP, e de Anete Pereira de Souza, da abordagem é inovadora, porque não se inédito cálculo teórico, o estudo asso-
Unicamp, levou-as à liderança de proje- limita a atribuir a uma sequência de ge- ciou dados tecnológicos de produção da
tos cujo objetivo é gerar um sequencia- nes de um organismo as funções já ob- cana com informações sobre a fisiologia
mento parcial de dois cultivares de cana servadas numa sequência semelhante da planta (fotossíntese, crescimento, de-
(R570 e SP80-3280) e subsidiar o desen- de outro ser vivo. A ideia é utilizar al- senvolvimento e maturação da cana) e
volvimento de ferramentas moleculares goritmos que contemplem a incerteza propôs, através de estudos de genômica
capazes de auxiliar na compreensão contida nessa associação. “Em vez de funcional, possíveis genes alvos para o
deste genoma. Um dos alvos é o estu- simplesmente dizer que um gene tem melhoramento envolvendo a partição de
do dos chamados elementos de trans- uma função específica, queremos dizer carbono, que é a maneira como a cana
fotos Delfim Martins/pulsar imagens

posição, regiões de DNA que podem se qual é a probabilidade de ele ter essa distribui os carboidratos que produz via
transferir de uma região para outra do função e, neste cálculo, levar em conta fotossíntese.
genoma, deixando ou não uma cópia no diferentes evidências como a relação Publicado na Plant Biotechnology
local antigo onde estavam. “Programas evolutiva com outros genes ou se tem Journal em abril de 2010, o estudo mos-
de melhoramento também poderão ser algum experimento que confirma a fun- trou quanto a cana poderia render com o
beneficiados tendo acesso a informa- ção”, diz Ricardo Vêncio. uso de ferramentas biotecnológicas para

142  _ especial 50 anos fapesp


criar novas variedades. Uma carta en- dos por instituições do estado habilita-
viada aos autores pelo editor da revista, ram pesquisadores paulistas a participar
o biólogo Keith J. Edwards, da Univer-
sidade de Bristol, Inglaterra, informou
que já haviam sido registrados mais de
3% é o do projeto Global Sustainable Bionergy
(GSB), iniciativa internacional para dis-
cutir a viabilidade da produção de bio-
1,6 mil downloads do artigo, número ele-
ganho anual de combustíveis em larga escala e em nível
vado para uma revista de interesse espe- produtividade mundial e buscar um consenso científico
cializado. O interesse no artigo é reve- sobre o assunto. O GSB promoveu encon-
lador de um novo patamar da pesquisa
do etanol tros entre cientistas do setor energético
sobre cana-de-açúcar, observa Glaucia brasileiro nas em cinco países. A intenção foi discutir
Souza, autora principal do artigo, que é se é possível suprir uma fração substan-
professora do Instituto de Química da
últimas quatro cial da demanda energética a partir da
USP. “Há alguns anos tínhamos dificul- décadas produção de biomassa, sem comprome-
dade de publicar artigos sobre biotec- ter o fornecimento de alimentos, a pre-
nologia da cana, porque se considerava servação de hábitats naturais e a quali-
que era uma planta exótica que só dá dade do meio ambiente, além de propor
nos semitrópicos. Hoje, como muitos
países buscam desenvolver energia ex-
traída de biomassa, os estudos da cana
60% estratégias para a transição rumo a uma
nova matriz energética, mais equilibra-
da e renovável. O workshop da América
vêm ganhando importância”, afirma. A da produção Latina foi organizado pela FAPESP, em
popularidade do artigo também mostra março de 2010, e discutiu os desafios
como o Programa Bioen está avançando
nacional de tecnológicos para obter etanol a partir
no campo do melhoramento genético. etanol vem do de celulose a custos competitivos, a pos-
“Estamos conseguindo trazer o genoma sibilidade de replicar em outros países
para o campo”, diz.
estado de São o bem-sucedido ca-
O Brasil tem uma posição especial no Paulo so do etanol de cana Canavial em
debate internacional sobre biocombus- brasileiro e o temor Guaíra (SP):
tíveis, pois é o único país que realizou a de que a concorrência produção de
biocombustíveis
substituição em larga escala da gasolina dos biocombustíveis
pode ampliar
por etanol. A experiência brasileira e os comprometa outras ganhos do
estudos no campo da bioenergia realiza- culturas agrícolas. A agronegócio

pESQUISA FAPESP maio de 2012  _ 143


resolução aprovada no encontro afirmou a fim de coletar dados com pesquisado- de específica de etanol e um catalisador,
enfaticamente o potencial de expansão res e integrantes da cadeia de produção responsável por acelerar as reações quí-
da produção de bioenergia na América de biocombustíveis, além de represen- micas. “A maior contribuição do proces-
Latina, sem que isso comprometa a pro- tantes do setor de aviação e do governo. so de obtenção do bioquerosene são os
dução de alimentos, o meio ambiente e a Após a conclusão do estudo, a FAPESP, altos índices de pureza do produto final”,
biodiversidade. O coordenador do Pro- Boeing e Embraer realizarão um proje- diz Rubens Maciel Filho, professor da
jeto GSB, Lee Lynd, da Thayer School to de pesquisa conjunto sobre os temas FEQ e coordenador do estudo. Essa rota
of Engineering, Dartmouth College, nos prioritários apontados no levantamento possibilita a obtenção de biocombustí-
Estados Unidos, fez elogios à disposição e lançarão uma chamada de propostas veis de aviação oxigenados com ponto
dos pesquisadores brasileiros de buscar para estabelecer um centro de pesquisa de congelamento que permitem seu uso
formas sustentáveis para produzir bio- e desenvolvimento de biocombustíveis como jet fuel. Outro processo possibili-
combustíveis. “Outros países deveriam para aviação comercial envolvendo as ta a produção de bioquerosene do tipo
enfrentar o problema como o Brasil está três instituições, baseado no modelo dos hidrocarbonetos com pedido de patente
fazendo. Os Estados Unidos, por exem- Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão internacional já solicitada e protocolada.
plo, são mais defensivos em relação aos (Cepids) da FAPESP, voltados para de- Uma outra contribuição de Maciel é um
mecanismos de sustentabilidade, embora senvolver pesquisas na fronteira do co- projeto que busca criar compostos de
liderem a produção de etanol”, afirmou nhecimento. O projeto de pesquisa faz alto valor econômico a partir de subs-
na época. parte de um acordo entre as instituições, tratos da cana. O projeto vem obtendo
assinado em outubro de 2011, no âmbito bons resultados na produção do ácido
Combustível para aviação do Bioen, coordenado por Luís Augusto acrílico e do ácido propiônico a partir
Entre as ambições do programa, um dos Barbosa Cortez, professor da Unicamp do ácido láctico. “É possível desenvol-
destaques é o desenvolvimento de bio- e coordenador-adjunto de Programas ver produtos com valores 190 mil vezes
combustíveis para aviação. Em abril pas- Especiais da FAPESP. maiores do que o do açúcar”, diz Maciel.
sado, representantes da FAPESP, Boeing

U
e Embraer iniciaram um estudo sobre m processo inovador para a pro- Impactos econômicos e sociais
os principais desafios científicos, tec- dução de bioquerosene a partir de O Bioen busca mensurar os impactos
nológicos, sociais e econômicos para o vários tipos de óleo vegetal, que sociais e econômicos de uma sociedade
desenvolvimento e adoção de biocom- poderá tornar o combustível usado em baseada em energia de biomassa. “Te-
bustível pelo setor de aviação comer- aviões menos poluente e mais barato, já mos grupos de pesquisadores estudando
cial e executiva no Brasil. Com duração foi desenvolvido na Faculdade de Enge- modelos econômicos capazes de ava-
prevista de nove a 12 meses, o estudo nharia Química (FEQ) da Unicamp. Após liar as mudanças de uso da terra cau-
será orientado por uma série de oito sua extração e refino, o óleo é colocado sadas pela produção em larga escala de
workshops programados para este ano, em um reator junto com uma quantida- biocombustíveis”, diz Glaucia Souza.
“Também há estudos sobre os gargalos
econômicos da produção de biocom-
bustíveis, mapeamentos agroecológicos
e impacto na biodiversidade, para citar
A produtividade do etanol alguns exemplos”, afirma a professora.
Conhecimento novo à parte, Glaucia des-
Biocombustível brasileiro tem o melhor rendimento taca o potencial dos biocombustíveis no
combate à pobreza. “A cana-de-açúcar
contribui para o desenvolvimento rural,
8.000 mas a agricultura ainda reverte pouco
lucro para os produtores. A produção de
7.000 6.800
biocombustíveis pode agregar valor ao
6.000
agronegócio, permitindo, por exemplo,
5.400
5.200 que o setor gere sua própria energia e
5.000 venda o excedente, contribuindo para o
desenvolvimento regional e o combate
Litros por hectare

4.000 à pobreza”, diz.


3.100 3.100 No exterior, questiona-se o fato de o
União Europeia (UE)

3.000
2.400 Brasil ser forte na agricultura voltada à
2.000 alimentação e substituir terra boa da pro-
dução de alimentos para plantio de cana.
Tailândia

1.000 Trata-se de um problema inexistente,


Brasil

Índia

EUA

segundo estudo do grupo liderado pelo


UE

0 fonte unica
economista André Nassar, do Instituto
Etanol Etanol de Etanol Etanol Etanol de Etanol
de cana beterraba de cana de milho mandioca de trigo de Estudos do Comércio e Negociações
Internacionais (Icone), financiado pela

144  _ especial 50 anos fapesp


3 Montanha de bagaço
de cana na Usina
Costa Pinto, em
Piracicaba (SP):
extração de etanol
da celulose poderá
multiplicar a produção
do combustível
brasileiro

FAPESP dentro do Bioen. Em 2022, no lume de biomassa, o que


cenário traçado pelo instituto, a área de faz antever um avanço da
lavoura de cana deve ocupar 10,5 mi- produtividade. “Em con- O bagaço é queimado para
lhões de hectares, ante 8,1 milhões de trapartida, pouco se sabe
hectares em 2009. O crescimento de sobre os mecanismos de gerar energia das usinas
30% no canavial deve se dar na região controle hormonais, su-
Sudeste, principalmente em áreas de as relações com o meta-
e usado na produção
pastagem de criação de gado bovino, e bolismo de carbono e as de alimentos para animais
na região Centro-Oeste, onde deve subs- redes de transcrição gê-
tituir áreas tradicionais de plantio de nica a ele associados”, diz
grãos e de pastos. “Hoje, os pecuaristas Marcos Buckeridge, pro-
produzem mais carne por hectare. Em fessor do Departamento
1996, foram produzidas 6 milhões de de Botânica do Instituto de Biociências Etanol de celulose
toneladas de carne, em 184 milhões de da USP e diretor científico do Laborató- Apenas a sacarose, responsável por um
hectares. Dez anos depois, a produção rio Nacional de Ciência e Tecnologia do terço da biomassa da cana, é aproveita-
somou 9 milhões de toneladas de carne, Bioetanol (CTBE). “O conhecimento de da para a produção de açúcar e álcool
em 183 milhões de hectares. O rebanho, tais processos tem o potencial de expor combustível. É certo que o Brasil utiliza
no período, saltou de 158 milhões para quais os pontos do metabolismo da cana o bagaço da cana na geração de energia
206 milhões”, diz a pesquisadora Leila poderiam ser alterados para produzir nas usinas ou na produção de alimento
Harfuch, do Icone. “As pastagens entre variedades com potencial de adaptação para animais, o que foi responsável por
2009 e 2022 devem cair cerca de 5 mi- às mudanças climáticas”, afirma Bucke- um notável ganho de eficiência. O grande
lhões de hectares, acomodando parte da ridge. A busca de fontes para a produção desafio é converter em etanol também a
expansão de grãos e cana.” de biocombustíveis que não comprome- celulose, que está no bagaço e na palha
tam a natureza, como, por exemplo, a da cana – processos de hidrólise enzi-
Mudanças climáticas obtenção de etanol a partir de polissa- mática ou físico-química permitiriam
Há estudos cujo foco é a forma como a carídeos de sementes de árvores nativas que as unidades de carbono da celulose
cana-de-açúcar irá responder às mu- cultivadas em meio a plantações de cana, e da hemicelulose fossem também fer-
danças climáticas. Esse conhecimento também é alvo de investigação. “Siste- mentadas. O domínio das tecnologias
poderá ajudar a desenvolver variedades mas agroflorestais podem representar de utilização da celulose está no centro
mais resistentes a eventuais aumentos um novo modelo capaz de aumentar a da corrida mundial pela produção de
foto  HÉLVIO ROMERO/ae

de chuva e de calor, além do esperado produção de energia renovável, de uma energia a partir de fontes renováveis.
avanço de pragas. Já é sabido que a alta forma harmônica e com benefícios so- Hoje esse processo ainda não é viável
concentração de gás carbônico produz ciais, além de impacto ambiental míni- economicamente. Se os pesquisadores
um aumento na fotossíntese e no vo- mo”, afirma Buckeridge. encontrarem formas de reduzir custos, o

pESQUISA FAPESP maio de 2012  _ 145


uso da celulose da cana poderia ampliar melhoramento genético dos microrganis- desenvolveu em laboratório e patenteou
dramaticamente a produção de etanol. mos utilizados no processo convencional uma estratégia de engenharia metabólica
Na busca do etanol de celulose, um de produção industrial do biocombustível que altera a topologia e a energética do
dos destaques é um projeto que ava- por fermentação, em que leveduras da metabolismo de sacarose na levedura
lia como é possível romper a resistên- espécie Saccharomyces cerevisiae con- Sacchromyces cerevisiae.
cia das paredes celulares de vegetais vertem a sacarose (o açúcar) em etanol.
lignificados, como a cana, por meio de interação com setor privado

P
hidrólise enzimática. A lignina é uma or meio de estratégias de engenha- Um salto no interesse pela pesquisa
macromolécula encontrada em plantas, ria metabólica, o grupo conseguiu, em cana e etanol aconteceu em abril
associada à celulose na parede celular, em escala de bancada, aumentar de 1999, com o advento do Genoma Ca-
cuja função é conferir rigidez e resistên- em 11% o rendimento da produção de na, que mapeou 250 mil fragmentos de
cia. Quebrá-la é um desafio para obter etanol sobre a sacarose utilizando uma genes funcionais da cana (ver reporta-
etanol de celulose. “Para entender co- levedura geneticamente modificada. “Es- gem à página 54) e se caracterizou pela
mo a remoção de lignina pode diminuir se experimento ainda não foi testado em interação com o setor privado. Após o
a recalcitrância das paredes celulares, ambiente industrial. Mas, levando-se encerramento do programa, o interesse
têm sido avaliados, além de varieda- em conta o grande volume da produção das empresas pela pesquisa em bioener-
des comerciais, híbridos de cana com atual, um aumento de apenas 3% no ren- gia não arrefeceu. Em 2006, a FAPESP,
teores contrastantes de lignina”, diz dimento da fermentação alco­ólica per- em parceria com o BNDES, firmou um
Adriane Milagres, professora da Escola mitiria hoje um incremento de 1 bilhão convênio com a Oxiteno, do grupo Ul-
de Engenharia de Lorena, da USP, uma de litros de etanol por ano, só no Brasil, a tra, para o desenvolvimento de projetos
das coordenadoras do projeto. “Quan- partir da mesma quantidade de cana-de- cooperativos em que se investiga desde
do materiais são tratados com métodos -açúcar. O que já seria um ganho extra- o processo de hidrólise enzimática do
seletivos, a remoção de 50% da lignina ordinário”, diz Andreas Karoly Gombert, bagaço da cana para a obtenção de açúca-
original já eleva o nível de conversão professor da Escola Politécnica da USP e res até a produção de etanol de celulose.
da celulose para 85%/90%.” Segundo coordenador do projeto. O projeto surgiu No ano seguinte, a Dedini Indústrias de
Adriane, o avanço do projeto também a partir de uma iniciativa do professor Base celebrou convênio com a FAPESP
está direcionado para avaliar quais são Boris Ugarte Stambuk, da UFSC, que para financiar projetos sobre técnicas de
os coquetéis enzimáticos mais apropria-
dos para obter um nível de hidrólise
enzimática elevado usando bagaço de
cana que tenha sido pré-tratado com a
menor severidade possível. “Isso porque
os teores iniciais de lignina das plan-
tas selecionadas já são baixos”, explica.

Primeira geração
O Brasil detém vantagens acentuadas na
produção de etanol de primeira geração,
feito a partir da fermentação da sacaro-
se. A produtividade da cana-de-açúcar
aumentou muito nos últimos 30 anos, a
uma taxa média de cerca de 4% ao ano.
Essa produtividade pode crescer ainda
mais se alguns desafios tecnológicos fo-
rem superados. Um projeto realizado por
pesquisadores da Escola Politécnica da
Universidade de São Paulo (USP), em
colaboração com grupos de pesquisa da
Universidade Federal de Santa Catarina
(UFSC) e da Delft University of Techno-
logy, da Holanda, demonstrou que existe
uma margem para avançar por meio do

Caldeiras da Usina
Santa Elisa, em
Sertãozinho (SP):
produção de
energia elétrica com
bagaço de cana

146  _ especial 50 anos fapesp


U
conversão do bagaço de cana em etanol. m desdobramento do Bioen foi a encontra adiantado”, diz Luis Cortez,
No início de 2008, a FAPESP e a Braskem criação, em 2010, do Centro Pau- professor da Unicamp e coordenador do
também firmaram um convênio para o lista de Pesquisa em Bioenergia centro. Outra iniciativa ligada ao CPPB
desenvolvimento de biopolímeros. (CPPB). Trata-se de um esforço para é o Centro de Biologia Sintética e Sis-
A crescente importância econômica estimular a pesquisa interdisciplinar e têmica da Biomassa, na USP, idealiza-
da cana ajudou a impulsionar o interes- ampliar o contingente de pesquisado- do em 2008 por Glaucia Souza, Marie-
se dos pesquisadores. O Brasil colheu res envolvidos com o tema, liderado pe- -Anne Van Sluys e Marcos Buckeridge.
569 milhões de toneladas de cana na sa- la FAPESP, o governo do estado de São Esse centro vai reunir pesquisadores dos
fra de 2009 – quase o dobro da colhei- Paulo e as três universidades estaduais institutos de Química, de Matemática e
ta de 1999, segundo dados da União da paulis­tas. Segundo o acordo, o governo Estatística, de Biociências, de Ciências
Indústria de Cana-de-Açúcar (Unica). estadual já investiu e investirá recur- Biomédicas e da Escola Politécnica. A
Metade da produção foi transformada sos para criação de infraestrutura de biologia sintética combina biologia e en-
em etanol – o equivalente a 27 bilhões pesquisa na USP, Unicamp e Unesp. As genharia para construir novas funções
de litros –, o que coloca o Brasil como universidades, por sua vez, contratarão e sistemas biológicos. “A intenção é in-
o segundo maior produtor mundial do docentes e pesquisadores, cabendo à vestir numa área em que o Brasil ainda
combustível. O primeiro lugar cabe aos FAPESP o investimento no financiamen- não tem grande expertise e envolver
Estados Unidos, que extraem etanol do to à pesquisa. A USP criou o Núcleo de pesquisadores de várias disciplinas”,
milho a poder de pesados subsídios. São Pesquisas de Bioenergia e Sustentabili- diz Glaucia Souza. n
Paulo respondeu por 60% da produção dade (NAPBS); a Unicamp, o Laborató-
nacional. O ganho de produtividade tem rio de Bioenergia (Labioen); e a Unesp, o
sido maior do que 3% ao ano nos últimos Núcleo de Pesquisa em Bioenergia (Bio- Os números do Programa Bioen
40 anos, resultado de melhoramento en-Unesp). “Com os recursos liberados
genético da cana. O etanol fez do Brasil pelo governo estadual em 2010 e 2011, as 49 projetos de pesquisa em andamento
11 projetos de pesquisa concluídos
um exemplo único de país que substituiu três universidades já estão construindo a Concessão total: R$ 64.170.267,56
o uso de gasolina em grande escala. No infraestrutura nos seus respectivos cam-
eduardo cesar

108 bolsas no país em andamento


estado de São Paulo, 56% da energia vem pi. O processo de contratação de novos 102 bolsas no país concluídas
Concessão total: R$ 14.008.313,89
de fontes renováveis, sendo 38% da cana. docentes e pesquisadores também se

ARTIGOS CIENTÍFICOS

1. WACLAWOVSKY, A. J. et al. Sugarcane for


bioenergy production: an assessment of yield
and regulation of sucrose content. Plant
Biotechnology Journal. v. 8, 263-76. Publicado
on-line 19 fev. 2010.

2. BASSO, T. O. et al. Engineering topology and


kinetics of sucrose metabolism in Saccharomyces
cerevisiae for improved ethanol yield. Metabolic
Engineering. v. 13, 694-703, 2011.

De NOSSO ARQUIVO

Sertãozinho, usina de inovações


Edição nº 128 – outubro de 2006

Vias para avançar como líder do etanol


Edição nº 149 – julho de 2008

Cardápio energético
Edição nº 157 – março de 2009

O alvo é o bagaço
Edição nº 163 – setembro de 2009

Energia do futuro
Edição nº 170 – abril de 2010

Cálculo original
Edição nº 184 – junho de 2011

Biorrefinarias do futuro
Edição nº 192 – fevereiro de 2012

pESQUISA FAPESP maio de 2012  _ 147


_  I ndústria aeronáutica

Em busca
de segurança
e conforto
Universidades e Embraer criam
conhecimento para aperfeiçoar
aviões comerciais e de defesa

Claudia Izique

H
á pouco mais de dez anos, a cidade de ciaram que o município fora escolhido para abrigar
Gavião Peixoto, com quatro mil habi- a quarta fábrica da empresa, um empreendimento
tantes, emergia timidamente em meio de R$ 340 milhões e dois mil empregos diretos.
a um imenso canavial, pontilhado, O estímulo do estado foi crucial na decisão da
aqui e acolá, por pomares de laranja. Embraer de instalar-se em Gavião Peixoto: o go-
Hoje, junto à área urbana da cidade impõem-se verno cedeu à empresa uma área 15 km2 por um
uma pista de decolagem com 5 mil metros de período de 35 anos, renováveis por mais 35, além
comprimento, a maior da América Latina, e uma da infraestrutura básica do terreno: água, ener-
unidade de fabricação da Embraer. Ali, além de gia, pavimentação de rodovias, entre outras. Teve
testes e ensaios em voo, a empresa produz as asas peso, é claro, a proximidade que a futura fábrica
dos Embraer 190 e 195, fabrica os jatos Phenom teria de universidades e institutos de pesquisas
100 e 300, além do Super Tucano – um turboélice de São Carlos e Araraquara. Mas contou pontos,
militar multifunção. Também é ali que a empresa e muito, o apoio da FAPESP: menos de um mês
reforma caças da Força Aérea Brasileira (FAB), após o anúncio da nova fábrica, foi lançado no
razão pela qual a região é considerada área de âmbito do Programa de Apoio à Pesquisa em Par-
segurança – que a imaginação de desavisados ceria para Inovação Tecnológica (Pite).
identifica como a “área 51 do Brasil”, numa refe- Ao longo dos últimos 12 anos, a FAPESP de-
rência à base militar norte-americana, instalada sembolsou R$ 16,4 milhões para apoiar oito pro-
no deserto de Nevada. jetos, que também contaram com contrapartida
fotos  divulgação embraer

A paisagem e o futuro de Gavião Peixoto come- da Embraer. “Foi uma parceria estratégica que
çaram a mudar no início da década, precisamen- permitiu à empresa avançar no domínio da tecno- Canaviais e pomares
de laranja de Gavião
te no dia 24 de junho de 2000, quando o então logia e aumentar o seu diferencial competitivo”, Peixoto (SP) deram
governador de São Paulo, Mario Covas, e o então avalia Jorge Ramos, diretor de desenvolvimento lugar aos imensos
presidente da Embraer, Maurício Botelho, anun- tecnológico da Embraer. galpões da Embraer

148  _ especial 50 anos fapesp


pESQUISA FAPESP maio de 2012  _ 149
Os Projetos

1. Comportamento de
materiais e estruturas
aeronáuticas sujeitas a
impacto – nº 2002/11313-5
(2003-2006)
2. Aplicações avançadas
de mecânica dos fluidos
computacional para
aeronaves de alto
desempenho – nº 2000/
13768-4 (2002-2006)
3. Identificação de derivadas
de estabilidade e controle de
aeronaves via filtragem
não linear e otimização
estocástica: algoritmos e
aplicações a dados de ensaio
em voo – nº 2001/08753-0
(2002-2006)
4. Estruturas aeronáuticas
de materiais compósitos –
nº 2006/61257-5 (2011-2014)
5. Conforto de cabine:
desenvolvimento e análise
integrada de critérios de
conforto – nº 2006/52570-1
(2008-2012)
6. Desenvolvimento de um
sistema GPS Diferencial
para posicionamento e
Muitos dos projetos desenvolvidos em parce- utilizado para consultar centenas de passageiros, guiagem da aeronave em
ria com universidades e instituições de pesquisa habituados a viajar de avião, sobre as condições tempo real – nº 2001/08751-8
(2002-2005)
se transformaram em conhecimento de enge- de conforto em voo. Jurandir Itizo Yanagiha- 7. Desenvolvimento de
nharia e foram – ou poderão ser – aplicados em ra, coordenador do projeto, adiantou à Agência tecnologia de ensaios
produtos para a aviação executiva, comercial e FAPESP que uma das tendências identificadas foi aerodinâmicos bi e
tridimensionais para o
de defesa. O projeto Estruturas Aeronáuticas de a criação de espaços alternativos para a interação projeto de aeronaves de
Materiais Compósitos, que investiga soluções de passageiros em grandes aeronaves. alto desempenho –
em compostos de fibra de carbono para reduzir As restrições legais aos ruídos de aeronaves nº 2000/13769-0
(2001-2007)
o peso e melhorar o desempenho das aeronaves também pautam pesquisa. Em Aeronave Silen- 8. Aeronave silenciosa:
em relação aos materiais convencionais, já iden- ciosa: uma investigação em aeroacústica, pesqui- uma investigação em
tificou metodologia que poderá ser incorporada sadores desenvolvem métodos e equipamentos aeronáutica – nº 2006/
52568-7 (2008-2011)
aos componentes em materiais compósitos que a supressores de ruídos. Procuram identificar a
Modalidade
empresa vai produzir numa das duas fábricas que fonte – se proveniente da asa, dos flaps, da tur- 1. a 8. Parceria para
está construindo na cidade de Évora, em Portugal. bina ou do trem de pouso, por exemplo – e medir Inovação Tecnológica – PITE
As pesquisas cobrem vários temas relacionados a intensidade do ruído, utilizando grandes con- Coordenadores
à aeronáutica. Em três dos projetos financiados, juntos de microfones instalados na cabeceira da 1. Marcílio Alves – Embraer e
Escola Politécnica da USP
e ainda em andamento, pesquisadores de várias pista de ensaios de Gavião Peixoto. No final da 2. João Luiz Filgueiras de
universidades e institutos de pesquisa buscam primeira fase, os estudos já resultaram em dois Azevedo – Embraer e CTA
soluções para tornar as aeronaves mais confor- pedidos de patentes relacionadas a atenuadores. 3. Luiz Carlos Sandoval Góes –
Embraer e CTA
táveis, silenciosas e seguras. O estudo conta com a participação de 70 pesqui- 4. Sergio F. M. de Almeida –
No projeto Conforto de Cabine: desenvolvimen- sadores da Embraer, da USP, da Universidade Embraer e ITA/CTA
to e análise integrada de critérios e conforto, por de Brasília e de duas federais: de Santa Catarina 5. Jurandir Itizo Yanagihara
– Embraer e USP
exemplo, iniciado em 2008, os pesquisadores (UFSC) e de Uberlândia (UFU). 6. Helio Koiti Kuga –
desenvolveram um ambiente que simula cabines Embraer e Inpe/MCT
dos modelos 170 e 190 da Embraer para estudar Pesquisa em rede 7. Olympio Achilles de Faria
Mello – Embraer e CTA
parâmetros operacionais como o conforto térmi- Todos os projetos, aliás, envolvem diversas uni- 8. Julio Romano Meneghini –
co, a pressão, o ruído, a vibração, a iluminação e versidades e institutos de pesquisas de São Paulo Embraer e USP
a ergonomia, além de odores e materiais. A in- e até de outros estados. O Conforto de Cabine, por investimentos
tenção é avaliar e integrar os vários aspectos do exemplo, abriga, além de pesquisadores da USP, 1. R$ 367.896,00
2. R$ 3.826.117,01
conforto humano e estabelecer parâmetros de também da Universidade Federal de São Carlos 3. R$ 587.702,23
projeto e design. Esse equipamento de pesquisa, (UFSCar) e da UFSC. O projeto Aplicações Avan- 4. R$ 1.851.527,59
inédito no Brasil, está instalado no Laboratório çadas de Mecânica dos Fluidos Computacional 5. R$ 3.205.550,76
6. R$ 688.295,73
de Engenharia Térmica e Ambiental (LETE), na para Aeronaves de Alto Desempenho, reuniu um 7. R$ 4.201.476,05
Escola Politécnica da USP. No ano passado foi número de instituições ainda maior: o Instituto 8. R$ 3.741.069,33

150  _ especial 50 anos fapesp


1. Projeto Conforto de
Cabine simula modelos Tecnológico de Aeronáutica (ITA), o Instituto a formação de novos recursos humanos, também
da Embraer para testar
temperatura, pressão,
de Aeronáutica e Espaço/Centro Técnico Ae- disponível para investigação de outros setores da
ruído, vibração, roespacial (IAE/CTA), a Escola de Engenharia indústria brasileira. A tecnologia de medição de
iluminação, ergonomia de São Carlos (EESC-USP), Poli (USP), a UFSC, ruídos e os atenuadores desenvolvidos no pro-
e odores a UFU e a Universidade Estadual de Campinas jeto de supressão de ruídos em aeronaves, por
2. Projeto Estruturas (Unicamp). A expectativa era de que as investi- exemplo, poderia, efetivamente, se constituir num
Aeronáuticas de gações resultassem na criação de um Núcleo de insumo importante para empresas fabricantes
Materiais Compósitos
pesquisa fibra de
Mecânica dos Fluidos Computacional (CFD, da de geladeiras. Da mesma maneira, a cabine de
carbono para reduzir sigla em inglês), para fazer simulações numéricas avaliação de conforto de passageiros instalada
o peso e melhorar o de escoamento de ar, contribuindo para a defini- no Laboratório de Engenharia Térmica e Am-
desempenho do aviões ção do perfil aerodinâmico de aeronaves. “Esse biental da USP guarda informações importantes
projeto permitiu constituir uma rede ampla de para um melhor desempenho dos fabricantes de
pesquisa e compartilhar o domínio dessa ferra- veículos de passageiros.
menta essencial para a aeronáutica”, sublinha o O círculo virtuoso do PITE focado no desenvol-
diretor da Embraer. vimento da ciência e tecnologia aeroespaciais se
completará quando seus resultados repercutirem
Conhecimento compartilhado também na ampliação da cadeia de fornecedores
Muito além de contribuir para a inovação na em- brasileiros da terceira maior fabricante de aviões
presa, o Programa de Apoio à Pesquisa em Parce- comerciais do mundo: a grande maioria das cerca
ria para a Inovação Tecnológica (Pite) deixa nas de 50 mil peças que compõem uma aeronave da
instituições parceiras um legado importante: a Embraer é importada. É certo que o mercado das
criação e o avanço do conhecimento, a contri- empresas aeronáuticas é global. Mas é impossível
buição na formação de recursos humanos alta- ignorar que a cadeia de fornecedores no país não
mente qualificados, além da infraestrutura de acompanhou a evolução da Embraer: a empresa
pesquisa instalada nas ICTs que contribuirá para tem 17 mil empregados e a cadeia de fornecedores

pESQUISA FAPESP maio de 2012  _ 151


nacionais tem cerca de 5 mil. A maior fabricante meio de seleção pública e de acordo com o Pro-
do mundo, a Boeing, tem mais de 170 mil empre- grama FAPESP Centros de Pesquisa, Inovação e
gados e a cadeia aeroespacial norte-americana, Difusão (Cepid), adianta Suely Vilela, membro
mais de 620 mil pessoas. do Conselho Superior da Fundação.
O projeto Estruturas Aeronáuticas de Materiais
Compósitos é exemplo de política pública cali- Patentes
brada para promover o adensamento da cadeia Concomitantemente ao aumento dos investi-
produtiva aeronáutica e repercutir também em mentos em pesquisa pré-competitiva dos últi-
outros setores da produção. O projeto envolve, mos seis anos, a Embraer estruturou uma área
além da FAPESP, o IPT, a Poli (USP), o Instituto dedicada à gestão da propriedade intelectual
de Eletrotécnica e Energia (IEE) da USP, a Esco- gerada no desenvolvimento de tecnologia, pro-
la de Engenharia de São Carlos (EESC-USP), a dutos, serviços e processos. Até então, as cria-
Unicamp, a Faculdade de Engenharia de Guara- ções intelectuais da empresa eram protegidas
tinguetá (FEG) da Unesp e o ITA, e sua progra- preferencialmente por segredo industrial, mo-
mação prevê a implementação de um Laboratório dalidade que atendia à necessidade de proteção
de Estruturas Leves (LEL), de última geração, no desenvolvimento de “um produto complexo e
a ser instalado no Parque Tecnológico de São de longo ciclo de desenvolvimento, ou seja, uma
José dos Campos. O Banco Nacional de Desen- proteção natural às soluções não muito visíveis”,
volvimento Econômico e Social (BNDES) via- como explica Jorge Ramos. “Na medida em que
bilizou R$ 27,6 milhões para a implantação do intensificamos o foco em pesquisa, identifica-
laboratório e a Financiadora de Estudos e Pro- mos outras necessidades e oportunidades de
jetos (Finep), mais R$ 8,3 milhões. A FAPESP e Embraer e proteção e exploração dos nossos direitos de
o IPT completaram o investimento, totalizando propriedade intelectual.”
R$ 44,2 milhões. FAPESP se Desde então, a Embraer já depositou 272 pa-
O LEL, a rigor, estará organizado em torno de tentes no Brasil e no exterior. “São patentes em
quatro projetos estruturantes, dois deles volta-
associaram solução de produtos e processo de manufatura”,
dos para materiais metálicos e dois para mate- à Boeing ele explica. Foi criado um comitê que se reúne
riais compósitos de fibra de carbono. Compósitos todo os meses para analisar as invenções. O pro-
bem adaptados podem preencher a estrutura do em 2011, grama cresce a cada ano, ao mesmo tempo que se
avião, substituindo com vantagem o alumínio e consolida uma cultura de proteção da proprieda-
o aço. O desafio é descobrir, testar e certificar as com o de intelectual entre os funcionários da empresa.
melhores composições. A nova tecnologia, vital
para o setor aeronáutico, também é aplicável a
objetivo de Novos mercados
outros setores, como, por exemplo, o espacial, o desenvolver Ao longo dos 12 anos desde a implantação do
de petróleo, o automotivo e o de energia eólica, PITE, ao mesmo tempo que investiu em sua com-
afirmou Sergio Müller Frascino, do Departamen- novos petitividade, a Embraer cresceu e se consolidou
to de Ciência e Tecnologia Aeroespacial do ITA, como empresa global. Encerrou o ano passado
responsável pelo projeto, à Agência FAPESP, du- combustíveis com um faturamento de US$ 5,6 bilhões, na ter-
rante o Workshop FAPESP-ABC sobre Pesquisa ceira posição entre as maiores do mundo na fa-
Colaborativa Universidade-Empresa, realizado bricação de aeronaves comerciais, e iniciou 2012
em novembro de 2011. com US$ 15 bilhões em carteira. Esse valor inclui
A relação da FAPESP com a Embraer estreitou- a encomenda de 20 aviões Super Tucano pela
-se ainda mais no final do ano passado, quando Força Aérea americana, no valor de US$ 355 mi-
as duas parceiras se associaram à Boeing para lhões, temporariamente suspensa depois que a
colaboração em pesquisa e desenvolvimento de fabricante de aviões Hawker Beechcraft questio-
biocombustíveis para aviação. Esse acordo resul- nou na Justiça americana o processo de licitação.
tou numa carta de intenções, firmada em outubro, Os Super Tucano seriam utilizados em patrulhas
que prevê o desenvolvimento de estudo detalhado no Afeganistão.
sobre as oportunidades e os desafios de criar no Nos próximos anos, a Embraer promete ir ain-
País uma indústria de produção e distribuição de da mais longe. Está construindo duas fábricas em
combustível de aviação bioderivado, sustentável Portugal, mercado em que está presente desde
e economicamente eficiente. 2004, para a produção de estruturas metálicas
A expectativa é que esse estudo contribua para e em materiais compósitos que, inicialmente,
criar no Brasil um centro de pesquisas focado no estarão dedicadas ao suporte logístico de jatos
desenvolvimento de biocombustível para aviação, executivos e que, posteriormente, irão atender
numa parceria entre a indústria e a FAPESP, com também ao segmento de aviação comercial.
a finalidade de impulsionar uma agenda de pes- Outra novidade é o reposicionamento da em-
quisa de longo prazo. O centro será criado por presa no mercado da China. A primeira fábrica

152  _ especial 50 anos fapesp


A produção do turboélice militar Tucano levou Gavião Peixoto a ser chamada de “área 51 do Brasil”, em referência à base americana do deserto de Nevada

foi construída em 2002 para a produção do ERJ números e índices mostram o progresso”, afirma
145, um avião para 50 passageiros. O país mudou o prefeito Ronivaldo Sampaio Fratuci. De nosso arquivo
e a empresa agora investe no mercado de luxo: a A Embraer ainda é a única empresa instalada Bem-estar no ar
intenção é adaptar a fábrica chinesa para produ- no polo aeronáutico da cidade. “Ainda não temos Edição nº 194 – abr. 2012
zir o Legacy 650, um jato executivo que utiliza a um distrito industrial, mas estamos caminhando Aeronaves mais silenciosas
mesma plataforma do 145, mas comporta 12 pas- para instalá-lo em breve e, com isso, será mais Edição nº 155 – jan. 2009
sageiros e que deverá atender às demandas de provável a vinda de empresas fornecedoras para Premiados da inovação
empresas num país de dimensões continentais a cidade ou mesmo de outros setores”, ele afirma. Edição nº 143 – jan. 2008
e aos novos bilionários. A baixa qualificação da população impediu que Ciência de empresas
A empresa se prepara agora para entrar no a fábrica promovesse mudanças na estrutura de Edição nº 133 – mar. 2007
mercado de satélites. Embraer e Telebras anun- emprego. “Boa parte dos trabalhadores da fábrica Plano de voo
ciaram, por meio de um fato relevante publica- mora em Araraquara ou em Matão. Muitos vieram Edição nº 128 – out. 2006
do no site da Comissão de Valores Mobiliários de grandes metrópoles e preferiram se instalar em Impacto em voo
(CVM), a assinatura de um memorando de enten- cidades grandes. Alguns gavionenses trabalham Edição nº 126 – ago. 2006
dimento para a criação de uma empresa conjunta na Embraer, exercendo atividade nos setores de Leveza no ar
para gerenciar o projeto do Satélite Geoestacio- limpeza, alimentação, segurança e serviços ge- Edição nº 97 – mar. 2004
nário Brasileiro (SGB). A nova companhia deve- rais”, ele relaciona. A maioria da população ainda A Embraer voa mais alto
rá atender às necessidades do governo federal trabalha nas colheitas de cana e de laranja. Edição nº 93 – nov. 2003

“relativas ao plano de desenvolvimento satelital, A prefeitura está investindo em capacitação de Dureza extra no ar
incluindo o Programa Nacional de Banda Larga pessoal para ampliar as oportunidades de traba- Edição nº 85 – mar. 2003

e comunicações estratégicas de defesa e gover- lho aos gavionenses. “Entre 2009 e 2011, entrega- Parcerias acadêmicas
namentais”, diz o comunicado. mos mais de três mil certificados de capacitação Edição nº 82 – dez. 2002

do Senai nas mais variadas áreas, muitas delas Testes aerodinâmicos


De volta a Gavião Peixoto compatíveis com as exigências do setor aero- Edição nº 81 – nov. 2002

A presença da Embraer está provocando profun- náutico, como, por exemplo, eletricista, mecâni- Altos voos da Embraer
das modificações em Gavião Peixoto. Em 2000, co hidráulico e pneumático, pintor automotivo, Edição nº 77 – jul. 2002

ano em que o governador anunciou a instalação entre outras”. Mais resistência à fadiga e à
do empreendimento, a arrecadação do Imposto O prefeito aposta que a cidade também tem corrosão
Edição nº 76 – jun. 2002
sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços potencial para se tornar um polo ecoturístico.
(ICMS) foi de R$ 1 milhão. Em 2011, o valor sal- “Estamos investindo nessa ideia. Já começamos a Planador com concepção
nacional
tou para R$ 5 milhões. “Em 2000, tínhamos um desenvolver o projeto e realizamos alguns eventos Edição nº 75 – mai. 2002
Índice Firjan de Desenvolvimento Municipal no rio Jacaré Guaçu. O projeto vai gerar frutos
Embraer fica em São Paulo
(IFDM) de 0,66; hoje estamos em 0,79, com níveis de longo prazo e a Embraer, naturalmente, fará Edição nº 54 – jun. 2000
altos de desenvolvimento de educação e saúde. Os parte dessa história.” n

pESQUISA FAPESP maio de 2012  _ 153


Útil,
sem poluir
fotos léo ramos

154  _ especial 50 anos fapesp


_biopolímero

Plástico de cana-de-açúcar degrada-se no meio ambiente em um ano,


graças à ação das bactérias usadas em sua produção

Evanildo da Silveira

A
té 2015 deverá entrar em operação ocorre com gordura nos mamíferos e outros ani-
a primeira fábrica do Brasil de plás- mais. O passo seguinte do processo produtivo é a
tico biodegradável feito a partir de extração e purificação do PHB acumulado dentro
cana-de-açúcar, que será construída dos micro-organismos. Isso é feito com um sol-
pela PHB Industrial, empresa per- vente orgânico, mais especificamente um álcool
tencente aos grupos Irmãos Biagi, de Serrana chamado propionato de isoamila, que não provoca
(SP), e Balbo, de Sertãozinho (SP). Com capa- danos ao ambiente quando descartado. Ele quebra
cidade para produzir 30 mil toneladas por ano, a parede celular das bactérias, liberando os grâ-
o empreendimento é um desdobramento de um nulos do biopolímero. “Com 3 quilos de açúcar,
projeto financiado pelo Programa de Pesquisa obtém-se 1 quilo de plástico biodegradável”, diz
Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe) da FA- o engenheiro de materiais Jefter Fernandes do
PESP, entre 2001 e 2004. Nascimento, coordenador do projeto do Pipe e
Batizado com o nome comercial de Biocycle, o hoje consultor da PHB Industrial.
plástico pode ser usado na fabricação de peças rí- Antes de chegar nessa fase, o desenvolvimento
gidas como painéis de carros, materiais esportivos, de biopolímero teve uma longa história. Ela come-
brinquedos e objetos descartáveis como barbeado- çou em 1992, quando um grupo de cientistas do
res e escovas de dentes, além de canetas, réguas e Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT) passou
cartões. Uma das vantagens desse produto é que a realizar pesquisas nessa área. Numa parceria
ele se degrada no ambiente em um ano, enquanto bem-sucedida com a Cooperativa dos Produtores
os plásticos comuns podem durar até 200 anos. de Cana, Açúcar e Álcool do Estado de São Paulo
Na verdade, trata-se de um biopolímero da famí- (Copersucar) e o Instituto de Ciências Biomédicas
lia dos polihidroxialcanoatos (PHA), que são um (ICB) da Universidade de São Paulo (USP), eles
dos resultados do metabolismo natural de várias descobriram novas espécies de bactérias capazes
espécies de bactérias. O que será produzido na de transformar açúcar em plástico.
nova fábrica é o polihidroxibutirato ou, simples-

E
mente, PHB, daí o nome da empresa. Seu proces- m 1994, foram concluídos os estudos labo-
so de produção começa no cultivo de bactérias da ratoriais para as fases de produção, desde a
espécie Alcaligenes eutrophus em biorreatores, nos pré-fermentação, a fermentação, a extração
quais elas são alimentadas com açúcares de cana, e a purificação do biopolímero. No mesmo ano,
principalmente sacarose. Em seu metabolismo, começaram os estudos para a construção de uma
os micro-organismos ingerem os açúcares e os fábrica-piloto, para que a tecnologia desenvolvi-
transformam em grânulos (bolinhas milimétricas) da em laboratório pudesse ser testada em escala
intracelulares que são, na verdade, poliésteres. industrial. Ela foi inaugurada no ano seguinte,
Polímero
biodegradável
Esses poliésteres, que nada mais são do que na Usina da Pedra, em Serrana, com capacidade
na forma de o plástico biodegradável, funcionam como uma para produzir cinco toneladas por ano de plás-
grânulos reserva de energia para as bactérias, assim como tico biodegradável.

pESQUISA FAPESP maio de 2012  _ 155


Reservas de açúcares
As bactérias Alcaligenes eutrophus produzem bioplásticos que,
depois de usados, levam apenas um ano para se decompor

Sacarose Solvente Orgânico

Alcaligenes eutrophus

PHB

Cultura de Alcaligenes eutrophus Bactéria com PHB

As bactérias são alimentadas Depois, elas começam a criar bolsas As bactérias são mergulhadas
apenas com sacarose de reserva (sacarose) sob a forma de em solvente orgânico para a
Polihidroxibutiratos (PHB) separação do PHB

Em 1996, as primeiras quantidades produzi- da sacarose, explica que a hidrólise

3 quilos
das começaram a ser enviadas a vários institutos (quebra estrutural do produto) libera
de pesquisa e empresas, tanto no Brasil como na açúcares (glicose, xilose e arabinose)
Europa, Estados Unidos e Japão. O objetivo era presentes no bagaço, um resíduo da in-
avaliar as propriedades do produto e possíveis dústria sucroalcooleira. Só depois dis-
aplicações. A partir desse ponto do desenvolvi- so, as bactérias conseguem consumi- de açúcar são
mento e em função dos resultados dos testes e -los e transformá-los em biopolímero.
aplicações dos institutos de pesquisa e empre- Ela conta que na época o bagaço era
necessários para
sas, vários ajustes foram feitos na fábrica-piloto. usado apenas na geração de energia, obter 1 quilo
Em 2000, ela foi remodelada e adequada e sua por meio de sua queima, e havia um
capacidade de produção passou a ser de 50 to- excedente dele. “Não se pensava ainda
de plástico
neladas por ano. no seu potencial uso como matéria- biodegradável
-prima para outros produtos, como
seleção de bactérias hoje se quer utilizá-lo para fabricar
Paralelamente a esse, outro projeto financiado etanol de segunda geração”, explica.
pela FAPESP levou ao desenvolvimento de uma “Propusemos então o seu uso para produzir po-
tecnologia diferente para obtenção de plástico lihidroxialcanoatos e gerar plásticos biodegradá-
biodegradável. Coordenado pela bioquímica Lui- veis utilizando o hidrolisado do bagaço de cana.”
ziana Ferreira da Silva, então no Agrupamento de Para isso, a equipe identificou e selecionou du-
Biotecnologia do Instituto de Pesquisas Tecno- as espécies de bactérias (Burkholderia sacchari e
lógicas do Estado de São Paulo (IPT), o trabalho Burkholderia cepacia), a primeira até então des-
tinha como objetivo encontrar bactérias capazes conhecida, altamente eficientes no processo de
de utilizar o hidrolisado de bagaço da cana para síntese e produção do bioplástico do hidrolisado
produzir os biopolímeros. Intitulado “Seleção, do bagaço. Mas, para chegar a isso, uma série de
melhoramento genético e desenvolvimento de obstáculos teve de ser vencida. “No nosso proje-
processo fermentativo para utilização do hidroli- to, a hidrólise era feita em meio ácido que libera
sado do bagaço de cana-de-açúcar para a produção os açúcares, mas também produz uma série de
de polihidroxialcanoatos (PHA)”, polímero para compostos tóxicos para os micro-organismos”,
plásticos biodegradáveis, o projeto buscava ain- explica Luiziana. “Por isso, tivemos de desenvol-
da desenvolver um processo de produção destes ver uma metodologia para eliminar a toxicida-
materiais em biorreatores em escala de bancada. de do hidrolisado de bagaço e, assim, permitir o
Exemplos do dia a dia:
A pesquisadora, que também foi membro da seu uso pelas bactérias.” Apesar do sucesso, essa réguas, copo e chaveiros
equipe que desenvolveu o bioplástico a partir tecnologia ainda não é usada comercialmente. feitos de bioplásticos

156  _ especial 50 anos fapesp


ção da rota que havia iniciado lá no começo dos
anos 1990. Durante os três anos em que durou, Os projetos
o produto foi testado pelos clientes finais e ava- 1. Obtenção e caracterização
liados quanto a suas possibilidades no mercado. de polímeros ambientalmente
“No final do projeto nós havíamos desenvolvido degradáveis (PAD) a partir
de fontes renováveis:
produtos e aplicações específicas para alguns ni- cana-de-açúcar –
chos de mercado”, conta Nascimento. “Entre eles, nº 2001/02909-9
estão as indústrias de embalagens de alimentos, (2001-2004)
2. Obtenção de linhagens
farmacêuticas, de brinquedos, automotiva, além bacterianas e
da agricultura.” desenvolvimento de
Para que a PHB Industrial alcançasse esses tecnologia para a produção
de plásticos biodegradáveis
resultados foi fundamental a parceria com o De- a partir do hidrolisado de
partamento de Engenharia de Materiais da Uni- bagaço de cana-de-açúcar –
versidade Federal de São Carlos (UFSCar). Foi lá nº 1999/10224-4
(2000-2002)
que, a partir de 2001, tiveram início os estudos Modalidades
para desenvolvimento de blendas (do inglês blend, 1. Programa de Pesquisa
ou mistura) e compósitos a partir do PHB. “Du- Inovativa em Pequenas
Empresas (Pipe)
rante o projeto apoiado pelo Pipe, fizemos aqui 2. Linha regular de auxílio à
Água com adubo orgânico no nosso departamento toda a parte de caracte- pesquisa
rização do biopolímero e desenvolvemos poten- Coordenadores
1. Jefter Fernandes do
O pó de PHB resultante servirá ciais aplicações para ele”, explica o pesquisador Nascimento – BPH Industrial
para produzir bioplásticos José Augusto Agnelli, da UFSCar. “A criação de 2. Luiziana Ferreira da
vários produtos, na forma de protótipos também Silva – IPT
Investimento
foi feita aqui na nossa universidade.” 1. R$ 338.840,00
Antes disso, foi preciso dar as características 2. R$ 107.740,17
necessárias ao plástico produzido pelas bacté-
Isso não quer dizer, no entanto, que o projeto rias, para que ele pudesse ser transformado em Artigo científico
não teve desdobramentos. Em 2004, Luiziana se produtos industriais. Ou seja, foram feitas novas
CASARIN, S. A. et al. Study on
transferiu do IPT para a USP, na qual hoje uma formulações com o acréscimo de outros materiais In-Vitro Degradation of
de suas linhas de pesquisa procura melhorar o ao biopolímero. “Entre outros, nós colocamos Bioabsorbable Polymers Poly
uso dos açúcares do hidrolisado do bagaço para materiais naturais, como fibra de sisal ou farinha (hydroxybutyrate-co-valerate)
– (PHBV) and Poly
gerar os biopolímeros e outros materiais. “Aqui, de madeira”, explica Agnelli. “Também acres- (caprolactone) – (PCL).
no Laboratório de Bioprodutos, temos estuda- centamos às formulações resíduos de processos Journal of Biomaterials and
do diversos aspectos relevantes para entender e industriais e outros polímeros degradáveis. O Nanobiotechnology. v. 2,
p. 207-15, 2011.
melhorar o consumo da xilose, ou de misturas de objetivo dessas blendas é facilitar e acelerar a
xilose, glicose e arabinose, para ter organismos decomposição e reduzir custos de produção.”
eficientes na produção dos polihidroxialcanoa- A empresa PHB Industrial não foi a única be- De nosso arquivo
tos”, conta. neficiada com o projeto financiado pelo Pipe da Plástico renovável
De acordo com ela, uma das principais con- FAPESP. A UFSCar também lucrou. “Todos os Edição nº 142 – dezembro
de 2007
tribuições do seu grupo nesse sentido é propor equipamentos que foram comprados com os re-
que a produção de biopolímeros a partir de xi- cursos da FAPESP para o projeto estão alojados Plástico de açúcar
Edição nº 80 – outubro
lose seja incorporada às usinas de açúcar e ál- aqui no nosso departamento”, conta Agnelli. “Na de 2002
cool, que constituem o melhor modelo do que terceira fase (Fase III do Pipe), a PHB Industrial
se define hoje como uma biorrefinaria. “Nela, se comprometeu e construiu aqui um laboratório,
haveria a produção dos polímeros biodegradá- dentro das dependências da Universidade Fede-
veis a partir da xilose, utilizando insumos tanto ral de São Carlos, vinculado ao Departamento de
infográfico tiago cirillo,  fonte: Biocycle www.biocycle.com.br/site.htm

para matéria-prima como para os processos de Engenharia de Materiais, denominado Laborató-


separação, que pode resultar em um processo rio de Polímeros Biodegradáveis. A universidade
verde e autossustentável”, explica. “A levedura cedeu o terreno e a PHB Industrial se encarregou
produtora de etanol poderia utilizar apenas a gli- de construí-lo.” n
cose presente também no hidrolisado do bagaço
e nossas bactérias utilizariam a xilose.”

Parceria com a UFSCar


Enquanto isso, o projeto “Obtenção e caracteri-
zação de polímeros ambientalmente degradáveis
(PAD), a partir de fontes renováveis: cana-de-
-açúcar”, aquele coordenado por Nascimento e
que teve o apoio do Pipe, avançava na consolida-

pESQUISA FAPESP maio de 2012  _ 157


_ S emicondutores

A memória do
futuro Filme ferroelétrico de finíssimas
camadas poderá substituir películas
ferromagnéticas nos computadores

Yuri Vasconcelos

U
m filme ferroelétrico, constituído de Estadual Paulista (Unesp), em Araraquara, e o
finíssimas camadas de um material outro pelo professor Elson Longo, do laboratório
semicondutor, poderá ser utilizado também chamado Liec, da Universidade Federal
para fabricação de memórias que de São Carlos (UFSCar). Atualmente, Varela é o
equipam computadores e uma infi- diretor-presidente da FAPESP e Longo, aposen-
nidade de aparelhos eletrônicos, com vantagens tado da UFSCar, atua no Liec da Unesp.
sobre os filmes ferromagnéticos empregados O desenvolvimento do filme ferroelétrico re-
atualmente pela indústria de semicondutores na corre a um novo método relativamente simples e
produção de chips. A capacidade de armazena- de baixo custo de deposição química que utiliza
mento desse novo material, criado em meados um forno de microondas caseiro. Ele é produzi-
da década passada pelo Centro Multidisciplinar do a partir de uma solução orgânica obtida de
para o Desenvolvimento de Materiais Cerâmicos ácidos cítricos, presentes em frutas como limão
(CMDMC), é até 250 vezes maior do que a das e laranja. Essa solução é usada para preparação
memórias convencionais. Sua durabilidade tam- de um composto sólido e com estrutura quími-
bém é imensamente superior: em torno de 300 ca polimérica, semelhante à dos plásticos, que
anos, ante cinco anos dos chips de hoje. leva bário, chumbo e titânio como ingredientes.
A novidade poderá trazer grandes benefí- O composto é levado a um forno simples, com
cios para os consumidores e novos rumos para temperatura de até 300 graus Celsius, para reti-
a indústria de informática e eletroeletrônica rada de alguns elementos orgânicos indesejáveis,
no âmbito nacional e internacional, segundo os como o carbono. Em seguida, é feita a cristaliza-
pesquisadores envolvidos. Os trabalhos foram ção do material em um aparelho de microondas
conduzidos por dois grupos de pesquisadores, doméstico para a obtenção de um filme fino de
um deles coordenado pelo professor José Arana titanato de bário e chumbo.
Varela, do Laboratório Interdisciplinar de Ele- “Tivemos que superar muitas dificuldades téc-
troquímica e Cerâmica (Liec) da Universidade nicas para conseguir desenvolver o filme ferro­

158  _ especial 50 anos fapesp


elétrico. Quando iniciamos os trabalhos, há trinta com a atual tecnologia de produção de circuitos
anos, essa era uma área de pesquisa nova, já que integrados que usam chips de silício e de arseneto
todo mundo usava memórias magnéticas. Fazer de gálio”, afirma Longo. Em 2010, pesquisadores
memórias pelo método químico era, naquela épo- da Universidade de Cornell, nos Estados Unidos,
ca, a fronteira do conhecimento”, afirma Longo. foram além e conseguiram criar um filme de tita-
“Quando decidimos começar a pesquisar esse nato de európio ao mesmo tempo ferromagnético
novo material, não tínhamos competência na e ferroelétrico, o que foi considerado uma pro-
área. Levamos dois anos para fazer os primeiros eza, já que quase não há na natureza materiais
filmes finos reprodutíveis e com qualidade”, diz que possuam simultaneamente as propriedades
ele. Segundo o pesquisador, um aspecto funda- ferroelétrica (eletricamente polarizados e sem
mental para o sucesso da empreitada foi o caráter condução de corrente) e ferromagnética (com
multidisciplinar da equipe, formada por físicos, campo magnético permanente).
químicos e engenheiros. O titanato de európio, quando submetido ao
Também foi importante a associação com cien- fatiamento em camadas nanométricas, esticado
tistas de outros estados e do exterior para vencer e posicionado sobre um composto de disprósio
obstáculos que surgiram ao longo do trabalho. – elemento químico do grupo dos lantanídeos,
“Buscamos trabalhar com grupos que tinham assim como o európio –, apresenta propriedades
competência em áreas que não dominávamos”, ferromagnética e ferroelétrica melhores do que
recorda-se Longo. As pesquisas do grupo tive- as conhecidas atualmente.
ram início depois de uma viagem de Varela aos Para Jacobus Willibrordus Swart, professor
Estados Unidos, quando ele teve contato com a da Faculdade de Engenharia Elétrica e de Com-
nova tecnologia. “No seu retorno, percebemos a putação da Universidade Estadual de Campinas
necessidade de desenvolver filmes finos focados (Unicamp) e coordenador do Instituto Nacional
nas áreas de memória, sensores e catalisadores”, de Ciência e Tecnologia de Sistemas Micro e
conta Longo. Nanoeletrônicos (INCT/Namitec), financiado
pelo governo federal e a FAPESP, existem boas
Como fazer chances de as memórias ferromagnéticas ocu-
A fabricação de chips com memória ferroelétrica, parem espaço no mercado, mas isso ainda deve
no entanto, necessita de um ambiente ultralimpo levar algum tempo. “Pode soar estranho, mas a
e de profissionais capazes de fazer a deposição indústria de microeletrônica e semicondutores
de filmes finos. Entende-se por filme, aqui, qual- é muito conservadora. Ela só parte para novos
quer película muito fina que separa duas fases de materiais quando há uma necessidade urgente
um sistema, ou forma a própria interface dessa e uma demanda justificada”, diz ele.
separação. Eles originam-se entre dois líquidos, “As memórias ferromagnéticas possuem van-
como acontece entre a água e o óleo, entre um tagens técnicas comprovadas. Mas, para que elas
líquido e um vapor ou na superfície de sólidos. As tenham futuro, é preciso que elas se mostrem
pesquisas na área de filmes finos sólidos – com comercialmente viáveis”, diz Swart. Segundo
espessura menor do que um micrômetro (mi- o pesquisador, a troca de um material em uso –
lionésima parte do metro) – evoluem de forma no caso as memórias magnéticas – por um novo
significativa devido às vantagens desse material, envolve ajustes tecnológicos, novos processos de
principalmente na miniaturização de equipa- aprendizado e riscos de queda de produtividade
PASIEKA/SCIENCE PHOTO LIBRARY

mentos eletrônicos. na fabricação de chips.


“Grandes grupos industriais dos Estados Uni-
dos, Europa e Ásia estão investindo milhões de energia otimizada
dólares na obtenção de filmes finos ferroelétricos Entre as vantagens do uso de filmes ferroelétri-
porque eles são compatíveis e de fácil integração cos na preparação dos dispositivos eletrônicos,

pESQUISA FAPESP maio de 2012  _ 159


em comparação com as cerâmicas fer-
romagnéticas utilizadas para memória, O suco que virou filme
eles apontam o menor tamanho, baixo
peso, alta velocidade de escrita e leitura A matéria-prima dos filmes ferroelétricos cristalizados sai
e baixa voltagem de operação. “Atual- de limões e laranjas
mente, nas pastilhas dos semiconduto-
res com 1 centímetro quadrado de área
é possível arquivar 1 megabyte (MB) de 1 Extrai-se
informações. Com a nova memória, se-
rá possível arquivar no mesmo espaço
quimicamente
ácido cítrico de
2 Adicionam-se
metais para formar a
250 MB”, destaca Longo. Além disso, limões e laranjas estrutura dos filmes
os materiais ferroelétricos permitem a
construção de memórias eletrônicas que
titânio chumbo bário
não necessitam o mínimo de energia para
funcionar. “A capacidade de armazenar
informações está ligada ao arranjo de
seus átomos”, diz Longo.

C
ada célula de memória consiste
carbono materiais indesejáveis
de um único transistor de acesso
conectado a um capacitor ferroelé- 3 Um forno elimina
Ca
trico, dispositivo que armazena energia as impurezas Ca Ca Ca Ca

num campo elétrico. O transistor atua


como um interruptor, permitindo que
o circuito de controle leia ou escreva os 300ºC

sinais 0 e 1, do sistema binário, a serem


armazenados no capacitor. O princípio
cristal de
utilizado é o mesmo dos semicondutores
titanato
magnéticos empregados nos cartões de mm
icricor de bário e
crédito comuns e bilhetes de transporte. -ooonn
ddaass chumbo
“A diferença é que os cartões magnéticos
precisam ser encostados a uma leitora 4
para passar a informação, enquanto os Em um microondas
Filme
cartões ferroelétricos podem ser lidos a se formam os
ferroelétrico
uma distância de até seis metros”, expli- cristais do filme
cristalizado
ca Longo. A leitura é feita por radiofre-
quência. O chip, de cerca de 2 milíme-
tros quadrados de área, não é aparente.
Embutido nos cartões ou em celulares, ção e Difusão (Cedip) da FAPESP, teria tecnologia desenvolvida por Araújo e
por exemplo, ele possui um sistema de participação ativa no desenvolvimento sua equipe foi licenciada pela Panaso-
proteção contra hackers. de novas memórias ferroelétricas e de nic, no Japão, onde é utilizada em car-
Há quatro anos, chegou a ser cogitada novos materiais. tões de metrô, trens e nas carteiras de
a possibilidade de construção de uma “Infelizmente, as negociações não habilitação.
fábrica para produção de semicondu- avançaram e a Symetrix decidiu insta-
tores ferroelétricos em São Carlos, cujo lar sua fábrica na China. Foi uma pena, No supermercado
investimento remontaria a R$ 1 bilhão. pois, além da fábrica em si, estimamos A memória ferroelétrica poderá ser uti-
Inicialmente, a memória de acesso ale- que outras 300 a 400 novas empresas da lizada também como componente na fa-
atória ferroelétrica, ou FeRAM, também cadeia produtiva seriam instaladas na bricação de carros e em supermercados.
conhecida como memória não volátil região”, informa Elson Longo. Segundo No setor automotivo, ela poderá fazer
– já que, uma vez removida a energia, ele, o sucesso do negócio esbarrou na di- parte de um sistema anticolisão, uma
a informação continua armazenada –, ficuldade de obtenção de recursos para tecnologia patenteada pela Symetrix.
seria produzida com tecnologia desen- construção da unidade em São Carlos. “Com essa memória é possível instalar
volvida pela empresa norte-americana “A Symetrix chegou a iniciar conversas um sistema de segurança no carro com
Symetrix, criada há duas décadas nos com um investidor privado nacional, sensores na faixa do infravermelho, que
Estados Unidos pelo brasileiro Carlos contatado por nós, mas a negociação não funcionarão como câmeras de visão no-
Paz de Araújo, professor de engenharia se concretizou. A instalação de uma in- turna para detectar a presença de pes-
elétrica na Universidade do Colorado. dústria de semicondutores é complexa soas, animais ou carros parados, numa
Pelos entendimentos iniciais, o CMD- e envolve interesses diversos, que não faixa de 100 a 200 metros à frente do
MC, um dos Centros de Pesquisa, Inova- foram contemplados”, conta Longo. A veículo”, explica. Nos supermercados,

160  _ especial 50 anos fapesp


a utilização da memória ferroelétrica ca de 30 anos de percurso para superar
no lugar dos códigos de barras permiti- um dos problemas da microeletrônica: Os projetos
rá um controle integrado dos produtos. o tamanho da célula de memória. Es-
Informações como data de validade do ta peça está sendo reduzida a cada ano 1. Desenvolvimento de Cerâmicas e Filmes
Ferroelétricos através do Controle da
produto, nome do fabricante, preço, esto- com o objetivo de aumentar o número Microestrutura – nº 1998/14324-0
que e quantidade comprada serão colo- de dispositivos e proporcionar maior (2000-2012)
cadas em um dispositivo do tamanho de capacidade de arquivamento e proces- 2. Síntese e Caracterização de Filmes Finos e
Cerâmicas Ferroelétricas – nº 2000/01991-0
uma pontinha de alfinete. “Não é apenas samento de dados para os computado- (2000-2005)
um código de barras, mas uma memória res. Os cientistas ligados ao grupo que 3. Influência da Texturização e de Defeitos
inteligente”, diz Longo. deu origem ao CMDMC começaram a Cristalinos nas Propriedades Ferroelétricas
de Filmes Finos e Cerâmicos – nº 2004/14932-3
estudar os materiais ferroelétricos em

‘C
(2005-2009)
ada etiqueta com um chip embutido 1992. O conhecimento originado desses Modalidades
poderá custar menos de R$ 0,02”, estudos resultou na publicação de 208 1. Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão
ressalta Varela. O consumidor que artigos científicos em revistas nacionais (Cepid)
2. e 3. Auxílio Pesquisa – Projeto Temático
for às compras saberá antecipadamente e internacionais. Desde 2000, quando
Coordenadores
quanto gastou ao passar a uma distância esse Cepid foi criado, foram formados 1. Elson Longo – Centro Multidisciplinar para
de três ou quatro metros de um painel. 18 doutores e 22 mestres em materiais o Desenvolvimento de Materiais Cerâmicos,
Caso concorde em fi- ferroelétricos. UFSCar
2. e 3. José Arana Varela – Laboratório
nalizar a compra, antes As novidades apre- Interdisciplinar de Eletroquímica e Cerâmica,
de sair pela porta será sentadas pelas equi- Unesp
feito o débito ou crédi- Nos carros pes dos professores Investimento
to do cartão que carre- Longo e Varela, que 1. R$ 21.025.671,96 por ano para todo o

ga no bolso. “Enquanto e nos juntos coordenaram


CMDMC
2. R$ 1.319.395,06
um cartão magnético três projetos temáti- 3. R$ 704.506,70
(igual aos de crédi- códigos cos da FAPESP – De-
to ou débito) dura de senvolvimento de Ce- Artigos científicos
quatro a cinco anos, o de barra, râmicas e Filmes Fer-
ferroelétrico pode ser roelétricos através do 1. COSTA, C. E. F. et al. Influence of strontium

utilizado até 1 trilhão outras Controle da Microes-


concentration on the structural,
morphological, and electrical properties of
de vezes nas funções trutura, Síntese e Ca- lead zirconate titanate thin films. Applied
escrever e ler de for- possíveis racterização de filmes Physics A: Materials Science & Processing.
v. 79, n. 3, p. 593-97, 2004.
ma elétrica (a forma finos e Cerâmicas Fer-
como as informações aplicações roelétricas e Influên- 2. SIMÕES, A. Z. et al. Electromechanical
properties of calcium bismuth titanate films:
são gravadas na memó- cia da Texturização e A potential candidate for lead-free thin-film
ria ferroelétrica), o que de Defeitos Cristali- piezoelectrics. Applied Physics Letters, v. 88,
dá uma média de vida nos nas Propriedades p. 72916-19, 2006.

útil de 300 anos”, ex- Ferroelétricas de Fil-


plica Varela. Uma das razões para esse mes Finos e Cerâmicos –, poderão, no De nosso arquivo
menor tempo de vida útil dos cartões futuro, reduzir a histórica dependência
Memórias de futuro
magnéticos é a necessidade do contato brasileira de importação de dispositivos Edição nº 153 – novembro de 2008
direto para a leitura. semicondutores, que atingiu US$ 4,9 bi-
Investimento de peso
O grupo da Unesp de Araraquara lhões em 2011, segundo dados da Asso- Edição nº 144 – fevereiro de 2008
sintetizou recentemente outro mate- ciação Brasileira da Indústria Elétrica e Magnéticas e sensíveis
rial promissor com propriedades ferro­ Eletrônica (Abinee) – valor 10% superior Edição nº 175 – setembro de 2010
elétricas, a ferrita de bismuto, uma liga ao do ano anterior.
infográfico  Tiago cirilo  fonte: José Arana Varela/Unesp, Elson Longo/UFSCar

Condutor ao forno
de bismuto, ferro e oxigênio. Pode ser O mercado mundial de semicondu- Edição nº 97 – março de 2004
uma alternativa às memórias convencio- tores é bilionário e, de acordo com in- Segurança para crescer
nais, por ter baixo consumo de energia. formações da Semicondutor Industry Edição nº 72 – fevereiro de 2002
“O ponto fraco é a elevada corrente de Association (Associação da Indústria de Maior capacidade de memória
fuga, o que diminui sua aplicabilidade. Semicondutores, em português), movi- Edição nº 52 – abril de 2000
Estamos trabalhando para reduzir a mentou US$ 299,5 bilhões em 2011, um re-
corrente de fuga”, diz Longo. Segundo corde histórico. Há alguns anos, o governo
ele, até agora a principal aplicação do brasileiro tenta, sem sucesso, atrair uma
novo material, sintetizado por russos multinacional de semicondutores para o
e norte-americanos, é no desenvolvi- país. Em 2010, foi inaugurada a fábrica da
mento de sensores. Ceitec, em Porto Alegre. A estatal, ligada
A pesquisa que resultou nos filmes fi- ao Ministério da Ciência e Tecnologia, é
nos de titanato de bário e de chumbo faz apontada como o embrião da fábrica de
parte de uma corrida mundial com cer- semicondutores brasileira. n

pESQUISA FAPESP maio de 2012  _  161


_  N OVOS MATERIAIS

Fragilidade
superada
Por meio da cristalização controlada, equipe
de São Carlos elabora vitrocerâmicas para
telescópios, computadores e ossos do ouvido

Yuri Vasconcelos

U
m grupo de pesquisadores da Uni- avaliado em testes clínicos em seres humanos.
versidade Federal de São Carlos Este trabalho foi feito em conjunto com a Uni-
(UFSCar) pesquisa e desenvolve versidade da Flórida. No final dos anos 1990,
há 35 anos novos materiais vítreos, uma patente foi licenciada à empresa American
entre eles as vitrocerâmicas, que Biomaterials, dos Estados Unidos. “No proces-
podem ser usados para fabricação so de patenteamento, por ingenuidade nossa,
de produtos tão distintos quanto espelhos pa- fomos identificados apenas como os inventores
ra telescópios gigantes, substratos para discos do produto e não como os titulares – aqueles que
rígidos de laptops, ossos e dentes artificiais, pi- são os detentores dos direitos sobre a patente”,
sos de luxo que imitam pedras raras, panelas lamenta Zanotto. “Tivemos um papel fundamen-
transparentes resistentes ao choque térmico e tal na inovação, mas nunca recebemos um tostão
placas de modernos fogões elétricos. O trabalho de royalties. Aprendemos uma valiosa lição e já
é liderado pelo engenheiro de materiais Edgar tomamos as devidas providências para evitar
Dutra Zanotto, coordenador do Laboratório de repetir tal erro”, lamenta.
Materiais Vítreos (LaMaV) do Departamento Outro material biocompatível criado no LaMaV
de Engenharia de Materiais (DEMa). foi o biosilicato, uma vitrocerâmica bioativa for-
Um dos produtos criados pela equipe, uma mada por silício, sódio, potássio, cálcio e fósforo.
bio-vitrocerâmica para fabricação de pequenos Concebida na forma de pó, ela se destina a tra-
ossos humanos, como o martelo, o estribo e a tamentos dentários. Quando se liga ao esmalte
bigorna, que formam o ouvido, já está sendo dentário, cura a hipersensibilidade da dentina.

162  _ especial 50 anos fapesp


Vitrais espessos das O produto já é vendido em pequenas quantidades 2010 e 2011. Segundo Zanotto, duas empresas já
catedrais mostraram que para testes experimentais por grupos de pesquisa demonstraram interesse na fabricação das pla-
o vidro não pode fluir na
e aguarda o sinal verde da Agência Nacional de cas de fogões.
temperatura ambiente
Vigilância Sanitária (Anvisa) para ser comercia-
lizado em larga escala. A patente depositada em PARCERIA COM A INDÚSTRIA
2003 foi recentemente aprovada pelo Instituto O laboratório mantém estreita cooperação com
Nacional da Propriedade Industrial (INPI). Os uma rede de colaboradores no exterior e com o
estudos para o desenvolvimento do Biosilicato re- setor privado, visando à realização de estudos
ceberam financiamento dos programas Pesquisa em pesquisa básica e aplicada e à criação de no-
Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe) e Apoio vos materiais vítreos. Nas últimas três décadas e
à Propriedade Intelectual, ambos da FAPESP. meia, algumas dezenas de projetos já foram rea-
Os pesquisadores da UFSCar também já fize- lizadas em conjunto com mais de 40 empresas,
ram vitrocerâmicas tipo scaffolds – um material entre elas a fabricante italiana de pneus Pirelli,
bioativo, com aparência de esponja, que pode ser a multinacional americana de alumínio Alcoa, a
usado como suporte para o crescimento de célu- fabricante brasileira de vidros Nadir Figueiredo,
las ósseas – e um novo material para produção a multinacional francesa Saint-Gobain, também da
de placas de fogões elétricos que substituem os área de vidros, a Companhia Baiana de Pesquisas
tradicionais queimadores a gás. Duas patentes Minerais (CBPM), a empresa americana OptiGra-
glow images

relacionadas a esses desenvolvimentos foram te, que atua no setor de fotônica, e a siderúrgica
depositadas pela UFSCar, respectivamente, em brasileira Usiminas. Com esta última, a equipe

pESQUISA FAPESP maio de 2012  _ 163


de baixa ou alta condutividade elétrica,
coeficiente de dilatação térmica próxima
de zero – até igual ao de metais –, alta
durabilidade química e porosidade nula”,
explica Zanotto. Segundo o pesquisador,
graças a essas propriedades, as vitroce-
râmicas funcionam, por exemplo, como
isolantes elétricos, característica neces-
sária aos substratos de discos rígidos de
computadores, e podem ser usadas em
situações em que a dilatação do mate-
rial é indesejada por causar prejuízos
ao bom funcionamento do equipamen-
to, como no caso dos telescópios ou pla-
cas de fogões. O primeiro artigo cientí-
fico sobre vitrocerâmicas foi publicado
em 1957. Até esta data, a base Scopus já
contabiliza cerca de 10.900 artigos cien-
tíficos e tecnológicos e a Free Patents on
Line contabiliza mais de 5 mil patentes
publicados sobre o tema.

Vitrais da Notre-Dame
Além do desenvolvimento de novas vi-
O mistério da santa, agora resolvido: forma humana em uma vidraça em Ferraz de Vasconcelos (SP) trocerâmicas, o LaMaV é responsável por
contribuições relevantes nos campos da
pesquisa básica, em especial nos estudos
patente pelo INPI e aos bons relacionados à nucleação e crescimento
Um novo material, resultados do projeto, a Usi- de cristais em vidros e às propriedades
minas planeja construir uma físico-químicas de vidros. “Nossas pes-
o biosilicato, já é planta-piloto para fabricação quisas deram significativa contribuição
da vitrocerâmica. Estudos téc- para o entendimento dos processos que
produzido em pequenas nicos e de viabilidade econô- controlam a nucleação e o crescimen-
quantidades para testes mica estão sendo realizados to de cristais em inúmeros vidros. No
com essa finalidade. campo científico, descrevemos proces-
sos cinéticos e testamos, aprimoramos
DESCOBERTA ACIDENTAL e desenvolvemos diversos modelos te-
As vitrocerâmicas são um óricos”, afirma Zanotto. Um exemplo
desenvolveu uma vitrocerâmica para ser sofisticado material policristalino que se das contribuições nessa área foram dois
empregada como piso, revestimento de origina do vidro – e que sempre contém artigos publicados por Zanotto, em 1998
parede ou na decoração de ambientes, uma fase vítrea, com teor variável entre e 1999, no American Journal of Physics,
produzida a partir de escórias de aciaria, 99% e 1%. Descobertos acidentalmente o primeiro deles comentado na Scien-
um subproduto da indústria metalúrgica na empresa norte-americana Corning ce, desmontando o mito de que as igre-
com alto teor de sílica e óxidos metálicos. Glass e sintetizados pela primeira vez jas medievais como a Notre-Dame, de
O trabalho, iniciado por volta do ano em 1953, os materiais vitrocerâmicos Paris, por terem vitrais mais espessos
2000, foi realizado em parceria com o são produzidos a partir da cristalização na base do que no topo, constituem a
Centro de Pesquisa e Desenvolvimento controlada de materiais vítreos, fenômeno prova de que o vidro pode fluir na tem-
da Usiminas, localizado em Ipatinga, que acontece quando o vidro, contendo peratura ambiente. Que o vidro é um
Minas Gerais. Naquela época, a siderúr- um agente nucleante dissolvido, como o líquido viscoso, o pesquisador não dis-
gica gerava cerca de 125 mil toneladas óxido de titânio, óxido de zircônio, óxido cute, mas demonstrou que para escoar a
de escórias de alto-forno e aciaria por de fósforo ou prata, é submetido a altas ponto de atingir a espessura observada
mês, um resíduo que causava enorme temperaturas, entre 500 e 1.000 graus nos templos o material levaria milhões
preocupação ambiental. “A produção de Celsius. Como resultado desse processo, e milhões de anos. A partir da análise da
vitrocerâmicas de escórias siderúrgicas ele se cristaliza parcialmente e se trans- composição de 350 vitrais medievais, ele
tem o potencial de livrar o ambiente de forma em um novo material, dotado de concluiu que as diferenças de espessura
parte desses subprodutos, bem como características diferenciadas. em questão, na verdade, decorrem ape-
miguel boyayan

permitir a substituição de rochas natu- “As vitrocerâmicas são materiais nas de defeitos de fabricação do vidro.
rais e outras matérias-primas”, afirma lisos e muito mais resistentes do que o O trabalho desenvolvido por Zanotto
Zanotto. Graças à recente concessão da vidro. Além disso, podem ser dotadas e seu grupo – integrado também pelos

164  _ especial 50 anos fapesp


Os projetos

1. Problemas correntes sobre cristalização


de vidros – nº 1999/00871-2 (1999-2004)
2. Processos cinéticos em vidros e
vitrocerâmicas – nº 2007/08179-9
(2008-2012)
Modalidade
1. e 2. Projeto Temático
Coordenador
1. e 2. Edgar Dutra Zanotto, UFSCar
1 2
Investimento
1. R$ R$ 935.421,42
2. R$ 1.772.804,02

Artigos científicos

1. PEITL, O. et al. Compositional and


microstructural design of highly bioactive
P2O5-Na2O-CaO-SiO2 glass-ceramics. Acta
Biomaterialia. v. 8, n. 1, p. 321-32, 2012.

2. Nascimento, M. L. F. et al. Dynamic


processes in a silicate liquid from above
melting to below the glass transition. Journal
3 4
of Chemical Physics. v. 135, p. 1-18, 2011.
Quatro faces dos novos materiais: 1. vitrocerâmica de escória de aciaria faz lixo ter uso nobre; 2. imitação de
3. Zanotto, E. D. A bright future for glass-
mármores raros cria pisos e revestimentos de luxo; 3. cerâmica bioativa revoluciona sistemas de implantes
ceramics. American Ceramic Society Bulletin.
cirúrgicos; 4. dentes artificiais dão novo alento à estética bucal v. 89, n. 8, p. 19-27, 2010.

De nosso arquivo
dois projetos temáticos: “Pro-
Possibilidade que blemas correntes sobre cristali-
A beleza das vitrocerâmicas
Edição nº 191 – janeiro de 2012
zação de vidros”, já encerrado, e
começa a ganhar forma: “Processos cinéticos em vidros e
Babel de vidro
Edição nº 178 – dezembro de 2010
vitrocerâmicas”, em andamento.
vitrocerâmicas feitas de Mistério desvendado
Edição nº 79 – setembro de 2002
escórias siderúrgicas Cristais em vidro
A santa das vidraças –
O LaMaV atua numa rede com- Mais um mito do vidro
posta por 30 instituições, sendo Edição nº 79 – setembro de 2002
20 internacionais, e encontra-se Muito além do vidro
no mesmo nível dos laborató- Edição nº 76 – junho de 2002
professores Ana Cândida Rodrigues e rios mantidos pelas universidades de Falta integração com a
Oscar Peitl – teve início em 1977, com Nagaoka, no Japão, de Missouri, nos indústria vidreira
a dissertação de mestrado do pesqui- Estados Unidos, de Jena, na Alemanha, Edição nº 76 – junho de 2002

sador no IFSC-USP e prosseguiu com e dos institutos privados de pesquisa Programas de bom tamanho
seus estudos de doutorado, realizados da Nippon Electric Glass, também no Edição nº 73 – março de 2002

na Universidade de Sheffield, no Rei- Japão, Corning Glass, nos Estados Uni- A defasagem entre a ciência e
a tecnologia nacionais
no Unido. Trinta e cinco anos depois, dos, e Schott Glass, na Alemanha. A re-
fotos 1, 2 e 3. Vlad fokin/Lamav/ufscar  foto 4 ® Thayer Dental Laboratory, Inc

Edição nº 43 – junho de 1999


o laboratório, dotado de uma área de de de colaboradores no exterior reúne
800 metros quadrados e equipado com cientistas da França, Espanha, Portugal,
modernos equipamentos, contabiliza a Alemanha, Bulgária, República Tcheca,
publicação de 200 artigos científicos em Reino Unido, Estados Unidos, Rússia,
revistas especializadas, o depósito de Colômbia e Argentina, entre outros paí­
12 patentes e a formação de 60 mestres ses. No início do ano, para comemorar
e doutores – outros 15 estão em proces- os 35 anos de atividade do laboratório,
so. Ao longo dos anos, suas pesquisas Zanotto publicou o livro Cristais em
tiveram o apoio de várias agências de vidro – Ciência e arte, em que apresenta
fomento, como FAPESP, Conselho Na- uma coleção de fotomicrografias cien-
cional de Desenvolvimento Científico e tíficas e artísticas de materiais vítreos
Tecnológico (CNPq) e Coordenação de geradas ao longo desse período – no
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível total, o acervo possui mais de 40 mil
Superior (Capes). Zanotto coordenou imagens. n

pESQUISA FAPESP maio de 2012  _ 165


_  N ovos materiais

Diamantes
versáteis
Produto sintético é usado em brocas
odontológicas, para perfuração de
petróleo no mar e como bactericida

Dinorah Ereno

U
ma nova linha de 30 brocas de uso odontológico
com pontas recobertas por diamante sintético
foi lançada comercialmente em dezembro de
2002 pela empresa Clorovale Diamantes, de São
José dos Campos, no interior paulista. A broca
trazia como principal novidade o fato de fun-
cionar por vibração a partir de ondas de ultrassom, livrando
os pacientes do incômodo ruído do motor das brocas conven-
cionais que operam por rotação ultrarrápida. E a promessa de
um tratamento com menos dor, dispensando o uso da anestesia
na maioria dos casos. “Por serem mais precisas, essas brocas
de diamante não causam traumas desnecessários aos dentes”,
disse em 2002 o físico Vladimir Jesus Trava Airoldi, sócio da
Clorovale e pioneiro no desenvolvimento de diamante CVD
(sigla de chemical vapor deposition, ou deposição química na
fase vapor) sintético no Brasil.
As pesquisas com diamante sintético, um material de cor
escura e sem brilho, foram iniciadas em 1991, quando Airoldi
retomou seu trabalho como pesquisador no Instituto Nacional
de Pesquisas Espaciais (Inpe) após concluir seu pós-douto-
rado no Laboratório de Propulsão a Jato da Agência Espacial
Norte-Americana (Nasa, na sigla em inglês), em Pasadena, na
Califórnia. “Meu propósito era encontrar um projeto na Nasa
que tivesse um grande teor científico e ao mesmo tempo um
alto teor de aplicação”, relata.
Na época, os estudos de diamantes CVD sintéticos eram
muito teóricos, não se tinha ainda a dimensão do que viria a
eduardo cesar

seguir. O que se sabia é que, a exemplo dos diamantes naturais,


os sintéticos têm propriedades físicas e químicas equivalentes,

166  _ especial 50 anos fapesp


como resistência à corrosão, alto grau de forma de pedra única, com gases como
dureza, menor coeficiente de atrito entre hidrogênio e metano. As brocas tradicio-
os materiais sólidos, maior condutividade nais são também recobertas por diaman-
térmica e compatibilidade biológica. Por tes artificiais HPHT – sigla em inglês pa-
conta dessas propriedades ele é utilizado, ra High Presure, High Temperature (alta
por exemplo, como lubrificante sólido em pressão, alta temperatura) – ou naturais,
dobradiças de painéis solares de satélites. mas sempre na forma de pó soldado em
uma haste de aço. Já o diamante CVD

A
lém disso, por ser um material nasce e cresce na própria haste metálica,
com condutividade térmica mais recobrindo-a na espessura desejada. “São
elevada do que a de todos os ou- brocas que sofrem um desgaste mínimo
tros materiais conhecidos e com um com o uso e têm vida útil superior à das
grande intervalo de transmissão óptica, brocas tradicionais”, diz Airoldi. Além
que abrange desde o infravermelho até disso, sua fabricação não utiliza metais
o raio X, o diamante sintético pode ser ou outros resíduos danosos ao ambiente
empregado em ferramentas de corte e nem ao paciente, porque as matérias-
abrasão, protetores de superfícies contra -primas utilizadas são basicamente os
corrosão química, ferramentas médico- gases hidrogênio e metano.
-odontológicas, protetores ópticos e ou- A Clorovale nasceu com financiamen-
tras aplicações. “No começo da década to da FAPESP por meio de um projeto
de 1990, já se vislumbrava nos Estados na modalidade Programa Pesquisa Ino-
Unidos um mercado de bilhões de dó- vativa em Pequenas Empresas (Pipe).
lares, o que de fato ocorre hoje”, relata. Desde então, outros quatro projetos fo-
“Atualmente, cada chip de computador ram aprovados pela Fundação na mesma
tem uma base de diamante CVD porque modalidade, além de dois projetos temá-
ele dissipa mais rapidamente o calor.” ticos e três auxílios regulares a pesquisa
Inicialmente, Airoldi pensou em de- concedidos para o grupo de Airoldi no
senvolver diamantes sintéticos para a Inpe. A empresa também recebeu finan-
área espacial, como dissipadores de ca- ciamento em 2006 por meio de um pro-
lor, lubrificantes sólidos e protetores jeto de subvenção econômica à inovação
ópticos. Mas, pela ampla gama de pro- aprovado pela Financiadora de Estudos e
priedades do material, quis estender su- Projetos (Finep), do Ministério da Ciên­
as aplicações para produtos usados no cia e Tecnologia.
dia a dia. A escolha da odontologia co-

O
mo primeira aplicação industrial para o pesquisador tem hoje 12 paten-
diamante foi fruto de uma estratégia que tes depositadas relacionadas a
considerou o fato de os dentistas serem diamantes sintéticos. A patente
profissionais que apreciam ter um dife- do diamante CVD já foi concedida nos
rencial tecnológico no consultório para Estados Unidos, Europa, Austrália, Japão
atender melhor os pacientes. e China. “A adesão do diamante à área
Para produzir as pontas de diamante metálica é a parte mais importante do
sintético destinadas às brocas odonto- invento, o objeto da patente”, relata Ai-
lógicas, Airoldi criou em 1997 a empre- roldi. Seu grupo de pesquisa, composto
sa Clorovale Diamantes. Acopladas a por cerca de 30 pessoas, entre pesqui-
aparelhos de ultrassom em substituição sadores, alunos e pós-doutorandos, já
aos tradicionais de rotação, elas são hoje publicou mais de 150 artigos científicos
vendidas para o mercado interno e exter- sobre diamantes. Como reconhecimento
no. “Somos a única empresa no mundo pelo seu trabalho, em dezembro do ano
a empregar o diamante CVD na área de passado Airoldi recebeu o Prêmio Finep
Interior do reator
odontologia”, diz ele. de Inovação 2011 na categoria Inventor
onde crescem os O diamante CVD é produzido em pe- Inovador. Recebeu também, na mesma
diamantes quenos reatores, como uma cobertura na ocasião, o prêmio de melhor invento

pESQUISA FAPESP maio de 2012  _ 167


dicional. Diante do novo panorama, a
empresa decidiu ampliar seu foco de
Como fabricar diamantes artificiais atuação e hoje produz também pontas
para brocas de rotação, usadas princi-
Os dois tipos, cristalino e amorfo, resultam do processo de
palmente em laboratórios de prótese. A
deposição química a vapor (CVD)
broca em diamante CVD custa em torno
de R$ 200,00, enquanto a de diamante
CH4 CH4 Ar
convencional fica em cerca de R$ 20,00.
“Apesar da diferença, o custo benefício
H2 medidores n2 medidores compensa pela duração do produto”,
de fluxo de fluxo
medidor medidor
diz Airoldi. “Ela dura de 20 a 30 vezes
filamento de vácuo de vácuo mais que a convencional.”
quente de
câmara

A
tungstênio câmara
de quartzo de deposição
depósito
gás plasma Clorovale fabrica atualmente mais
substrato substrato onde
onde cresce cresce o filme de 30 modelos de pontas, desen-
de diamante
refrigeração o diamante
cristalino amorfo volvidos a pedido de dentistas e
medidor
professores de odontologia. Elas são usa-
H2o
Fonte de
de vácuo das para remoção de cáries, de resina e
Bomba
alta tensão amálgama, no desgaste de dentes, no aca-
Bomba
de vácuo escape de gases bamento de obturações e até em cortes
de gases
ósseos para implante de dentes – e aju-
daram e inspiraram novos cursos. “O pri-
Diamante cristalino Diamante amorfo meiro curso de odontologia ultrassônica
Metano (CH4) e hidrogênio (H2) Metano, nitrogênio (N2) e ar se do país foi criado na Universidade de São
são aquecidos em uma câmara. misturam em reatores gigantescos, Paulo em Bauru”, diz Airoldi. A USP de
Os diamantes crescem em que permitem a produção de Bauru tem hoje dois cursos, um na área
pequenos reatores sobre uma milhares de peças de cada vez. de dentística e outro na de odontopedia-
superfície metálica e chegam Cada diamante pode ter mais de tria. Outros cursos similares são dados
a no máximo 300 milímetros. 1.000 milímetros. na Faculdade de Odontologia da USP
de São Paulo, na Faculdade de Odonto-
logia da Universidade Estadual Paulista
(Unesp) em Araraquara e São José dos
mundial, concedido pela World Intel- sem esmagar a dentina, região onde fi- Campos, ambas no interior paulista, e
lectual Properties Organization (Wipo). cam os filamentos nervosos que dão mais mais recentemente na Escola Paulista
Mesmo cercado de bons predicados, o sensibilidade ao dente. de Medicina Oral em São Paulo.
produto inovador só conseguiu conquis- Além da broca com ultrassom para Além das brocas odontológicas, a tec-
tar o mercado depois de um longo cami- odontologia, na época a empresa desen- nologia CVD é usada no Brasil em bro-
nho. “Enfrentamos muitas dificuldades volveu uma outra de rotação conven- cas para perfuração do fundo do mar na
quando começamos a vender o nosso cional com ponta de diamante CVD. A busca por petróleo. Nesse caso, pequenos
produto”, diz Airoldi. As vendas só co- técnica para recobrir as duas brocas é tarugos de diamante sintético são incor-
meçaram a se fortalecer em 2009, quan- similar. O diferencial consiste na forma porados no corpo da broca por meio de
do a empresa passou a exportar o pro- de atuação da ponta no dente, por rotação soldas ou processos especiais. Inicialmen-
duto após receber a aprovação da União ou vibração. “Como na época a obtenção te a broca foi testada para perfuração de
Europeia. Na avaliação do pesquisador, do diamante pelo processo CVD era mui- poços de água. Além de cortar 30% mais
o demorado tempo de resposta se deve to cara, decidimos focar a produção ape- rápido e dar mais estabilidade ao eixo de foto eduardo cesar  infográfico tiago cirillo, fonte: Vladimir Airoldi/CLOROVALE

ao fato de os consumidores resistirem à nas nas brocas com pontas acopladas a perfuração do que a convencional com pó
inovação tecnológica brasileira. “Mesmo aparelhos de ultrassom, que consistia em de diamante nas pontas, a broca mostrou
fora do Brasil, pelo diferencial da nossa uma novidade no mercado”, diz Airoldi. ser duas vezes e meia mais durável. Dian-
tecnologia não é tão simples apresentá-la te dos resultados, a Petrobras testou a tec-

Q
ao potencial consumidor”, diz. uase dez anos se passaram des- nologia com um protótipo especialmente
Antes de serem introduzidas no mer- de que a Clorovale colocou seus desenvolvido para poços profundos de
cado, as novas brocas foram testadas por produtos no mercado. Nesse pe- petróleo, com resultado considerado sa-
cerca de 500 dentistas e os resultados se ríodo, novos materiais foram incorpo- tisfatório. Outros testes estão previstos
mostraram bastante promissores. Segun- rados à rotina dos consultórios – como para serem conduzidos com dois novos
do Airoldi, profissionais que testaram o resinas e materiais cerâmicos que ne- protótipos encomendados pela Petrobras.
produto antes do seu lançamento con- cessitam de pontas mais eficientes nas A Clorovale se dedica a uma linha de
cluíram que o tratamento era indolor em brocas de rotação – e o diamante CVD pesquisa com diamantes sintéticos chama-
mais de 70% dos casos, porque a broca se tornou mais competitivo em termos dos de amorfos. Enquanto os cristalinos
atinge a cavidade dentária pela vibração, de custos em comparação com o tra- têm uma estrutura organizada de átomos

168  _ especial 50 anos fapesp


de carbono, que confere extrema dureza Broca com
ao material, os amorfos não têm uma es- ponta revestida
de diamante
trutura definida, sendo por isso conside- sintético para
rados materiais menos nobres. “Mesmo exploração de
assim, o diamante amorfo é mais duro do petróleo
que todos os metais conhecidos”, diz Ai-
roldi. Os amorfos também são produzidos
pela técnica CVD e recebem o nome de
DLC (sigla de diamond-like carbon). A base
de produção dos dois tipos de diamante
é basicamente a mesma – gases como o
hidrogênio e o metano, halógenos como
o tetrafluoreto de carbono e outros hidro-
carbonetos. A produção é feita a mais de
2.300º C na presença de plasma, fonte de
energia necessária para causar a nucleação
e o crescimento da cobertura de diamante.
Materiais como silício, quartzo e metais
como molibdênio e nióbio também fazem
parte dos ingredientes utilizados na pro-
dução como substratos. Mas, enquanto o
diamante cristalino é obtido apenas em re-
giões muito pequenas, de no máximo 200
a 300 milímetros, o amorfo pode
atingir além de 1.000 milímetros.
Outra diferença fundamental é
que o cristalino é feito em reato-
res pequenos, enquanto o amorfo
cresce em reatores imensos, que
Novas brocas Os Projetos

motivaram a
permitem a produção de milha-
res de peças de cada vez. 1. Novos materiais, estudos e aplicações
inovadoras em diamante-CVD e Diamond-Like

O criação de
Carbon (DLC) – nº 2001/11619-4 (2002-2007)
DLC, mesmo não sen- 2. Diamante-CVD para um novo conceito de
do tão duro como o dia- ferramentas de alto desempenho para perfuração
e corte – nº 2006/60821-4 (2007-2010)

cursos para
mante cristalino, tem 3. Filmes de DLC para aplicações em superfícies
propriedades extremamente antibacterianas, antiatrito, espaciais, industriais e
interessantes, como alta ade- para tubos de perfuração de poços de petróleo –

dentistas
nº 2006/60822-0 (2007-2010)
rência em superfícies metáli-
Modalidades
cas, além de ser um bactericida 1. Projeto Temático
e biocompatível. A propriedade 2 e 3. Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas
bactericida é uma das mais im- (Pipe)

portantes e pode ser melhorada quando testado para aplicação em ferramentas Coordenadores
1. Vladimir Jesus Trava Airoldi – Inpe/Clorovale
se faz a incorporação em sua estrutura utilizadas em implantes ósseos na orto- 2. Leônidas Lopes de Melo – Clorovale
de nanopartículas bactericidas. “Quan- pedia e para revestimento de bandejas 3. Alessandra Venâncio Diniz – Clorovale
do o diamante amorfo DLC é aplicado usadas para transportar instrumental Investimento
em instrumentos médicos ou peças de cirúrgico em hospitais. 1. R$ 576.456,12
2. R$ 550.661,41
transplantes, ele funciona também como Segundo ele, o diamante amorfo DLC 3. R$ 505.917,65
inibidor de formação de coágulos san- pode ser utilizado para revestimento de
guíneos”, diz Airoldi. Um dos projetos qualquer dispositivo ou instrumento de
Artigo científico
em andamento nessa linha de pesquisa é aço inoxidável. Ao receber uma fina cama-
o seu uso para revestimento de válvulas da do produto, o aço adquire propriedades Marciano, F. R. et al. Oxygen plasma etching of
do coração e em coração artificial. A Uni- como baixo coeficiente de atrito e torna- silver-incorporated diamond-like carbon films.
Thin Solid Films. v. 517, n. 19, p. 5739–42, 2009.
versidade Federal de São Paulo (Unifesp) -se bactericida, além de ficar protegido
de São José dos Campos, a Universidade contra a corrosão química e o desgaste
do Vale do Paraíba (Univap), também mecânico. Na área espacial, o diamante De nosso arquivo
de São José dos Campos, o Hospital das amorfo estará na plataforma multimissão Trajetória vitoriosa
Clínicas da Universidade de São Paulo, de todos os satélites brasileiros. “Não im- Edição nº 192 – fevereiro de 2012
entre outros, são parceiros da Clorova- portamos mais lubrificação sólida, tudo é Sem medo do motorzinho
le nessa pesquisa. O produto está sendo feito no laboratório do Inpe.” n Edição nº 78 – agosto de 2002

pESQUISA FAPESP maio de 2012  _ 169


_  Engenharia naval

Desafios em
águas profundas
Estudos da dinâmica de plataformas e tubulações apoiam avanços
na exploração de petróleo em alto-mar

Igor Zolnerkevic

Plataforma P-37,
campo Marlim Sul,
bacia de Campos:
trabalho em equipe
para evitar o
movimento provocado
por ventos
e correntezas

170  _ especial 50 anos fapesp


H
á mais de três décadas, engenheiros Coordenado por Hernani Brinati, do Departa-
de várias universidades e institutos mento de Engenharia Naval e Oceânica da Poli,
de pesquisa do país participam de um o projeto “Métodos de dinâmica não linear apli-
esforço coordenado pelo Centro de cados ao projeto e análise de sistemas de anco-
Pesquisas da Petrobras (Cenpes) para ragem” envolveu entre 1998 e 2004 uma dezena
desenvolver as tecnologias que vêm permitindo de pesquisadores da Poli, do Instituto de Física
à empresa explorar petróleo em águas cada vez e do Instituto de Matemática e Estatística da
mais profundas. Enquanto nos anos 1980 o desa- USP, além do Instituto de Pesquisas Tecnológi-
fio era alcançar reservas abaixo de mil metros de cas (IPT). Seu objetivo foi investigar como ferra-
lâmina d’água, na bacia de Campos, a Petrobras mentas matemáticas avançadas – os métodos de
consegue hoje explorar com segurança os reser- dinâmica não linear – poderiam ser usadas para
vatórios da chamada camada pré-sal, na bacia de criar modelos que permitissem simular o com-
Santos, em profundidades de até 3 mil metros de portamento de futuros projetos de plataformas
lâmina d’água. Esse avanço fez com que o Brasil ancoradas em alto-mar, de modo a propor me-
alcançasse a autossuficiência de petróleo em 2005, lhorias nos projetos de construção. “Queríamos
com a produção atual chegando a quase 3 milhões atacar problemas de engenharia relevantes para o
de barris por dia, sendo mais de 80% vindos de país, mas de um ponto de vista mais concei­tual”,
reservas marítimas, e com a expectativa de ultra- lembra Brinati.
passar os 6 milhões barris diários em 2020. No Brasil, o uso de plataformas fixas, de aço
Dos problemas que a empresa precisou resolver ou de concreto apoiadas sobre o leito submarino,
para alcançar a liderança mundial em exploração é inviável na maioria dos poços petrolíferos, que
marítima de petróleo, um dos mais desafiadores se encontram abaixo de lâminas d’água de pro-
foi encontrar soluções para que seus navios-pla- fundidade superior a mil metros. O jeito é usar
taforma e plataformas semissubmersíveis não se estruturas flutuantes conhecidas pela sigla FPSO
deslocassem enquanto extraíam o petróleo do (unidades flutuantes de produção, armazena-
fundo do mar, mesmo sujeitos a fortes ventos, mento e descarga, em inglês), mantidas acima do
ondas e correntezas. Outro problema crítico foi poço por meio de um sistema de cabos e amarras
otimizar a tecnologia que impede que as longas presas ao solo submarino por âncoras e estacas.
e delgadas tubulações que levam o óleo e o gás “Se a plataforma não estiver bem posiciona-
do poço no fundo do mar até a plataforma, os da, acontece um desastre”, explica Celso Pesce,
chamados risers, se rompam devido a vibrações da Poli, um dos responsáveis do projeto pelos
provocadas pelas correntezas submarinas. experimentos em escala reduzida que verifica-
Para atender a essas demandas da Petrobras, ram o comportamento dinâmico e a estabilidade
em meados dos anos 1990, engenheiros da Escola dos sistemas de amarração e que consolidaram
Politécnica (Poli) da Universidade de São Paulo o Laboratório de Interação Fluido-Estrutura e
(USP) se organizaram em torno de dois Projetos Mecânica Offshore, da Poli. “Se ela se mover por
Temáticos apoiados pela FAPESP. Pesquisadores uma falha no sistema de amarração, os risers são
que antes trabalhavam de forma independente rompidos, interrompendo a produção e poluindo
juntaram forças e fundaram laboratórios que o meio ambiente.”
hoje são referências internacionais em enge- O sistema de amarração mais tradicional é o
nharia offshore. “Os grupos envolvidos nessas do tipo torreta, que já predominou na bacia de
pesquisas têm o reconhecimento da indústria Campos e hoje em dia é mais usado por FPSOs
geraldo falcão/petrobras

de óleo e gás do mundo todo e frequentemente realizando testes de prospecção de longa dura-
estão envolvidos em investigações que geram ção. No sistema, todas as dezenas de amarras se
inovações e patentes”, afirma Luiz Levy, geren- conectam na torreta – um único eixo vertical
te de tecnologia de otimização de operações e de 10 metros de diâmetro que trespassa o na-
logística do Cenpes. vio, em torno do qual a embarcação pode girar.

pESQUISA FAPESP maio de 2012  _ 171


Abrigado desde 2010 em um edifício na Poli
construído com verbas da Finep e da Petrobras,
Máxima tração: 100

o TPN desenvolve simulações de quase todas as


operações petrolíferas offshore em um cluster de
Mínima tração: 0

computadores milhares de vezes mais rápido que


Mangote criogênico
um único computador convencional e que são
visualizadas em uma sala de realidade virtual.
Como nem todas as condições marítimas são pos-
Hawser
síveis de se reproduzirem por meio de cálculos,
o TPN conta ainda com um tanque d’água com
Linhas de amarração geradores de ondas, ventos e correntezas, que aju-
dam a “calibrar” as simulações computacionais.

Vibrando com vórtices


Outro Projeto Temático da FAPESP, coordena-
Risers do por José Aranha, do Departamento de Enge-
nharia Mecânica da Poli, abordou um problema
que continua a desafiar engenheiros, físicos e
Quanto mais perto o eixo fica da meia-nau, mais Simulação em matemáticos no mundo inteiro e cujo impacto
facilmente o FPSO se alinha com a direção da computador de econômico na exploração de petróleo marítimo
um sistema de
correnteza, sem a ocorrência de movimentos amarração do tipo
é incalculável: o fenômeno da vibração induzida
instáveis. Por outro lado, quanto mais longe o torreta, feita no por vórtices (VIV). Vigente de 1995 a 1999 e re-
eixo fica da popa, mais movimento o navio im- Tanque de Provas novado entre 2002 e 2006, os projetos visaram
põe ao sistema de risers. Um dos problemas Numérico (TPN) estudar o efeito da VIV nas estruturas das pla-
que os pesquisadores investigaram foi qual se- taformas petrolíferas, especialmente nos risers,
ria a posição ideal da torreta que garantiria ao por meio de análises das equações da hidroelas-
mesmo tempo a estabilidade da embarcação e ticidade, simulações computacionais de soluções
a integridade dos risers. dessas equações e por experimentos em escala
reduzida. Colaboraram pesquisadores da USP,

A
alternativa ao sistema torreta é espalhar IPT e Petrobras, bem como da Universidade de
as amarras por toda a extensão da em- Cornell, nos Estados Unidos, do Imperial Colle-
barcação. Nos anos 1990, pesquisadores ge e da Universidade de Southampton, no Reino
da Petrobras desenvolveram um novo sistema de Unido, e do Centro Aeroespacial Alemão.
amarração espalhada, o Dicas (sigla em inglês
para sistema de ancoragem de tensionamento
diferenciado), no qual são usadas linhas de ma-
teriais de rigidez diferentes (aço ou poliéster, por Quase sem oscilar em alto-mar
exemplo), distribuídas ao redor da plataforma de
acordo com as direções dos ventos e das corren- Cabos de ancoragem
tezas da região do poço. “Nossas pesquisas desse reduzem a vibração das
período contribuíram para a adoção do sistema plataformas
Dicas, bem como o uso de cabos de poliéster,
iniciados no Brasil e hoje utilizados no mundo
todo”, lembra Kazuo Nishimoto, o responsável Plat
afor ro
et
do projeto pela implementação dos modelos ma- Área
ma
m ar
0 om
ampliada ld
temáticos em simulações computacionais. ní
ve

Essas simulações pioneiras deram origem a um Desprendimento


de vórtices C
projeto ambicioso, o Tanque de Provas Numérico de abos m
anc 0
ora 00
(TPN), coordenado por Nishimoto e envolvendo g em 2.
ço
Po

Risers
pesquisadores da Petrobras, IPT, USP, UFRJ e Ris
ers
m
outras universidades brasileiras. As simulações 00
0
4.
computacionais cada vez mais sofisticadas cria-
Sa
das pelo grupo do TPN se mostraram essenciais Oscilação
l
0
m
00
6.
para o projeto das plataformas brasileiras, desde
a semissubmersível P-18, inaugurada em 1994,
o

R
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re ocha

de serva
t
Pe

ao FPSO recém-construído P-73, uma vez que é pet tór


róle io
o
impossível construir tanques d’água do tamanho
necessário para simular perfeitamente as condi-
ções de águas profundas.

172  _ especial 50 anos fapesp


Experimento no tanque de cada riser com uma série de placas que formam
água recirculante da Poli-USP uma hélice ao longo da tubulação. Embora real- Os projetos
mostra, por meio de luz laser,
mente atenuem a VIV, a instalação dos strakes por 1. Métodos de dinâmica
o desprendimento
de vórtices na correnteza toda a tubulação é complexa e responsável por não linear aplicados ao
ao passar por um cilindro metade do custo do sistema de risers, que pode projeto e análise de
sistemas de ancoragem –
chegar a quinhentos milhões de dólares (quase nº 1996/12284-6
tanto quanto a própria plataforma). Além disso, (1998-2003)
os strakes aumentam a força de arrasto das águas 2. Vibração induzida por
emissão de vórtices em
“A VIV é um dos poucos fenômenos de dinâ- nos risers, exigindo uma estrutura mais robusta estruturas marítimas e
mica de fluidos até hoje não bem compreendi- para sustentá-los. O objetivo de longo prazo dos oceânicas – nº 1994/03528-3
dos”, afirma Pesce, que também colaborou nesse pesquisadores, portanto, é encontrar soluções (1995-1999)
3. Vibração induzida por
projeto. Para visualizar o que é a VIV, imagine que minimizem cada vez mais o uso dos strakes vórtices (VIV) em estruturas
um tubo vertical de 25 centímetros de diâmetro ou os substituam completamente. marítimas e oceânicas –
e 2.500 metros de comprimento imerso na água, nº 2001/00054-6

O
(2002-2006)
como são de fato os risers pendendo de uma pla- s recursos do projeto permitiram a Ara-
Modalidade
taforma em alto-mar. Quando uma correnteza nha e seus colegas equipar o Núcleo de 1. 2. e 3. Projeto Temático
passa pelo tubo, o escoamento da água ao redor Dinâmica de Fluidos (NDF) da Poli com Coordenadores
dele forma uma série de vórtices tubulares, que clusters de computadores e construir um tanque 1. Hernani L. Brinati – USP
se desprendem um de cada lado do tubo de for- de água recirculante, idêntico a um existente no 2. e 3. José A. P. Aranha – USP
ilustração  poli/usp  infográfico tiago cirillo, fonte: petrobras  foto Prof. Dr. Gustavo R. S. Assi

ma alternada. Imperial College, onde a VIV e outros fenômenos Investimento


1. R$ 250.128,69
As diferenças de pressão causadas pela emis- são observados por meio de feixes laser e câme- 2. R$ 132.336,72
são dos vórtices produzem complexas forças os- ras de alta definição que capturam a dinâmica de 3. R$ 1.753.819,04
cilatórias que induzem vibrações no tubo – um modelos reduzidos de cabos e tubos e sua intera-
movimento caótico e turbulento, nada trivial de ção com a água em movimento. “Estamos entre Artigo científico
se determinar. O problema real da VIV nos risers os dez grupos mais ativos nessa área no mundo”,
MENEGHINI, J. R. et al.
é ainda mais complicado, pois essas tubulações afirma Júlio Meneghini, especialista em dinâmica Numerical Simulation of
ficam sujeitas a correntezas marítimas superfi- de fluidos computacional e experimental, além Flow Interference between
ciais e de fundo cruzadas, além de sofrerem com de coordenador do NDF. two Circular Cylinders in
Tandem and Side-by-side
as oscilações da plataforma. Tanto as simulações Segundo Meneghini, as pesquisas do projeto arrangements. Journal of
computacionais quanto os ensaios experimentais temático produziram melhorias na descrição Fluids and Structures. v. 15,
ainda não conseguem capturar todos os aspectos da VIV, que foram incorporadas nos softwares n. 2, p. 327-350, 2001.

do fenômeno. de análise de risers da Petrobras. As conclusões


Se a VIV não for suprimida, a fadiga mecânica também renderam cerca de 50 artigos científi- de nosso arquivo
provocada pode acabar rompendo os risers. Para cos em revistas internacionais de alto impacto,
Mais petróleo em alto-mar
impedir isso, a solução comercial mais comum são além de três pedidos de patente de mecanismos Edição nº 68 – setembro
os strakes, uma espécie de armadura envolvendo de atenuação de VIV. n de 2001

pESQUISA FAPESP maio de 2012  _  173


_  i ndústria petrolífera

Métodos refinados
Programa capaz de processar informações em sequência com vários
computadores ajuda a aprimorar produção das refinarias

Evanildo da Silveira

U
ma colaboração da maior empresa diz. “Criamos um software que vem evoluindo até

0,25
brasileira, a Petrobras, com a Uni- hoje e é usado por nós e pela Petrobras.”
versidade de São Paulo (USP) e a Schiozer afirma que os modelos numéricos
Universi­d ade Estadual de Campi- criados para prever a produção de petróleo têm
nas (Unicamp) iniciada há mais de muitas incertezas, pois se desconhece grande
15 anos continua rendendo frutos. Uma solução parte das variáveis dos reservatórios, como pro- dólar por barril
de software capaz de processar informações em priedades de rochas e fluidos. “Por isso, os enge-
sequência com vários computadores, para analisar nheiros, geólogos e geofísicos fazem o modelo
de petróleo
o histórico do comportamento de antigos reser- inicial e, à medida que o reservatório produz, ele é refinado
vatórios de petróleo e gás, é um desses resultados, calibrado para reproduzir a resposta real”, diz ele.
assim como a criação de um grupo de pesquisa “Com isso, obtém-se uma previsão de produção
é o ganho
na área de simulação numérica e gerenciamento mais confiável e em menor tempo. Antes, eram adicional
de reservatórios de petróleo e a instalação de um necessários até seis meses para serem feitas as
centro de excelência em automação industrial. previsões de extração. Com o novo sistema esse
proporcionado
Foram inicialmente dois projetos, um da Uni- prazo foi reduzido para poucas semanas.” pelo novo
camp e outro da USP, apoiados pelo Programa de O trabalho no departamento de engenharia
Apoio à Pesquisa em Parceria para Inovação Tec- química da Escola Politécnica (Poli) da USP re-
software
nológica (Pite) da FAPESP, um com início em 1996 sultou em um software usado para otimizar a
e outro em 1997, ambos em parceria com a Petro- produção das refinarias de petróleo da Petrobras.
bras. Denis José Schiozer, professor da Faculda- “O objetivo era conseguir a maior produção pos-
de de Engenharia Mecânica (FEM) da Unicamp, sível com o menor custo”, diz Claudio Oller do
conta que o objetivo de sua equipe era criar uma Nascimento, coordenador do projeto. “Com o
forma de distribuir simulações de reservatórios programa que desenvolvemos foi possível fazer
em redes de máquinas para uma aplicação espe- uma otimização integrada de todos os processos
cífica. Trata-se da calibração de modelos numé- e operações do refino de petróleo.”
ricos de previsão de produção de petróleo, que O software da USP atua­lizou e aperfeiçoou o
consome muito tempo e esforço computacional. Sistema de Controle Avançado da Petrobras (Si-
“Hoje, isso é feito com frequência e em clusters de con). O resultado prático foi um ganho adicio-
computadores, mas na época era uma novidade”, nal de US$ 0,25 por barril de petróleo refinado.

174  _ especial 50 anos fapesp


Refinaria Duque de Caxias,
no Rio de Janeiro, é uma das
unidades da Petrobras com
novo software

Os projetos

1. Paralelização de ajuste
do histórico de produção
em rede de estações
usando PVM (Parallel Virtual
Machine, ou Máquina
Paralela Virtual) –
nº 1995/03942-7
(1996-1999)
2. Desenvolvimento da
Otimização Integrada
das Unidades de uma
Refinaria de Petróleo –
Hoje, o total desse ganho extra, nas 11 refinarias novos algoritmos de controle preditivo”, diz An- nº 1996/02444-6
da empresa no país e quatro no exterior, chega a tonio Carlos Zanin, consultor sênior do Cetai e (1997-2001)

US$ 80 milhões por ano. Isso ocorre porque esse funcionário da empresa há 29 anos. As tecnologias Modalidade
1. e 2. Programa Parceria
programa de computador otimiza as operações desenvolvidas no centro visam melhorar a produ- para Inovação Tecnológica
de refino e torna possível extrair do petróleo mais tividade e a lucratividade de processos industriais (Pite)
derivados nobres, com maior valor agregado. da companhia por meio de ferramentas avançadas Coordenadores
de engenharia de processo e automação. 1. Denis José Schiozer –
Faculdade de Engenharia
Colaboração antiga O Cetai funciona como uma refinaria virtual e Mecânica (FEM), Unicamp
A relação entre a USP e a Petrobras vem desde simula o funcionamento de uma unidade indus- 2. Cláudio Augusto Oller do
1988. “Durante três anos”, relata Nascimento, trial real. “Desenvolvemos modelos matemáticos Nascimento – Escola
Politécnica, USP
“formamos 42 engenheiros de automação para de vários tipos e complexidade, continuamente
Investimento
refinaria.” Eram funcionários da Petrobras que ajustados para representar o comportamento 1. R$ 184.667,97 (FAPESP)
todas as semanas tiravam dois dias para estudar das unidades da Petrobras, avaliar o seu desem- e R$ 261 mil (Petrobras)
no departamento de química da Poli. O projeto penho, prever a trajetória futura e determinar 2. R$ 266.786,21 (FAPESP)
e R$ 573 mil (Petrobras)
do Pite de 1997 evoluiu para a criação do Centro as melhores opções de parâmetros e condições
de Excelência em Tecnologia de Aplicação em operacionais delas”, explica Zanin.
Automação Industrial (Cetai), em 2000, por meio Na Unicamp, um dos desdobramentos do traba- Do nosso arquivo
de um termo de cooperação entre a empresa e a lho com a empresa foi a criação do Unisim, gru- Projetos entre o mundo
Fundação de Apoio à Universidade de São Paulo po de pesquisa que completou 15 anos em 2011 e acadêmico e o empresarial
(Fusp). Com 225 metros quadrados, o centro fica desenvolveu com a Petrobras vários modelos de têm bons resultados
Edição nº 58 –
dentro do departamento de engenharia química simulação para prever produção de petróleo de outubro de 2000
da Poli; um de seus principais objetivos é trans- forma mais confiável. Segundo Schiozer, coorde-
Unicamp e Petrobras
formar pesquisa e desenvolvimento em tecnologia nador do Unisim, as aplicações mais comuns são elaboram software
de otimização do refino de petróleo. metodologias de ajuste de estratégia de produção para controlar reservatórios
O Cetai reúne várias áreas da Petrobras em e de avaliação de riscos ligados à lucratividade. Edição nº 51 –
ricardo azoury/pulsar

março de 2000
atividades de pesquisa, desenvolvimento e ensi- “O investimento inicial rendeu frutos tão po-
no de tecnologias de automação industrial. “Em sitivos que a Petrobras vem financiando o nosso O salto tecnológico
da Petrobras
conjunto com a USP, foram organizados cursos grupo há 15 anos e já temos um novo acordo por Edição nº 37 –
de especialização em otimização e a criação de mais quatro anos”, comemora Schiozer. n novembro de 1998

pESQUISA FAPESP maio de 2012  _ 175


_ t ecnologia da informação

Mil e uma
aplicações
Projetos em colaboração viabilizam novos
usos das ciências da computação em energia,
saúde, design, antropologia e outros campos

texto   Evanildo da Silveira  ilustração   Daniel Bueno

176  _ especial 50 anos fapesp


C
riado em 10 de abril de 2007 com o cações na genética da cana-de-açúcar para uso
objetivo de gerar novos conhecimen- em bioenergia; um projeto para contribuir com
tos que ajudem no desenvolvimento a prevenção da cegueira; e o projeto E-cidadania,
social e econômico do país, o Insti- envolvendo o uso de redes sociais virtuais para
tuto Microsoft Research-FAPESP de promover a inclusão social.
Pesquisas em Tecnologia da Informação (TI) já Segundo o diretor científico da FAPESP, Carlos
investiu cerca de US$ 2,5 milhões (R$ 4,5 milhões Henrique de Brito Cruz, o instituto nasceu de uma
em valores atualizados para 2012) em pesquisas iniciativa da Microsoft Research, que procurou a
no estado de São Paulo. No total, foram ou estão FAPESP com interesse em desenvolver estudos
sendo financiados 18 projetos que exploram a em conjunto com as boas universidades em São
aplicação de ciências da computação em áreas Paulo. “Eles queriam saber se nós estaríamos in-
como meio ambiente, energia, saúde, linguística, teressados numa parceria”, lembra. “Analisamos
antropologia, geografia, física, biologia e design. a proposta e vimos que era um projeto análogo ao
O programa realiza chamadas públicas todos os nosso programa Pite (Programa de Apoio à Pes-
anos ( já foram cinco) e anunciou os resultados quisa em Parceria para Inovação Tecnológica),
da última delas em março deste ano. com a diferença de que a ideia proposta tem um
A cada real ou dólar que a FAPESP investe no horizonte de resultado muito mais amplo do que
instituto, a Microsoft investe igual valor. Entre os normalmente têm os projetos do Pite.”
estudos financiados destacam-se o projeto Sinbio- Para colocar a parceria em prática, a FAPESP
ta 2.0, voltado para as demandas dos usuá­rios no e a empresa assinaram, em 15 de dezembro de
sistema de informação ambiental nos próximos 2006, um acordo de colaboração válido por três
10 anos; o projeto E-Farms, que busca promover anos, que foi prorrogado em 2009 por igual pe-
a ligação das pequenas fazendas com o mundo ríodo. É um tipo de parceria até então inédito
em rede; um projeto de tecnologia da informação no Brasil, pois prevê a realização conjunta de
dedicado a desenvolver um software para apli- pesquisa básica entre universidades e outras

pESQUISA FAPESP maio de 2012  _ 177


instituições científicas paulistas e uma
empresa do porte da Microsoft, com a
intermediação da FAPESP. “É um mo-
delo novo, pois a visão da empresa sobre
a pesquisa não é utilitária”, diz Brito
Cruz. “A Microsoft não pretende que os
estudos em parceria com as universida-
des substituam os que ela própria reali-
za em seus laboratórios. A expectativa
dela é que o instituto ajude a avançar
o conhecimento, com ciência de alto
impacto, e a formar bem os estudantes,
que ela eventualmente possa contratar
mais tarde.”
A gerente sênior de programas de pes-
quisa da Microsoft Research, Juliana
Salles, acrescenta que o propósito da
empresa é colaborar com a academia e
a comunidade de cientistas, apoiando
a inovação em projetos de relevância e
impacto para a humani-
dade. “Em particular, no Além disso, o sistema antigo não per-
caso do Instituto Micro- mitia o desenvolvimento de novos mó-
soft Research-FAPESP, o dulos específicos.
objetivo é in­centivar cola- O alvo é a inovação em Para superar essa limitação, foi de-
borações que resultem no senvolvido um novo sistema de infor-
avanço do estado da arte projetos de relevância e mação modular, usando as ferramentas
em ciên­cia da computa- mais modernas disponíveis. Agora é
ção e computação cien-
impacto para a humanidade possível adicionar módulos de dados
tífica”, explica. “Em co- socioeconômicos, por exemplo, o que
laboração com a FAPESP, possibilita melhor entendimento do
podemos trabalhar com a funcionamento de biomas em áreas
comunidade científica do estado de São os próximos 10 anos, aprovado na tercei- próximas às cidades. As novas ferra-
Paulo em problemas de relevância glo- ra chamada pública do instituto, lan- mentas computacionais do Sinbiota 2.0
bal, cujas soluções envolvam inovações çada em 15 de junho de 2009. O proje- também tornarão possíveis pesquisas na
e avanços na área de tecnologia.” to, coor­denado pelo professor Carlos biologia, combinando ecologia, zoologia,
Alfredo Joly, do Instituto de Biologia botânica, genética e bioquímica.
Impacto internacional da Universidade Estadual de Campi- Com isso, será possível entender mais
Até agora, os resultados da parceria têm nas (Unicamp), recebeu financiamento e melhor os seres vivos em seus ambien-
atingido os objetivos propostos pelo ins- de R$ 177 mil e começou em dezembro tes e também avaliar impactos das mu-
tituto. Entre os principais, Brito Cruz do mesmo ano e foi concluído em de- danças climáticas na biodiversidade. “Os
destaca a produção científica de quali- zembro de 2011. O objetivo foi incluir módulos permitirão que se exportem os
dade, com impacto internacional. “Além novas tecnologias, novas interfaces e no- dados do sistema para poder fazer previ-
disso, nas áreas de cada projeto, houve vas demandas dos usuários no Sistema sões de impacto de mudanças climáticas
formação de recursos humanos em nível de Informação Ambiental Sinbiota, do ou cruzar a informação que se tem com a
de iniciação científica, mestrado e dou- Programa Biota-FAPESP, que permitam dos bancos genéticos, como o GenBank,
torado”, acrescenta. Juliana apresenta sua evolução nos próximos dez anos. por exemplo”, acrescenta Joly.
os números desses resultados: até de- Esse programa da FAPESP, também
zembro de 2011, as pesquisas financia- conhecido Instituto Virtual da Biodi- Pequenas fazendas
das pelo instituto renderam 44 artigos versidade, iniciou em 1999 com a fina- Também aprovado na primeira chamada
publicados em periódicos científicos, 59 lidade de sistematizar a coleta, organi- lançada pelo Instituto Microsoft Rese-
em conferências internacionais e 54 em zar e disseminar informações sobre a arch-FAPESP, o projeto E-Farms: uma
encontros nacionais, além de 17 disserta- biodiversidade do estado de São Paulo. estrada de mão dupla de pequenas fazen-
ções de mestrado e oito teses de douto- Joly lembra que o sistema de informa- das para o mundo em rede se desenvol-
rado. Foram concedidas ainda 41 bolsas ções do Biota também começou a ser veu entre novembro de 2007 e maio de
de doutorado, mestrado e graduação. desenvolvido naquela época. “Ou seja, 2010, sob a coordenação da professora
Um dos projetos que se destacam é ele está defasado em relação às tecnolo- Claudia Bauzer Medeiros, do Instituto
o Sinbiota 2.0 – Sistema de Informações gias mais modernas”, diz. “Dez anos na de Computação da Unicamp. Um dos
do Programa Biota/FAPESP: planejando área de informática são uma eternidade.” dois principais objetivos foi a captura e

178  _ especial 50 anos fapesp


gerenciamento de dados de redes sem conjunta com colegas de outras áreas as funções de genes da cana-de-açúcar.
fio de sensores de temperatura e chu- (no caso, ciências agrárias), para que pos-
Com financiamento de aproximadamen-
va, por exemplo, e o desenvolvimento sam obter resultados relevantes, que não te R$ 111 mil, o trabalho se estendeu de
de software utilizando tais dados, para seriam possíveis sem esta cooperação.” fevereiro de 2010 a janeiro deste ano.
monitoramento de propriedades agríco- Ela também cita a montagem de um Vencio conta que a intenção era de-
las e gerenciamento da safra. conjunto de experimentos em campo, senvolver um sistema computacional
A segunda meta foi o desenvolvimento com dispositivos e dados reais, que mos- para auxiliar os biologistas a atribuir
de soluções de baixo custo para permitir traram as dificuldades de trabalhar com funções a genes sequenciados, mas cujo
acesso à internet sem fio em pequenas redes de sensores sem fio em terrenos papel é desconhecido. “Esse processo é
propriedades rurais. “Esses objetivos acidentados. “Há inúmeros projetos nes- atingido com uma extrapolação guiada
foram parcialmente alcançados”, conta te sentido, no Brasil, mas usando simu- de informações que se conhecem sobre
Claudia. “As questões de conectividade lações ou outros tipos de tecnologia”, ‘parentes’ dos genes desconhecidos por
e internet foram realizadas sob a forma explica. “Os resultados de nosso trabalho meio de um modelo matemático cha-
de protótipo, mas não foram implantadas servem para indicar direções e validar mado rede bayesiana”, diz. “Queríamos
nas fazendas, como pretendíamos.” Os hipóteses.” Mas a história não acabou aí. transformar um método existente mui-
sensores de temperatura foram instala- O grupo de Claudia continua cooperando to bom e eficiente do proof-of-principle
dos no campus da Unicamp, simulando com a Cooxupé, pois foram detectados (prova de princípio) em um aplicativo,
uma rede local em uma propriedade ru- inúmeros desafios em computação apli- que pode ser usado mesmo por biólogos
ral, e os dados foram transmitidos sem cada a ciências agrárias, que precisam serde carne e osso. Isso está em fase final de
fio para um computador na Faculdade de vencidos. “Por exemplo, tenho um aluno preparação e é o objeto da dissertação
Engenharia Agrícola, que os retransmitia de doutorado que está utilizando novas do estudante Danillo Almeida e Silva.”
para o Instituto de Computação, de onde teorias computacionais para processar Ele teve um papel fundamental no pro-
eram colocados na internet. os dados de estações meteorológicas da jeto e explica o que é uma rede bayesiana,
O projeto foi desenvolvido em parceira cooperativa, em tempo real”, diz. uma técnica conhecida de inteligência
com a Cooperativa de Cafeicultores de artificial: “Imagine uma rede social qual-
Guaxupé (Cooxupé), a maior do mundo Bioenergia da cana quer e, nela, um determinado usuário tem
no setor, com cerca de 12 mil associados O físico e doutor em bioinformática amigos, que têm outros amigos e assim
nos estados de São Paulo e Minas Ge- Ricardo Zorzetto Nicoliello Vencio, da por diante. A bayesiana é uma forma de
rais, que investiu R$ 50 mil na iniciativa Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto modelar a social, nas quais as pessoas
– outros cerca de R$ 200 mil foram fi- da Universidade de São Paulo (USP), usou são os ‘nós’ e as relações entre elas são
nanciados pelo instituto. “Um dos nossos a computação com propósito diferente. as interações entre esses nós. No nosso
propósitos, do ponto de vista social, era Seu projeto Tecnologia da Informação caso, os nós são os genes e as relações
criar uma infraestrutura de comunicação aplicada à genômica para bioenergia: ano- de similaridade e parentesco entre eles
de dados, de baixo custo, para permitir a tação probabilística usando inteligência são as interações. Com a rede bayesiana
ligação entre as fazendas e a cooperativa artificial, aprovado na terceira chamada construída nós podemos inferir proba-
e, assim, o acesso delas à internet”, expli- do instituto, tinha como meta desenvol- bilisticamente a função de um gene des-
ca Claudia. “A noção de ‘estrada de mão ver um software para tentar caracterizar conhecido a partir das relações que ele
dupla’ significa que os agricultores rece- tem com outros genes
bem informações pela rede, mas também de função já conhecida”.
enviam novos dados que tornam possível Com essa técnica os
aperfeiçoar as análises realizadas pelo pesquisadores extra­
software desenvolvido.” As novas gerações estão polam as informações
Embora não tenha atingido plenamen- de genes com funções
te os objetivos técnicos propostos, o pro- aprendendo a atuar em definidas para outros,
jeto teve outros resultados relevantes. cujos papéis são des­
Entre eles, estão publicações científi-
ambientes multidisciplinares conhecidos, mas que
cas importantes e o desenvolvimento de têm a mesma origem
trabalhos de mestrado e doutorado, as- evolutiva. Porém, fazer
sim como vários protótipos de software. a coisa funcionar não é
“Além disso, eu destacaria dois resultados simples. “Do ponto de vista técnico, os
singulares, que diferenciam nosso estudo desafios foram maiores do que esperá-
de muitos outros na área de computa- vamos”, afirma Vencio. “O método mate-
ção”, diz Claudia. “Em primeiro lugar, mático que já existia era muito bom, mas
ressalto o treinamento de novas gerações o soft­ware, desenvolvido na Universida-
de pesquisadores para atuar em ambien- de de Berkeley, que é o que realmente
tes multidisciplinares. Este é o futuro da os usuários precisam, era muito pior do
ciência, em todo o mundo. É a nova era que imaginávamos. Mas isso serve para
da chamada eScience, em que cientistas enfatizar a relevância do estudo: se al-
da computação desenvolvem pesquisa guém não fizer isso que estamos fazendo,

pESQUISA FAPESP maio de 2012  _ 179


ninguém vai conseguir usar na prática
o estado da arte em busca de função de
genes no dia a dia.”

Prevenir a cegueira
Jacques Wainer, professor do Instituto
de Computação da Unicamp, também
tenta desenvolver uma tecnologia ainda
inexistente no país. Aprovado na segun-
da chamada pública lançada pelo insti-
tuto, seu projeto Triagem automática
de retinopatias diabéticas: Tecnologia da
Informação contra a cegueira prevenível
busca desenvolver um soft­ware capaz de
detectar alterações em imagens de fundo
de olho de pessoas, indicativas de reti-
nopatia diabética, doença causada pelo
diabetes e que pode levar à cegueira.
Desenvolvido em parceria com a sediadas na Vila União e
Universidade Federal de São Paulo seu entorno em Campi-
(Unifesp), o trabalho começou no fim Uma nova rede social nas”, conta Maria Cecília.
de 2008 e terminou em julho de 2011, A ideia é que elas consi-
com financiamento de cerca de R$ 300 facilita o acesso e a gam facilmente compar-
mil do instituto. Segundo Wainer, fo- tilhar informações, como
ram analisadas cerca de mil imagens
participação de pessoas troca de produtos, servi-
de 400 pacientes. Os resultados obti- com baixa escolaridade ços e outras atividades.
dos ainda precisam ser aperfeiçoados, Depois de suas expe­
no entanto. “Nós desenvolvemos uma riências à frente desse
técnica de direção de anomalias que tra­balho, Maria Cecília fir-
é incomum na área de processamen- mou a convicção de que é
to de imagens médicas, que tem certas De acordo com ela, esse desafio é úni- inegável a importância de institutos como
vantagens, mas também algumas des- co, pois não existem experiências no ex- o Microsoft Research-FAPESP para a ciên­
vantagens”, explica. “O software que terior nas quais se inspirar. Maria Cecília cia no Brasil. “Principalmente pelo fato
desenvolvemos detecta as anomalias lembra ainda que o design das redes so- de olhar para os projetos a partir de duas
mais frequentes em pacientes de reti- ciais hoje disponível não tem a preocu- perspectivas”, diz, “sendo uma alinhada à
nopatia diabética, mas ainda não todas. pação de facilitar o acesso de todos os pesquisa internacional na área de conhe-
E as taxas de acerto em detectar essas segmentos da população. “Para nós, as cimento em questão e outra que situa os
anomalias ainda não estão comparáveis soluções do design de sistemas interati- benefícios esperados e os avanços científi-
com os melhores resultados publicados vos e suas interfaces devem ser pensadas cos no contexto do país e da sociedade na
na literatura.” no contexto cultural do grupo social em qual os problemas têm relevância direta.”
questão”, explica. “Por isso, pensamos
Inclusão social em criar uma interface que torna possí- Valor do método abstrato
O projeto E-cidadania: sistemas e méto- vel que as pessoas olhem para a tela do Para o físico Ricardo Vencio, da USP de
dos na constituição de uma cultura me- computador e saibam o que fazer, que Ribeirão Preto, a importância desse ins-
diada por tecnologias de informação e consigam entender e usar o sistema pa- tituto é enorme. “Ele fomenta algumas
comunicação, por sua vez, busca desen- ra se comunicar e trocar informações.” áreas que, se deixadas somente com o fi-
volver a arquitetura e o design de redes Aprovado na primeira chamada, o pro- nanciamento tradicional, não receberiam
sociais virtuais, que possibilitem a in- jeto recebeu financiamento de R$ 228 mil atenção”, diz. “Em geral, os acadêmicos
clusão de qualquer cidadão, mesmo os do Instituto Microsoft Research-FAPESP tendem a ficar satisfeitos com o proof-
analfabetos ou com baixo letramento. e foi realizado entre novembro de 2007 -of-principle. Entidades como a Micro-
“Um dos grandes desafios da compu- e abril de 2010. Um dos seus principais soft Research sabem o valor que tem um
tação hoje em dia é a busca de métodos resultados é a criação de uma rede social método abstrato se transformar numa
e design de sistemas que possibilitem o inclusiva, que pode ser acessada no ende­ ferramenta real e usável por outros. Essa
acesso de todos e façam sentido princi- reço eletrônico www.vilanarede.org.br, sinergia de visões, no nosso caso, possibi-
palmente para aqueles em desvantagens com a participação ativa de pessoas co- litou o financiamento de um estudo que,
no alcance ao conhecimento”, diz Ma- muns incluindo digitalmente analfabetos sem esse espírito, talvez ficasse na gaveta
ria Cecília Baranauskas, professora do e pessoas com baixo letramento. “Ela foi para sempre por falta de apoio.”
Instituto de Computação da Unicamp desenvolvida em conjunto pelo grupo de Segundo Brito Cruz, diretor científico
e coordenadora do estudo. pesquisa e as comunidades parceiras, da FAPESP, com a criação do instituto,

180  _ especial 50 anos fapesp


a FAPESP consolidou sua estratégia de ca. “Os estudos também mostram como
atuação, que se ampara em três pilares. a tecnologia pode evoluir para apoiar os Artigos científicos
O primeiro é o apoio à formação de re- cientistas que enfrentam esses desafios.”
1. MARIOTE, L. E. et al. TIDES a new descriptor for
cursos humanos e de cientistas no estado Segundo ele, a Microsoft acredita fir- time series oscillation behavior. Geoinformática,
de São Paulo; o segundo, o financiamento memente que computadores e softwares v. 15, p. 75-109, 2011.
à pesquisa básica; e o terceiro, um con- continuarão a melhorar significativamen- 2. FORTES, M. R. S. et al. Bovine gene polymor-
junto de iniciativas e de projetos de pes- te a vida da população do mundo, a criar phisms related to fat deposition and meat ten-
quisa, no qual a FAPESP busca associar novos produtos que oferecem suporte à derness. Genetics and Molecular Biology, v. 32,
p. 75-82, 2009.
a investigação de excelência com a sua indústria e novas oportunidades para a
aplicação ou pelo menos sua perspectiva comunicação e a disseminação do conhe- 3. CURI, R. A. et al. Associations between LEP,
DGAT1 and FABP4 gene polymorphisms and
num prazo não muito longo. “O Instituto cimento. Por meio do Instituto Microsoft carcass and meat traits in Nelore and cross-
Microsoft Research-FAPESP de Pesqui- Research-FAPESP, a tecnologia torna bred beef cattle. Livestock Science, v. 135,
sa em Tecnologia da Informação (TI) se possível aos cientistas trabalhar em ce- p. 244-50, 2011.

insere nessa estratégia”, diz. nários extremamente relevantes para a


Harold Javid, diretor de programas espécie humana e avançar suas pesquisas Do nosso arquivo
para as Américas, Austrália e Nova Ze- de maneira que não seriam possíveis de
lândia da Microsoft Research, diz, por outra forma. “Os pesquisadores que estão Contato de terceiro grau
Edição nº 187 – setembro de 2011
sua vez, que o pessoal da empresa está tentando compreender as tendências de
orgulhoso com as parcerias com os pes- mudança do clima e seu impacto para a Convergência Virtual
Edição nº 172 – junho de 2010
quisadores de São Paulo. De acordo com sociedade e a economia, por exemplo, po-
ele, elas resultaram em novos conheci- dem ser equipados com instrumentação Conhecimento e inclusão
Edição nº 154 – dezembro de 2008
mentos científicos em várias áreas. “Por nova e novos mecanismos para dar senti-
exemplo, tivemos projetos no instituto do a seus dados”, explica. “A tecnologia é Inclusão digital
Edição nº 134 – abril de 2007
sobre como o clima está afetando a agri- um elemento-chave para lidar com esses
cultura e a produtividade das culturas e cenários complexos e estamos felizes por
como plantas responderão a isso”, expli- participar desse processo.” n

Projetos apoiados pelo Instituto Microsoft Research-Fapesp


projeto coordenação investimento
Navegando de escalas no espaço-tempo e domínio do conhecimento – Claudia Bauzer Medeiros a definir
nº 2011/52070-7 (2012-2015) IC/Unicamp
Uso da abordagem de biologia de sistemas para desenvolver um modelo de funcionamento em plantas – Marcos Silveira Buckeridge a definir
nº 2011/52065-3 (2012-2016) IB/USP
Interações entre solo-vegetação-atmosfera em uma paisagem tropical em transformação – Rafael Silva Oliveira a definir
nº 2011/52072-0 (2012-2015) IB/Unicamp
Um ambiente culturalmente contextualizado para a interação natural e flexível de apoio ao processo de Junia Coutinho Anacleto R$ 102.265,30
ressocialização em um contexto hospitalar para pacientes crônicos – nº 2010/52135-9 (2011-2013) CCET/UFSCar
E-Fenologia: aplicação de novas tecnologias para monitorar a fenologia e mudanças climáticas Leonor P. Cerdeira Morellato R$ 325.231,78
nos trópicos – nº 2010/52113-5 (2011-2013) IB/Unesp Rio Claro
Monitoramento do ambiente e modelagem do potencial genético de cultivares de cana-de-açúcar Regina Célia de Matos Pires R$ 237.285,37
em condições adequadas de disponibilidade hídrica do solo – nº 2010/52139-4 (2011-2013) AC/SAASP
Integração de dados na biologia sistêmica: caracterização de fenômenos biológicos a partir de Ronaldo Fumio Hashimoto R$ 181.340,81
informações estruturais e funcionais – 2010/52138-8 (2011-2013) IME/USP
AgroDataMine: desenvolvimento de métodos e técnicas de mineração de dados para apoiar pesquisas Agma Juci M. Traina R$ 178.631,48
em mudanças climáticas com ênfase em agrometeorologia – nº 2009/53153-3 (2009-2012) ICMCSC/USP
SinBIOTA 2.0 – Sistema de Informações do Programa Biota/FAPESP: planejando os próximos 10 anos – Carlos Alfredo Joly R$ 177.115,09
nº 2009/53151-0 (2009-2011) IB/Unicamp
Desenvolvimento e aplicação de rede de geossensores para monitoramento ambiental – Celso Von Randow R$ 216.957,00
nº 2009/53154-0 (2009-2012) Inpe
Tecnologia da informação aplicada à genômica para bioenergia: anotação robabilística usando Ricardo Nicoliello Vencio R$ 111.392,75
inteligência artificial – nº 2009/53161-6 (2010-2012) USP Ribeirão Preto
JamSession: uma arquitetura descentralizada para mundos virtuais especializados e a web 3.0 – Flávio Soares Corrêa da Silva R$ 35.686,65
nº 2008/53977-3 (2008-2011) IME/USP
Triagem automática de retinopatias diabéticas: tecnologia da informação contra a cegueira previnivel – Jacques Wainer R$ 237.938,49
nº 2008/54443-2 (2008-2011) IC/Unicamp
E-Farms: uma estrada de mão dupla de pequenas fazendas para o mundo em rede – Claudia Bauzer Medeiros R$ 109.658,24
nº 2007/54558-1 (2007-2010) IC/Unicamp
Projeto Borboleta: sistema integrado de computação móvel para atendimento domiciliar de saúde – Fabio Kon R$ 107.705,22
nº 2007/54479-4 (2007-2010) IME/USP
X-Gov: aplicação do conceito de mídia cruzada a serviços públicos eletrônicos – Lucia Filgueiras R$ 42.959,67
nº 2007/54488-3 (2007-2010) Poli/USP
E-Cidadania: sistemas e métodos na constituição de uma cultura mediada por tecnologias – Maria Cecília Baranauskas R$ 176.281,19
da informação e comunicação – nº 2007/54564-1 (2007-2010) IC/Unicamp
PorSimples: simplificação textual do português para inclusão e acessibilidade digital – Sandra Maria Aluisio R$ 47.843,05
nº 2007/54565-8 (2007-2010) USP São Carlos

pESQUISA FAPESP maio de 2012  _ 181


_ T ecnologia da Informação

Fios mais
finos
Físicos desenvolvem fibras ópticas que podem
interligar circuitos nos computadores do futuro

Marcos de Oliveira

N
inguém percebe e poucos sabem que “Essas micro e pequenas fibras poderão servir
qualquer envio de e-mail para fora no futuro para interligar ou funcionar como filtro
do país ou o acesso a um site norte- nos circuitos de computadores quando a luz de
-americano, por exemplo, é feito via lasers poderá ser empregada no lugar dos chips
cabos de fibras ópticas. Esses finos tubinhos atuais”, diz o professor Cristiano Monteiro de
feitos de sílica purificada de areia transportam Barros Cordeiro, coordenador do projeto que in-
as informações de um lado para outro por meio tegra o Centro de Pesquisa em Óptica e Fotônica
da luz de lasers. Agora o mesmo princípio começa (Cepof ) de Campinas, liderado pelo professor
a ser usado para a concepção dos computadores Hugo Fragnito e financiado pela FAPESP dentro
do futuro em uma tendência tecnológica que do Programa de Centros de Pesquisa, Inovação
propõe o uso de circuitos totalmente feitos de e Difusão (Cepids).
luz. A ideia é usar micro e nanofibras ópticas As novas fibras podem medir até quinhentas
para a interligação dos circuitos computacionais vezes menos que um fio de cabelo, ou 500 nanô-
que estão por vir. Trata-se de dispositivos que metros (1 nanômetro igual a 1 milímetro dividi-
são estudados no Brasil e já foram elaborados do por 1 milhão). As fibras comerciais são bem Pequenos tubos de
vidro que, depois
no Laboratório de Fibras Especiais (LaFE) do maiores, com diâmetros de 125 mícrons, portanto de aquecidos , são
Instituto de Física Gleb Wataghin (IFGW) da um pouco maiores que um fio de cabelo. “O uso transformados em
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). das micros e nanofibras ainda é um exercício de fibras de vidro

182  _ especial 50 anos fapesp


futurologia, mas trabalha-se na pers- existentes atualmente. Elas podem ser Assim, a pesquisa no IFGW em rela-
pectiva de que as atuais trilhas metáli- usadas na construção civil ao serem co- ção às fibras ópticas apresentaram vários
cas com passagem de elétrons dos chips ladas ao longo de pontes, por exemplo, segmentos, como o estudo de um tipo
possam ser substituídas por trilhas de para medir, com a alteração na luz, a especial desses dispositivos que são as
luz”, diz Cordeiro. deformação da estrutura na passagem fibras de cristal fotônico. Elas possuem
Embora ainda consideradas uma pro- de um caminhão. também a capacidade de confinar e le-
messa, as micro e nanofibras oferecem a var a luz de uma extremidade para ou-

O
perspectiva de consumir menos energia estudo e concepção de fibras óp- tra. Mas não para grandes distâncias,
e aquecer pouco o sistema, uma qualida- ticas e demais segmentos das co- porque possuem no seu interior uma
de importante para a principal função a municações por meio de laser microestrutura de buracos de ar, múl-
que elas são candidatas, a de interligar já podem ser considerados uma tradi- tiplos núcleos e novos materiais que as
chips e demais circuitos dentro de um ção nos laboratórios do IFGW da Uni- direcionam a outras aplicações, como
computador. Algumas das novas fibras camp. Foram lá que surgiram, no final usos em equipamentos industriais, re-
têm diâmetro de 1 mícron, portanto, são dos anos 1970, as primeiras fibras ópticas lógios de precisão, sensores, aparelhos
menores que o comprimento de onda no Brasil, ainda uma novidade mesmo de diagnóstico médico ou ainda para in-
dos feixes de laser típicos desses dis- nos paí­ses mais avançados em tecnologia. tegrar dispositivos eletrônicos.
positivos, de 1,5 mícron, usados nas co- A primeira surgiu exatamente em 1977 e As fibras de cristal fotônico, já fabri­
municações ópticas atuais. Assim, parte teve a liderança dos professores Rogé- cadas por empresas na Europa, estão
da luz fica do lado de fora da parede da rio Cerqueira Leite, José Ripper Filho sendo usadas, por exemplo, no interior
fibra, mas a onda luminosa continua a e Sergio Porto. Eles trabalharam como de novas fontes de luz e nos amplifica-
acompanhar o comprimento do dispo- pesquisadores no Bell Labs, nos Estados dores de comunicação óptica para recu-
sitivo. “Se essa parte de luz que fica para Unidos, centro de pesquisa responsável perar os sinais em redes de transmissão.
fora ajuda ou atrapalha a interconexão pela invenção dos transistores e do laser Os estudos do IFGW na área de fibras
óptica futura ainda é uma questão aber- e onde foram realizados os primeiros microestruturadas incluem a parceria
ta em todos os grupos mundiais que es- testes com fibras ópticas. Perceberam a com a Universidade de Bath, na Inglater-
tudam essas fibras”, diz Cordeiro, que novidade que se formava naquele centro ra, onde surgiu a primeira fibra de cris-
se dedica ao estudo desse tipo de fibra de pesquisa com o uso de laser e fibras tal fotônico, a Universidade de Sydney,
óptica desde 2009. Entre esses grupos nas telecomunicações e trouxeram para na Austrália, e o Max Planck Institute
estão a Universidade de Southampton, a Unicamp a ideia inovadora. for the Science of Light, em Erlangen,
no Reino Unido, e o OFS Laboratories, As etapas seguintes desses estudos na Alemanha.
dos Estados Unidos, ligado à empresa tiveram a participação dos professores Em 2007, pesquisadores da Unicamp,
Furukawa, do Japão. Hugo Fragnito, Carlos Henrique de Brito em parceria com colegas de outras ins-
Outra função dessas fibras é o uso Cruz, atual diretor-científico da FAPESP, tituições, elaboraram e depositaram três
como sensor óptico, aspecto que foi e Carlos Lenz, pesquisadores que já tra- patentes relativas às fibras de cristal
objeto de um depósito de patente no balharam no Bell Labs. “O Bell Labs era fotônico. A primeira trata da estrutura
Instituto Nacional de Propriedade In- um ambiente em que se discutia muito desses tubinhos finos de vidro. Em relação
dustrial (INPI) no final de 2011. O grupo o futuro e indicava o que tínhamos que às tradicionais, elas possuem arranjos de
miguel boyayan

produziu uma fibra com 50 vezes mais estudar hoje e o que seria importante buracos internos que correm em paralelo
sensibilidade à tração mecânica que as nas próximas décadas”, diz Fragnito. ao eixo da fibra e por todo o comprimento

pESQUISA FAPESP maio de 2012  _ 183


do dispositivo. Os microfuros permitem Na segunda patente, os pesquisado-
um controle do direcionamento da luz res da Unicamp e da Universidade de
de forma mais eficiente, de acordo com Sydney, na Austrália, fizeram rasgos com
as características que se quer dar à fibra. vários centímetros ao longo da fibra em
vez de furos. “A indicação dessa fibra é

O
s pesquisadores da Unicamp e para fazer sensoriamento químico na
do Laboratório de Comunicações detecção de vazamentos em indústrias
Ópticas e Fotônica da Universida- ou ainda em poços de petróleo”, diz
de Presbiteriana Mackenzie, de São Pau- Cordeiro, que, depois de se doutorar na
lo, aplicaram novos buracos em torno do Unicamp, fez um pós-doutorado no la-
núcleo para uma fibra que funcione como boratório do criador das fibras de cris-
um sensor biológico ou químico. Assim, a tal fotônico, o britânico Philip Russell,
luz percorre o seu caminho tradicional e na Universidade de Bath, na Inglaterra.
deixa entrar em furos laterais o material, Russell trabalha atualmente no Instituto
como gases ou líquidos, a ser analisado. A Max Planck, na Alemanha.
análise acontece com a difração de parte A terceira patente, também elabo-
da luz que viaja do núcleo para a casca da rada em parceria com a Universidade
fibra e encontra o material. Mackenzie, é sobre uma fibra de cristal
fotônico com núcleo e casca (a parte da
fibra que envolve o núcleo) preenchi-
dos com diferentes líquidos como água
Diversidade funcional ou etanol. Os pesquisadores utilizaram
água na casca e uma mistura de água e
Propriedades das fibras variam de acordo com a forma glicerina no núcleo sem que se misturas-
sem. O emprego dessa fibra destina-se às
áreas de sondagem e sensoriamento, co-
mo, por exemplo, para realizar a análise
espectroscópica de líquidos, para medir
a emissão ou absorção de radiações ele-
tromagnéticas de uma substância.

fotos 1. ifgw-unicamp 2. universidade de bath 3. ifgw-unicamp 4. cristiano cordeiro 5 e 6. glaudecir biazoli/ifgw-unicamp 7. marcelo gouveia/ifgw-unicamp
utra conquista no âmbito da pes-
quisa em transmissões fotônicas
1 2
foram os experimentos de um
amplificador para linhas de transmis-
sões ópticas. Nos últimos anos, o grupo
de Fragnito conseguiu bater recordes
mundiais entre 2007 e 2009 em rela-
ção à capacidade da largura da banda
de transmissão de um amplificador ela-
borado na Unicamp. Ele foi capaz de re-
ceber e transmitir vários sinais de laser
ao mesmo tempo num amplo espectro
3 4 de ondas eletromagnéticas voltadas pa-
Quantidade de túneis nas microestruturas regulam a passagem da luz nas fibras de cristal fotônico ra a transmissão de dados e telefonia,
o que não acontece nos equipamentos
convencionais.
Esses amplificadores têm a função de
reforçar o sinal de luz que percorre o in-
terior das fibras, principalmente entre
cidades e nas conexões internacionais
ao longo de um percurso – entre 20 e 100
quilômetros. Ele recupera a onda lumino-
sa, que perde potência ao longo da trans-
missão. O avanço tecnológico dos novos
5 6 amplificadores é imprescindível para au-
Nanofibras experimentais (imagem 5) poderão servir para integrar chips de computadores; mentar a capacidade e a velocidade do
algumas versões incluem o uso de bactérias (imagem 6) sistema de telecomunicações e diminuir
os custos de implantação de novas redes.

184  _ especial 50 anos fapesp


Imagem de
microfibra com
diâmetro de
3 mícrons obtida
por microscopia
eletrônica
na Unicamp

A nova geração do amplificador ópti- transmitir dez vezes mais, ou seja, 40 Tb/s
co é chamada de Fiber Optic Parametric por fibra ou, para dar uma ideia do que is- OS PROJETOS
Amplifier (Fopa), ou amplificador para- so significa, praticamente todo o tráfego 1. Centro de Pesquisa em Óptica e Fotônica
métrico de fibra óptica, e estudada na de internet passando por uma única fibra. (CePOF) de Campinas – nº 2005/51689-2
Unicamp da mesma forma que em outros Hoje, isso parece muito, mas em poucos (2006-2012)
2. Fotônica para comunicações ópticas
centros, como no Bell Labs, atualmente anos será insuficiente para atender ao cres- nº 2008/57857-2 (INCT) (2009-2014)
da empresa Alcatel-Lucent, universidades cimento. Se em vez de um núcleo por fibra Modalidade
Stanford e Cornell, nos Estados Unidos, e pudéssemos ter mais seis, somando sete, 1. Centros de Pesquisa (Cepids)
de Tecnologia Chalmers, da Suécia, além a capacidade de transmissão seria de 280 2. Projeto Temático

de companhias japonesas e francesas. Tb/s em uma fibra óptica”, diz Fragnito. Coordenador
1. e 2. Hugo Fragnito – Instituto de Física da
O conhecimento gerado no novo ampli-

P
Unicamp
ficador poderá evitar congestionamentos ara ele, os grandes desafios para Investimento
futuros da internet. Para Fragnito, nin- permitir o crescimento da internet 1. R$ 1 milhão por ano para todo o Cepof
guém sabe ao certo as aplicações que vão nos próximos 15 a 20 anos estão em 2. R$ 2.950.799,01

ser necessárias no futuro. “O que sabemos aumentar a capacidade das redes por um
é que será preciso passar, de forma rápida, fator entre 100 e 1.000, reduzindo o cus- Artigos científicos
filmes ou televisão com a maior resolução to, tamanho e consumo energético dos
1. Chavez Boggio, J. M. et al. Spectrally flat and
possível. Em algumas situações, a capaci- equipamentos de rede pelo mesmo fator. broadband double-pumped fiber optical
dade de transmissão atual está chegando “Para isso, no Fotonicom, além dos Fopas parametric amplifiers. Optics Express. v. 15, n. 9,
ao limite. Uma ideia circulante em estu- e das fibras multinúcleo, apostamos na p. 5288-309, 2007.

dos de comunicações ópticas é que cada óptica integrada, incorporando centenas 2. Chesini, G. et al. Analysis and optimization of
fibra possua mais núcleos independentes, de lasers, amplificadores, receptores e an all-fiber device based on photonic crystal fiber
with integrated electrodes. Optics Express. v. 18,
cada um com vários comprimentos de outros dispositivos num pequeno chip nº 3, p. 2842-48, 2010.
onda”, diz Fragnito, que, além do Cepof, com alguns mícrons.”
coordena o Instituto Nacional de Ciên- As comunicações ópticas avançam pa-
De nosso arquivo
cia e Tecnologia (INCT) de Fotônica de ra dar suporte às novas mídias e à inter-
Comunicações Ópticas (Fotonicom), que net. A conversão dos sinais elétricos para A força da fibra
recebe financiamento da FAPESP e do os de luz é caminho sem volta e só vai Edição nº 81 – novembro de 2002

Conselho Nacional de Desenvolvimento ser definitivamente estruturado quan- Luz na dose certa
Científico e Tecnológico (CNPq). do todas as transmissões e circuitos se Edição nº 106 – dezembro de 2004

“Com a tecnologia atual é possível trans- tornarem possíveis via fibras ou novos Filamentos versáteis
mitir 40 canais de laser e cada um pode guias ópticos. “Ainda temos problemas Edição nº 147 – maio de 2008

ter 100 gigabits por segundo (Gb/s) do que bem difíceis em relação às fibras ópticas Feixes Multiplicados
resulta em 4 terabits por segundo (Tb/s) que se transformam em desafios cientí- Edição nº 169 – março de 2010

no total. Utilizando os Fopas poderíamos ficos para nós”, diz Fragnito. n

pESQUISA FAPESP maio de 2012  _ 185


_  R evisor gramatical

Idéia ou ideia?
Ferramentas compatíveis com as versões atuais do pacote
Office são licenciadas pela Techno para a Microsoft

texto   Marili Ribeiro   ilustração   Guilherme Lepca

A
última grande mexida se deu Já o grupo de pesquisa do Núcleo da O princípio
em 2009. Foi por conta da USP, que participou ativamente do pro- O software de revisão gramatical para a
introdução da reforma or- jeto, segue investindo em vários estudos língua portuguesa nasceu como parte dos
tográfica que, por exemplo, ligados ao processamento computacional projetos de pesquisas em que a FAPESP
deixou a escrita da língua da língua portuguesa, como informa a financia de 20% a 70% da iniciativa, no
portuguesa sem o trema. Mas isso já foi professora. “O projeto do Revisor Grama- âmbito do Programa de Apoio à Pesquisa
feito por uma empresa privada, longe tical foi, sem dúvida, precursor de todo o em Parceria para Inovação Tecnológica
do campus universitário. Consolidado e desenvolvimento dessa área no Brasil.” (Pite), sempre com a contrapartida da em-
bem-sucedido, o Revisor Gramatical Au- As ferramentas de revisão (ortográ- presa interessada. Quanto maior o risco
tomático para Português – desenvolvido fica, gramatical, hifenizador, dicionário do projeto, maior é a parte da FAPESP. Es-
em parceria entre o Núcleo Interinsti- de sinônimos) são de propriedade da sa linha de investimento é consequên­cia
tucional de Linguística Computacional Itautec e foram trabalhadas em conjunto da crescente consciência de que o ritmo
da Universidade de São Paulo (USP), do com a USP. Após o término do convênio de inovação tecnológica mundial é tão
campus de São Carlos, e a Itautec-Philco com a USP, a Techno Software assumiu acelerado que o Brasil precisa alavancar
S.A., com apoio da FAPESP – hoje é ope- todos os desdobramentos do produto a sua capacidade para atuar de forma equi-
rado pela Techno Software. pedido da Itautec. “As últimas imple- valente aos países desenvolvidos. Não há
“O convênio com a Itautec terminou mentações foram para adequá-las à re- dúvida de que quem não tiver tal capaci-
em 2008 e, desde então, não temos inves- forma ortográfica, e isso foi feito no final dade de inovar fica marginalizado.
tido no revisor”, conta Maria das Graças de 2009. A partir de então, temos dado Em sintonia com essa demanda, em-
Volpe Nunes, que foi a coordenadora do manutenção nas ferramentas e comple- presas brasileiras experimentam os efei-
projeto desde o seu início, em 1993, e que mentando e corrigindo o léxico quando tos de parcerias com universidades e
também é professora do Departamento necessário”, informa, por e-mail, Carlos institutos de pesquisa. Novos produtos
de Ciências da Computação e Estatística Henrique Ferreira, da Techno Software. e processos de produção industrial vêm
da USP em São Carlos. “Como o revi- “Como estas ferramentas são licenciadas surgindo dessa convivência e têm garan-
sor já estava estabilizado, dentro de um para a Microsoft, também fazemos ade- tido retorno financeiro às que apostam
ótimo padrão de funcionamento, após quações para compatibilizar com as ver- nessa interação. Um dos caminhos de
os ajustes da revisão ortográfica, feitos sões atuais do pacote Office”, acrescenta. impulso à arrancada do processo, que
pela equipe da empresa Techno Softwa- O software produzido e comercializado cresce em diferentes setores econômicos,
re (parceira da Itautec), acredito que o pela Itautec teve seus direitos adquiri- se dá graças ao apoio do PITE.
produto não evoluiu mais”, completa dos pela Microsoft, que o incorporou ao O projeto do revisor gramatical foi
Maria das Graças. programa Office 2000. aprovado no PITE em 1996. Nesse mo-

186  _ especial 50 anos fapesp


Roteiro de correção:
1. digitação
2. ortografia
3. gramática e estilo

Principal
dificuldade:
ambiguidades da língua

1,5 milhão de
verbetes do nosso léxico
(incluindo as derivações
e conjugações verbais)

mento, ganhou impulso. Antes disso, a gigante Microsoft, que procurou a empre- O software não interfere no estilo, não
proposta de um revisor estava presente sa para incorporar o revisor no programa padroniza a estrutura do texto, mas per-
nas pesquisas realizadas desde 1993 atra- Office, o mais vendido no Brasil e em todo corre sentença por sentença para ve-
vés de convênio entre a Itautec-Philco e a o mundo. Para a língua portuguesa fala- rificar a estrutura sintática e oferecer
Fundação de Apoio à Física e à Química da no Brasil, a multinacional americana opções gramaticalmente corretas de
de São Carlos. O trabalho era executado usava o antigo revisor criado em Portu- construção. O programa arrisca a fun-
por uma equipe multidisciplinar de lin- gal, que comportava 200 mil palavras. O ção pela proximidade de um verbo ou
guistas e profissionais da área de compu- da Itautec já dispunha de 1,5 milhão de adjetivo e sugere correções para as dife-
tação, com a participação de docentes do palavras. O revisor foi incorporado ao rentes estruturas sintáticas decorrentes
Departamento de Ciência da Computação Office 2000, com a Itautec licenciando de cada um dos diferentes significados. n
e Estatística, do Instituto de Ciências Ma- o produto por um período de três anos
temáticas e de Computação e do Instituto pelo valor de US$ 421 mil. Novos acertos
de Física de São Carlos, sempre coorde- foram feitos depois na renovação de uso. o projeto
nado pela professora Maria das Graças. No desenvolvimento do produto, a
A entrada da FAPESP facilitou a amplia- Itautec gastou R$ 78 mil, enquanto a Projeto e implementação de um revisor
gramatical automático para o português –
ção do escopo da pesquisa, que passou a FAPESP investiu R$ 17,9 mil, além de nº 1997/02608-1 (1997-1998)
contar com a colaboração dos professores US$ 9,2 mil, utilizados na compra de má- Coordenadora
Claudio Lucchesi, Tomas Kowaltowski e quinas e equipamentos para a USP. Entre Maria das Gracas Volpe Nunes – Instituto de
Jorge Stolfi, do Instituto de Computação da os acadêmicos envolvidos com o proje- Ciências Matemáticas e de Computação, USP

Unicamp. Em São Carlos, sob a coordena- to não havia qualquer projeção sobre a Modalidade
Programa de Apoio à Pesquisa em Parceria para
ção de Maria das Graças, foram desenhados dimensão que ganharia, principalmente Inovação Tecnológica (Pite)
os algoritmos e formado o banco de base de com o contrato com a Microsoft. investimento
palavras e, em Campinas, desenvolveram- O revisor detecta um grande número R$ 17.900,00 e US$ 9,200.00 (FAPESP) e
-se a compactação do sistema e a diminui- de erros comuns cometidos por usuários R$ 78.000,00 (Itautec Philco S.A.)

ção do tempo de resposta do programa. de nível de segundo grau. É capaz de indi-


car e sugerir alternativas para erros orto- De nosso arquivo
O produto gráficos, mecânicos (colocação irregular Benefícios de uma parceria
Em caixas próprias, a Itautec começou a ou falta de pontuação no final de frases, Edição nº 58 – outubro de 2000
vender a primeira versão do revisor gra- por exemplo) e erros gramaticais relativos Os novos rumos da pesquisa tecnológica
matical em 1997. O produto nas pratelei- ao uso da crase, regência, concordância Edição nº 47 – outubro de 1999
ras do varejo atraiu atenção e, já no final verbal e nominal, colocação pronominal Revisor Gramatical Automático em nova versão
desse mesmo ano, ganhou o interesse da e inadequações lexicais e outros. Edição nº 35 – setembro de 1998

pESQUISA FAPESP maio de 2012  _ 187


_  b iologia celular

A herança do clone
Identificação de erro na reprogramação celular da bezerra Penta
reorienta estudos de reprodução animal

texto   Francisco Bicudo  ilustração  Drüm

N
aquela manhã fria de 30 vítima de uma série de infecções e aca- genético normal, de indivíduos doadores
de junho de 2002, o Brasil bou morrendo por sepse”, conta Joaquim saudáveis, por que essas aberrações e
acordou cedo para vibrar Mansano Garcia, do Departamento de equívocos acontecem? É possível supe-
com os dois gols de Ronal- Medicina Veterinária e Reprodução Ani- rá-los? São perguntas feitas por vários
do Nazário, o Fenômeno, mal da Faculdade de Ciências Agrárias e laboratórios do mundo e que também
contra a Alemanha, que garantiriam à Veterinárias (FCAV) da Unesp. decidimos investigar”, revela Garcia.
seleção nacional a conquista do quinto Superada a tristeza, a morte da bezer-

O
título de Copa do Mundo. Poucos dias ra incentivou a equipe da Unesp a tentar pesquisador explica que existem
depois, em 11 de julho, o Brasil alcança- entender os riscos envolvidos no proces- nos seres vivos enzimas chama-
ria outro feito memorável, desta vez na so de reprogramação celular. Levou-a das de DNAmetil-transferases,
área científica – nascia em Jaboticabal, também a investigar mais detidamente o responsáveis pela incorporação de radi-
no Hospital Veterinário da Universidade que faz os genes se manifestarem de for- cais metil ao DNA. Esse mecanismo por
Estadual Paulista (Unesp), com 42 qui- ma equivocada ou simplesmente silen- sua vez atua para dar mais estabilidade e
los, a bezerra Penta (evidente homena- ciarem, como se estivessem desligados, proteção às células, ajudando-as a esta-
gem ao escrete canarinho), o primeiro quando o embrião é obtido a partir de belecer relações mais equilibradas com
clone brasileiro gerado a partir de célu- técnicas de clonagem. As consequências o meio externo. Nesses 10 anos, os estu-
las de um animal adulto. Os dois clones desses desvios de rota podem ser, entre dos desenvolvidos pela equipe da Unesp
anteriores resultaram do uso de células outros, malformações e problemas res- conseguiram confirmar que, para que os
fetais ou embrionárias, que se reprogra- piratórios, neurológicos, imunológicos riscos de erros na reprogramação sejam
mam mais facilmente. e ósseos, além do envelhecimento pre- minimizados ou anulados, é preciso que
A euforia, no entanto, transformou- coce. Tudo isso pode resultar em morte, o metil seja encontrado nas células em
-se rapidamente em decepção. Penta como aconteceu não só com Penta, co- padrões considerados adequados – se
morreu com um mês – em 12 de agosto. mo também com outra ovelha famosa, há excesso ou falta dele, as chances de
Consequên­cia de erros de reprograma- a Dolly, primeiro ser vivo a ser clonado genes silenciarem e de a clonagem não
ção celular – quando genes não se ex- com sucesso em laboratório, em 1996, dar certo são ampliadas. “Sabemos que
pressam ou se manifestam de maneira no Instituto Roslin, na Escócia. os níveis de metilação podem ser altera-
desordenada — ocorridos durante a clo- Dolly viveu seis anos. Era um animal dos pelo ambiente, mas ainda não temos
nagem. No caso da bezerra brasileira, o ao mesmo tempo jovem, considerado o como agir, em laboratório, para tentar
defeito de fabricação estava relacionado tempo médio de vida das ovelhas, e ido- corrigir ou controlar essas mudanças”,
ao sistema imunológico, devido a uma so, dado que foi clonada a partir de uma diz Garcia.
baixa produção de anticorpos. “O timo, célula adulta, com as pontas dos cromos- Justamente por conta das relações
órgão responsável por ativar o sistema de somos – os telômeros – já mais curtas. estabelecidas com o ambiente e de even-
defesa nos recém-nascidos, não funcio- “Há uma aparente contradição que pre- tuais prejuízos que podem causar à clo-
nava de forma adequada. Penta tornou-se cisa ser resolvida. Se usamos material nagem, o pesquisador da Unesp lembra

188  _ especial 50 anos fapesp


Cruzamento campeão
vaca Nelore
origem do clone

vaca mestiça zebu-holandesa


fusão do material receptora da célula modificada
genético com o
óvulo anuclear

Material genético
vaca holandesa nuclear
implante
doadora do óvulo

célula reconstruída
óvulo

remoção do
núcleo do óvulo

que é preciso também acompanhar de sultado esperado, mas vislumbrávamos


fonte: Joaquim Mansano Garcia – Unesp Jaboticabal

perto e estudar elementos como o siste- uma mistura um pouco mais acentuada.
ma de cultura das células e as condições Penta confirmou que, na clonagem, o
do óvulo doado que irá gerar o embrião. material do citoplasma prevalece sobre
Se forem manipulados ou conservados o do núcleo”, confirma Garcia.
de maneira errada ou pouco cuidadosa, Os pesquisadores da Unesp revela-
poderão ser responsáveis por erros de ram, em agosto de 2002 (edição nº 78 de
reprogramação. Atento a esse cenário, Pesquisa FAPESP), que, embora tenham
atualmente Garcia coordena um estu- se valido da mesma técnica usada para
Penta
do que avalia, comparativamente, o que produzir a Dolly, a clonagem de Penta
acontece com a metilação do DNA em fe- inovou ao utilizar o cloreto de estrôncio
tos e placentas com 60 dias de gestação, combinado à droga ionomicina para ati-
obtidos a partir de fecundação natural var o óvulo reconstituído. Experimentos
(in vivo), artificial (in vitro) e por meio anteriores tinham optado por aproveitar
de clonagem. O objetivo é identificar a ionomicina com o composto 6DMAP
eventuais roteiros distintos de evolução (6-dimetilaminopurina). Segundo Gar-
e diferenças relacionadas à reprograma- cia, o cloreto de estrôncio é mais vantajo-
ção genética, nas três situações. Os pri- so, pois é capaz de reproduzir com mais
meiros resultados do trabalho devem ser fidelidade os efeitos de uma fecundação
conhecidos até o final do ano. normal por espermatozoide.
O projeto
Para ele, além de abrir os horizontes

P
enta certamente contribuiu pa- sobre as perspectivas de melhoramento Estudo da Função e Herança do DNA
ra sofisticar o conhecimento dos genético do rebanho bovino no Brasil, tra- Mitocondrial (mtDNA) nos Bovinos: Um
Modelo Animal Produzido com Nelore –
brasileiros sobre clonagem, mes- balhos como os que resultaram na clona- nº 98-11783-4 (1999-2004)
mo tendo vivido por pouco tempo. Ela gem de Penta podem servir de ferramenta Modalidade
nasceu a partir do DNA de uma célula para o estudo das mitocôndrias, que são Projeto Temático
somática (com 46 cromossomos) reti- os chamados reservatórios de energia e Coordenador
rada da cauda de uma vaca nelore (Bos responsáveis pela respiração das células. Joaquim Mansano Garcia – Unesp Jaboticabal

indicus, rebanho indiano) e injetado em “Mudanças nas funções dessa organela”, Investimento
R$ 875.415,17
foto  Walt Ya­ma­za­ki/UNESP

um óvulo doado por uma vaca holande- diz Garcia, “podem prejudicar o metabo-
sa (Bos taurus). No entanto, apesar de lismo celular e, dependendo da intensi-
o núcleo pertencer à mãe indiana, 97% dade, predispor a doenças degenerativas De nosso arquivo
do código genético de Penta era seme- que se manifestam também em humanos, Penta, o clone campeão
lhante ao da mãe europeia. “Era um re- como o mal de Alzheimer”, diz Garcia. n Edição nº 78 – agosto de 2002

pESQUISA FAPESP maio de 2012  _ 189


_  P ecuária

Maturidade
precoce
Cruzamentos, manejo e biologia
molecular deixam bovinos prontos
para o abate em 15 meses

Evanildo da Silveira

B
ois prontos para o abate com menos idade que
a média nacional e novilhas que têm o primeiro
parto mais jovens são os principais resultados de
dois projetos de pesquisa realizados no início da
década passada com financiamento da FAPESP.
Os dois trabalhos ajudaram a melhorar a pecuária
nacional e, consequentemente, aumentar sua competitividade
no mercado de carne internacional. Com 209 milhões de bovi-
nos, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE), o Brasil tem o maior rebanho comercial do mundo.
Daí a importância de estudos nesta área.
O mais antigo dos dois projetos, Estratégias de cruzamentos,
práticas de manejo e biotécnicas para intensificação sustentada
da produção de carne bovina, realizado de 1998 a 2002, reuniu
duas dezenas de pesquisadores de quatro instituições: Embra-
pa Pecuária Sudeste, sediada em São Carlos; Escola Superior
de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) da Universidade de
São Paulo (USP), em Piracicaba; Faculdade de Ciências Agrá-
Fazenda
rias e Veterinárias (FCAV) da Universidade Estadual Paulista Canchim, da
(Unesp) em Jaboticabal; e as unidades de Sertãozinho e No- Embrapa, em
va Odessa do Instituto de Zootecnia do Estado de São Paulo. São Carlos:
experiências em
Coordenado pelo engenheiro agrônomo Maurício Mello
eduardo cesar

cruzamento de
de Alencar, da Embrapa Pecuária Sudeste, o projeto tinha raças europeias
como principal objetivo avaliar o ciclo completo de vida do e zebuínas

190  _ especial 50 anos fapesp


pESQUISA FAPESP maio de 2012  _ 191
gado, do momento do nascimento até quando chim e simental se destacam principalmente
ele está pronto para o abate. Antes disso, vários pelo ganho de peso e o angus pela precocidade
pesquisadores brasileiros já haviam tratado des- reprodutiva. Todos os três são usados em cruza-
sa questão, mas normalmente focados apenas mentos comerciais.
em fases isoladas do sistema de produção. A Segundo Alencar, os cinco sistemas de produção
novidade do trabalho coordenado por Alencar foram testados em duas épocas de monta, outono-
é que ele envolveu ao mesmo tempo vários as- -inverno e primavera-verão, visando à produção
pectos, como melhoramento genético, repro- de animais em diferentes períodos do ano. “As
dução, nutrição, sanidade, pastagem e genética vacas e os touros resultantes dos vários sistemas,
molecular. Para isso, os estudos foram divididos ou seja, nelores ‘puros’ e cruzados canchim x ne-
em oito subprojetos. lore, simental x nelore e angus x nelore, foram
avaliados quanto a características de crescimento,

O
s pesquisadores avaliaram animais re- habilidade materna, eficiência reprodutiva, exi-
sultantes de cruzamento de vacas nelore gência nutricional, comportamento, resistência
com touros da mesma raça e das raças a parasitas e qualidade da carcaça e da carne”,
canchim, angus e simental, submetidos a prá- explica. Além disso, nas fases de recria e de re-
ticas de alimentação e manejo não intensivo e produção das fêmeas nelores e cruzadas, foram
intensivo. “Na fase de cria, avaliamos cinco sis- estudadas estratégias de alimentação e de mane-
temas de produção”, diz Alencar. “O que usamos jo para redução da idade à primeira cobertura e
como referência foi o de nelore sob manejo não melhoria da eficiência reprodutiva. No caso dos
intensivo, com um animal por hectare. Nesse sis- machos, foram avaliados o crescimento, a con-
tema, que é o mais usado no país, vacas nelore versão alimentar e características quantitativas
ou aneloradas foram acasaladas com touros da e qualitativas da carcaça.
mesma raça.” Foram estudados os animais sob Os resultados do trabalho mostraram que o
manejo intensivo, com cinco deles por hectare, nível de suplementação não influenciou a pre-
com suplementação alimentar das va- cocidade sexual (idade até a
cas no inverno e adubação das pasta- puberdade) das novilhas, mas
gens no verão. o cruzamento sim. As vacas
O nelore (Bos taurus indicus), ori- cruzadas tiveram o primeiro
ginário da Índia, foi escolhido por ser
o zebuíno predomimante na pecuária
Agora é possível bezerro mais cedo do que as
nelores. Entre elas as resul-

saber a idade
de corte nacional (80% do rebanho). O tantes da mistura entre angus
canchim é uma raça sintética criada no e nelore, nascidas na prima-
Brasil, composta de 5/8 de charolês e vera, tiveram a primeira cria
3/8 de zebu, de porte médio, e o simen-
tal é um taurino (Bos taurus taurus) da
ideal para abate com menos de 2 anos de idade
– mais precisamente aos 709

dos animais
Europa continental, de tamanho gran- dias, ou 23 meses e 19 dias. Na
de. O angus também é europeu, mas da pecuária brasileira o normal
Grã-Bretanha e de porte médio. Can- era ter o primeiro parto aos
4 anos. Entre os machos nas-
cidos no outono, destinados
Confinamento cedo e regime alimentar especial: economia de terras ao abate após confinamento
iniciado aos 12 meses de idade, os animais cru-
zados de angus com nelore foram abatidos aos 16
meses com cerca de 20 arrobas (300 quilogramas
de carcaça), bem mais cedo do que a média de
idade de abate à época no país. Outros resulta-
dos importantes obtidos se referem a resistência
a parasitas, exigência nutricional de vacas, com-
portamento animal, marcadores moleculares e
efeitos da intensificação no uso das pastagens.
O trabalho evoluiu para o estudo de alterna-
tivas de cruzamento envolvendo raças bovinas
adaptadas e não adaptadas. O objetivo é obter
animais que sejam produtivos nas condições tro-
picais, precoces, tanto em reprodução quanto
Miguel Boyayan

em acabamento, e produtores de carne macia


de boa qualidade. “O que se pretende é avaliar a
possibilidade de produzir animais com elevada

192  _ especial 50 anos fapesp


anos. Eles são desmamados aos sete meses de ida-
As medidas dos bois de, pesando cerca de 230 quilos, e imediatamente Os projetos
colocados em confinamento para engordar. Além
1. Estratégias de
da precocidade para abate, esse método garante cruzamentos, práticas de
Desempenho de bezerros em confinamento cobertura de gordura subcutânea na carcaça su- manejo e biotécnicas para
pelo sistema superprecoce perior a 3,5 milímetros, que dá qualidade à carne intensificação sustentada
da produção de carne
1. Nº de animais: 60 (3 lotes/20 animais) e seus subprodutos. bovina – nº 1998/03761-0
2. Idade média de entrada: 8,93 meses Para chegar a esses resultados, os pesquisado- (1998-2002)
3. Dias de confinamento: 152 (5,08 meses) res monitoraram o crescimento do tecido muscu- 2. Crescimento de bovinos
4. Peso médio de entrada: 245 kg ≈ 8,16 arrobas de corte no modelo
lar esquelético dos novilhos desde o nascimento biológico superprecoce –
5. Peso médio de saída: 483 kg ≈ 18,29 arrobas
até a desmama, e daí à terminação – maturidade nº 1999/05195-5
6. Ganho de peso médio/dia: 1,57 kg (2000-2006)
para o abate –, e estudaram a qualidade de ali-
7.  Rendimento médio de carcaça: 56,8% Modalidade
8. Ganho médio em arroba no período: 10,13 arrobas
mentos e suplementos para orientar o manejo
Projeto Temático
9. Idade média de abate: 14 meses
alimentar. Na área de biologia molecular, carac-
Coordenadores
terizaram os genes envolvidos no crescimento e 1. Maurício Mello de Alencar
Custos de produção
na composição da carcaça, para identificar indiví- – Embrapa Pecuária Sudeste
duos geneticamente superiores e eventualmente 2. Antônio Carlos Silveira –
10. Alimentação animal/dia: R$ 3,88 FMVZ/Unesp de Botucatu
destiná-los à reprodução.
11. Operacional/dia: R$ 0,30 Investimento
Silveira cita mais quatro resultados importan- 1. R$ 374.840,67
12. Custo total/dia: R$ 4,18
13. Custo total/período (item 12x3): R$ 635,36
tes do trabalho. O primeiro deles é a tecnologia 2. R$ 773.318,74

14. Custo da arroba produzida (item 13/8): R$ 62,72 de avaliação de carcaça dos animais em tempo
15. Custo inicial bezerro: R$ 900,00 real por meio de aparelho de ultrassom. “Com ela, Artigo científico
16. Custo total confinamento (itens 13+15): R$ 1.535,36 conseguimos verificar o tempo ideal para abater
os animais”, diz. “Além disso, torna possível a se- BIANCHINI, W. et al.
Crescimento e
Lucratividade do sistema leção de touros para maior crescimento muscular características de carcaça
17. Preço arroba de venda: R$ 105,00
e deposição de gordura na carne e separação de de bovinos superprecoces
animais em lotes em confinamentos para melhor nelore, simental e mestiços.
18.  Total bruto arrecadado (itens 5x17): R$ 1.920,45 Rev. Bras. Saúde Prod. An.
19. Lucro anual (item 18 – 16): R$ 385,09 desenvolvimento e desempenho dentro do sis- v. 9, n. 3, p. 554-64, 2008.
20. Lucro mensal (item 19/3): R$ 75,81 tema de terminação.” Um segundo resultado foi
21.  Rentabilidade (item 19/16): 25,12% a identificação de marcadores moleculares para
De nosso arquivo
22.  Rentabilidade mensal (item 21/3): 4,94% maciez da carne e deposição de gordura, prin-
cipalmente na raça nelore, que tem a carne mais Rebanho de fino trato
FONTE: Antonio C. Silveira, Luís Artur Chardulo e Cyntia Ludovico Martins/UNESP
dura do que animais europeus. Edição nº 102 –
agosto de 2004

A
O avanço da boiada
introdução de um sistema de alimenta-
Edição nº 88 –
ção privativa para bezerros, chamado de junho de 2003
proporção de Bos taurus taurus, mantendo um creepfeeding, de cochos pré-moldados, foi
Jovem, enxuto e com
elevado potencial de adaptação a regiões de cli- outro resultado do projeto. Eles são colocados peso de boi
ma tropical” , explica Alencar. em lugares do pasto onde só os bezerros – ain- Edição nº 60 –
dezembro de 2000
da mamando – têm acesso. Assim, eles chegam
Modelo biológico superprecoce ao desmame com maior peso – cerca de 30 a 45
Precocidade também foi o principal resultado do kg a mais. O trabalho de Silveira e de sua equipe
projeto Crescimento de bovinos de corte no mode- também resultou na produção de silagem de grão
lo biológico superprecoce, desenvolvido de 2000 úmido como forma de processamento de milho
a 2006 na Faculdade de Medicina Veterinária e para as dietas de bovinos. “Durante as pesquisas,
Zootecnia da Unesp em Botucatu. Sob a coorde- compramos uma máquina que produz a silagem
nação do professor Antônio Carlos Silveira, do de- em bags”, ele conta. “É uma maneira alternativa
partamento de melhoramento e nutrição animal, de conservar alimentos.”
e a participação de 30 pesquisadores, o trabalho Todos esses métodos e tecnologias desenvol-
resultou num sistema de criação de bovinos que vidos durante o projeto foram repassados para
reduz a idade de abate para até 15 meses. São os os criadores e hoje estão difundidos em todo o
chamados novilhos superprecoces que, nessa ida- Brasil, contribuindo para a melhoria da pecuá­
de, atingem 450 quilogramas. Eles se originaram ria nacional. “O principal resultado do nosso
do cruzamento de gado nelore com raças euro- trabalho foi esta consolidação do sistema de
peias, como angus, hereford, simental, braunvieh, produção de carne de animais jovens intitulado
charolês, limousin e pardo suíço. superprecoce”, diz Silveira. “Ele já foi adotado
Esse trabalho permite queimar etapas no pro- como um modo de produzir carne de qualida-
cesso de criação. Agora os bezerros não passam de, padronizada pelos pecuaristas confinadores
pela fase da recria, que pode durar de dois a três em nosso país.” n

pESQUISA FAPESP maio de 2012  _ 193


Vespas soltas
nos laranjais
194  _ especial 50 anos fapesp
_Agricultura

C
omeçam a surgir soluções para a mais
Inseto é usado cruel doença da citricultura brasi-
leira conhecida por um complicado
para eliminar nome em chinês, huanglongbing, ou
ainda greening, em inglês, que já se
transmissor mostrou mais agressiva que outras
do greening, uma enfermidades dos laranjais como o cancro cítrico
ou a clorose variegada dos citros. Novas formas
das doenças mais de combatê-la são muito bem-vindas, porque a
indicação hoje é simplesmente arrancar a planta
graves dos citros com raiz e fazer severas pulverizações de inseti-
cidas. Já foram erradicados cerca de 14 milhões
de plantas de laranjeiras de 2005 a 2011.
A mais nova solução para conter essa epidemia
Marcos de Oliveira agrícola prevê o combate ao inseto transmissor da
bactéria Liberibacter, que causa a doença. Conhe-
cido como psilídeo (Diaphorina citri), ele pode
ter sua população diminuída por meio de manejo
ecológico com o uso de uma vespa, a Tamarixia
radiata, que não causa danos à agricultura e ao
homem. Essas vespas parasitam os psilídeos ainda
jovens – quando estão na fase de ninfa e não voam
– ao colocar ovos no corpo do inseto transmissor
da doença. As vespas depois de saírem do ovo des-
troem o ser parasitado. O ciclo de reprodução da
Tamarixia e do psilídeo foi obtido por uma equipe
do professor José Roberto Postali Parra, da Escola
Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq)
da Universidade de São Paulo (USP). Em estudos
realizados no município de Araras (SP), a soltura
da vespa em pomares da região teve resultados en-
tre 51% e 72% de eliminação das ninfas do inseto.
O domínio da técnica se completou em 2011,
por meio de estudos desenvolvidos pela equipe
de entomologia da Esalq, que conta com 10 pes-
quisadores, num projeto financiado pelo Fundo
de Defesa da Citricultura (Fundecitrus), entida-
de mantida pelos produtores. Atualmente, para
manter o experimento, são produzidos de 60
mil a 100 mil vespas por mês na Esalq. Elas são
liberadas no campo em áreas com altas popula-
ções de Diaphorina citri, numa relação de 400
vespas por hectare.
O problema com esse tipo de manejo já veri-
ficado em estudos preliminares pelo professor
Parra, que tem parcerias também com o Instituto
Agronômico (IAC), o Instituto Biológico de São
Paulo e a Universidade da Califórnia, em Davis,
nos Estados Unidos, é que a vespa migra e mor-
henrique santos/fundecitrus

A laranjeira re em áreas onde existe a aplicação de produtos


doente químicos para controle da praga. Assim, enquan-
apresenta folhas
to continua a aplicação maciça de inseticidas
amareladas e
frutos que não em áreas comerciais, as liberações estão sendo
amadurecem realizadas em áreas de murta (Murraya pani-

pESQUISA FAPESP maio de 2012  _ 195


O psílideo,
inseto transmissor
do greening, foi
identificado no Brasil
pela primeira vez
na década de 1940

culata), uma planta ornamental usada se estivessem mumificados. A


em cercas vivas e pertencente à mesma equipe de Parra leva em conta Uma das alternativas
família dos citros, também hospedeira possível isolamento de feromô-
da doença, em pomares abandonados e nios sexuais, substâncias secreta- para eliminar o inseto é o
áreas de plantações orgânicas de citros. das pela fêmea para atrair insetos
“Em função dos resultados da pesqui- machos, que poderiam ser usa-
uso de bactérias e fungos
sa, é possível recomendar como tática de dos em armadilhas para diminuir
controle do psilídeo a aplicação de in- a população do psilídeo.
seticidas apenas no período de repouso por meio de técnicas de transgenia com

N
vegetativo (período de menor atividade as goiabeiras reside uma outra pos- o objetivo de repelir o inseto”, explica.
metabólica da planta com queda de fo- sível solução para barrar a inves- O huanglongbing (HLB) foi identificado
lhas) das plantas cítricas”, diz Parra. A tida do transmissor da bactéria. no Brasil pela primeira vez em 2004 por
adoção dessa técnica permite que a li- “Elas produzem algumas substâncias pesquisadores do Centro de Citricultu-
beração de Tamarixia radiata possa ser voláteis que repelem o inseto, como foi ra Sylvio Moreira, vinculado ao Institu-
realizada também em áreas com apli- observado inicialmente no Vietnã, onde to Agronômico (IAC), e do Fundecitrus.
cação de inseticidas, atuando de forma se plantam goiaba e laranja nos mesmos A rápida expansão da doença pode ser
complementar à ação desses produtos. pomares, de forma intercalada”, diz o percebida em um experimento realizado
Uma série de alternativas para elimi- agrônomo José Belasque Júnior, pesqui- pela equipe do agrônomo Marcos Macha-
nar o psilídeo ainda está em estado ini- sador do Fundecitrus. A pesquisa encon- do, diretor do Centro de Citricultura, em
cial de estudo. “Uma delas é o uso de tra-se na fase de identificação química um projeto financiado pela FAPESP, entre
bactérias que interferem no comporta- dos compostos repelentes para os psilí- 2005 e 2008, com a parceria do Fundeci-
mento e na biologia dos insetos, além de deos. Estudos para identificação e síntese trus, para estudo da bactéria em relação
fungos que podem ser utilizados como dessas substâncias voláteis da goiabeira ao diagnóstico, à biologia e à forma de
agentes de controle”, diz Parra. Esse ti- estão sendo feitos pelo Instituto Nacional combatê-la. O pesquisador Renato Bas-
po de controle biológico é feito de for- de Ciência e Tecnologia (INCT) de Se- sanezi, do Fundecitrus, isolou um pomar
ma semelhante a inseticidas industriais mioquímicos na Agricultura, financiado novo de laranjas em Araraquara com 10
com a aplicação de fungos misturados à pela FAPESP e pelo Ministério da Ciên- mil plantas sem HLB, cercada por plan-
água, sobre os insetos e nas plantações. O cia, Tecnologia e Inovação, que tem sede tações de cana e distante um quilômetro
fungo é inerte para os vegetais e ao ho- na Esalq e é coordenado pelo professor de qualquer outro pomar.
mem, mas parasita tanto o inseto adulto Parra. “A ideia é produzir essas substân- Foi feito o controle químico com inse-
como as ninfas, deixando-os secos como cias no futuro nas próprias laranjeiras ticidas, com diferentes tipos de aplica-

196  _ especial 50 anos fapesp


ção. Depois de três anos, 15% das plantas do o Fundecitrus, o greening estava pre- dos agricultores brasileiros. O psilídeo
tinham a doença. A conclusão foi que, sente em 53,38% dos talhões (em média foi registrado no Brasil pela primeira
mesmo com intenso controle químico 2 mil plantas) paulistas. Outras doenças vez no início da década de 1940 e deve
dentro do pomar, não foi possível evitar importantes, como a clorose variegada, ter chegado provavelmente no meio de
a entrada de insetos contaminados de atacava 40,3% do parque citrícola en- mudas infestadas. Ele se adaptou bem
outras áreas. “A situação não é simples, quanto o cancro cítrico, 0,99% das plan- ao clima, mas não era considerado uma
porque é possível que tenham chegado tas. O HLB também está presente em mu- praga, porque não produzia danos, em-
ali vários insetos, mas se apenas um es- nicípios de Minas Gerais e do Paraná. Os bora estivesse relacionado à transmis-
tivesse contaminado a transmissão da três estados são responsáveis por quase são da bactéria causadora do HLB na
doença poderia ocorrer”, diz Machado. 90% da produção nacional de frutas cítri- China e em outros países da Ásia. Os
Em 2009, o experimento havia sido todo cas e 60% da produção mundial de suco olhares dos citricultores brasileiros em
dizimado pelo HLB. concentrado congelado, o produto mais relação ao Diaphorina citri, que mede
O nome em chinês huanglongbing é importante do setor, que rendeu US$ 2 de 2 a 3 milímetros de comprimento, só
traduzido como doença do dragão ama- bilhões em exportações em 2010. mudaram com a confirmação do HLB
relo ou doença do ramo amarelo, porque em São Paulo. Ele adquire e transmite

A
deixa as folhas amareladas e os frutos doença é relatada na Ásia desde o as bactérias de plantas doentes quando
verdes, deformados e imprestáveis para século XIX, continente de origem se alimenta nos vasos do floema, o sis-
o consumo ou para o processamento in- dos citros. Foi primeiro descrita tema de circulação da seiva da planta.
dustrial. “A infecção é severa. Não adianta na China e mais tarde ganhou também A importância desse vetor no âmbito da
cortar galhos, é preciso arrancar a árvore, o nome greening na África do Sul, que doença logo acionou Parra que apresen-
inclusive com a raiz, com uma máquina se refere aos frutos que não amadure- tou um projeto sobre o inseto à FAPESP
para que não volte a brotar”, diz Machado. cem e ficam verdes. No Brasil, segundo ainda em 2004. “Até aquele momento,
Atualmente, existem cerca de 160 mi- Machado, o HLB pode ter chegado por o inseto não havia sido estudado pro-
lhões de árvores de citros no estado de meio material de propagação vegetativa, fundamente. O nível populacional não
São Paulo e o período de produção de ca- há mais de dez anos. O inseto que dis- justificava estudos e um controle maior
da uma é de até 20 anos. Em 2011, segun- semina a bactéria é um velho conhecido por parte do produtor”, diz. “Com o te-
mático, conseguimos conhecer melhor o
Diaphorina e indicar medidas biológicas,
comportamentais e recomendar o uso de
inseticida de forma racional sem dese-
quilibrar o ambiente e sem matar os seus
inimigos naturais, como algumas peque-
nas vespas”, explica. “Identificamos que
o inseto se desenvolve melhor em outras
árvores, principalmente na murta.”
A fêmea coloca os ovos nas brotações
dessas plantas. Nos citros, ela coloca uma
média de 160 ovos, enquanto em outras
chega até a 348. “Estabelecemos parâme-
tros climáticos e zonea­mento dos lugares
onde a praga ocorre mais intensamente. A
maior prevalência acontece nos municí-
pios de São Carlos, Bariri, Botucatu, Lins
e Araraquara.” O professor Parra realiza
há mais de 40 anos pesquisas com insetos
ligados à agricultura e sente que o desa-
fio de entender e combater o grenning é
grande, talvez o maior de sua carreira.
“O inseto é de difícil manejo na criação.
Há também o problema das populações
que são variáveis ao longo do ano, das es-
tações e de condições de temperatura e
chuva, o que nos impediu de estabelecer
fotos henrique santos/fundecitrus

modelos de sua presença no campo”, diz.


A doença deixa o Se o inseto é complicado, as bactérias não
fruto deformado são menos. Elas foram identificadas em
e impróprio
laboratório na França, em 1970, no grupo
para o consumo
industrial ou do professor Joseph Bové, do Instituto
in natura Nacional de Pesquisa Agronômica. Ainda

pESQUISA FAPESP maio de 2012  _ 197


Vespas para combater o psilídeo
USP produz em laboratório as Tamarixia radiata

Mudas de murta são Após 10 dias, as ninfas dos psilídeos são removidas para
colocadas em uma gaiola, outra caixa; aí são postas as vespas na proporção de uma
onde os psilídeos para cada grupo de 10 ninfas. A vespa coloca o ovo na ninfa e
colocarão os ovos, retirados depois a larva se alimenta da própria ninfa.
depois de sete dias Em 12 dias, as vespas adultas saem do corpo da ninfa.

hoje elas não têm uma identificação ta- “A concentração na laranjeira é muito O menor genoma da Liberibacter sig-

fotos Luís Gustavo Marcassa/ifsc-USP infográfico  Tiago cirillo


xonômica ou nome científico definitivo, baixa, não é possível fazer imagens como nifica que ela é ainda mais especializada
porque há dificuldades em cultivá-las em a obtida com a vinca”, diz. “Não existe que as outras. Pode indicar que o para-
meio de cultura nos laboratórios. Por isso a relação entre o número de bactérias sitismo da bactéria em relação à planta
recebem a denominação de Candidatus e o estrago no floema”, diz Machado. é obrigatório porque ela é incapaz de
Liberibacter (Ca.L.) e três espécies es- Mesmo assim, as poucas bactérias de- viver livre”, diz Machado. Ele coordena
tão associadas ao HLB, a Ca. L. asiaticus, vem secretar toxinas que prejudicam também o recém-criado Instituto Na-
responsável por mais de 90% da doença a funcionalidade do floema. “Rapida- cional de Ciência e Tecnologia (INCT)
no Brasil e causadora da infecção mais mente, em cerca de meia hora depois de Genômica para Melhoramento de
deletéria, a Ca. L. africanus, mais amena que o inseto portador da bactéria pica Citros, que engloba institutos e univer-
e ausente dos pomares brasileiros, e a a planta, ela se torna infectada, mas a sidades em São Paulo, Bahia, Paraíba e
Ca. L. americanus, muito pouco presen- evolução é lenta e os sintomas podem se na Flórida, nos Estados Unidos. Esse
te no país. manifestar até um ano depois”, diz Parra. estado norte-americano também é ata-
O combate ao HLB também deve con- cado pelo greening, onde a doença foi

‘P
ara cultivar a Liberibacter é pre- tar no futuro com o conhecimento do identificada em 2005. A Flórida, com
ciso um caldo de que ela goste, e genoma da bactéria. O sequenciamento mais de 60 milhões de pés de laranja,
isso é feito por meio de sequências genético da Ca.Liberibacter asiaticus foi é o segundo produtor mundial, atrás
de tentativa e erro”, diz Elliot Kitajima, finalizado em 2008 pelo Departamento de São Paulo, com quase 78% do total
professor da Esalq e especialista em mi- de Agricultura dos Estados Unidos. A de frutas do Brasil. Flórida e São Pau-
croscopia eletrônica. Ele e Francisco espécie asiática possui um genoma pe- lo somados são responsáveis por cerca
Tanaka, também professor da mesma queno, com cerca de 1,2 milhão de pa- de 80% da produção mundial de suco.
universidade, fizeram imagens da Li- res de base, enquanto a bactéria Xylella Os próprios agricultores é que têm de
beribacter em um floema da vinca ou fastidiosa, que causa a clorose variegada, combater a doença. No Brasil, uma lei
maria-sem-vergonha [Catharanthus ro- tem 2,4 milhões de pares, e a Xanthomo- federal os obriga a eliminar as árvores
seus], uma planta ornamental usada co- nas axonopodis citri, bactéria causadora doentes mas nem sempre isso ocorre.
mo hospedeiro alternativo da bactéria. do cancro, possui 4,5 milhões de pares. “Metade dos citricultores, principal-
mente os pequenos não pulverizam as
plantações com inseticidas. Embora fá-
cil, esse procedimento não é barato”,
diz Armando Bergamin Filho, professor
da Esalq-USP e coordenador de outro
projeto financiado pela FAPESP que
aborda a infestação do greening, inicia-
do em 2008. “O controle tem que ser
regional, não adianta um produtor pul-
verizar com inseticidas e o vizinho não
Fotos digitais de folha com greening exposta à luz de LEDs, mostrando alterações captadas pela fluorescência fazer o mesmo.”

198  _ especial 50 anos fapesp


uso o laser, que requer mais cuidados e é
mais caro, mas Leds (diodos emissores OS PROJETOS
de luz) de alta potência. Ao analisarmos
1. Bioecologia e estabelecimento de
as folhas, chegamos a um acerto de 90%
estratégias de controle de Diaphorina citri
das amostras comprovadas com exames Kuwayama (Hemiptera: Psyllidae), vetor da
moleculares”, diz Marcassa. bactéria causadora do greening nos citros –
nº 2004/14215-0 (2005-2009)
O estudo consiste em iluminar a folha
2. Estudos da bactéria Candidatus Liberibacter
com a luz de um led e captar com uma spp., agente causal do huanglongbing
câmara fotográfica a fluorescência alte- (ex-greening) dos citros: diagnóstico, biologia
e manejo – nº 2005/00718-2 (2005-2010)
rada pela bactéria. Os dados enviados a
3. Epidemiologia molecular e manejo
um computador mostram em um gráfico integrado do huanglongbing (asiático
a possibilidade de a planta estar infectada. e americano) no estado de São Paulo –
nº 2007/55013-9 (2007-2012)
Além de São Paulo, Marcassa, em parceria
4. Centro de Pesquisa em Óptica e Fotônica
As vespas são então soltas nos laranjais. com Reza Ehsani, professor do Centro de de São Carlos (subprojeto: Óptica aplicada à
Para se reproduzirem, colocam os ovos Pesquisa e Educação em Citrus (Crec, si- agricultura e ao meio ambiente) –
nº 1998/14270-8 (2000-2012)
nas ninfas dos psilídeos, eliminando-os gla em inglês), da Universidade da Flóri-
5. Imagem de fluorescência aplicada em
da, fez estudos também em plantações de doenças de citros no campo – nº 2010/16536-9
laranjas naquele estado norte-americano. (2010-2012)
“Mas os testes na Flórida mostraram re- Modalidades
1. a 3. Projeto Temático
Fonte: José Roberto Parra e Alexandre José Ferreira Diniz/Esalq
sultados diferentes e o índice de acerto lá
4. Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão
foi de 61%. Os colegas dos Estados Uni- (Cepid)
dos acreditam que a diferença se deva às 5. Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa
Para Bergamin, a doença é controlá- condições ambientais das plantas, como Coordenadores
1. José Roberto Postali Parra – USP
vel quando em uma região ampla exista adubação e nutrientes distintos, em rela-
2. Marcos Antonio Machado – IAC
uma colaboração entre agricultores para ção a São Paulo”, diz Marcassa. 3. Armando Bergamin Filho – USP 
erradicar as plantas doentes, pulveri- O segundo experimento é conduzido 4. Débora Milori – Embrapa
5. Luís Gustavo Marcassa – USP
zar e fazer as inspeções, de preferência pela pesquisadora Débora Milori, da Em-
Investimento
mensalmente, nos pomares. No projeto, brapa Instrumentação Agrícola, unidade
1. R$ 462.875,46
Bergamin e seu grupo, que inclui pes- da Empresa Brasileira de Pesquisa Agro- 2. R$ 1.418.367,25
quisadores da Fundecitrus, estudaram pecuária, em São Carlos (SP), que estuda 3. R$ 1.175.226,06
4. R$ 38.622.748,13
a disseminação da doença em função do o uso de feixes de laser e leds para diag-
5. R$ 85.260,51
tempo, a rapidez como a infecção atin- nosticar precocemente o HLB. Débora e
ge as plantações e o inseto, averiguando sua equipe inventaram um equipamento
hábitos de voo do psilídeo, que pode ser portátil que lança um feixe de luz sobre as artigo científico
levado pelo vento a centenas de metros, folhas e consegue diagnosticar o greening
Bassanezi, R.B. et al. Epidemiologia do
tudo com base em análises moleculares e a clorose variegada com taxa de acerto huanglongbing e suas implicações para
nas várias etapas da doença. de 95%. No caso do HLB, o equipamento manejo da doença. Citrus Research &
Technology. v.31, n.1, p. 11-23, 2010.
consegue o diagnóstico positivo mesmo
Leds nas folhas em fase assintomática. O sistema teve de-
Um dos problemas dos agricultores é iden- pósito de patente no Brasil e no exterior de nosso arquivo
tificar o HLB pelos sintomas, porque eles e em 2011 foi licenciado para a empresa
A luta contra o dragão amarelo
se parecem muito com os de outras doen- Opto Eletrônica, também de São Carlos,
Edição nº 162 – agosto de 2009
ças dos citros. Uma inspeção mais eficaz que, em parceria com os pesquisadores
e segura pode estar disponível em breve, da Embrapa, desenvolve o primeiro pro-
como mostram pesquisas realizadas com tótipo para uso no campo.
sistemas de detecção fotônica que estão em “Hoje a inspeção visual pode levar a
desenvolvimento por dois grupos de pes- erros de 30 a 60%, inclusive na confu-
quisadores de São Carlos. Os experimentos são com outras doenças que apresentam
utilizam o princípio da fluorescência que sintomas semelhantes”, diz Débora. “Em
utiliza a emissão de luz pela folha após ter laboratório, com calibração do aparelho
sido iluminada por um diodo emissor de para cada variedade de citro, os índices de
luz (Led) ou por um laser. acerto são elevados e o resultado sai em
Um estudo é conduzido por Luís Gus- alguns segundos. O desafio agora é testá-lo
tavo Marcassa, professor do Instituto de em campo.” Este estudo recebe apoio do
Física de São Carlos da USP, como uma Conselho Nacional de Desenvolvimento
sequência de outro estudo em que os Científico e Tecnológico (CNPq) e do Cen-
pesquisadores usaram laser para iden- tro de Pesquisa em Óptica e Fotônica de
tificar o cancro cítrico (ver Pesquisa FA- São Carlos, um dos centros de Pesquisa,
PESP nº 80). “Agora com o greening não Inovação e Difusão da FAPESP. n

pESQUISA FAPESP maio de 2012  _ 199


huma
nidades
dinâmica da economia O Brasil rural não é só agrícola 202   mulheres da cana A

reconstrução do passado 208 sociologia Uma metrópole em metamorfose ambulante

212 direitos humanos A violência consentida 216 relações internacionais Por uma

agenda mais efetiva 220 ciência política O presidencialismo se move 224 defesa

nacional Autonomia sem discussão 230 evolução A América de Luzia 234 antropologia

A invenção dos índios no Brasil 240 história da ciência Nos ombros de gigantes mágicos

246 literatura O Brasil visto do sítio 252

avenida paulista/léo ramos


O toque do
arquivo AGÊNCIA ESTADO

berrante marca
a abertura de um
rodeio em Ribeirão
Preto (SP)

202  _ especial 50 anos fapesp


_ d inâmica da economia

O Brasil rural
não é só agrícola
Projeto Rurbano mostra que o país, seguindo
o modelo de sociedades desenvolvidas, reduz
abismo histórico entre campo e cidade

Claudia Izique

E
m 1950, 64% dos brasileiros conta de que 44,7% dos brasileiros que
viviam na zona rural, nas con- residem na zona rural têm renda prove-
tas do Instituto Brasileiro de niente de atividades não agrícolas, sendo
Geo­grafia e Estatística (IBGE). que em São Paulo esse percentual atinge
Vinte anos depois, com a mo- a impressionante marca de 78,4%.
dernização da agricultura e a migração Essa mudança – sinal inequívoco de
em direção às cidades, este percentual que o Brasil começava a reproduzir uma
caiu para 44%. Nos anos 1980, no entan- dinâmica típica nos países desenvolvidos
to, as estatísticas surpreenderam: apesar – começou a ser analisada no final dos
da queda no emprego agrícola, a popu- anos 1990, na pesquisa Caracterização
lação rural ocupada crescia, sinalizando do Novo Rural Brasileiro 1992/98, bati-
que um profundo processo de mudanças zado de Projeto Rurbano. Apoiado pela
no campo estava em curso. Mais duas FAPESP, pelo programa de Núcleos de
décadas e o novo cenário se delineou: a Excelência (Pronex/CNPq/Finep) e pela
agropecuária moderna e a agricultura de Secretaria de Desenvolvimento Rural do
subsistência estavam dividindo espaço Ministério da Agricultura e do Abaste-
com atividades ligadas à prestação de cimento (SDR/MMA), o projeto reunia
serviços, à indústria, ao turismo e ao la- mais de 40 pesquisadores, 11 unidades
zer, tornando cada vez menos nítidos os federais e dois núcleos da Empresa Bra-
limites entre o rural e o urbano no país. sileira de Pesquisa Agropecuária (Em-
E o processo mostrou-se inexorável: os brapa). Em 2000, os resultados das duas
últimos dados disponíveis (2009) dão primeiras fases da pesquisa foram repor-

pESQUISA FAPESP maio de 2012  _  203


Festa do Peão
em Barretos (SP),
2003, o maior
evento country
do país

tagem de capa da edição nº 52 da revis- sa Nacional por Amostra de Domicí- já exerciam exclusivamente atividades
ta Pesquisa FAPESP. “O mundo rural é lios (Pnad). Constataram, por exemplo, não agrícolas.
maior que o agrícola”, constatava o então que na década de 1990 a população rural Os dados indicavam, ainda, um sig-
coordenador do projeto, José Graziano cresceu a uma média de 0,5% ao ano e nificativo crescimento do número de
da Silva, do Instituto de Economia da que três em cada dez pessoas ocupadas desempregados e aposentados residen-
Universidade de Campinas (Unicamp), estavam vinculadas a atividades não agrí- tes no campo, evidenciando que estava
hoje diretor-geral da Organização das colas. Dez anos antes, essa proporção era em curso uma dissociação entre o local
Nações Unidas para a Agricultura e Ali- de dois para dez. de residência e o de trabalho, próprio
mentação (FAO). das cidades. “O crescimento das cidades

N
Além de lançar luz sobre uma pers- a segunda fase da pesquisa, ini- em direção ao campo e a facilidade nos
pectiva de análise até então equivoca- ciada em 1999, os pesquisadores transportes contribui para isso”, subli-
da, que reduzia o rural ao agrícola, os observaram que as áreas de agri- nha Belik, descrevendo um fenômeno
resultados do Projeto Rurbano, ainda cultura e pecuária cediam lugar para a conhecido como commuting.
em curso, teve – e segue tendo – forte criação de aves nobres e exóticas, ven- Os pesquisadores analisaram também
impacto sobre políticas públicas. O Pro- didas a supermercados, restaurantes e o trabalho feminino. “Constatou-se au-
grama de Apoio à Agricultura Familiar à agroindústria; aos pesque-pague; ao mento de famílias rurais com mulher na
(Pronaf ), cujo crédito beneficiava ape- turismo ecológico ou rural; e aos condo- atividade econômica entre as famílias
nas os produtores rurais com 80% da mínios de classe média e alta. Isso sem pluriativas, principalmente no Sudeste
renda originária de produção agrícola e falar nas festas de rodeio, estimadas em e em São Paulo”, lembra Eugênia Tron-
os empregadores agrícolas com até dois mais de mil em todo o país. Só a do Peão coso Leone, do Instituto de Economia
empregados permanentes, alterou essas de Boiadeiro de Barretos, em São Paulo, da Unicamp. A participação da mulher
regras, ainda em 1999, abrindo a pos- movimenta anualmente algo em torno na renda das famílias rurais agrícolas
sibilidade de financiamento de outras de R$ 20 milhões, além de criar mais de era, no entanto, baixa, e provavelmente
fotos  1. TIAGO QUEIROZ/AE  2. Luciana Whitaker /olhar imagem

atividades. “Hoje um produtor rural po- 5 mil empregos diretos e 10 mil indiretos, estava embutida na renda do chefe. Mas
de conseguir crédito para comprar uma nas contas dos organizadores. era mais significativa entre as famílias
moto que utilizará para vender produ- A pesquisa mostrou ainda que, en- pluriativas. “Entre as famílias não agrí-
tos na feira”, exemplifica Walter Belik, tre as 7,7 milhões de famílias residentes colas o emprego doméstico constituía a
do Instituto de Economia da Unicamp, em áreas rurais, boa parte delas exercia principal atividade das mulheres ocupa-
atual coordenador do projeto. pluriatividade, ou seja, combinavam o das”, afirma.
trabalho no campo com atividades não Na terceira fase do Projeto Rurbano,
Evolução do projeto agrícolas, por meio da qual auferiam, in- iniciada em 2000, os pesquisadores fo-
O Projeto Rurbano começou em 1997, variavelmente, renda substancialmente ram mais fundo: passaram a analisar os
com o objetivo de reconstruir séries maior. Metade dessas famílias trabalha- impactos dessas mudanças no meio am-
históricas a partir dos dados da Pesqui- va por conta própria, sendo que 538 mil biente e no emprego, entre outros, por

204  _ especial 50 anos fapesp


meio de estudos de caso. “Foram, ao to- colas. Os resultados apontaram também
do, 20 projetos, metade com pesquisa para o papel significativo das aposenta-
em campo”, conta Belik. Ele próprio foi dorias e pensões na composição da renda
responsável pelo subprojeto Indústria das famílias rurais e a forte influência das
Rural e Emprego, que estudou porme- agroindústrias produtoras de frutas na
norizadamente a situação de famílias geração de ocupações para as popula-
em municípios paulistas. “Identificamos ções rurais. À medida que se afastavam
uma nova indústria rural, com forte li- do raio de influência dessas empresas, as
gação com o mercado, que produz ali- populações tendiam a ter menos opções
mentos, vestuário e artigos para residên- de ocupações não agrícolas.
cias e que faz parte de uma verdadeira
rede de produção, explorando nichos e Pobreza e autoconsumo
complementando linhas de produtos de A fase 3 do projeto encerrou em 2003.
grandes indústrias”, afirma. “O José Graziano virou ministro do Mi-
No município de Lagoinha, no Vale nistério Extraordinário de Segurança
do Paraíba, por exemplo, foram entre- Alimentar (Mesa), no primeiro mandato
vistadas cinco famílias, quatro produ- do presidente Luiz Inácio Lula da Silva,
toras de queijo e uma de aguardente de depois foi para o gabinete do presidente
cana-de-açúcar. Todas cultivavam milho, e se licenciou da Unicamp”, lembra Be-
cana forrageira e gado em seu estabele- lik. O grupo se dispersou, como ele diz,
cimento, além de produzir feijão para e uma equipe menor deu início à fase
consumo próprio. Faltavam-lhes mão de 4 do Projeto Rurbano com o apoio do
obra especializada e recursos financei- Ministério do Desenvol-
ros para tocar o empreendimento, além vimento Agrário (MDA),
de terem dificuldades de se adequar às tendo como foco de análi-
normas sanitárias aplicadas ao proces- se a pobreza rural e o au-
samento e ao transporte dos produtos. toconsumo, também com Em pequenos municípios
Os estudos não se restringiram a São base nos dados da Pnad.
Paulo. Um grupo de pesquisadores li- A pesquisa mostrou rurais com ocupação principal
derados por Aldenôr Gomes da Silva, que o autoconsumo era
da Universidade Federal do Rio Grande uma renda invisível que
agrícola, a insegurança
do Norte (UFRN), constatou que a renda apoiava a segurança ali- alimentar era maior
dos inativos é de fundamental importân- mentar e envolvia 11,1%
cia para as famílias agrícolas e não agrí- dos domicílios (rurais e

Agricultura
orgânica em
2 Correias (RJ), 2008

pESQUISA FAPESP maio de 2012  _ 205


Atividades de agroindústria artesanal, como neste alambique tradicional de Guararema (SP), sobrevivem nos arredores das grandes metrópoles 1

urbanos) entre os 10% e que, quando a ocupação principal era


mais pobres da popula- agrícola, o problema era ainda maior. Ao
Escolaridade média da ção, público-alvo do Plano contrário, quando a principal atividade
Brasil sem Miséria. “Eles estava ligada à indústria, os índices de
população ocupada no setor não participam do mer- insegurança alimentar caíam de 49,4%
cado; são produtores por para 21,3%. “Esses dados mostram uma
agrícola é de 4,1 anos, muito conta própria”, diz Belik. relação entre a localização do domicílio,
baixa comparada aos 9,3 O Brasil sem Miséria re- a ocupação principal e a situação de in-
conheceu esse grupo de segurança alimentar”, sublinha Belik.
anos nos demais setores produtores e, por meio do

A
programa Bolsa Família, tualmente, cerca de 3,4 milhões
passou a destinar àqueles de famílias vivem abaixo da li-
que vivem abaixo da linha nha da miséria, sendo 1,1 milhão
da miséria – R$ 70 diários per capita – um residentes em domicílios rurais. Destas,
fomento equivalente a R$ 2.400, trans- 367 mil produzem para autoconsumo.
feridos em três parcelas, para comprar Elas têm mais sorte que as famílias re-
sementes, equipamentos, entre outros sidentes em regiões metropolitanas ou
insumos à produção de alimentos. em cidades fora de eixo das metrópoles,
Nessa fase do projeto, concluída em onde pouco mais de 108 mil famílias se
2005, o foco foi segurança alimentar das beneficiam dessa renda “invisível”, mas
famílias beneficiárias dos programas de fundamental para garantir a segurança
fotos  1. eduardo cesar  2. SÉRGIO CASTRO/AE

transferência de renda do governo fede- alimentar. Beneficiando-se da metodo-


ral, além de uma radiografia da pobre- logia do Projeto Rurbano, os pesquisa-
za da população agrícola, residentes no dores iniciaram uma nova fase da pes-
campo ou nas cidades. Constatou-se, quisa, denominada Evolução da Pobreza
por exemplo, que o maior contingente no Brasil 2000–2010, cujos dados ainda
de pessoas em situação de insegurança estão inéditos. Serão apresentados ao
alimentar encontrava-se em áreas ur- Conselho Nacional de Desenvolvimento
banas de pequenos municípios rurais Científico e Tecnológico (CNPq). “Em

206  _ especial 50 anos fapesp


breve, publicaremos dois ou três artigos me no trabalho agrícola. “Os rendimentos
sobre o assunto”, adianta Belik. agrícolas são mais baixos e, para os em- O projeto
pregados sem carteira assinada, o salário Caracterização do novo
Redução da desigualdade mínimo não funciona, efetivamente, como rural brasileiro, 1981/95
Apesar das políticas de transferência piso salarial.” O resultado é que, de acordo (fase II) – nº 1997/00104-6
(1997-1999)
de renda e de apoio à agricultura fami- com a Pnad, não houve nenhuma redução Caracterização do novo
liar, no entanto, a desigualdade da dis- na desigualdade da distribuição da renda rural brasileiro, 1992/98
tribuição de renda no setor agrícola ain- do trabalho principal para os empregados (fase III) – nº 1999/10890-4
(2001-2003)
da é maior do que nos demais setores. agrícolas, de 1995 a 2009.
Coordenador
“De 1995 e 2009, ocorreu no Brasil uma E não há indicações de mudanças José Graziano da Silva –
substancial redução da desigualdade da substanciais na distribuição da posse Unicamp
distribuição da renda do trabalho entre da terra. “A concentração da posse da Investimento
todas as pessoas ocupadas”, conta Rodol- terra está fortemente associada à vari- R$ 40.683,35 (fase II) e
R$ 302.099,00 (fase III)
fo Hoffmann, do Instituto de Economia ável posição na ocupação. Em 2009, os
da Unicamp, que, ao lado de Graziano, empregadores no setor primário ocupa-
coordenou as duas primeiras fases do vam uma área média de 235,7 hectares, Artigos
Projeto Rurbano. Nesse período, o ín- valor 10,4 vezes superior à média de 22,7 científicos
dice de Gini daquela distribuição caiu hectares dos por conta própria. Por ocu- 1. SILVA, J. G. da.
de 0,585 para 0,518. No setor agrícola, parem áreas tão grandes, os 86,7 milhões O novo rural brasileiro.
no entanto, essa redução foi bem menor, de hectares (56,6%) apropriados pelos Nova Economia. v. 7, n. 1,
p. 43-81, 1997.
passando de 0,565 para 0,533. quase 368 mil empregadores superam os
Alguns fatores contribuem para essa 66,4 milhões de hectares (43,4%) apro- 2. SILVA, J. G. da et al. Meio
rural paulista: muito além
diferença, entre eles a baixa escolarida- priados pelos quase 3 milhões de por do agrícola e do agrário.
de. “Quando se considera a população conta própria”, constataram Hoffmann São Paulo em Perspectiva.
ocupada no setor agrícola, a escolaridade e Marlon Gomes Ney, da Universidade v. 10, n. 2, p. 60-72, 1996.

média é muito baixa (4,1 anos em 2009, Federal do Norte Fluminense (UFNF), 3. SILVA, J. G. da, DEL
no estudo Agricultura e a recente queda GROSSI, M. E. A mudança
ante 9,3 anos nos demais setores) e sua
do conceito de trabalho
dispersão tende a crescer durante todo o da desigualdade de renda no Brasil, pu- nas novas Pnads.
período de 1995 a 2009”, ele explica. “Pa- blicado em Políticas Públicas e Desen- Economia e Sociedade, n. 8,
volvimento, editado pela Universidade p. 1-16, 1997.
ra o conjunto das pessoas ocupadas na
indústria e nos serviços, por outro lado, Federal de Viçosa (UFV).
a dispersão da escolaridade tende a cair Devido ao fato de as rendas agrícolas Do nosso arquivo
desde 1998, contribuindo para reduzir a serem, em média, mais baixas, elas cons-
O novo rural brasileiro
desigualdade da distribuição da renda.” tituem um componente progressivo da Edição nº 52 – abril de 2000
O aumento do valor real do salário mí- renda total, isto é, elas contribuem para
nimo, que contribuiu para a redução da reduzir a desigualdade da distribuição
desigualdade, não teve o impacto unifor- da renda no país como um todo. n

Araioses (MA),
2005: moradores
das áreas de
agricultura de
subsistência
são o público-alvo
do Plano Brasil
2 sem Miséria

pESQUISA FAPESP maio de 2012  _ 207


_ M ULHERES DA CANA

A reconstrução
do passado
Memórias dos trabalhadores
rurais lançam luz sobre o fim do
colonato nas usinas de açúcar

Claudia Izique

Cortadora de cana:
A. brugier

histórias de violência,
traição e medo

208  _ especial 50 anos fapesp


E
m 1966, os colonos da Usina Amália,
uma das maiores e mais tradicionais
produtoras de cana-de-açúcar no in-
terior do estado de São Paulo, entra-
ram em greve por melhores salários e
condições dignas de trabalho. Em plena ditadura
militar, o movimento resultou na expulsão de
cerca de quatro mil famílias da fazenda. O epi-
sódio teria caído no esquecimento não tivesse
ficado indelevelmente registrado na memória
dos colonos que, trinta anos depois, contaram à
pesquisadora Maria Aparecida de Moraes Silva
histórias de violência, traição e medo. “Eles caí-
ram numa armadilha dos proprietários da fazenda
e do sindicato”, ela afirma.
As lembranças dos trabalhadores – e 208 pro-
cessos judiciais contra a Indústrias Reunidas
Francisco Matarazzo, proprietária da usina –
ajudaram Maria Aparecida a reconstituir um
perío­do de profunda transformação das relações
de trabalho nas lavouras de cana, quando o co-
lonato deu lugar ao trabalho temporário, consti-
tuindo personagens como o trabalhador volante
e os bóias-frias. Os relatos permitiram também
que ela conhecesse detalhes das atividades diá-
rias das famílias: a cana era cortada pelos adul-
tos e amontoada em feixes pelas crianças, antes
de ser transportada para a usina. Emoldurando
o dia a dia, casamentos, batizados, folia de reis
e noites embaladas pela valsa da Siriema: “Teus
olhos, quantas cores/De uma Ave Maria/ Que um
rosário de amargura/ eu rezo todo o dia”.
A pesquisa, iniciada em 1997, contou com o apoio
da FAPESP. O projeto – Mulheres da Cana: Memó-
rias – pretendia reconstituir histórias relacionadas
ao trabalho feminino na lavoura. A menção recor-
rente a uma greve na Usina Amália, no entanto,

pESQUISA FAPESP maio de 2012  _ 209


Trabalhadores em obrigou-a a ampliar seu escopo de investigação. subsistência eram adquiridos no armazém. Es-
greve na Usina Amália, “Na bibliografia sobre a história da proletariza- ses gastos eram abatidos do salário do chefe da
por melhores salários
ção rural em São Paulo, esta greve não é mencio- família e, no final do mês, resultavam num saldo
e condições dignas de
trabalho, em 1966 nada”, justifica. Utilizando o “sistema de redes”, muitas vezes negativo.
como ela explica, pôde identificar e contatar mais
de 70 ex-colonos espalhados pela região – Leme, A greve
Ribeirão Preto, Barrinha, Santa Rosa do Viterbo, A vida na usina e a greve de 1966 foram descritas
São Simão. “Foi necessário recorrer à história oral na reportagem de Marcos Pivetta, Casa-grande
para reconstruir os acontecimentos.” dos Matarazzo na Califórnia Paulista, publicada
na edição nº 61 da revista Pesquisa FAPESP, em

C
om 11 mil alqueires, a Usina Amália era o janeiro de 2001.
braço agroindustrial das Indústrias Reu- A relação da empresa com os colonos tensionou
nidas Francisco Matarazzo. Além das la- com a implantação do Estatuto do Trabalhador
vouras, sediava unidades industriais para o apro- Rural, em 1963, que igualou os direitos do homem
veitamento da cana e do bagaço, do eucalipto e do campo aos do trabalhador urbano, tornando
de frutas e legumes produzidos no local. Ali se ilegal o sistema de titularidade, escreveu Pivetta.
produziam açúcar, álcool, papelão, ácido cítri- Os cortadores de cana passaram a ter direito a
co, sabonetes e conservas. No início dos anos férias, 13º salário, carteira assinada – para cada
1950, a Usina Amália antecipava-se ao conceito trabalhador e não apenas para os titulares do
de biorrefinaria no aproveitamento da biomassa. contrato, como ele sublinhou –, atendimento
Empregava milhares de pessoas – de trabalhado- médico pelo INSS e aposentadoria. Essa tensão
res rurais a operários – todos eles vinculados ao foi arbitrada pelas leis de Segurança Nacional e
Sindicato da Indústria da Alimentação, de acordo de Greve, no primeiro ano da ditadura militar:
com a legislação da época. No caso dos colonos, instilados pelo sindicato, na avaliação de Maria
o titular do contrato de trabalho era chefe da Moraes, os trabalhadores rurais da Usina Amá-
família, mas o cálculo de produtividade – pela lia foram à greve pelos direitos garantidos pelo
qual ele era remunerado – envolvia o trabalho novo estatuto e foram expulsos da fazenda por
não remunerado da mulher e dos filhos. terem deflagrado um movimento considerado
Os funcionários mais graduados tinham acesso ilegal. “Assim que um cortador era despedido e
à escola, ao hospital, a cinema, à igreja e até a um convencido a deixar a fazenda, sua antiga casa
supermercado, todos instalados na área da fazen- era posta abaixo pelos patrões”, contou Pivetta.
da. Os trabalhadores rurais, não. Distribuíam-se Junto com a casa do colono, arruinava-se um
entre mais de 20 colônias – cada uma delas com sistema de relação de trabalho.
100 a 150 famílias – distantes da sede, no meio do Na memória de alguns desses ex-colonos, a
canavial. Tinham direito a cultivar um pequeno greve, que durou seis dias, teria se estendido por
pomar e horta, mas os produtos necessários à cinco anos, período em que tramitaram os pro-

210  _ especial 50 anos fapesp


cessos judiciais e recursos da empresa, desde o da vizinhança. “A sociabilidade ancorada nas rela-
Fórum Municipal de Santa Rosa do Viterbo até ções primárias, caracterizada pelo reconhecimento
o Tribunal Superior do Trabalho, em Brasília. interpessoal e autorreconhecimento, cedem lugar
“Em todos os pareceres dos juízes, há menções à sociabilidade individualizada e estranhada”, diz
relativas à dispensa discriminatória dos trabalha- Maria Moraes. As tradições e cultura “do mundo
dores, à legalidade da greve, ao caráter pacífico de antes” não cabiam mais nos limites do novo es-
dos acontecimentos, ao direito dos trabalhadores, paço. “Foi necessária a construção de lugares para
ao caráter pacífico da convocação da assembléia protegê-las, para impedir sua morte.”
pelo sindicato, aos motivos de reivindicação dos

A
valores não pagos pela empresa por ocasião do li, nesses “lugares”, como ela diz, estão
dissídio coletivo aprovado pelo Egrégio Tribu- guardados fragmentos de histórias in-
nal do Trabalho e à obediência à determinação dividuais e coletivas. “À medida que as
da Justiça do Trabalho ao decretar a cessação do lembranças vão brotando dos subterrâneos da
movimento”, escreveu Maria Moraes, no artigo memória e se dirigindo à superfície, aquilo que
Greve na Fazenda, publicado na coletânea His- era até então nebuloso vai aos poucos assumindo
tória Social do Campesinato no Brasil. formas nítidas, com conteúdos multicoloridos”,
Nesse ínterim, “muitos trabalhadores fizeram escreveu a pesquisadora no artigo A memória
acordo com a empresa, mediante o pagamento de na esteira do tempo, publicado em 2001. “Nossa
quantias irrisórias, depois de muitos anos de espe- vizinha fazia umas broinhas de fubá: quebrava
ra pela solução judicial”, ela afirma. Respaldados os ovos ali, bate bem, põe gordura ali, põe canela
pela Justiça, alguns permaneceram na fazenda, ali, uma meia dúzia de ovos e bate bem... com a
sem qualquer vínculo empregatício ou trabalho mão mesmo. Depois ainda engrossava com fubá
para lhes garantir o sustento, de milho. Ficavam macias e gos-
apenas aguardando o desfe- tosas. Ela fazia e mandava para
cho desde sempre inevitável. a mamãe uma biscoiteira cheia
Nas memórias dos ex- daquelas broinhas...”, contou-
-colonos não há registro de -lhe dona Onícia, aos 93 anos,
qualquer triunfo da Justiça. Relatos recriam abrigada num passado em que
“Eles retiram da experiên- lealdade e retribuição eram ma-
cia vivida relatos permeados manifestações nifestações simbólicas de um
de dramaticidade, emoções, grupo social.
simbolismo, fruto não de
simbólicas
uma mera descrição do pas- do grupo social Bricolagem
sado, mas de sua recriação Mas a memória trama, recons-
e revificação”, afirma Maria trói e reinventa lembranças
Moraes. fragmentadas, fazendo das cul-
O Projeto
As mulheres, sujeitos pri- turas uma espécie de “canteiro
vilegiados da pesquisa, guar- de obras”, nas palavras do his- Mulheres da cana: memórias
dam na lembrança a dificuldade em conseguir toriador Peter Burke. Algumas das ex-colonas da – nº 1996/12858-2
(1997-1999)
trabalho, a fome, a sopa de mandioca nos momen- Amália ainda integravam, nos anos 1990, grupos
modalidade
tos de extrema dificuldade. “Ainda que não parti- de Folia de Reis, uma antiga festa rural. “O senti- Auxílio a projetos de
cipando diretamente da greve, elas, como filhas do da festa ainda era o mesmo: o pagamento de pesquisa
ou esposas, sofreram as consequências”, analisa. promessas feitas aos santos por uma graça alcan- Co­or­de­na­dora
Trinta anos depois, Maria Moraes encontrou çada”, explica Maria Moraes. Mas as andanças Maria Aparecida de
Moraes Silva
muitas delas na condição de chefes de família. dos foliões, os cânticos e o encontro das bandeiras
investimento
Para desempenhar esse novo papel, tiveram que dos Santos Reis tinham novos significados sur- R$ 16.608,13
vencer desafios ainda maiores do que em seu gidos da simbiose entre rememorar e reinventar
passado de colonas, observou Pivetta na maté- personagens renascidos pela trama narrativa. Ela
Artigo científico
ria publicada pela revista Pesquisa FAPESP em própria acompanhou uma festa de Reis na cidade
2000. “Concorrendo com homens mais novos e de Barrinha: a bandeira dos Santos Reis, “aquela SILVA, M. A. M. A memória
máquinas que vão tomando conta do corte da que saiu pelo mundo”, encontrava-se com a de na esteira do tempo. São
Paulo em Perspectiva. v. 15,
cana, as mulheres bóias-frias enfrentavam enor- Nossa Senhora Aparecida, que não tinha foliões, n. 3, p. 102-12, 2001.
mes dificuldades em encontrar emprego no meio simbolizando outro momento bíblico: o encontro
projeto Mulheres da Cana: Memórias

rural.” Algumas catavam tocos de cana rejeitados de Maria – encarnada em Nossa Senhora Apare-
De nosso arquivo
por colheitadeiras ou “mexiam” com agrotóxi- cida – e Jesus durante a via-crúcis. “Na demora
co em viveiros de mudas da planta; outras eram dos três Reis/Herodes se indignou/chamou seus Casa-Grande e Senzala
empregadas domésticas. secretários e seu decreto, decretou/ Que seguisse dos Matarazzo na
Califórnia Paulista
Na periferia das cidades, elas guardavam também para Belém/ e que lá fosse matando/e que matasse Edição nº 61 – janeiro e
lembranças das relações familiares, do compadrio e menino homem/ até a idade de dois anos.” n fevereiro de 2001

pESQUISA FAPESP maio de 2012  _ 211


212  _ especial 50 anos fapesp
_ S OCIOLOGIA

Uma metrópole em
metamorfose ambulante
Centro de Estudos da Metrópole desvenda
múltiplas faces de São Paulo

texto   Carlos Haag  fotos   Léo Ramos

D
epois de muita reflexão, o milionário (em especial para órgãos públicos) e difusão de
americano Nelson Rockefeller con- informações para especialistas e o grande públi-
cluiu que “o principal problema das co. Estão entre os objetivos do centro analisar as
pessoas de baixa renda é a pobreza”. mudanças em curso nas metrópoles e avaliar seus
Pode-se rir da obviedade da observa- efeitos, usando novas abordagens conceituais e
ção, mas, a “pérola” de sabedoria é uma falácia. metodológicas; servir como centro de referência
“A renda é uma dimensão muito relevante para para documentação e consolidação de informa-
a análise da pobreza e da desigualdade e não é à ções e estudos sobre a Região Metropolitana de
toa que as comparações internacionais focam esta São Paulo (RMSP) e outras cidades; sustentar e
dimensão. Entretanto, nosso esforço no Centro de atualizar um Sistema de Informações Geográ-
Estudos da Metrópole (CEM) tem se orientado ficas (SIG), que mapeia a metrópole, inclusive
a examinar a pobreza e a desigualdade em suas por meio de satélites.
múltiplas facetas, porque a situação de pobreza “A hipótese central e o foco de nossos esforços
de um indivíduo é resultado da combinação de analíticos, hoje, é verificar que a reprodução so-
diferentes aspectos, além da renda”, explicou a cial da pobreza é resultado de uma combinação
diretora do CEM, a cientista política Marta Ar- de processos econômicos e mecanismos sociopo-
retche, em entrevista concedida em 2010. “Estes líticos”, afirma Marta. A partir dessa constatação,
são: seu acesso ao mercado formal de trabalho, o CEM priorizou em sua agenda de pesquisas
aos serviços públicos e a vínculos sociais e asso- formas de socialização, redes sociais, padrões
ciativos. A situação de desproteção de um indi- de segregação residencial e a eficácia e exten-
víduo é resultado dessas múltiplas dimensões.” são das políticas públicas sobre esse estado de
A grandeza da Criado em 2000 e sediado no Centro Brasileiro coisas. As pesquisas igualmente revelaram que
ponte estaiada, de Análise e Planejamento (Cebrap), o CEM, um havia, na literatura especializada nacional, uma
na zona sul de
dos 11 Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão ênfase excessiva em aspectos econômicos na
São Paulo, e as
mazelas da favela (Cepid) apoiados pela FAPESP, realiza ativida- análise da dinâmica da metrópole. “Nossas pes-
Real Parque des de pesquisa, transmissão de conhecimento quisas revelaram um aparente paradoxo: que

pESQUISA FAPESP maio de 2012  _ 213


um cenário econômico/emprego negativo pode
coexistir com melhorias nos indicadores sociais,
mesmo nas regiões de favelas”, analisa a diretora.

E
ntraram em cena então outras variáveis,
como redes sociais e espaço urbano, que
ajudaram no entendimento dos mecanismos
que reúnem processos macro e estruturas com
ações micro, ligadas ao indivíduo e ao comporta-
mento familiar, cujo impacto poderia reduzir ou
reforçar as desigualdades. Mesmo a religião e o
lazer entraram no escopo das pesquisas. “Nossos
estudos partem do pressuposto teórico de que
o trabalho, os serviços sociais e a sociabilidade
são mecanismos decisivos para a superação de
atenuação das situações de pobreza. Você pode
ter dois indivíduos com a mesma renda nominal,
mas, se um deles tem acesso à habitação e saúde
subvencionada pelo Estado, e o outro não tem,
um é mais pobre e segregado do que o outro. É
preciso analisar sempre além da renda”, avalia
Marta. “A pobreza até pode estar sendo atenua-
da, mas por outro lado a desigualdade pode estar
sendo reproduzida”, avisa a pesquisadora.
Esse mapeamento e descobertas das pesquisas
permitiu o surgimento de um painel mais amplo
da dinâmica espacial e social das metrópoles,
não apenas trazendo novas luzes para o debate
acadêmico, como também contribuindo para a
idealização e formalização de políticas públicas.
Segundo a diretora do CEM, a instituição abriu
mão da ambição de apontar uma grande solução
para o problema das metrópoles, pela impos-
sibilidade de realizar a tarefa, e, no lugar, pas-
sou a selecionar temas específicos para os quais
conseguisse contribuir. Assim, entre os estudos
mais importantes do CEM, o destaque é o Mapa
da vulnerabilidade social, que utilizou dados do
Censo de 2000 e técnicas de geoprocessamen-
to para mapear a pobreza no município de São
Paulo. Divulgado em 2004, o mapa cartográfico
produziu um mosaico da situação de cada um
dos 13 mil setores da cidade estabelecidos pelo
IBGE, conseguindo captar situações específicas
de vulnerabilidade em grupos de 300 a 400 famí-
lias agregadas em cada setor censitário.
A cada novo estudo, o CEM desmitifica noções
Da favela Real antigas que, já há algum tempo, guiam políticas
Parque, em São Paulo, públicas na direção errada. “Há uma série de pro-
é visível a segregação
cessos que já não estão ocorrendo em São Pau-
do tecido urbano
lo há muito tempo e se continua com a mesma
impressão e diagnóstico sobre a cidade, datados
dos anos 1970, que já não fazem muito sentido”,
afirma o sociólogo e pesquisador do CEM Eduar­
do Marques, que lançou em livro a pesquisa São
Paulo: novos percursos e atores (Editora 34, 2011).
Segundo Marques, um dos mitos está relacionado
aos processos migratórios que se reduziram muito
intensamente nas últimas décadas. “Hoje, poucos

214  _ especial 50 anos fapesp


A cada novo estudo, o CEM desmitifica noções
antigas sobre São Paulo, que já há algum tempo
guiam políticas públicas na direção errada

assuntos relacionados a São Paulo são fortemen- muito, acima de escolaridade e outros fatores, se
te impactados pela questão da imigração”, avisa. o indivíduo está ou não empregado, a qualidade o projeto
A cidade, ao contrário do que se dizia, parou de do emprego e a sua renda.
crescer e de receber migrantes, com mais gente “Pessoas com amigos têm muito mais chances Centro de Estudos da
Metropole (CEM)
saindo do que entrando, em especial a força de de ter um emprego e, assim, ampliar a renda e, 1998/14342-9 (2009-2012)
trabalho de menor qualificação, que teve suas logo, diminuir a desigualdade, por meio de suas Modalidade
chances diminuídas. relações pessoais, mostrando que essas redes de Programa Centros de
Assim, o novo panorama paulista apresentado relações são mais efetivas do que as políticas pú- Pesquisa – Cepid
pelo CEM é de uma cidade que cresce pouco, mas blicas”, analisa Marta. Para a diretora do CEM, Coordenadora
Marta Teresa da Silva
continua se expandindo para as periferias, que se o combate à pobreza não pode prescindir das Arretche - Cebrap
tornaram mais heterogêneas. A boa notícia é que políticas sociais tradicionais, mas como redes Investimento
o Estado se faz muito mais presente em todas as têm muita penetração nas comunidades, sua in- R$ 9.727.502,00
áreas da cidade, inclusive nas periferias. Mas há tegração às políticas do Estado pode ajudar a que
grandes diferenças de qualidade de suas políticas, essas cheguem de forma mais precisa e customi-
Artigo científico
o que faz com que as desigualdades sociais então zada. A metrópole não é mais apenas “a boca de
se coloquem de forma diferente, mais multiface- mil dentes” descrita por Mário de Andrade em COELHO, V. S. et al.
tadas e menos simples de serem compreendidas. Paulicéia desvairada. “Como é a vida de um de- Mobilização e participação:
um jogo de soma zero?.
“As diferenças de acesso às políticas públicas sempregado numa metrópole agora? Apesar das Revista Novos Estudos
têm se reduzido, embora tenham se recolocado dificuldades, os filhos dele continuam na escola e Cebrap. v. 86, p. 121-39,
diferenças de qualidade de serviços públicos, e ele ainda conta com serviços de saúde. E o mais 2010.
o tecido urbano tenha ficado mais heterogêneo”, importante: sem precisar de favores ou benesses GOMES, S. “Vínculos” e “nós”
avalia o pesquisador. É um ciclo complexo: a ci- de nenhum político”, conta Marta. no centro da explicação da
pobreza urbana. Revista
dade fechou suas portas para um determinado Segundo a pesquisadora, as regiões metropolita- Brasileira de Ciência Sociais.
tipo de trabalhador, que se vê obrigado a morar nas não são mais os piores lugares do Brasil. “Nessa v. 27, n.78, p. 176-9, 2012.
em municípios próximos ou regiões próximas, perspectiva, o Brasil parece estar seguindo uma BOTELHO, I. Os
expulso da metrópole. trajetória particular, pois a democracia brasileira equipamentos culturais na
tem conseguido produzir redução da desigualdade cidade de São Paulo: um

U
desafio para a gestão
m exemplo notável dessa nova complexi- de renda combinada à redução da desigualdade de pública. Espaço e Debates -
dade surge, por exemplo, na pesquisa re- acesso a serviços públicos”, pondera a cientista po- Revista de Estudos regionais
alizada por Nadya Guimarães. “Agora se lítica do CEM Argelina Figueiredo. A desigualdade e urbanos. V. 3, n. 43, 2004.

pede diploma de segundo grau ou universitário também pede uma reflexão política, e não apenas ALMEIDA, R. R. M. e
para qualquer função. Um gari da prefeitura, por econômica. A expectativa da maior parte dos cien- D´ANDREA, T. Pobreza e
Redes Sociais em uma
exemplo, precisa apresentar diploma de segundo tistas sociais no início da década de 1990 era de Favela Paulistana. Novos
grau, tamanha a distorção. É um efeito perverso que o Estado brasileiro seria incapaz de atender Estudos. v. 68, p. 94-106,
dessa elitização da cidade”, disse. “A pergunta às demandas da dívida social herdada do regime 2004.

que fica é: qual é a recompensa de se ter estuda- militar, uma séria ameaça à democracia. “Os go-
do para acabar fazendo telemarketing e ganhar vernos que se seguiram à ditadura levaram cada De nosso arquivo
tão pouco? São Paulo só confirma a ideia enrai- vez mais adiante na agenda da redemocratização
Terra em transe
zada na nossa cultura de que o estudo não leva a o resgate da dívida social deixada pela ditadura. Edição nº 193 – março de
nada.” Surge, porém, nessa metrópole segregada Não há dúvida de que a concentração de renda e 2012 
uma nova força: as redes de sociabilidade. “A po- o acesso limitado das camadas mais baixas da so- Desigualdade sem igual
breza tem uma dimensão territorial: pessoas po- ciedade tiveram origem na configuração de forças Edição nº 169 – março de
bres podem estar segregadas espacialmente, mas políticas e nas políticas públicas priorizadas pelos 2010 

podem estar unidas espacialmente, combatendo governos de plantão”, diz Argelina. “Estes homens Dentro da boca de mil
exatamente esse efeito da segregação”, observa de São Paulo, iguais e desiguais, parecem-me uns dentes
Ediçâo Especial Cepids –
Marques. Pesquisas revelam que relações com vi- macacos, fracos, baixos e magros”: a visão de Má- maio de 2007 
zinhos, familiares, amigos, colegas etc. importam rio,
2 agora, parece desvairada. n

pESQUISA FAPESP maio de 2012  _  215


_  d ireitos humanos

H
á permanências preocu- Améruca Latina, como Chile, Uruguai campanhas pelo desarmamento, pes-
pantes no comportamento e Argentina.” Para os profissionais que quisas recentes do NEV/USP mostram
da população brasileira em investigam o tipo de democracia e gover- que a crença que a presença de uma ar-
relação à consolidação dos nança que se desenvolve no Brasil a partir ma em em casa traz segurança persiste.
princípios democráticos, das relações entre violência, democracia “A população acredita que dessa forma
apesar de todos os avanços do país nas e direitos humanos, essas permanências está protegida. Há um sentimento de que
últimas décadas no plano econômico e antidemocráticas são assustadoras. as leis não funcionam e o cidadão toma
social. Na linha do tempo sobre a evolu- Sergio Adorno, coordenador do NEV/ para si a tarefa de se proteger.”
ção dos dados recolhidos, comparados USP, explica que o trabalho do núcleo A Justiça, um dos pilares da democra-
e analisados pelo Núcleo de Estudos da vem concentrando grande energia na cia, falha em passar para a população a
Violência da Universidade de São Paulo investigação dos avanços da sociedade razão de sua existência e não reforça o
(NEV/USP), em 25 anos de existência, brasileira, mas sempre considerando o fato de que está presente na sociedade
salta aos olhos dos coordenadores que ali contexto do país, onde persistem graves para proteger o cidadão de um potencial
trabalham desde o início das atividades violações de direitos humanos, existem abuso do poder por parte do Estado. “As
a mentalidade conservadora da popula- territórios dominados pelo crime orga- pessoas não conseguem entender isso”,
ção no combate à violência. Sobressai um nizado e são elevadas as taxas de homi- afirma Nancy. “Os brasileiros ainda se
viés autoritário com inclinação a resolver cídio, entre outros problemas. “Temos consideram alheios à Justiça.” Quando
conflitos pelas próprias mãos. de reconhecer profundas mudanças, so- se pergunta ao brasileiro se é melhor
“Um ranço reacionário da sociedade bretudo nessa última década, com me- soltar dez culpados para garantir que
não desaparece com o avanço da demo- lhoras na oferta de trabalho, redução das um inocente não sofra por um erro da
cracia”, observa a pesquisadora Nancy imensas desigualdades que ainda preva- Justiça ou manter um inocente preso,
Cardia, vice-coordenadora do NEV/USP. lecem na sociedade brasileira e avanços a maioria prefere mantê-lo na cadeia.
“A democracia não conseguiu até agora no acesso às instituições promotoras de “Esta resposta é o oposto dos resultados
se tornar um valor universal e, após to- bem-estar”, pondera. “Mas há um longo internacionais, que mostram que não
dos os ganhos e progressos obtidos nas caminho a percorrer.” se concebe que um erro prejudique um
últimas décadas, um terço dos brasileiros Segundo Nancy, a crença de que a lei único cidadão”, observa Nancy.
apoiaria um golpe militar, algo fortemen- vale para todos não está arraigada aqui Desde 1999, Nancy coordena uma pes-
te mais rejeitado em países vizinhos da no Brasil. Ela lembra que, apesar das quisa que tem por objetivo focalizar o

A violência
consentida
Viés autoritário da mentalidade brasileira é uma das
preocupações do Núcleo de Estudos da Violência da USP

Marili Ribeiro
A vida de crianças de rua é
um dos objetos de estudos
do nev/usp
SERGIO AMARAL/ae

pESQUISA FAPESP maio de 2012  _ 217


contato de diferentes estratos da popula- nações democráticas. Daí a importân-
ção urbana com a violência. O estudo foi cia de o NEV/USP tornar-se um dos
feito em cinco momentos no município Centros de Pesquisa, Inovação e Di-
de São Paulo (2001, 2003, 2006, 2008 e fusão (Cepid) apoiados pela FAPESP
2010) e, por duas vezes (1999 e 2010), entre 2000 e 2011. O programa Cepid,
em 11 capitais estaduais. Os resultados uma modalidade de apoio de longa du-
permitem conhecer quais os estratos so- ração, permitiu ao NEV/USP dispor
ciais mais vulneráveis à violência e quais de um laboratório e de um banco de
revelam atitudes mais conservadoras e dados nessa área de pesquisa, que ho-
resistentes à universalização do aces- je é referência para a América Latina.
so aos direitos. Esses resultados podem O interesse que a violência desperta
orientar campanhas de conscientização na população não é proporcional aos
de direitos e por maior tolerância com cuidados com os registros dos casos de
as diferenças sociais. crimes, assim como com a manuten-
ção de arquivos de processos ao longo

U
ma das conclusões é que, após 27 do tempo. Os levantamentos mostram
anos de democracia, o apoio aos que dados colhidos em delegacias são
direitos civis e políticos não é tão falhos e, muitas vezes, nem sequer pre-
sólido o quanto seria de esperar. Entre as servados. Há 11 anos, Sergio Adorno se
duas pesquisas realizadas em 11 capitais, dedica a um estudo que reflete, de cer-
diminuiu a proporção daqueles que dis- ta forma, a origem da impunidade no
cordam que “os tribunais podem aceitar Brasil. A pesquisa “Inquérito policial
provas obtidas através de tortura”. Era e o processo em São Paulo: caso dos
de 71,2% em 1999 e caiu para 52,5% em homicídios”, financiada pela FAPESP e de provas é pouco explorada. “Casos se-
2010. Mas dobrou a proporção daqueles que está em fase de finalização, traça o melhantes têm soluções diferentes”, diz
que concordam em parte com a tortura fluxo do sistema de Justiça, das delega- Adorno. Cauteloso, prefere não avançar
(de 8,8% em 1999 para 18,3% em 2010). cias à sentença final. Foram analisados em conjecturas. Mas é impossível não
344 mil boletins policiais, dos quais so- considerar que a inoperância do siste-
LABORATÓRIO mente 6% viraram inquérito. Desse uni- ma endosse a descrença da população
A meta do NEV/USP tem sido enfrentar verso, cerca de quatro mil eram registros na Justiça.
desafios a partir de dados trabalhados de homicídio, dos quais Adorno fez um
cientificamente e de forma interdiscipli- recorte para monitorar 600. “Levei dois QUEDA DE HOMICÍDIOS
nar para auxiliar as políticas públicas no anos para conseguir resgatar os dados de A queda nas taxas de homicídios em São
controle democrático da violência. Cer- somente 197 inquéritos. O resto não foi Paulo, explica Adorno, representa para
tos temas dependem de pesquisa de lon- localizado”, relata. Outro agravante é que o NEV/USP a oportunidade de testar, ao
ga duração, além de serem em si campos toda a investigação se faz em cima das menos em parte, em que medida e com
novos. Na literatura mundial, há poucos provas testemunhais, o que resulta em que peso as melhorias sociais e econômi-
estudos que mostram como se constroem fragilidade nos processos. A produção cas, bem como mudanças na segurança

Batida policial em
suposto ponto de
encontro de membros
da facção criminosa
Primeiro Comando da
Capital (PCC), em São
Bernardo do Campo:
inquéritos frágeis
debilitam ação da
Justiça

218  _ especial 50 anos fapesp


2

Jovem executado por dados nacionais sobre as taxas de homi-


O Projeto
traficantes do Morro do cídio, coletados pelo Ministério da Saú-
Macaco, no Rio de Janeiro:
perfil da criminalidade
de, mostram que, embora no Norte e no Centro de estudos da violência –

mudou, mas incidência Nordeste as taxas de homicídios tenham nº 1998/14262-5 (2000-2012)

não diminuiu aumentado, houve queda sustentada em MODALIDADE


Programa Centros de Pesquisa (Cepid)
São Paulo nos últimos 10 anos: a taxa de
COORDENADOR
homicídios caiu de 64,2 casos por 100 mil Paulo Sergio de Moraes Sarmento Pinheiro –
habitantes em 1999 para 9,9 em 2011. A USP
pública, explicam essa tendência. Uma queda das taxas de homicídios nas cida- INVESTIMENTO
das pesquisas do NEV/USP buscou iden- des do estado de São Paulo não pode ser R$ 8.044.453,67

tificar a extensão da queda nos homicí- atribuída a uma única combinação de


dios dolosos no estado de São Paulo e os fatores. “Não obstante, identificaram- ARTIGOS científicos
condicionantes dessa diminuição. Um -se correlações entre a queda de homi-
segundo projeto pretende identificar os cídios dolosos e mudanças nos aspectos 1. ADORNO, S. 2006. A violência brasileira: um
determinantes relacionados com a que- demográficos e socioeconômicos, bem retrato sem retoques. Clio. v. 14/15, p. 241-62,
2006.
da dos homicídios no município de São como na melhoria dos mecanismos de
Paulo, a partir do ano 2000, utilizando- gestão e controle, especialmente às ações 2. CARDIA, N. Violência urbana. Foreign Affairs
em Español. v. 5, n. 1, p. 121-39, 2005.
-se de uma vertente quantitativa e outra adotadas pela Secretaria de Segurança
3. SALLA, F.A. As rebeliões nas prisões: novos
qualitativa. Pública na última década.”
significados a partir da experiência brasileira.
Desde os primeiros anos de vida, o

N
Sociologias. v. 16, p. 274-307, 2006.
o Brasil, a violência foi elevada a Núcleo de Estudos da Violência da USP
4. PERES, M.F.T et al. Homicídios,
uma das quatro principais causas se empenhou em criar metodologias que desenvolvimento socioeconômico e violência
de óbito desde 1989. Tomando as produziram relatórios com participação policial no município de São Paulo, 2000.
Revista Panamericana de Salud Pública. v. 23,
taxas de homicídios como indicadores destacada em organismos internacio-
n 4, p. 268-76, 2008.
de violência, a gravidade dessa situação nais. A credibilidade e constância das
fotos 1. ANDRÉ HENRIQUES / diário do gde abc  2. FÁBIO MOTTA / ae

pode ser confirmada: de 1980 e 2010, pesquisas abriram portas, inclusive, à


houve 1.093.710 homicídios. “O perfil e participação destacada no “Relatório DE NOSSO ARQUIVO
a distribuição da criminalidade violenta sobre a violência contra a criança”, edi- Números para mudar o Brasil
no país têm mostrado algumas mudan- tado pela Organização das Nações Uni- Edição Especial Cepids – maio de 2007
ças, mas sua incidência global não parece das (ONU). O trabalho foi inicialmen-
ter diminuído”, pondera Adorno. “Têm te coordenado por uma das figuras que
crescido no estado de São Paulo casos de mais projetaram o NEV/USP, o professor
assaltos e roubos envolvendo mortes.” Paulo Sérgio Pinheiro, um de seus fun-
Informações a respeito de tais crimes dadores. Os dados colhidos são públicos
em outros estados são escassas, ou de e podem ser acessados por meio do site
baixa credibilidade. Por outro lado, os www.nevusp.org. n

pESQUISA FAPESP maio de 2012  _ 219


_ r elações internacionais

220  _ especial 50 anos fapesp


Por uma agenda
mais efetiva
Análises das políticas norte-americanas
para a América do Sul mostram que elas
são mais reativas do que proativas

texto  Claudia Izique ilustração  Guilherme Kramer

Q
uando o liberalismo começou a fazer
água na América do Sul e lideranças
de centro-esquerda assumiram o go-
verno de diversos países, a “percepção
de risco” passou a pautar a formulação
das políticas norte-americanas para o continente.
No caso do Brasil, esse pragmatismo ganhou matiz
de “interesse benévolo” sem, no entanto, traduzir-
-se em uma agenda política efetiva. “As iniciativas
norte-americanas para a região têm se mostrado
mais reativas do que proativas, respondem a cir-
cunstâncias específicas e raramente se baseiam em
análises abrangentes”, afirma Tullo Vigevani, da
Universidade Estadual Paulista (Unesp), coordena-
dor do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia
para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT/Ineu).
Há quem comemore o relativo distanciamento de
Washington, levando em conta um recente passado
fortemente intervencionista. Mas a relativa euforia
deve ser contrabalançada com novos riscos. Inclu-
sive com questões relativas a desentendimentos na
própria região. Ainda há potencial de acirramento
de rivalidades entre Estados – como no conflito que
opôs a Colômbia ao Equador e à Venezuela – ou de
instabilidade – como no caso da Bolívia.
O monitoramento sistemático das políticas norte-
-americanas pode ser um exercício revelador, dado
a centralidade desse país no cenário mundial e, par-
ticularmente, no sul-americano. No caso do INCT/
Ineu, essas análises já se materializaram em oito te-
ses de doutorado e 20 de mestrado, outras em anda-
mento; coletâneas; inúmeros artigos; muitos infor-
mes diários; boletins quinzenais e, é claro, diversos

pESQUISA FAPESP maio de 2012  _ 221


cursos. Isso sem falar no Observatório
Político dos Estados Unidos (Opeu), um
portal eletrônico e um banco de dados
sobre política doméstica e externa dos
Estados Unidos que, no ano passado, re-
gistrou um total de 24 mil acessos e, nos
primeiros meses deste ano, uma média
mensal de três mil visitantes. Sem a pre-
tensão de concorrer com a imprensa, o
Opeu criou um canal de difusão de in-
formação e de conteúdo analítico sobre
eventos significativos. “Por meio deste
instrumento de observação esperamos
difundir informação e conhecimento
qualificado sobre um país cujas políticas
impactam fortemente o cenário interna-
cional”, explica Vigevani.

C
onstituído como um Instituto
Nacional de Ciência e Tecnolo-
gia no final de 2008, o Ineu reúne
oito universidades brasileiras, além do
Centro de Estudos de Cultura Contem-
porânea (Cedec), num total de mais de
50 pesquisadores. A exemplo de outros
INCTs, o Ineu é apoiado pelo Conselho “O espanto ante
Nacional de Desenvolvimento Científico
e Tecnológico (CNPq) e pela FAPESP. a cultura
A ideia de criar um instituto de estudo
sobre as relações externas dos Estados
norte-americana
Unidos surgiu da constatação de que, não se produz,
apesar da intensa exposição dos bra-
sileiros aos produtos da cultura norte- a dúvida não
-americana, pouco se sabia sobre aquele
país. “Os elementos de informação dis- chega a brotar”,
poníveis não se organizavam em con-
juntos estruturados e significativos. Na
diz Vigevani
maioria das vezes eram estereotipados,
positivos ou negativos”, justifica Vigeva-
ni, ressaltando os objetivos do instituto.
A carência de reflexão – ou a “irrefle- de latino-americanas, mas o grande pú- sobre as relações internacionais norte-
xão”, como ele prefere – é o resultado, blico ignora, de fato, a realidade latino- -americanas, apoiado pela FAPESP na
apenas aparentemente contraditório, -americana. “Analisam essas informações forma de Projeto Temático, coordenado
da sensação de familiaridade ou proxi- com categorias próprias à sua cultura e por Sebastião Velasco e Cruz. O foco, no
midade provocada pela sobrecarga de sociedade, o que gera uma forma de des- caso, era a exportação de ideias liberais
informações sobre os EUA. “O espanto conhecimento diferente, mas não menos para países em desenvolvimento. O mes-
não se produz, a dúvida, que é mãe do grave”, avalia Vigevani. mo grupo – ampliado com a participa-
conhecimento, não chega a brotar.” Pior: O interesse pelos Estados Unidos co- ção de pesquisadores das universidades
“Usamos os Estados Unidos como mode- mo objeto de pesquisa se iniciou há al- federais de Santa Catarina (UFSC), de
lo para identificar nossas características guns anos, com a publicação de obras Uberlândia (UFU), da Paraíba (UFPb)
próprias, medir nossas insuficiências e importantes de autores nacionais e com a e do Piauí (UFPI), e da Universidade
definir a figura do ser coletivo em que constituição de grupos de pesquisa sobre Estadual da Paraíba (UEPB) – reúne-se
gostaríamos de nos transformar”, está diferentes aspectos da política e da socie- agora no INCT/Ineu. “Já foram criadas
escrito no documento de apresentação dade norte-americanas. No final dos anos disciplinas de estudos sobre os Estados
do projeto do Ineu. 1990, por exemplo, professores da Unesp Unidos em programas de pós-graduação,
Um paradoxo assimétrico instalou-se – Vigevani, entre eles –, da Universida- sobretudo o Programa de Pós-graduação
do outro lado: vários centros de estudos de Estadual de Campinas (Unicamp), em Relações Internacionais San Tiago
norte-americanos dedicam-se à análise da Universidade de São Paulo (USP) e Dantas (Unesp, Unicamp e PUC-SP)”,
da economia, política, cultura e socieda- do Cedec criaram um grupo de estudos sublinha Vigevani.

222  _ especial 50 anos fapesp


atritos nos quais as velhas formas de po-
der não mais conseguem impor-se.” No
caso específico do Afeganistão, estudos
têm demonstrado forte contradição en-
tre militares e os formuladores de políti-
ca. “Os Estados Unidos não conseguem
estabelecer estratégias definitivas, mas
a ação do presidente Barack Obama pa-
rece se orientar para a retirada daquele
país, mesmo considerando que parte
da opinião pública norte-americana é
adepta de posições fortes.”

F
oi em meio à crise do “americanis-
mo” no exterior, a pior crise econô-
mica desde 1929, que Obama ele-
geu-se presidente, assinala Reginaldo
Moraes, da Unicamp, no artigo Obama,
Obamismo – Origens, Futuro, Limites, pu-
blicado no site do INCT/Ineu. Obama
trouxe para as urnas segmentos e gru-
pos que “aparentemente”, como ele diz,
haviam se refugiado em movimentos so-
ciais e comunitários, “uma
O instituto está organizado em quatro multidão de jovens” ansio-
grandes áreas temáticas. A integração e sa por mudanças. Contra
crise na América do Sul e política dos os “mudancistas”, mobili-
Estados Unidos para a região é uma de- Papel do dólar se zam-se os conservadores,
las. O objetivo é examinar o panorama “os que temem que as mu-
sul-americano numa dupla dimensão: debilita e a corrosão danças sejam maiores do
avaliar a sua interação com a política que o possível, algo que eles
externa dos EUA e a dinâmica política e
da hegemonia acontece identificam com aquilo que
econômica dos países da região. Os pro- em todas as áreas acham desejável”. A chave
jetos de pesquisa são orientados por uma da questão está na “conexão
mesma “hipótese geral”: o desenvolvi- entre as forças de mudança
mento de iniciativas independentes da internas aos Estados Unidos
influência norte-americana é favorecido sendo “vagarosamente corroída”. “Es- – e que em grande medida gravitam em
pela emergência de novos polos de poder tão surgindo alternativas. Há uma cesta torno de Obama, mas não apenas – e as
no cenário global – China, Índia e Rús- de moedas que debilita o papel do dó- forças de mudanças externas – governos
sia – e pelo papel secundário da América lar. Apesar da crise, o euro avança. Mas e movimentos sociais”, escreve Moraes.
do Sul na agenda internacional norte- o dólar ainda é mais importante que as De olho nesse equilíbrio, o INCT-Ineu
-americana. “Historicamente, a auto- moedas chinesa ou japonesa”, ressalva. acompanha atento o início da campanha
nomia política e econômica na América Esse processo não é exclusivo do plano eleitoral norte-americana. n
do Sul avançou sempre nos períodos em econômico: a corrosão da hegemonia,
que os Estados Unidos atribuíram pouca segundo ele, acontece em todas as áreas.
importância à região”, explica Vigevani. “Recentemente, José Graziano da Silva O Projeto
foi eleito para o cargo de diretor-geral Instituto de Estudos das Relações Exteriores dos

A
s outras áreas temáticas estudadas da Organização das Nações Unidas para Estados Unidos – nº 2008/57710-1 (2008-2014)
são a política de segurança norte- a Agricultura e Alimentação (FAO) e não modalidade
Projeto Temático
-americana, a política econômica era o candidato dos Estados Unidos. Na
Co­or­de­na­dor
internacional e o papel dos Estados Uni- ONU, a política norte-americana nem Tullo Vigevani – Unesp
dos na estrutura de governança global. sempre se impõe e o país também não investimento
Sob este último aspecto, Vigevani endossa tem mais a mesma força quando se trata R$ 1.125.321,05
a análise de Benjamin Cohen, da Univer- de propor modificações ao Fundo Mone-
sidade da Califórnia em Santa Bárbara, tário Internacional (FMI).” artigo científico
que participou de um dos seminários or- Até mesmo o domínio militar está des-
ganizados pelo INCT-Ineu em Florianó- gastado pelo novo tipo de guerra. “Veja COELHO, J. C. Trajetórias e interesses: os EUA
e as finanças globalizadas num contexto de crise
polis, de que, de fato, a hegemonia norte- os desastres militares no Vietnã, no Ira- e transição. Revista de Economia Política. v. 31,
-americana no plano internacional está que e no Afeganistão”, exemplifica. “São n. 5, p. 771-93, 2011.

pESQUISA FAPESP maio de 2012  _ 223


_Ciência política

O presidencialismo
se move
O poder de legislar do Executivo
tende a amenizar a imagem do
governo como clientelista e corrupto

Claudia Izique

O
regime presidencialista, num sistema
federalista, associado a uma legisla-
ção eleitoral que prevê o voto pro-
porcional em lista aberta, aparente-
mente impede o exercício da plena
democracia no Brasil e é raiz do clientelismo e
até da corrupção. No caso do Brasil, essa tríade
perversa, na visão dos muitos brazilianistas, ex-
plicaria a dificuldade dos governos de implemen-
tar, por exemplo, políticas distributivas, tendo
resultado, muitas vezes, em paralisia decisória.
Um projeto temático realizado com o apoio da
MARCEL GAUTHEROT, Brasília, 1958 / Acervo Instituto Moreira Salles

FAPESP indica que as coisas não são bem assim.


Pelo menos desde a Constituição de 1988.
“O fortalecimento do poder legislativo do Exe-
cutivo neutralizou os efeitos dessas característi-
cas sobre a capacidade do governo de implemen-
tar políticas de interesse geral, enfatizados pela
literatura institucional”, diz Argelina Cheibub
Figueiredo, do Instituto de Estudos Sociais e
Políticos (Iesp) da Universidade do Estado do
Rio de Janeiro (Uerj).
Construção da sede
A pesquisa começou em 1997, sob a coordena- do Congresso em
ção de Argelina, então na Universidade Estadual Brasília (1959)

224  _ especial 50 anos fapesp


pESQUISA FAPESP maio de 2012  _ 225
de Campinas (Unicamp), e Fernando Li- terno beneficia especialmente os líderes
mongi, da Universidade de São Paulo dos partidos maiores”, salienta Argelina.
(USP), com pesquisadores do Centro Bra- As primeiras conclusões do projeto te-
sileiro de Análise e Planejamento (Ce- mático Instituições Políticas, Padrões de
brap). Comparando os vários governos Entre 1998 Interação Executivo-Legislativo e Capa-
presidencialistas dos períodos de 1946 cidade Governativa foram publicadas na
a 1964 e do pós-Constituição de 1988, e 2007 o edição 49 da revista Pesquisa FAPESP, em
eles constataram que, no atual momento dezembro de 1999. Naquele momento, os
da democracia brasileira, o poder deci-
índice médio pesquisadores já constatavam que a con-
sório se caracteriza por um alto grau de de aprovação centração de poderes no Executivo era
delegação do Congresso ao Executivo e, institucional, caracterizando um sistema
dentro do Congresso, dos parlamentares de projetos distinto do “presidencialismo imperial”,
aos líderes partidários, ela explica. de base personalista, tido como peculiar
apresentados dos sistemas políticos da América Latina,

O
presidente tem exclusividade na conforme escreveu o repórter Ricardo
iniciativa de propor medidas em
pelo Executivo Aguiar. Ao longo dos 13 anos seguintes,
três áreas fundamentais: admi- foi de 75% novas informações lançaram ainda mais
nistrativa, orçamentária e fiscal. “E pode luz ao sistema brasileiro de governo.
pedir urgência para as leis que apresenta,
garantindo prioridade na definição da Derrubando mitos
pauta do Legislativo.” Possui autoridade As regras constitucionais e os regula-
para editar decretos com força de lei e de mentos do Legislativo conferem ao pre-
vigência imediata, por meio de medidas sidente e aos líderes partidários da base
provisórias. Esse poderoso instrumento governista meios para inibir iniciativas
legislativo, no entanto, precisa ser apro- individualistas dos deputados. “A cen-
vado pelo Congresso, que pode emendar tralização do poder decisório tem efeito
ou rejeitar a iniciativa do governo. “O no funcionamento e nos resultados da
presidente não pode ignorar a vontade atual experiência democrática brasilei-
do Legislativo”, ela afirma. ra”, conta Argelina. E dá provas: entre
O Congresso, por seu turno, é altamen- 1998 e 2007 – no início do segundo man-
te centralizado em torno dos líderes dos dato do presidente Luiz Inácio Lula da
partidos que exercem rígido controle Silva –, o índice médio de aprovação de
sobre a agenda do Legislativo: definem projetos apresentados pelo Executivo
o calendário de votações do projeto, to- foi de 75,08%. “Apenas durante o perío-
mam decisões sobre votações nominais do Collor, que governou sem maioria no
e apresentações de emendas e cuidam Congresso, esse índice ficou bem abaixo
da ordem da pauta. “O regulamento in- dos demais”, compara.

E
sses resultados indicam que a cen-
Legislação ordinária tralização do poder de decisão no
Produção legislativa por governo 1988-2007 * Executivo, compartilhada com as
lideranças partidárias, pode neutralizar
Governo Partido do Coalizão do Sucesso do os efeitos do federalismo, da legislação
presidente na governo na Executivo** eleitoral e do presidencialismo. “O Bra-
Câmara dos Câmara dos (%)
sil foi, aos poucos, derrubando mitos. A
Deputados Deputados
(% de cadeiras) (% de cadeiras)
centralização dá margem a que se façam
políticas nacionais, até redistribuição de
Sarney 40,61 58,59 73,83 renda, e que se implementem medidas de
Collor 5,05 33,79 65,93 combate à inflação, uma política difícil.
Franco 0,00 57,28 76,14 Hoje, os interesses nacionais se sobre-
Cardoso I 9,36 71,62 78,72 põem aos interesses locais.”
Cardoso II 18,32 67,87 74,38 Essa nova face do presidencialismo no
Lula I 11,11 59,52 81,47 Brasil pouco difere das do regime par-
lamentarista. “Ainda nos anos 1990, o
Subtotal 14,07 58,11 75,08 parlamentarismo era considerado uma
forma superior de governo: esse regime
Fonte: Banco de dados Legislativos, Cebrap
funde os dois poderes e elimina conflitos.
* 31 de dezembro de 2006
** Porcentagem de projetos do Executivo apresentados e sancionados durante o próprio governo No presidencialismo, diferentemente, as
bases eleitorais do Executivo (nacional)

226  _ especial 50 anos fapesp


Últimos retoques e do Legislativo (local) e a autonomia do nhavam predominantemente à direira do
na rampa do presidente para escolher seu ministério espectro ideológico até o governo Lula”,
Congresso
Nacional para a
gerariam conflito intrínseco ao sistema ela sublinha. “Assim que assumiu o go-
sua inauguração de governo. Mas, se o presidente quiser verno, o PSDB, aliado ao PFL, passou a
(1960) governar, precisa do apoio do legislati- contar com o apoio do PMDB e, em 1996,
vo”, ela compara. Ocorre que os atores também com o do PPB. Naquele período,
políticos são racionais, têm o objetivo a aliança era do centro para a direita e o
de fazer um governo efetivo e buscam governo acabou se pautando mais pela
cooperação na coalizão. agenda do liberal PFL do que a social-de-
“Da mesma maneira que os primei- mocrata. A esquerda estava na oposição”,
ros ministros, os presidentes brasilei- ela analisa. Em 2001, quando o PFL saiu
MARCEL GAUTHEROT, Brasília, 1958 / Acervo Instituto Moreira Salles

ros formam coalizões partidárias para do governo para disputar a presidência


obter apoio do Legislativo para suas da República, a aliança se rompeu. Em
iniciativas”, afirma Argelina. Esse com- 2002, Lula venceu as eleições aliado à
promisso se traduz numa participação direita, com o PL. “O PT percebeu que,
efetiva no governo, incluindo o controle sem aliança, não governava.” A oposição,
de ministérios. “Coalizões ocorreram ela diz, estava no centro.
em todos os períodos constitucionais,
de 1946 a 1964 e a partir de 1988, e vêm Coalizões majoritárias
se consolidando com o compromisso ca- Tanto Fernando Henrique Cardoso
da vez maior dos partidos no governo.” quanto Lula buscaram formar alianças
As coalizões de governo formadas des- majoritárias, com coalizões multiparti-
de o início da redemocratização se ali- dárias, para votar reformas constitucio-

pESQUISA FAPESP maio de 2012  _ 227


Manifestantes sobem na Cúpula do plenário do Senado Federal (1996)

Coalizões de governo 1988-2007*

Presidente Partido do Partidos nas Início da Fim da Duração % Votos na


presidente coalizões coalizão coalizão da coalizão Câmara (início
de governo (dias) da coalizão)

Sarney 2 PMDB PMDB-PFL 06/10/1988 14/03/1990 524 63,03


Collor 1 PRN PRN-PFL 15/03/1990 31/01/1991 322 24,04
Collor 2 PRN PRN-PDS-PFL 01/02/1991 14/04/1992 438 34,59
Collor 3 PRN PDS-PTB-PL-PFL 15/04/1992 30/09/1992 168 43,54
Itamar 1 sem partido PSDB-PTB-PMDB-PSB-PFL 01/10/1992 30/08/1993 333 60,04
Itamar 2 sem partido PSDB-PTB-PMDB-PP-PFL 31/08/1993 24/01/1994 146 59,64
Itamar 3 sem partido PSDB-PP-PMDB-PFL 25/01/1994 31/12/1994 340 55,27
FHC I 1 PSDB PSDB-PFL-PMDB-PTB 01/01/1995 25/04/1996 480 56,14
FHC I 2 PSDB PSDB-PFL-PMDB-PTB-PPB 26/04/1996 31/12/1998 979 77,19
FHC II 1 PSDB PSDB-PMDB-PPB-PTB-PFL 01/01/1999 05/03/2002 1159 73,88
FHC II 2 PSDB PSDB-PMDB-PPB 06/03/2002 31/12/2002 300 45,22
Lula 1 PT PT-PL-PCdoB-PSB-PTB-PDT-PPS-PV** 01/01/2003 22/01/2004 386 42,88
Lula 2 PT PT-PL-PCdoB-PSB-PTB-PPS-PV-PMDB 23/1/2004 31/01/2005 374 62,38
Lula 3 PT PT-PL-PCdoB-PSB-PTB-PV-PMDB 01/02/2005 19/05/2005 107 57,70
Lula 4 PT PT-PL-PCdoB-PSB-PTB-PMDB 20/05/2005 22/07/2005 63 58,28
Lula 5 PT PT-PL-PCdoB-PSB-PTB-PP-PMDB 23/07/2005 31/01/2007 548 69,59

Fontes: http://www.planalto.gov.br; Meneguello, 1998; Banco de dados legislativos, CEBRAP.
Critérios: 1. Mudança de mandato e na composição partidária do gabinete (saída ou entrada de ministro de um novo partido formalmente membro da coalizão);
2. Início de nova legislatura ou de bloco parlamentar, alterando, portanto, o percentual de votos da coalizão no Congresso.

* Outubro de 1988 a 31 de janeiro de 2007.


** O PDT rompe oficialmente com o governo Lula e deixa a base aliada em 12/12/2003. Não obstante, foram mantidos os critérios de mudança ministerial com a saída do ministro Miro Teixeira em 23/01/2004.

228  _ especial 50 anos fapesp


nais que exigem quórum de três quintos No primeiro mandato, Lula perdeu
no Congresso. 10 de 182 votações, sendo oito entre as O projeto
Quando a coalizão está unida, ou seja, 134 que exigiam quórum ordinário. “O
Instituições Políticas, Padrões de Interação
todos os líderes encaminham voto positivo, papel dos partidos fica cada vez mais Executivo-Legislativo e Capacidade Governativa –
parlamentares da base aliada votam com importante. A estrutura do sistema po- nº 2005/56365-0 (2006-2010)
seus líderes. No período analisado, a mé- lítico brasileiro hoje é a mesma dos paí- Modalidade
dia de votos favoráveis às propostas do go- ses parlamentaristas multipartidários”, Projeto Temático

verno foi de 91,1%. “Esse apoio não variou ela conclui. Coordenadores
Fernando de Magalhães Papaterra Limongi – USP
com os diferentes presidentes”, observa O presidencialismo de coalizão não é Argelina Maria Cheibub Figueiredo – Unicamp
Argelina. Quando a coalizão está dividida, exclusividade brasileira. “Os países da Investimento
essa média cai para 66%. “O apoio ao go- América Latina estão se tornando mul- R$ 110.000,00
verno não é incondicional.” E isso ocorre, tipartidários”, ela constata. Para enten-
em geral, quando os líderes partidários se der os distintos sistemas é preciso fazer Artigos científicos
manifestam contrários à aprovação da ma- comparações.
FIGUEIREDO, A. 2007. Government Coalitions
téria. “É o apoio do partido que garante o “Iniciamos um trabalho sobre gover- in Brazilian Democracy. Brazilian Political Science
voto da bancada”, ela conclui. nos minoritários na América Latina e há Review. v. 1, n. 2, p. 182-16, 2007.
dificuldades de encontrar detalhes sobre

A
FIGUEIREDO, A. et al. Political and Institutional
s derrotas ocorrem quando não aspectos institucionais. Começamos a Determinants of the Executive’s Legislative
são firmados acordos com a ban- organizar um consórcio de pesquisa- Success in Latin America. Brazilian Political
Science Review. v. 3, n. 2, p. 155-71, 2009.
cada. Collor de Mello, por exem- dores para montar um banco de dados.
plo, que governou sem coalizão majori- Estamos coletando dados para 14 países,
tária – e sem apoio do PMDB –, perdeu com informações sobre a formação de De nosso arquivo
14 de 61 votações que exigiam maioria ministérios desde 1980. O difícil é achar
Deputado profissional
simples. FHC, ao contrário, perdeu 11 o partido dos ministros. Consultamos até Edição nº 169 – março de 2010
entre 205 votações em assuntos que de- no Facebook para encontrar respostas”,
Presidencialismo torna fácil governar
pendiam de quórum simples. Nas 222 vo- ela conta. O grande obstáculo, explica, Edição nº 49 – dezembro de 1999
tações de matérias constitucionais – três é que no presidencialismo nem sem-
quintos dos votos do plenário – sofreu pre o ministro ocupa o cargo na cota
apenas 18 derrotas. do partido. n

Manifestação de mulheres por eleições diretas diante do Congresso Nacional (1984)


fotos: 1 Salomon Cytrynowicz/olhar imagem 2.˜ Cynthia Brito/olhar imagem

pESQUISA FAPESP maio de 2012  _ 229


_  D efesa Nacional

Autonomia
sem discussão
Legislativo ainda tem participação fraca no
destino das Forças Armadas

Carlos Haag

H
á duas décadas, durante a conferência Rio 92, mi-
litares ocuparam a cidade, com aval do presidente
da República, o único autorizado a chamar tropas
para cuidar de questões internas. A população e o
Parlamento aplaudiram. Em junho, os tanques estão
de volta às ruas para a Rio+20. “Os blindados serão usados, va-
mos empregar aeronaves e mais de 10 mil homens e mulheres.
Teremos atiradores de elite, forças especiais, grupo antiterror e
helicópteros. Se a população vai ver, é outra coisa”, afirma o co-
ronel Saulo Chaves, do Comando Militar do Leste. Mas será que
os representantes da população estão vendo? “Pela Constituição,
o Congresso não precisa ser consultado, mas o Legislativo preci-
sa se envolver no processo e considerar a Defesa Nacional como
estratégica à democracia. Se não o fizer, será sempre um poder
subalterno”, avisa o cientista político Eliézer Rizzo de Oliveira,
titular da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e que
em 2000 coordenou a pesquisa “Forças Armadas e democracia:
o papel do Poder Legislativo”, com apoio da FAPESP.
Nesses doze anos, os militares mudaram muito e o Ministério
da Defesa, com um civil à frente, detém hoje poder mais amplo
sobre as Forças Armadas, uma notável modernização desde a
sua criação, em 1999, pelo presidente Fernando Henrique. “Infe-
lizmente, não houve mudança significativa na responsabilidade

230  _ especial 50 anos fapesp


1. Governos ainda
convocam tropas
militares para
ações de repressão,
como em fevereiro,
na Bahia, durante a
greve dos policiais

2. Tropas usadas
para invadir favela
carioca em 2011

política do Legislativo e o que revelamos


na pesquisa se mantém. Os partidos não
ligam para a Defesa Nacional, poucos
parlamentares se especializam no tema.
Há sempre mais reverência aos militares
do que efetivo compromisso com a De-
fesa Nacional. E permanece a estrutura
presidencialista: o(a) presidente detém
o comando último das FFAA, estas se su-
bordinam ao(à) chefe do Executivo por
intermédio do ministro da Defesa”, diz
Eliézer. Segundo o pesquisador, os parla-
mentares acham que as Forças Armadas
deveriam combater o crime, o tráfico de
drogas e manter a “lei e a ordem”.
“Não há conhecimento ou interesse
na discussão de uma política de Defesa
Nacional no Congresso. Os políticos, er-
roneamente, não veem ameaças ao país,
nas fronteiras ou no mundo, e preferem
se ocupar de temas com dividendos ime-
fotos 1. ERNESTO RODRIGuES/ae  2. LUIZA CASTRO/afp 3. Ernesto Reghran/ pulsar imagens

diatos. É uma preocupação egoísta, no


espírito do ‘milico não dá voto’, um rea-
lismo eleitoral sem visão de futuro”, ob-
serva o pesquisador. Até agora, continua,
o Legislativo só analisa o tema com foco
no âmbito interno, sem dar importância
ao internacional e às questões em foco
fora das fronteiras nacionais. “A atuação
3
das Forças Armadas na segurança públi-
ca ficou mais corriqueira. No fundo, não
se alterou o problema central que é a ino-
perância ou insuficiência das políticas de
segurança pública dos estados”, afirma.
“Como os delitos não se restringem às
divisas entre os estados, mas são nacio-
nais, a Polícia Federal, a Força Nacional

pESQUISA FAPESP maio de 2012  _ 231


“É nebulosa a relação que existe entre
Legislativo e questões de defesa, apesar
da interação mais ampla dos militares
com o sistema político após a redemocra-
tização, um fato fundamental em qual-
quer democracia. Mas os parlamentares
apenas dizem sim ou
não às demandas das
Forças Armadas sem
perguntarem por que
Não é preciso e para que, como com-
petiria a eles. É um
um risco concreto passo imprescindível
para aprimorar as re-
para que o lações entre civis e mi-
país tenha litares no país”, avalia.
Essa articulação, acre-
Forças Armadas dita, é importante para
que a democracia seja
capacitadas efetivamente uma de-
mocracia. “Além dis-
so, não é preciso um
risco concreto para o
Brasil manter os seus
instrumentos militares
adestrados e adequa-
Tanques damente orientados.
pesados Basta olhar o nosso
sobem a favela
mapa e ver o mundo
da Rocinha, no
Rio de janeiro, com os olhos no futu-
1 em 2011 ro”, explica Eliézer.
“Os parlamentares
de Segurança e as Forças Armadas vêm a se perguntar, então, para que servem precisam participar das decisões do em-
atuando cada vez mais em situações de as Forças Armadas e por que poucos se prego militar na segurança pública dos
alta criminalidade.” importam em discutir essa função a fun- estados, bem como das revisões da polí-
do. Um paradoxo num país em que os tica de Defesa Nacional. Devem ainda se

O
processo de pacificação de mor- militares gozam de 75% da confiança pronunciar sobre decisões presidenciais
ros no Rio de Janeiro constitui o dos brasileiros, como revelou a pesquisa, de empregar forças militares na seguran-
exemplo mais evidente do velho publicada recentemente, Democracia e ça pública e em forças de paz, como no
adágio de que a solução dos problemas confiança: por que os cidadãos descon- Haiti. Além disso, precisam pressionar
é “tropa nas ruas”. “Os militares estão fiam das instituições públicas? (2010), o Ministério da Defesa a produzir o ‘li-
atuando como policiais. A gravidade da organizada pelo cientista político José vro da Defesa Nacional’, que estabeleça
situação conduz à militarização da segu- Álvaro Moisés e que contou com o apoio as diretrizes e parâmetros do funciona-
rança pública, o que acho um equívoco”, da FAPESP. Para Eliézer, são vários os mento militar”, observa. O pesquisador
analisa. O mesmo vale para a utilização motivos. “Não houve ainda uma supera- lembra como, entre 1988 e 1991, intervalo
das Forças Armadas nas fronteiras para ção total do passado autoritário, o que entre a promulgação da Constituição e
combater o narcotráfico. “O combate é faz uma parte articulada da população a edição da primeira lei complemen-
feito pela Polícia Federal e pelas polí- rejeitar as Forças Armadas. Com isso tar regulamentando questões militares,
cias estaduais. Quem defende a ideia de veio o desprestígio das funções de De- houve uma brecha jurídica que permitia
militarizar as fronteiras esquece-se de fesa Nacional. Além disso, nossos políti- a qualquer membro dos três poderes a
que elas medem 13 mil quilômetros, com cos, em geral, acreditam que não temos convocar tropas para garantir a “lei e
7 mil quilômetros de floresta. Há muita problemas de segurança, uma falácia”, a ordem”. Foi o que ocorreu, em 1988,
expectativa sobre o que o Exército pos- diz. “As ameaças hoje são outras: nar- quando um juiz requisitou soldados para
sa fazer. Os militares, ao contrário, tem cotráfico, crime organizado, presença controlar uma greve na Companhia Si-
os pés no chão.” ineficiente do Estado em áreas rurais, derúrgica Nacional, em Volta Redonda,
tráfico de pessoas, poder despótico da o que resultou em três operários mortos.
Então, para que servem? delinquên­c ia onde o Estado não tem “Ainda que o Executivo tenha a di-
Congressistas e a população, ao se depa- presença. Isso está incluído na questão reção exclusiva das Forças Armadas, o
rarem com essas observações, chegam da defesa”. Congresso poderá se transformar em

232  _ especial 50 anos fapesp


2

coautor da orientação política. Afinal, era o do embaixador Soldados das


a direção política transcende a direção O projeto Ronaldo Mota Sar- tropas brasileiras
que lideram
administrativa na medida em que aponta denberg, mas havia
Forças Armadas e democracia: a chamada
os objetivos futuros, o perfil estratégico o papel do Poder Legislativo um desconforto entre “Missão de Paz”
desejável ao país e os meios eficazes a – nº 1996/07499-3 os militares diante da no Haiti fazem
serem alocados”, diz o pesquisador. Isso (1997-1999) hipótese de serem di- patrulha durante
Modalidade distribuição de
implica, também, uma relação estreita rigidos por alguém do
Projeto Temático alimentos
com o Ministério da Defesa, de início Itamaraty. “São duas
Coordenador
criado para subordinar os militares a Eliézer Rizzo de Oliveira – instituições muito
um governo civil, mas atualmente vol- Núcleo de Estudos enraizadas no Esta-
tado às ações que garantam ao país ins- Estratégicos, Unicamp do, com grande tradição e pensamento
tituições militares modernas, capazes de Investimento próprios, cujas relações sempre foram di-
R$ 22.904,17
fazer frente aos desafios brasileiros nos fíceis. Os militares diziam: é viável ima-
cenários interno e externo. ginar um general como chanceler? Ain-
Artigos científicos da hoje, no Itamaraty há um mal-estar

U
m passo importante foi a apro- 1. OLIVEIRA, E. R. Democracia: quando o presidente indica alguém que
vação em 2008 da Estratégia Na- passado e presente. Como as não é dos quadros diplomáticos”, lembra
democracias incorporam
cional de Defesa, cujo objetivo é Eliézer. Este, aliás, foi um dos fatores que
temas. Nossa América.
justamente a modernização nacional da Revista do Memorial da levaram à queda do ministro Viegas, um
defesa pela reorganização das Forças América Latina. São Paulo, diplomata, da chefia do Ministério da
SP. v. 22, p. 38-41, 2005.
Armadas, a reestruturação da indústria Defesa. Curiosamente, hoje, o cargo é
brasileira de material de defesa e a im- 2. OLIVEIRA, E. R. Política de ocupado novamente por um embaixador.
Defesa Nacional e relações
plementação de uma política de com- Por sorte, nota o pesquisador, os milita-
civil-militares no governo do
posição dos efetivos militares. “A ideia presidente Fernando res, atualmente, são bem mais tolerantes
é que, cada vez mais, se atualize a Po- Henrique Cardoso. Caderno com um superior civil.
Premissas (Núcleo de
lítica Nacional da Indústria de Defesa Mas crises recentes, como a aconte-
Estudos Estratégicos).
e da Política de Ciência e Tecnologia e Campinas, n. 17-18, cida em 2009, com a greve dos contro-
Inovação para a Defesa Nacional”, nota p. 37-68, 1998. ladores militares de voo, em que o pre-
o pesquisador. “Foi também criada uma sidente da República interveio em favor
estrutura de consulta em Defesa e Segu- De nosso arquivo dos sargentos grevistas, demonstrando
rança no plano sul-americano. Este é o clara simpatia pela desmilitarização do
Quem guarda os guardiões?
papel da Unasul, que poderá evoluir para setor, são um aviso de que a trajetória
Edição nº 130 – dezembro
uma estrutura de ação conjunta de for- de 2006 ainda é tortuosa e exige, nota Eliézer,
ças armadas de diversos países. De certo uma crescente valorização do Ministério
fotos 1. ANTONIO SCORZA/afp 2. fábio motta/ae

Um papel pouco
modo, o Haiti configura este laboratório, compreendido da Defesa. “Estamos, porém, num bom
pois, cabendo ao Brasil o comando das Edição nº 65 – junho caminho, com os esforços de equipar as
de 2001
operações militares, diversos vizinhos Forças Armadas, mas não antes que pas-
também estão ali representados”, diz. sem por um processo de transformação
Aqui se dá um cruzamento delicado que as habilite a defender adequadamen-
entre as Forças Armadas e o Itamaraty. te o Brasil. O que inclui, é claro, uma po-
Quando se pensou na criação do Minis- lítica de integração do setor da indústria
tério da Defesa, um dos nomes cotados de defesa com nossos vizinhos.” n

pESQUISA FAPESP maio de 2012  _ 233


_ antropologia

A invenção
dos índios no Brasil
Análise de etnografias produzidas por missionários salesianos desmonta
a noção do antropólogo como tradutor | Carlos Haag e Mariluce Moura

U
m debate instigante e certamente formando-a em diferença, consegue traduzi-la
oportuno sobre qual é, afinal, o pa- em termos acessíveis ao universo simbólico de
pel do antropólogo – e a natureza onde partiu para sua jornada.
de seu trabalho de pesquisa – tal- Em lugar dessa tradução um tanto enciclope-
vez possa ser um dos resultados do dista surge então, como objeto e forma do traba-
livro Selvagens, civilizados, autên- lho do antropólogo, a invenção – e numa acep-
ticos: a produção das diferenças nas monografias ção bem precisa do termo, porque “não há nada
salesianas no Brasil (1920-1970), se os estudio- previamente ali” pronto para ser capturado. Os
sos da área receberem com espírito aberto as agentes de dois universos de conhecimento hete-
provocadoras propostas nele apresentadas por rogêneos – neste caso do estudo, padres e índios –
Paula Montero. Fruto mais recente de uma déca- movem-se ambos por interesses, um em direção ao
da de pesquisa apoiada institucionalmente pela outro, e, de fato, “precisam estabelecer um certo
FAPESP – via o projeto temático Missionários acordo para que a invenção exista, invenção que
cristãos na Amazônia brasileira: um estudo de será sempre diferente, a depender de quem esteja
mediação cultural e o projeto regular A textua- lá”, segundo a antropóloga, professora titular da
lidade missionária: as etnografias salesianas no Universidade de São Paulo (USP) e presidente
Brasil –, o novo livro da pesquisadora propõe de do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento
forma clara a desmontagem da velha visão do (Cebrap). Foi exatamente para entender tais acor-
antropólogo como uma espécie de tradutor. Pelo dos, ou seja, o que afinal acontece quando esses
olhar teórico e empiricamente aguçado de Paula, agentes entram em interação, que Paula tomou
esfuma-se inteiramente a ultrapassada figura do o tema das missões salesianas como campo pri-
especialista que vai a um mundo do qual nada se vilegiado de reflexão e pesquisa. E a essa altura,
sabe – o “outro”, a incompreensível alteridade –, firmemente ancorada na noção de que as ideias
captura ali, na interação com um informante se movem por meio de sujeitos e, portanto, que
privilegiado que ele jamais apresenta, alguma há que se entender os agentes para compreender
coisa que até então ninguém sabe o que é, trata a construção de sua interação, ela pode obser-
de classificá-la, organizá-la e, finalmente, trans- var que, se o padre tem o projeto de converter,

240  _ especial 50 anos fapesp


Cerimônia cívico- “o índio, que pode ser o xamã ou o chefe nessa si- estratégicos e dotados das capacidades que obti-
religiosa na missão tuação, quer se apropriar do poder do padre para veram em suas trajetórias para operar categorias,
de Iauretê, reunindo
assim ampliar seu poder dentro do próprio grupo construir relações etc.”, diz. E seu olhar crítico
um grupo de crianças
tucanas e tendo ao e ainda ganhar poder frente ao padre”. voltou-se tanto para as produções de uma geração
fundo o retrato do Não se trata, pois, de um simples processo de mais antiga de antropólogos brasileiros – que, na
então presidente imposição, de destruição de cultura, ela afirma. esteira do trabalho de Roger Bastide com a cultura
Getúlio Vargas
Tampouco tudo é resistência cultural. “É um africana, tratou do sincretismo sem colocar o pro-
processo político, sim, mas também simbólico, blema dos mediadores – quanto para as análises
de construção da interação entre dois universos antropológicas mais recentes, que colocaram o
de conhecimento heterogêneos.” Entra em cena problema das relações entre índios e brancos no
um jogo de linguagens pelo qual os dois lados Brasil reduzindo a agência à resistência cultural
vão estabelecer uma convenção do que devem (mas, ressalte-se, Bastide tinha como tema uma
fazer para viver juntos naquelas situações em cultura transplantada cujos sujeitos se encontra-
que estão envolvidos. vam deslocados de seu lugar de origem, enquanto
Fica claro, dessa forma, por que o conceito o problema das culturas indígenas dizia respeito
de mediações culturais é chave no trabalho de a sujeitos que de maneira geral ainda se encon-
Paula Montero e o quanto as missões foram se travam em seu território originário).
tornando para ela um belo pretexto para explorá-
-lo a fundo. Fica claro também o porquê de seu Missionários ideais
empenho em não reduzir sua análise aos dis- A vinda dos padres salesianos para o Brasil no
cursos, ir às biografias e trazer à cena as fontes final do século XIX resultou da conexão de vá-
de informação na análise das etnografias – in- rios e importantes interesses, observa Paula. No
clusive com um uso metodológico das fotogra- âmbito da geopolítica mundial, vale lembrar que
fias tiradas pelos salesianos capaz de dar “car- a Itália perdera lugar na partilha da África e a
fotos divulgação

ne à ambiência” das aldeias missionárias, co- Igreja Católica precisava desesperadamente de


mo ela diz. “As ideias não se impõem por elas uma nova área de expansão. Os jesuítas tinham
mesmas, sem agentes posicionados em lugares sido expulsos do Brasil desde 1759, a Itália fora

pESQUISA FAPESP maio de 2012  _ 241


Cotidiano dos índios no colégio em Iauretê, um cartão-postal que retrata crianças tucanas no recreio do internato da missão salesiana

unificada em 1870 e, nesse contex- nômicas produtivas no interior do


to, a congregação fundada em 1859 Brasil. Claro que os positivistas,
pelo italiano João Bosco parecia sempre temendo um avanço cleri-
ser um grupo que, aos olhos do Im- No processo de cal no país, não gostaram do pro-
pério, não oferecia maiores riscos jeto salesiano, “mas esse projeto
para a soberania do Estado – obe- expansão iniciado nos compartilhava a mentalidade en-
dientes ao papa e perseguidos na tão corrente para a qual a univer-
Itália da restauração dificilmente
anos 1960 o índio salidade da civilização enquanto
cairiam na tentação de criar aqui começou a ser um condição humana era autoeviden-
um Estado paralelo, como outras te. O que se propunha era asso-
ordens. Além disso, serviam aos problema para o Estado ciar os princípios do catolicismo
interesses de um papado que pre- aos benefícios do cientificismo”,
cisava garantir seu poder temporal observa Paula. Assim, estender
recém-conquistado, permitindo ao o mesmo método pedagógico da
Estado do Vaticano estabelecer alianças res de café. E até 1910, ressalte-se, não experiência urbana às populações ainda
diplomáticas com os novos Estados na- tiveram nenhuma relação com os índios. “selvagens” pareceu não oferecer difi-
cionais na América. Entretanto, na virada do século, o Estado culdades aos salesianos. “Afinal a ‘sel-
brasileiro tinha dado início a seu “projeto va’ era, no imaginário cristão moderno,

S
e na Itália a especialidade salesia- de empurrar as fronteiras, que com Var- o contraponto à cidade ou à civilização
na era educar jovens operários de gas se tornaria muito forte e incorporaria, cristã.” O elemento novo, a introdução
origem rural, eles foram também por exemplo, o Mato Grosso inteiro. Mais do cientificismo no plano das relações
chamados ao Brasil originalmente para adiante o projeto envolveria também a entre homens e natureza, trazia um novo
educar os filhos das elites rurais e treinar Amazônia, com bastante sucesso, e a im- dilema. No texto do livro, a pesquisado-
os migrantes urbanos em novas profis- plantação de cidades até os anos 1960”. ra assinala que “ao assumir que civiliza-
sões, uma vez que dominavam modernas Nesse processo de expansão, o índio ção, progresso e pátria são sinônimos, os
tecnologias educacionais. “Havia então começou a ser um problema para o Es- salesianos, em oposição ao positivismo,
uma visão não conformista das relações tado em tais regiões, enquanto os sale- queriam ressacralizar a natureza, re-
criadas pelo industrialismo. Os salesia- sianos poderiam representar a solução. cuperando no selvagem a ‘razão natu-
nos se voltaram para cuidar dos jovens Em outras palavras, “as condições polí- ral’ que compreende o mundo natural
mais pobres, percebidos como abando- tico-históricas que definiram o proje- como obra divina; e em contraposição
nados e em situação de risco, com o ob- to expansionista da congregação sale- à ‘religião natural’ dos indígenas, que
jetivo de integrá-los às novas formas de siana para as Américas articularam-se adoram a natureza, deveriam civilizá-
civilidade urbana”, observa Paula. às estratégias econômico-políticas de -la, de modo a torná-la parte da ordem
Pois foi com esses mesmos ideais e o ampliação da soberania nacional sobre social e racional da nação.”
beneplácito do imperador Pedro II que, novos territórios”, como diz Paula. As Se muitas vezes o problema do “índio
em 1883, eles aportaram no Brasil, num missões salesianas poderiam assegurar brabo” se resolveu pela violência e pela
momento em que as ideias progressistas a “pacificação” dos selvagens, o que per- brutalidade, o Brasil na verdade nunca fa-
começavam a surgir entre os plantado- mitiria a introdução de atividades eco- voreceu, segundo Paula, a implementação

242  _ especial 50 anos fapesp


de uma política sistemática e declarada e problemática. “Dom Bosco defendia a as duas políticas partiam de princípios
de genocídio. “Prevaleceu na República criação de uma colônia italiana na Amé- diversos: enquanto a indigenista, feita
a ‘pacificação’, que, na prática, significava rica e só depois de não ter conseguido pelo Estado até os anos 1950, apoiou-se
não estimular conflitos com os índios.” E levar adiante seu projeto de expansão na ideia da assimilação pela convivência
seu modelo secular foi Rondon, o grande da congregação na Argentina é que o re- com não índios, as estratégias missioná-
representante militar da “pacificação” direcionou para as áreas indígenas bra- rias se pautaram por uma ideia de civili-
positivista que daria fundamento ao Ser- sileiras”, diz Paula. zação que pressupunha um isolamento
viço de Proteção ao Índio (SPI), criado O modelo da missão eram os liceus de relativo dos grupos indígenas.”
precisamente em 1910. Ao criar constran- artes e ofícios: ela deveria reunir os ín-
gimentos legais à violência dos colonos, dios em torno de uma “colônia agrícola” Etnografias comparadas
esse programa pacificador produziu um voltada para uma agricultura moderna, Tudo isso se torna mais e mais claro à
marco legal para os direitos territoriais apoiada em princípios científicos de pro- medida que, valendo-se de uma metodo-
indígenas, instituiu órgãos tutelares como dutividade e em tecnologia sofisticada. O logia comparada de três momentos dis-
o SPI e, mais importante, possibilitou a trabalho com a terra estava no centro da tintos dos encontros entre missionários
investidura dos salesianos como agentes autonomia e prosperidade das missões e índios, Paula Montero procura mostrar
privilegiados da catequese e da civilização para que se pudesse fazer o adestramento como a interação entre eles muda em
nas fronteiras nacionais em expansão, ao do corpo e do espírito dos nativos. Dife- função do contexto político, da cultura
longo da primeira metade do século XX. rentemente da colônia militar ou das re- dos diferentes grupos e até mesmo das
Na década de 1930 os salesianos já re- lações esporádicas de Rondon com alguns particularidades de cada autor das nar-
cebiam do governo brasileiro metade de grupos indígenas, a colônia agrícola mis- rativas desses processos. Essas condi-
todas as subvenções destinadas às insti- sionária, observa Paula, foi um arranjo no- ções produzem claramente construções
tuições missionárias católicas e o forma- vo de relações que articulou unidades do diversas do que é ser índio.
to de sua institucionalização, inspirado sistema indígena a unidades do sistema Nesse sentido, o objeto fundamental
no modelo das reduções jesuíticas, não colonial em uma convivência continua- de análise da pesquisadora é um conjun-
se modificou até o Concílio Vaticano II, da e produtora de novas relações. “Mas to de três etnografias escritas por mis-
quando começou a perder seu vi- sionários salesianos sobre os gru-
gor”, diz Paula. Só com o impacto pos indígenas Bororos e Xavantes,
da crise ideológica nos anos 1970, do Mato Grosso, e os chamados
que colocou em xeque o modelo Tucano, do Amazonas. A primei-
de missão formatado no Concílio ra delas é Os Bororo orientais, de
de Trento, os salesianos viram-se “Prevaleceu na República 1925, de Antonio Colbacchini e
obrigados a repensar suas rela- César Albisetti, a segunda, A ci-
ções com a política brasileira e a ‘pacificação’, que vilização indígena do Uaupés, de
os índios. 1958, escrita por Alcionílio Bruzzi
A adesão salesiana ao pedido do
significava não estimular da Silva, e a terceira é Xavante,
Estado brasileiro de participar do conflitos com os índios” Auwe Uptabi, povo autêntico, de
front de “pacificação”, contudo, 1972, cujos autores são Bartolo-
não foi simples, e sim demorada meu Giaccaria e Adalberto Heide.

Aldeamento do Sagrado Coração em imagem feita para relatório comemorativo dos avanços na construção do espaço que visava atrarir chefes bororo e famílias

pESQUISA FAPESP maio de 2012  _ 243


C
olbacchini era formado em filosofia nente como obra civilizatória definitiva. em 1954 e foi transferido a Sangradou-
e teologia e transformou-se a par- Para o religioso, a dinâmica desencadea- ro no final de 1956 para encarregar-se
tir de 1906 em pioneiro e explora- da pelos centros missionários deveria ser da escola da missão. Paula observa que
dor do estado do Mato Grosso. No ano compreendida em termos de um proces- já não se trata nesse momento mais do
seguinte assumiu a direção da colônia so “civilizador”, e não mais em termos de selvagem e o conceito-chave passara a
agrícola de Tachos. Ele se preo­cupava “catequese”. Vale registrar que a chegada ser a autenticidade. “Tudo que é do ín-
em traduzir os selvagens, homens natu- dos salesianos em 1920 ao rio Negro, uma dio passa a ser autêntico.” Em lugar do
rais, em homens sociais, com lei, ordem bacia habitada predominantemente por esforço para converter, havia que encon-
e religião. “Ao contrário do indigenismo populações indígenas, foi uma experiência trar o que era original, e a cultura está
militar republicano, basea­do na ideia da completamente distinta da que viveram no lugar em que antes estivera a religião.
‘pacificação’, para o qual civilizar era ao chegar ao Mato Grosso, onde tiveram Pouco depois de se instalar em San-
principalmente controlar o território e que mediar os permanentes conflitos en- gradouro, Giaccaria entrou em contato
a população, Colbacchini supõe a exis- tre proprietários de terra e indígenas. Por com grupos Xavantes recém-chegados
tência de uma ‘nação clandestina’ que falta de colonos, o modelo de “pacificação” à missão e se deparou com a questão de
só pode ser conhecida quando se toma não predominaria no Uaupés. Havia tam- ter que alfabetizar suas crianças sem co-
o ponto de vista do sertão. Essa proto- bém uma diferença fundamental entre nhecer a língua e a cultura. “Para atuar
nação se identifica com os valores da li- sua monografia e a anterior: “O habitus na escola de maneira eficaz não lhe
berdade, da fraternidade e da inocência de um espírito científico filtrado por uma bastou o conhecimento rudimentar da
primordial.” Segundo Paula, compreen- linguagem que se quer rigorosa e contida língua e ele sentiu a urgência de um
der a obra etnológica de Colbacchini é está muito mais presente na obra de Bru- entendimento mais completo dos com-
analisar como a sua descrição mobiliza zzi do que na de Colbacchini, intuitivo e portamentos e modos de entendimento
a imaginação para responder às contra- passional. A análise de Bruzzi é pautada indígenas. Começou então seu trabalho
dições aparentemente sem solução que a pela ciência e seu desejo é criar um indi- de observação etnográfica mais siste-
incorporação dos índios, com suas dife- víduo, embora tenha se deparado com o mático ao lado de Adalberto Heide na
renças, impõe à consciência do homem incômodo de não achar sujeitos subjeti- década de 1960.”
e de seu tempo. Assim, numa linguagem vados a ponto de viver numa sociedade Podem-se verificar na obra as mar-
textual ainda muito próxima dos enci- baseada na ciência”. cas da mudança no panorama político-
clopedistas do século XIX, ele inventa Bartolomeu Giaccaria, um dos autores -ideo­lógico que estava por vir. “Nos anos
o totemismo bororo ao sair à procura de da terceira monografia, chegou ao Brasil 1970, o programa catequético missio-
uma religião natural. nário de assistência indígena
Já num contexto intelectual e político perdia credibilidade, o sistema
distinto, marcado pela ênfase à brasilidade de internatos começava a ser
do índio, a monografia do padre Alcionílio duramente criticado e a ideia
Bruzzi sobre os povos Tucano mostra o “Mediações materiais de que os índios deveriam vi-
trabalho evangelizador no rio Negro e no ver isolados em seus próprios
Uaupés mais nitidamente pautado pelo e simbólicas se dão territórios, as reservas, produ-
esforço de integração do índio ao Estado zia um novo consenso”, expli-
nacional. Isso implica também a exigên-
sempre na interação ca a autora. Por isso, o senti-
cia de construção higiê­nica e salubre de e produzem discursos”, do civilizador tão marcante
cidades e a edificação de internatos que se nas obras anteriores aparece
apresentassem em sua arquitetura impo- diz Paula Montero de forma menos acentuada
no trabalho de Giaccaria. “A
ideia de civilização ganha uma
conotação mais secular de ‘patrimônio
cultural’ e, como indica o título de sua
monografia, sua obra está voltada para
a reprodução da ‘autenticidade’ de ser
Xavante. O registro de mitos e ritos que
fez ao longo de uma década está marcado
por um sentido de salvamento da maior
quantidade de informações sobre a civi-
lização Xavante.” Em contraposição aos
exemplos monográficos anteriores, em
que a ideia de uma “civis” cristã e urbana
era central ao argumento civilizatório,
Giaccaria afirma que a vitalidade da cul-
tura Xavante dependia da manutenção
da aldeia em sua forma circular, símbolo
Cartão que retrata missa feita por salesiano na floresta, por volta de 1905, para impressionar os índios do que é fraterno, igualitário.

244  _ especial 50 anos fapesp


Mas o que teria motivado os salesia-
nos em suas etnografias? “Para imple-
mentar o projeto era preciso fazer com
que o índio quisesse morar nas missões,
algo que só faziam movidos por cálculos
estratégicos. Era necessário então orga-
nizar o conhecimento: como se poderia,
por exemplo, converter, batizar, etc. se
não se conhecesse a forma de religião e
família indígena?” Cada monografia, ao
contrário do que acontecia na prática
indigenista oficial (que não se interes-
sava em conhecer o objeto de sua ação),
implicou um processo de produção de
conhecimento destinado a possibilitar
o projeto missionário dos salesianos.
Um projeto que, é importante ressal-
tar, foi fruto de intensa e constante ne-
gociação. “Os padres negociaram, por
diversos meios, a legitimidade de sua Cartão-postal com crianças borore em suas atividades escolares na missão do Sagrado Coração
atuação com relação aos índios e à so-
ciedade nacional, dando visibilidade a
seus ‘feitos’ e ‘sacrifícios’, protegendo “Já as regras gramaticais da indexação
a vida indígena contra os colonos e ou- foram construídas no plano das práticas Os Projetos
tros índios, dispensando educação aos como convenções destinadas a enfrentar
1. Missionários cristãos na Amazônia brasileira:
filhos dos proprietários rurais ou se re- colisões e conflitos nas interações coti-
um estudo de mediação cultural –
cusando a fazê-lo, ensinando crianças dianas.” Essa tradução, porém, não era nº 2000/02718-6 (2001-2007)
indígenas, disputando sua autoridade destituída de consequências. Conforme o 2. A textualidade missionária: as etnografias
salesianas no Brasil – nº 2007/08736-5
religiosa e terapêutica com xamãs, dis- texto de seu livro, “o paradoxo implícito
(2008-2010)
tribuindo ou retendo bens, reforçan- na produção de etnografia missionária é
Modalidades
do ou se apropriando da autoridade de que, para criar a imagem da cultura na- 1. Projeto Temático
chefes”, explica Paula. Acima de tudo, tiva, o etnógrafo provoca uma mutação 2. Projeto de Pesquisa Regular
conviveram sempre com o fantasma da nas formas tradicionais de produção da Coordenadora
1. e 2. Paula Montero – Departamento de
instabilidade dos aldeamentos, amea- memória. As etnografias salesianas, como
Antropologia da USP
çados constantemente pelo repentino parte integral e fundadora do projeto de
Investimento
esvaziamento populacional. Além disso, conversão, universalizam o conhecimen- 1. R$ 274.968,00
lidavam com questões da atração de re- to, por exemplo, do que é ‘ser Bororo’ de 2. R$ 51.841,56
cursos financeiros, com a produção de uma forma até então desconhecida para
meios eficientes de persuadir as elites os próprios nativos e, nesse movimento, De nosso arquivo
urbanas da inteireza de suas intenções produzem uma espécie de ‘conversão’ do
A invenção dos índios no Brasil
e da legitimidade de seu trabalho frente Bororo à cultura Bororo”, explica a auto- Edição nº 173 – julho de 2010
a forças competidoras como o indige- ra. “Assim, a desconstrução dos discursos
Em nome de Deus
nismo positivista, da pressão dos colo- missionários revela como os mediadores, Edição nº 111 - maio de 2005
nos por mão de obra e terra, do apoio sejam eles quem forem, se constroem
que a hierarquia da Igreja no Brasil e como sujeitos de discurso e se jogam na
na Europa oferecia ou não ao projeto disputa no processo de produção de legi-
de estabelecer colônias agrícolas au- timidade daquilo que têm a dizer.”
tossuficientes. Dá para dizer que Paula Montero traba-
lha em seu novo livro por uma antropolo-

P
roduzir conhecimento e descrever gia das mediações. “Mediações materiais
a vida indígena era parte dos ins- e simbólicas que se dão sempre na intera-
trumentos intelectuais disponíveis ção e que produzem discursos.” Ou seja,
para fazer face a essas dificuldades. “Uma deslocada a ideia de tradução do trabalho
das operações simbólicas mais centrais do antropólogo para o discurso dos agen-
das monografias foi produzir a conver- tes, ela abandona o conceito de alteridade
gência entre modos distintos de ver e como noção fundadora do conhecimento
estar no mundo, introduzindo como re- antropológico buscando superar o parado-
ferente comum a separação das esferas xo que consiste em pensar um outro antes
religiosas, sociais e políticas”, diz Paula. da própria razão que o pensa. n

pESQUISA FAPESP maio de 2012  _ 245


_HISTÓRIA DA CIÊNCIA

Nos ombros de
gigantes mágicos
Processo de transformação da
alquimia em química foi mais
longo e suave do que se imagina

Carlos Haag

F
oi preciso muita coragem para Einstein assumir,
em plena idade moderna, que “a ciência sem a
religião é coxa e a religião sem a ciência é cega”.
Em especial, a primeira parte da citação ainda
provoca calafrios em muitas mentes científicas
que associam de forma ortodoxa ciência à ideia
de progresso: assim, os antigos conheceram pior do que os
medievais e estes pior que os modernos, totalmente libertos
de qualquer “obscurantismo” religioso. “Em especial, há a
visão de uma estreita passagem da alquimia para a química,
entre meados dos anos 1600 e finais dos anos 1700, cujas
marcas seriam a publicação de Químico cético, de Boyle, li-
vro que teria iniciado a química moderna em 1661, e o ‘gran
finale’ de Lavoisier em seu Tratado elementar de química, em
1789”, explica a professora Ana Alfonso-Goldfarb, do Centro Reprodução do
Simão Mathias de Estudos em História da Ciência (Cesima), livro O museu
hermético:
da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Alquimia &
“Não se pode dissociar o desenvolvimento da ciência de Misticismo, de
aspectos religiosos, assim como o saber alquímico e tradição Alexander Roob

246  _ especial 50 anos fapesp


pESQUISA FAPESP maio de 2012  _ 247
Receita do Alkahest
encontrado por brasileiras

248  _ especial 50 anos fapesp


hermética não foram eliminados pela revolução mesmo no laboratório, a outros reinos da nature-
científica, mas conviveram por longos séculos. za. Um segundo grupo, preconizava a existência
Não se trata de rupturas, mas de permanências de um único princípio que circularia entre os três
e transformações lentas de conhecimentos an- reinos (mineral, vegetal e animal), embora agin-
tigos”, analisa a pesquisadora que, ao lado da do de forma distinta em cada um deles. Crença
professora Márcia Ferraz, também do Cesima, que datava a tempos aristotélicos, essa ideia se
trouxe à luz uma importante rede de discussões fundamentava na observação de processos em
sobre os princípios da matéria, que se estendeu que materiais de reinos distintos, ao interagirem,
até, pelo menos, o século XVIII, no projeto te- pareciam transferir suas características uns aos
mático Revelando os processos naturais através outros. Entre os adeptos dessa visão estavam
do laboratório: a busca por princípios materiais estudiosos notáveis da primeira modernidade
nos três reinos até a especialização das ciências no e suas reverberações continuaram a prevalecer
setecentos, apoiado pela FAPESP. “Mentes no- século XVIII adentro.
táveis de uma instituição como a Royal Society, “Muitas das obras que criaram a ciência mo-
apesar de realizarem procedimentos próximos derna estavam num limiar, captando, por um
aos da ciência moderna ainda viam no laborató- lado, essa lógica totalizante dos saberes de vo-
rio ‘iluminista’ o ‘olhar de Deus’”, zes do passado e, ao mesmo tempo,
observa Márcia Ferraz. Foi, aliás, iniciando um contato com a nova cos-
mergulhando nos arquivos da so- mologia e as novas ideias”, diz Ana.
ciedade britânica que as duas estão Para as próprias pesquisadoras, no
colocando cada vez mais em sus- Obras que início, a descoberta de que homens
peição a crença de que a alquimia, como Boyle e Newton acreditavam
baseada em mistérios, não resistiu à criaram a na possibilidade da “pedra filosofal”
passagem para um universo racio- provocou uma sensação incômoda.
nal e mecanicista, onde qualquer ciência moderna Mas, boas adeptas da razão, os acha-
mistério era inadimissível. dos documentais das pesquisadoras
“As ideias alquímicas, sob outro
estavam num no acervo da Royal Society fizeram
nome, ainda intrigaram por muito limiar de vozes com que elas revissem suas crenças e
tempo grandes figuras hoje asso- passassem a enxergar os antigos mo-
ciadas à ciência moderna. Essa é a do passado delos da nova ciência pelo prisma da
beleza dessa história: não há uma época, e não com a visão anacrônica e
razão única, mas várias ‘razões’ e novas ideias “preconceituosa” dos nossos tempos.
que souberam conviver até o sé- Afinal, como desmentir um docu-
culo XIX”, analisa Ana. Isso será, mento oficial de uma instituição ve-
aliás, o foco do desdobramento
do temático num novo projeto, Reprodução do livro O museu hermético: Alquimia & Misticismo, de Alexander Roob
também apoiado pela FAPESP
e iniciado agora, que alcançará
o oitocentos, período em que,
as pesquisas das professoras
confirmaram, se dará o efetivo
desmembramento das áreas do
saber em direção a um sistema
de organização moderno. “Ao
mesmo tempo, e talvez não por
acaso, a noção de princípio ou
princípios materiais será supe-
rada de muitas formas, inclusive
por meio de variações distantes
como foram as novas concep-
ções de princípios ativos”, afir-
ma Márcia.
Até então, duas vertentes di-
vidiam o interesse dos estudio-
sos. Uma das perspectivas con-
cebia a organização da matéria
divulgação/cesina

em “princípios reitores”: estes


seriam exclusivos ao reino que
constituíam e intransferíveis,

pESQUISA FAPESP maio de 2012  _ 249


como Oldenburg e Jonathan Goddard, lente da
instituição. A descoberta só confirmava que os
“papéis secretos” de Newton, aos poucos re-
velados desde os anos 1930, e sua relação com
a alquimia, eram a ponta de um iceberg maior
do que o desejável.
“Havia uma segunda agenda na pauta dos no-
vos cientistas e os documentos mostram, numa
forma concisa e quase moderna, que em muitos
experimentos havia concepções e processos li-
gados a velhos tratados e receituários. Basta ver
as tentativas de refino de ouro com antimônio
descritos por Goddard à Royal Society”, lembra
Márcia. Antes de julgar, porém, é preciso co-
nhecer a vinculação, na época, das ciências da
matéria às ciências médicas, lugar preferencial
desse hibridismo entre o antigo e o novo no cam-
po de batalha dos laboratórios. “Os chamados
‘males da pedra’,
a litíase renal, era
uma das principais
causas de morte
é preciso até o século XIX.
Nesse contexto, a
conhecer a alquimia se insi-
nuou como tábua
vinculação de salvação, já que
sua suposta capa-
das ciências cidade de ‘abrir’ os
materiais mais re-
da matéria sistentes, para ex-
trair sua essência
às ciências mais pura, poderia
dissolver as pedras
médicas do organismo”, ob-
serva Ana.
na época Era preciso en-
contrar algo com
o poder do ácido
sem os seus efeitos
colaterais letais pa-
Reprodução do livro O museu hermético: Alquimia & Misticismo, de Alexander Roob ra o corpo humano.
“Alkahest e a pedra
tusta que acaba de completar 350 anos de his- filosofal, combinados, formariam o remédio ide-
tória, em especial nos escritos de Henry Olden- al: o primeiro suavizaria os efeitos negativos do
burg, membro de uma rede europeia de sábios ácido e a pedra era o complemento ideal, pois
e secretário da recém-criada sociedade inglesa. seria potente o bastante para dissolver até um
“Para os estudiosos da Royal Society não havia metal resistente como o ouro e, ao mesmo tem-
nada mais a se descobrir em seus arquivos, em po, inócuo contra o organismo”, explica Márcia.
especial após a catalogação completa do acer- Não se pode, porém, negar que a busca desses
vo feita pelo casal Marie e Rupert Hall a partir produtos alquímicos também esteve ligada ao
dos anos 1960”, conta Ana. As brasileiras, po- desejo de produzir ouro, almejado por plebeus
rém, descobriram muito material nos “fundos e monarcas, e a muito “filosofismo” esotérico,
fechados” do arquivo, e não foi pouca coisa. O em voga na Inglaterra puritana. “Encontramos
achado mais “espetacular” foi a “receita” do muitos documentos nos arquivos da Royal Socie-
alkahest, suposto “solvente universal” alquími- ty que revelam uma visão milenarista de muitos
co que poderia dissolver qualquer substância, sábios da época”, diz Ana.
reduzindo-a a seus componentes primários. Isso, Menos vulgar do que o milenarismo medie-
nos papéis de homens “iluminados” pela razão val, os lentes britânicos preconizavam a “im-

250  _ especial 50 anos fapesp


portação” de judeus dos Países Baixos para a ratório se transforma no lugar da ‘prova’. Antes
Inglaterra, promovendo o encontro deles com usado para criar produtos, agora, entre os séculos o projeto
os puritanos, uma mistura que criaria um “cal- XVII e XVIII, ele passa a servir como centro de
Revelando os processos
do natural” de onde nasceria o messias capaz padronização de experimentos”, observa Ana. naturais através do
de iniciar uma nova era de progresso científico,

A
laboratório: a busca por
educacional e médico, onde todos poderiam se partir de questões alquímicas, iniciou-se princípios materiais nos três
reinos até a especialização
beneficiar dos avanços feitos nos laboratórios. a discussão sobre a necessidade de uma das ciências no setecentos –
“Eles queriam tornar tudo o que era incompre- ciência universal, em cujo centro estava nº 2005/56638-7
ensível, logo ameaçador, em compreensível, via a preocupação com a capacidade de reproduzir (2006-2011)

puritanismo, gerando o melhor e mais racional um dado experimento, em se estabelecerem pa- modalidade
Auxílio Pesquisa – Projeto
dos mundos”, conta Ana. Longe de delírio, era râmetros científicos, um meio do caminho entre Temático
um debate que envolveu intensa troca de cartas aspectos místicos e ciência. “O desenvolvimen- coordenadoras
entre membros da Royal Society e figuras como to gradativo da imprensa, que permitiu a maior Ana Maria Alfonso – Goldfarb
Espinoza e Leibniz. Einstein, que não jogava circulação de informações, e as trocas entre os Márcia Ferraz
Cesima – PUC- SP
dados com o universo, tinha lá sua razão. que haviam, tradicionalmente, guardado infor-
investimento
Ao lado das pesquisas híbridas com a alqui- mações sigilosas, extraídas da antiga literatura R$ 659.361,18
mia, todos eram segredos guardados a sete cha- e portadoras de seus vestígios, foi um fator de
ves. “Muitas vezes, havia casos de suborno, es- peso para o nascimento da nova ciência quími-
Artigos Científicos
pionagem e roubo de ‘re- ca”, analisa Ana. “Em troca
ceitas’ alquímicas a mando das buscas obsessivas por 1. ALFONSO-GOLDFARB, A. M.
de Oldenburg, em nome do materiais lendários, o labo- et al. Gur, Ghur, Guhr or Bur?
The quest for a metalliferous
progresso científico”, con- ratório acabou garantindo prime matter in early
ta a pesquisadora. Essas re- Foram marcadores excelentes pa- modern times. British
ceitas, porém, levantavam ra os progressos de análise Journal for the History of

questões que ajudaram na necessários e síntese. Acima de tudo,


Science. v. 44, p. 1-15, 2011.

criação da nova ciência. Afi- pensava-se garantir através 2. ALFONSO-GOLDFARB, A. M.

nal, os papéis secretos ti- dois séculos deles uma expressão mate-
et al. Chemical Remedies in
the 18th Century: Mercury
nham ingredientes exóticos rial e visível para o estu- and Alkahest. Circumscribere.
ou não os descreviam com para que o velho do dos princípios ou bases v. 7, p. 19-30, 2010.

precisão. Assim, como obter elementares que, de outra 3. ALFONSO-GOLDFARB, A. M.


o material certo, puro o su- laboratório do forma, pareciam inatin- et al. Lost Royal Society
documents on '
ficiente, capaz de fazer o re- gíveis”, completa Márcia.
ceituário funcionar? Talvez, alquimista se Foram necessários mais
lkahest' (universal
solvent) rediscovered. Notes
o malogro de se conseguir de dois séculos para que o and Records of the Royal

a pedra filosofal, por exem- transformasse velho laboratório do alqui-


Society of London. p. 1-23,
2010.
plo, se devesse a essas im- mista se transformasse no
precisões. “Era a busca da no laboratório do químico, com seus pa-
de nosso arquivo
transmutação, mas dentro drões modernos. Tempos
de procedimentos que se- do químico em que a ciência tentava A agenda secreta
riam a pedra fundamental não mancar e parte da re- da química
Edição nº 154 –
da ciência moderna. O labo- ligião queria enxergar. n dezembro de 2008

Documentos que
Reproduções do livro O museu hermético: Alquimia & Misticismo, de Alexander Roob valem ouro
Edição nº 182 –
abril de 2011

O ouro da sabedoria
Edição nº 177 –
novembro de 2010

pESQUISA FAPESP maio de 2012  _  251


252 
_ especial 50 anos fapesp
todas as imagens que ilustram esta matéria foram gentilmente cedidas pela biblioteca monteiro lobato
_  L ITERATURA

O Brasil
visto do sítio
Estudos sobre Monteiro Lobato fazem ressurgir a
complexidade do escritor em todas as suas contradições

Carlos Haag

C
om grande precisão Monteiro Lobato
(1882-1948) resumiu numa frase o cre-
do de sua vida: “Um país se faz com
homens e livros”. Ele tentou melho-
rar, modernizar e reunir, sem grande
sucesso, este trio e por causa dessa mesma trinca
amargou críticas ferozes, incompreensão e desi-
lusão. Ele meteu o “narizinho” em todos os aspec-
tos da sociedade brasileira com uma sabedoria
digna de Dona Benta, atacando o conhecimento
antiquado dos “sabugosas” e acertando o atraso
nacional com um bodoque certeiro. Parecia ter
tomado uma “pílula falante” e sua “torneirinha”
e jorrava vitupérios contra os males nacionais.
Foi, acima de tudo, um poço de contradições.
“Lobato é um pouco como todos nós, brasi-
leiros. Ora assumindo posições polêmicas, ora
se antecipando a seu tempo. Cresci lendo seus
livros e muito de minha criatividade e liberdade
de pensamentos devo a seus textos que levam à
reflexão, ultrapassam o limite temporal. Ele era
um brasileiro sob medida”, explica Marisa La-
jolo, professora da Universidade Estadual de
Campinas (Unicamp) e da Universidade Presbi-
Ilustração de 1936
de Belmonte para a teriana Mackenzie, vencedora do Prêmio Jabuti
turma do Sítio de 2009 por Monteiro Lobato: livro a livro, obra

pESQUISA FAPESP maio de 2012  _ 253


resultante do temático Monteiro Lobato e outros pudiou sobre os quadros inovadores da pintora
modernismos brasileiros, apoiado pela FAPESP, modernista Anita Mafalti. Ele é malvisto como
entre 2003 e 2007. “Como não podia deixar de o fazendeiro que ridicularizou seus agregados
ser, a presença múltipla de Lobato na vida de seu na figura do Jeca Tatu, ao mesmo tempo que é
tempo é envolvida por paixões violentas, contra- exaltado como o cidadão progressista defensor
dições e dicotomias. É justamente por isso que do petróleo nacional.
sua obra pede uma análise abrangente que, lon-

‘A
ge de fugir das contradições ou de abrandá-las,
carreira poliédrica de Lobato foi fruto de
aprofunde as oposições, inserindo suas ações em
uma visão de mundo arrojada e moderna,
contextos cada vez mais abrangentes”, observa
sempre em perfeita sintonia com o seu
a pesquisadora. momento histórico”, analisa Marisa. “Ele deixou
É nesse espírito que a equipe do temático pre-
marcas profundas na cultura brasileira e sua he-
para agora um novo estudo, desta vez dissecando
rança está presente nos lugares mais diversos. Por
“livro a livro” a sua obra adulta, pouco conheci-
exemplo, no perfil moderno da indústria livreira
da e apreciada em face do sucesso das criações
que criou, e também na problematização de vá-
infanto-juvenis. Ao longo dos anos, a história da
rios aspectos de práticas nacionais de escrita e de
literatura fixou uma imagem multiforme e um
leitura, de produção e da circulação de livros. Ele
tanto contraditória do escritor. De um lado, no-
foi um dos primeiros e raros intelectuais a per-
ta Marisa, afirma-se o escritor inventivo, consi-
ceber a profunda alteração pela qual passavam,
derado o criador de nossa literatura infantil; de
na modernidade, livros e leituras”, observa. Para
outro, despreza-se o crítico de pintura que tri-
tanto, empenhou o que tinha e o que não tinha.
Como comprovam, aliás, cartas
inéditas recém-descobertas por pes-
quisadores da Unidade Especial de
“As luzes sobre o modernismo Informação e Memória da Univer-
sidade Federal de São Carlos (UFS-
paulistano jogaram Lobato Car). No material descoberto, datado
de 1925, Lobato pede ajuda finan-
no limbo. Ele virou o vilão.” ceira ao fazendeiro Carlos Leôncio
de Magalhães, mais conhecido co-
mo Nhonhô Magalhães, para salvar
sua editora da falência. “Na primeira
carta ele diz ao fazendeiro que, se
ajudasse a editora, quem sabe um
dia os filhos do fazendeiro se inte-
ressariam por livros. Já na segunda,
Lobato diz que, se Nhonhô o aju-
dasse, não ajudaria somente o Bra-
sil, mas também a salvar sua vida,
em um tom mais emotivo”, conta
o professor João Roberto Martins,
coordenador da Unidade Especial.
A resposta de Nhonhô veio de for-
ma impessoal e datilografada, expli-
cando que não fazia mais negócios
por “necessitar de repouso”. “Essa
consciência aguda da dimensão eco-
nômica de livros e literatura são uma
As capas de das maiores marcas da modernidade
Marquez de de Lobato”, analisa Marisa Lajolo.
Rabicó, 1925, por
Daí a importância de mergulhar
Voltolino; Chave
do tamanho, 1949, na sua produção, em especial na qua-
por Augustus; e se esquecida literatura não infantil,
Emília no País da que voltou a ser editada apenas a
Gramática, 1934,
partir de 2007, quando a Editora Glo-
por Belmonte
bo assinou um contrato com os her-
deiros após anos de uma pendenga
com a Brasiliense, que detinha todos
os direitos sobre a obra lobatiana.

254  _ especial 50 anos fapesp


Ilustração de Iniciada a republicação, a grande surpresa foi o Paraíba, Lobato lutou contra as queimadas dos
J.G. Villin para o sucesso de venda dos livros para adultos, como caipiras, desancou o Jeca chamando-o de parasita
livro Reinações de
Narizinho, 1933
Urupês, por exemplo, a coletânea de contos que e predador da natureza.
introduziu o Jeca Tatu em 1918 e já está na quarta Em menos de dez anos, mudou de ideia: era a
reimpressão. “Se o papel de renovador da lite- falta de saúde o que ele tinha chamado de pre-
ratura infantil brasileira é inconteste, os novos guiça, escrevendo novos artigos redimindo o Jeca
tempos pedem uma reavaliação do jornalista, e denunciando a precariedade das políticas de
crítico de arte, ensaísta e polemista. As luzes saúde nacionais. “Vinte anos depois, ele vira a
sobre o modernismo paulistano jogaram Lobato mesa novamente. Lobato entendeu que o Jeca
no limbo. Ele virou o vilão. Nos últimos anos há era vítima da estrutura fundiária brasileira e se
uma revisão disso”, diz Marisa. “Além disso, ele pôs a escrever sobre isso”, lembra Marisa. Sua
é um excelente contista, divertido, violento em relação com o presente nunca foi das melhores:
relação à crítica social, despojado em termos de brigou com o Estado Novo pela falta de liberda-
linguagem”. de e pelo desinteresse geral dos brasileiros em
encontrar petróleo, tarefa a que se dedicou com

S
egundo Marisa, quem conhece Lobato apenas entusiasmo exacerbado, a ponto de perder, no-
como o incrível inventor do Sítio do Picapau vamente, seu patrimônio e parar na cadeia como
Amarelo pode conhecer o melhor Lobato, subversivo. No final da vida, o Jeca, agora trans-
mas, mesmo assim, está perdendo um bocado da formado em Zé Brasil, lutava não mais contra
personalidade do paulista sem papas na língua. doenças endêmicas, mas contra o latifúndio e a
“Entre 1882 e 1948, o escritor viveu entre dois bra- distribuição injusta de terra.
sis. Um mais agrícola, patriarcal, tradicionalista. “Monteiro Lobato fez mergulhos no imaginário
Com este, ele ajustou contas inventando um sítio coletivo e simultaneamente o fecundou; ‘taquigra-
onde impera o matriarcado, onde em vez de gado fou’ novas ideias sobre infância, que circulavam nas
há um burro falante e um sabugo sábio. O outro várias esferas culturais de seu tempo – como, por
era o Brasil que mudava de cara com a industria- exemplo, as teorias da Escola Nova – e as transpôs
lização. Para este segundo, ele foi um cidadão sob para sua obra literária”, analisa a pesquisadora
medida, feito de encomenda”. Fazendo no Vale do Cilza Bignotto, professora de teoria literária e lite-

pESQUISA FAPESP maio de 2012  _ 255


À esquerda,
o primeiro desenho
da boneca Emília, de
1920, por Voltolino
À direita, o Minotauro,
por Augustus, 1949

com o currículo escolar. Em contra-


“Quero fazer livros para posição à escola convencional, alvo O projeto
de frequentes críticas das persona-
criança morar, como eu morei gens lobatianas, o Sítio do Pica-Pau
Monteiro Lobato e outros
modernismos brasileiros
Amarelo surge como uma escola al-
no Robinson Crusoé ” ternativa. Nela, conhecimentos de
– nº 2002/08819-4
(2003-2007)
Modalidade
gramática, matemática, geologia e Projeto Temático
até rudimentos de uma política na- Coordenadora
cionalista do petróleo são veiculados Marisa Philbert Lajolo –
ratura brasileira na Universidade Federal de Ouro e assimilados de forma crítica, independente e Instituto de Estudos da
Linguagem, Unicamp
Preto. “Da mesma forma, percebeu e registrou de sempre questionadora, especialmente na relação
Investimento
modo bastante peculiar as idéias sobre infância que de ensino-aprendizagem entre Dona Benta e a R$ 69.805,15
existiam naqueles segmentos sociais que constitu- discípula Emília.
íam o ‘Brasil arcaico’: as comunidades caboclas, os

‘Q
Artigos científicos
grupos de camponeses caipiras do interior de São uero fazer livros para criança morar. Não
Paulo, a gente pobre da periferia que começava a ler e jogar fora, mas morar como eu morei LAJOLO, M. P. Mário de
se formar na capital do estado”, analisa. Foi, aliás, no Robinson Crusoé”, escreveu o escritor Andrade e Monteiro Lobato:
um diálogo modernista em
com um achado de Cilza que o temático coorde- em carta ao amigo Godofredo Rangel. A Repú- três tempos. Teresa (USP).
nado por Mariza Lajolo ganhou matéria-prima de blica Velha pregava o ideal do moço sério, um v. 8-9, p. 141-60, 2008.
primeira. A pesquisadora, fazendo o seu mestrado, adulto em miniatura, quieto e pronto a obedecer LAJOLO, M. P. A figura do
deparou-se num porão de um livreiro em Santos e aceitar os valores estabelecidos. Na época, os negro em Monteiro Lobato.
Presença Pedagógica, Belo
com montanhas de material inédito de Lobato e livros reproduziam o sistema, ou seja, criança
Horizonte. v. 04, n. 23,
usou dinheiro da sua bolsa da FAPESP para adqui- levada era castigada. “Ele rompeu essa tradi- p. 21-31, 1998.
rir os tesouros, que decidiu colocar ao alcance do ção autoritária, inspirando-se no e inspirando o LAJOLO, M. P. Monteiro
público, doando tudo ao Instituto de Letras da Uni- projeto de renovação educacional estabelecido Lobato: um brasileiro sob
camp. Isso permitiu a criação do Fundo Monteiro após a revolução de 1930, quando os intelectuais medida. São Paulo: Editora
Moderna, 2000. v. 1. 99 p.
Lobato, que reúne hoje um acervo de mais de dois passaram a pregar um novo sistema de ensino
mil itens, entre originais, cartas, fotos, primeiras como forma de resolver os males do país”, ob-
edições, etc. Foi o “baú do Lobato” que ajudou os serva Cilza. Entre eles, destacou-se o educador De nosso arquivo
pesquisadores a adensar os trabalhos do temático baiano Anísio Teixeira e sua Escola Nova, que O futuro do presente
Monteiro Lobato e outros modernismos brasileiros. pretendia democratizar o saber, fazê-lo agradá- no pretérito
A análise dos novos achados deu novas peças ao vel aos jovens. Lobato soube trocar a travessura Edição nº 184 –
junho de 2011
quebra-cabeça que continua a ser montado pelo por aventura, colocando ao alcance da criança o
grupo e foi se configurando um Lobato ainda mais gesto libertário na figura da Emília. Lobato lu- O latifúndio de Lobato
Edição nº 157 –
complexo. Afinal, como observa Marisa, sempre tou por isso até morrer, ou melhor, até virar “gás março de 2009
atento a sua realidade, ele soube incorporar, em inteligente”, sua metáfora da morte. Apesar do
Independência ou morte
uma obra ficcional pautada pela fantasia e pelo tempo, ele permanece o inconformista ideal para Edição Especial FCW –
humor, informações muitas vezes coincidentes os tempos modernos, tão conformados. n outubro de 2007

256  _ especial 50 anos fapesp


pESQUISA FAPESP maio de 2012  _ 257
a fapesp em 50 anos

112 mil
bolsistas
desde 1962

96 mil
auxílios regulares
a pesquisas
desde 1962

1.185
pesquisadores
apoiados pelo
programa Jovens
Pesquisadores
desde 1995

54
convênios e
acordos de
cooperação
internacional
em vigor

1.535
Projetos
Temáticos
aprovados
desde 1991

1.200
projetos de
Pesquisa e
Inovação
Pequenas
Empresas
(em 2011, dois
aprovados
por semana),
eduardo césar

desde 1997

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