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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE - Dissertação (MESTRADO) Juliana Pinho Leite
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE - Dissertação (MESTRADO) Juliana Pinho Leite
Mestrado em História
“Não somos nada nessa vida”: A denúncia do racismo em Clara dos Anjos. (1914-1948)
Niterói
2021
JULIANA PINHO LEITE
“NÃO SOMOS NADA NESSA VIDA”: A DENÚNCIA DO RACISMO EM CLARA DOS ANJOS.
(1914-1948)
Banca examinadora
Suplente
Niterói
2021
À minha querida avó Maria da Glória, que durante toda a sua vida me ensinou a ser cada vez mais
forte e corajosa. É por ela que eu cheguei até aqui
AGRADECIMENTOS
Agradeço imensamente a Professora Doutora Larissa Vianna que incentivou a minha escolha
e me acolheu generosamente em todo esse processo, sempre com muito carinho e
compreensão. Sem a sua orientação sempre cuidadosa eu jamais conseguiria concluir esta
etapa;
Agradeço ao Professor Alain Pascal Kaly que durante toda a minha trajetória acadêmica foi o
meu maior incentivador. Nossa relação ultrapassou as paredes da academia e se tornou uma
grande amizade. Muito obrigada por toda parceria intelectual, pela confiança, pela
generosidade e pelo incentivo a minha entrada no mestrado, seja por empréstimos de livros,
seja com uma palavra amiga;
Agradeço, igualmente, à professora Doutora Mônica Lima que concordou em fazer parte de
minha qualificação e de estar, de novo, comigo, na banca de defesa. Os comentários e
sugestões durante todo o processo de escrita foram essenciais, além do maravilhoso curso
oferecido pela UFRJ e ministrado pela professora Mônica Lima que tive a oportunidade de
cursar e enriquecer o meu trabalho;
Agradeço a todos os meus amigos pelo estimulo e incentivo. Em especial, a Juliana Pereira e
Caio Sérgio pelas nossas discussões acadêmico-afetivas sobre os mais variados assuntos,
pelas diversas leituras críticas, pelas correções, pelas longas conversas por telefone, os
desabafos e por sempre se colocarem à disposição para minhas dúvidas a qualquer hora;
Agradeço ao meu companheiro Yuri Ribeiro pela presença, o amor e a paciência de suportar
todas minhas crises nervosas e os meus momentos mais difíceis ao longo do mestrado. Sou
muito grata por ter me amado e ter ficado ao meu lado mesmo quando eu não merecia;
Por fim, agradeço aos meus familiares que estiveram ao meu lado durante todas as fases deste
trabalho. Em especial, aos meus pais que com o amor e carinho de sempre me apoiaram e me
deram força para trilhar esse caminho. Sem o apoio de todos eu jamais conseguiria.
RESUMO
Esta dissertação trata do modo como o literato Afonso Henriques de Lima Barreto, ao longo
do contexto em que estava inserido, expressou e lidou com os problemas diretamente ligados
ao racismo. Adotamos nessa pesquisa o conceito de racismo a partir da sua carga política e da
sua prática ideológica, que inferioriza e produz atitudes discriminatórias manifestadas em
diferentes maneiras e em vários contextos históricos. Lima Barreto através da sua literatura
militante, lutou contra práticas limitadas e limitantes, tanto no campo do individual, quanto no
institucional. Será entrelaçado aos seus testemunhos, principalmente ao romance Clara dos
Anjos, que analisaremos o modo como as questões raciais atravessaram a sua narrativa. Este
trabalho se estrutura em três capítulos: no primeiro capítulo abordaremos parte da trajetória de
Lima Barreto, tentando compreender a sua missão literária e a sua luta social; no segundo
capítulo produziremos uma análise sobre a primeira publicação de Clara dos Anjos com o
objetivo de compreendermos os espaços que perpetuaram a voz de Lima Barreto; e, no
terceiro capítulo procuramos perceber, a partir da obra Clara dos Anjos, o debate político
travado pelo autor, principalmente, o modo que as injustiças e o racismo aparecem na escrita
do romance.
Palavras – Chave: Lima Barreto, racismo, Clara dos Anjos, literatura, Rio de Janeiro e
produção intelectual
ABSTRACT
This dissertation deals with the way in how the literate Afonso Henriques de Lima Barreto,
throughout the context in which he was inserted, expressed and dealt with the problems
directly linked to racism. In this research, we adopted the concept of racism from its political
load and its ideological practice, which lowers and produces discriminatory attitudes
manifested in different ways and in various historical contexts. Lima Barreto, through his
militant literature, struggled against limited and limiting practices, both in the individual and
institutional fields. It will be intertwined with the testimonies – especially to the novel Clara
dos Anjos – that we will analyze the way in how racial issues crossed its narrative. This work
is structured in three chapters: in the first chapter we will approach part of Lima Barreto's
trajectory, trying to understand his literary mission and his social struggle; in the second
chapter we will produce an analysis of Clara dos Anjos' first publication with the aim of
understanding the spaces that perpetuated Lima Barreto's voice; and in the third chapter we
try to understand – from Clara dos Anjos – the political debate waged by the author, mainly
the way the injustices and racism appear in the writing of the novel.
Keywords: Lima Barreto, racism, Clara dos Anjos, literature, Rio de Janeiro, intellectual
production.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO:
[...]Se me esforço por fazê-lo literário é para que ele possa ser lido, pois quero falar
das minhas dores e dos meus sofrimentos ao espírito geral e no seu interesse, com a
linguagem acessível a ele. É este o meu propósito, o meu único propósito”. 1
Era ano de 1889 quando nasceu a primeira república brasileira. Havia, nessa época, a
ideia de superar o passado, o atraso e seguir em busca da civilização. A república surgiu,
nesse contexto, entrelaçada às ideias de solução e de salvação do povo brasileiro. Segundo
Maria Tereza Chaves de Mello, a república representava uma oposição ao passado, era o
futuro cheio de expectativas sociais e “modernização à brasileira”2: a liberdade, a cidadania, o
povo e a democracia eram palavras-chave para a propaganda republicana3, contudo, essa
república foi implementada um ano após a abolição jurídica da escravidão, e, entre as suas
ideias, não havia nenhuma concessão de meios financeiros ou de terras para que os negros
libertos pudessem reiniciar as suas vidas com dignidade. Consequentemente, o novo regime
governamental já nascia comprometendo o futuro de uma grande parte da população do país
e, em simultâneo, criando meios e mecanismos favorecendo as estruturações dos cidadãos já
privilegiados. É importante destacar que os negros usaram diversas armas (fugas,
enfrentamentos, abortos...) de mobilizações políticas nos planos individuais e coletivos ao
longo de mais de três séculos, revelando, no século XIX, uma nova arma de luta: a escrita. 4
Foi neste contexto político e histórico brasileiro que o intelectual Afonso Henriques de Lima
Barreto produziu as suas críticas e os seus escritos.
O literato em suas obras, como por exemplo: Claras dos Anjos, de 1922; Recordações
do Escrivão Isaías Caminha, de1909; O Triste fim de Policarpo Quaresma, de 1911, entre
outras, deu ênfase nas questões ligadas às desigualdades sociais e raciais existentes durante o
período de construção do Brasil republicano. Portanto, Lima Barreto foi um autor que refletiu
sobre o que hoje é chamado período de pós-abolição. Vivendo no Rio de Janeiro, a então
capital da república e o lugar de berço para o projeto civilizatório que se instalaria no Brasil, o
autor acompanhou e fez parte do cotidiano dessa população, produzindo e deixando para a
posteridade, através de suas reflexões, um acervo literário de grande valor para as próximas
gerações, principalmente, sobre a exclusão institucionalizada dos brasileiros negros. As
1
BARRETO, Lima. Recordações do Escrivão Isaías Caminha. São Paulo: Ática, 1995, p. 120.
2
Ibidem, p. 16.
3
MELLO, Maria Tereza Chaves de. “A modernidade republicana”. Tempo, v. 13, n. 26, p. 15-31, 2009.
4
Ver em: CHALHOUB, Sidney. Visões de Liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
11
Afonso Henriques de Lima Barreto – seu nome de batismo –, literato natural da cidade
do Rio de Janeiro, nasceu no dia 13 de maio de 1881, em uma humilde casa que ficava na rua
Ipiranga, no bairro de Laranjeiras. Filho de João Henriques de Lima Barreto e Amália
Augusta Barreto, era mulato e pobre. O autor teve contato desde muito cedo com as
desigualdades sociais e com o racismo gerados pelo tom da sua pele, à época entendida como
uma cor de seres inferiores e sem capacidades racionais. O seu pai “era mulato, quase preto.
Nascera liberto, é verdade, mas trazia na pele o estigma da cor” 5, sendo este filho da
escravizada Carlota Maria dos Anjos com um português madeireiro, que nunca o reconheceu
como filho legítimo.6 Amália Augusta Barreto, por sua vez, era neta da escravizada Maria da
Conceição, trazida da África num navio negreiro. Entre os muitos filhos que a escravizada
gerou, nascera a Geraldina Leocádia da Conceição, mãe de Amália Barreto. Apesar de
libertas, mãe e filha ainda viveram como agregadas na casa dos Pereira de Carvalho – é
relevante pontuar que foi nesta casa que João Henriques de Lima Barreto conheceu a sua
esposa.
A família dos Barretos mudou-se muitas vezes devido a precária saúde de Amália
Augusta, que começou a sentir os sintomas da tuberculose logo depois dos primeiros partos.
Antes de conceber Lima Barreto, Amália Augusta teve outra gravidez onde o filho não
resistiu, morrendo depois de oito dias. Chamou-o Nicomedes. Os efeitos desse parto difícil
renderam para a jovem mãe um traumatismo e uma paralisia nas pernas, ficando dependente
de muletas pelo resto da vida. João Henriques passou a vida tentando salvar a saúde de sua
amada mulher e as constates mudanças representaram as tentativas de melhorar a condição de
vida para Amália Augusta. Após residir em Laranjeiras, foram para o Flamengo,
posteriormente foram para a rua Marrecas, mais próximo da Santa Casa da Misericórdia. A
ida para o subúrbio, em seguida, foi ideia de João Henriques, pois, segundo Lilian Moritz
Schwarcz, para ele, o bairro teria um melhor clima e preços mais baixos de arrendamentos. 7
Viveram também no Engenho Novo, no Meier, no Catumbi e no bairro de Paula Matos.
Entretanto, mesmo com todas essas mudanças e com a constante busca pelo tratamento,
Amália Augusta Barreto morreu em dezembro de 1887, vítima de tuberculose. De acordo com
5
BARBOSA, Francisco de Assis. A vida de Lima Barreto: 1881 – 1922. 11 ed. Belo Horizonte: Autêntica
Editora, 2017, p 31.
6
Ibidem, p 32.
7
SCHWARCZ, Lilia Moritz. Lima Barreto: triste visionário. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.p.56.
12
Schwarcz, a doença de Amália deve ter incomodado muito os Barreto, para além do
sofrimento físico da perda da genitora da família. Vivendo em um período em que os sujeitos
eram classificados pelos seus estigmas hereditários, onde os mestiços eram vistos como
naturalmente degenerativos pela sua raça, a doença da mãe do literato contribuiu ainda mais
para o sofrimento gerado pelo preconceito na vida dos Barretos. 8
Lima Barreto relembrou a imagem da mãe em muitos dos seus escritos. A própria
história da vida de Amália Augusta, sendo mestiça, fruto da exploração de uma ex-
escravizada com o Senhor da casa, pode ser vista como referência para o autor escrever o
romance Clara dos Anjos. Francisco de Assis Barbosa, o principal biógrafo de Lima Barreto,
nos diz ser através da ficção que o literato vai explicar e descrever o seu próprio caso,
aludindo as suas origens e às questões que atingiam o seu núcleo familiar. Pertencendo Lima
Barreto à categoria dos escritores que mais confessam através de suas obras, conforme já
observou Astrojildo Pereira, e tendo o próprio romancista dito certa vez que tudo o que
escrevia eram capítulos das suas memórias.10
Não só Clara dos Anjos, como a maioria de seus personagens foram inspirados em
seus familiares, nas questões e nos conflitos que enfrentavam cotidianamente. João Henriques
de Lima Barreto também foi, sem dúvida, a referência de algumas das suas criações. Tendo
uma admiração enorme por seu progenitor, podemos dizer que Lima Barreto retratou em
muitas de suas obras a figura do seu amado pai. É o caso, por exemplo, do Major Policarpo
Quaresma em O Triste Fim de Policarpo Quaresma e do pai do personagem principal em
Recordações do Escrivão Isaías Caminha.
Por seu pai, tão amigo e inteligente, Lima Barreto há de conservar uma grande
admiração de toda a vida. Muito provavelmente dele se lembrou, mais ainda talvez
que no retrato de Policarpo Quaresma, ao traçar o perfil do pai de Isaías Caminha.
“Meu pai, o seu corpo anguloso, seco, a sua dor contida, que se escapava no seu
olhar e na sua fisionomia transtornada. Via-os às tardes, nos dias de bom humor,
8
Ibidem, p. 51 – 57.
9
BARBOSA, Francisco de Assis. A vida de Lima Barreto: 1881 – 1922. 11 ed. Belo Horizonte: Autêntica
Editora, 2017, p. 57
10
Ibidem, p. 23
13
mudá-la de chofre, fazer-se risonho, vir para mim, sentar-se à mesa, e, à luz do
lampião de querosene, explicar-me pitorescamente as lições do dia seguinte.” Sim,
não há dúvida que são o mesmo pai, um e outro, como o filho deste, Isaías, é o
próprio romancista.11
De acordo com Barbosa, Lima Barreto aprendeu a ler com a sua mãe, uma jovem
professora que liderou um colégio para meninas no bairro das Laranjeiras. Sua trajetória
educacional começou com a própria progenitora, seguindo para as aulas em uma escola
pública localizada na rua Rezende. Depois, o adolescente Lima Barreto cursou no Liceu
Popular Niteroiense, colégio de grande prestígio na época. Os seus estudos nesse período
foram financiados pelo seu padrinho, o Visconde de Ouro Preto. Ao sair do Liceu Popular
Niteroiense, prestou exames para o Ginásio Nacional, o velho Colégio Pedro II. Ao final de
sua vida educacional, o literato ingressou na Escola Politécnica, permanecendo lá, ainda que
contra a própria vontade, até que tivesse que abandonar seus estudos para assumir como chefe
a sua grande família, logo depois que o seu pai enlouquecera.
Após a morte da mãe e antes da loucura do pai, os Barretos foram viver na rua
Riachuelo, no centro. A mudança foi justificada por Schwarcz devido a “maré favorável” que
o pai de Lima Barreto conquistou profissionalmente. Tornando-se técnico das oficinas
tipográficas da Tribuna Liberal e mestre da oficina de composição da Imprensa Nacional.12
Porém, esse bom momento acabaria no período da Proclamação da República, “era um novo
Brasil que se montava: sem escravos e sem seu soberano. E, nessa maré, o pai de Lima,
infelizmente, acabou associado a tudo que parecia antigo sendo vinculado ao regime
monárquico.”13 João Henriques era compadre de Visconde de Ouro Preto e o apoio a ele lhe
rendeu uma demissão – que o genitor de Lima Barreto não esperou acontecer de fato, indo
embora antes mesmo de ser demitido, o que demonstra um pouco do comportamento do pai
de Lima Barreto tão parecido com o do autor. Os dois não renunciavam as suas ideias e
convicções, defendendo-as mesmo que isso lhes redessem grandes prejuízos.
Com tantos anúncios desagradáveis, o pai de Lima não esperou o sinal vermelho.
Quando soube que constava de uma “lista”, e depois de um colega provocá-lo por
ter participado do “bota-fora de Ouro Preto”, João Henriques, tranquilo no trabalho e
de caráter tempestuoso na vida, vestiu o paletó de alpaca que havia acabado de
pendurar e afirmou que “não daria esse gosto” ao Rui Barbosa. Ninguém iria demiti-
lo. Saiu da Tribuna e da Imprensa Nacional, onde fora tipógrafo por doze anos sem
interrupção.14
11
Ibidem, p. 70
12
SCHWARCZ, Lilia Moritz. Lima Barreto: triste visionário. São Paulo: Companhia das Letras, 2017, p. 58.
13
Ibidem, p. 73
14
Ibidem, p. 75 – 76.
14
Depois da demissão, a família foi viver na Ilha do Governador e João Henriques virou
administrador da Colônias dos Alienados, por indicação de Ouro Preto. Por coincidência, esse
foi seu último emprego, pois ele enlouqueceu em 1902, abandonando o ofício. Neste contexto,
a família dos Barretos junto à nova companheira de João Henriques e os três filhos dela,
mudaram-se para o Engenho Novo, vivendo lá até Lima Barreto ser admitido para uma vaga
de amanuense da Secretária de Guerra.
Com a doença do pai, Lima Barreto se tornou o principal responsável pela sua família,
o que gerou no Literato a necessidade de angariar mais recursos para o sustento de todos. Para
isso, o autor deu algumas aulas como professor, porém, percebendo que os recursos
financeiros recebidos pelas aulas não eram suficientes, decidiu participar de um concurso
público. Lilia Schwarcz aponta para o fato de ser a falta de opção que levou Lima Barreto a se
inscrever no concurso para a vaga de amanuense na Secretaria de Guerra, profissão que se
tornava comum no meio intelectual da época.15 Depois de oito dias de provas, o autor
conquistou o segundo lugar na classificação; Schwarcz e Barbosa dizem que o que levou o
literato a ficar com essa posição foi a sua má letra, já que na prova de caligrafia recebeu nota
3 e o seu competidor conseguiu conquistar a nota 9.16 Mesmo ficando em segundo lugar,
Lima Barreto logrou preencher a vaga, assumindo o cargo no dia 28 de outubro de 1903.
Ainda que considerasse o seu emprego indigno por passar o seu tempo sendo obrigado a
copiar uns documentos e a redigir alguns outros, o autor não viu outra alternativa. O salário
não era dos melhores, mas dava, limitando com muito afinco os gastos, para sustentar a sua
família. Com isso, mudaram-se pela última vez, o que fez com que o literato estivesse de
volta ao subúrbio, para o bairro de Todos os Santos, onde viveu até a sua morte, em 1922.17
A vida de Lima Barreto não foi nada fácil, desde a sua infância teve que lidar com a
doença da mãe e depois com a do pai, que enlouqueceu, visto que o jovem autor virou o único
responsável pela sua família após a loucura de João Henriques. A loucura também foi o
motivo do “declínio” de Lima Barreto, como bem apontou Francisco Barbosa. Por duas vezes,
o autor foi internado no hospício devido as suas crises: a primeira foi em 1914 e a segunda
1919, ele mesmo narrou esses episódios em seu Diário do Hospício. Vivendo em uma
sociedade onde era julgado pela sua cor cotidianamente, Lima Barreto teve diversas crises e
episódios de alcoolismo que contribuíram para a sua morte no dia 1° de novembro de 1922.
15
Ibidem, p. 143.
16
Ibidem, p. 144
17
Ibidem.
15
De acordo com Barbosa, quem encontrou o literato morto foi a sua irmã, Evangelina Barreto.
Ao entrar no quarto do irmão no final da tarde encontrou o escritor morto, sentado, com o
volume da Revue des Deux Mondes entre seus braços.18
Podemos pensar a condição da saúde de Lima Barreto a partir das reflexões de Sueli
Carneiro.19 A autora nos diz que as consequências mais perversas do racismo e da
discriminação social são “os danos psíquicos e, sobretudo, o golpe na autoestima que os
mecanismos discriminatórios produzem nas vítimas do racismo.” 20 Essa manifestação
preconceituosa causou e causa o adoecimento dos sujeitos negros que carregam em seus
corpos as marcas da escravização e da opressão. A inferiorização, a marginalização e a
desumanização pela sociedade potencializaram os danos na saúde mental desses sujeitos.
Lima Barreto é uma das vítimas do racismo e da política de embranquecimento que adoece,
inferioriza e nega a humanidade ao negro. Porém, o literato não é a vítima triste e deprimida
que escrevia sobre as suas decepções, como por muito tempo foi propagado, Lima Barreto é
um intelectual que usou a sua narrativa – arma de mobilização e posicionamento político –
para apontar e denunciar os efeitos negativos que o racismo gerou na sociedade. Foi um
lúcido pensador brasileiro, que refletiu sobre as derivas políticas e as ideológicas do estado.
Os efeitos negativos dessa política são os responsáveis pelas condições não só psicológicas,
como físicas e sociais as quais o literato foi submetido.
Para mais análise sobre isso, podemos iluminar as nossas reflexões a partir das
conclusões realizadas por Fanon, como, por exemplo, na obra Os Condenados da Terra onde
o autor aborda, apoiado em concepções marxistas, os efeitos destrutivos que os violentos
processos de colonização e, consequentemente, o de descolonização na Argélia e na África
trouxeram para os colonizados. 21 Tratando, inclusive, o supracitado autor, dos danos à saúde
mental desses homens. Ao evidenciar e denunciar a violência acometida na colonização a
partir de um panorama político e histórico, Fanon afirma que se o processo de colonização
teve em suas bases a violência, o de descolonização também precisa ser feita sobre a mesma
via, já que, “[...] a descolonização é sempre um fenômeno violento” 22, entretanto, essa guerra
deixou múltiplas feridas, incluindo as perturbações mentais. “A verdade é que a colonização,
18
BARBOSA, Francisco de Assis. A vida de Lima Barreto. 1881 – 1922. 11 ed. Belo Horizonte: Autêntica
Editora, 2017, p. 338 – 339.
19
CARNEIRO, Sueli. Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil. São Paulo: Selo Negro, 2011.
20
Ibidem
21
FANON, F. Os Condenados da Terra. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1968. p.74
22
Ibidem, p.51.
16
na sua essência, já se apresenta como uma grande provedora dos hospitais psiquiátricos.”23 Ao
negar sistematicamente a humanidade do outro, o regime colonial causa feridas físicas e
mentais, produzidas e reproduzidas pela opressão. 24 Assim, ao realizar um estudo sobre os
doentes argelinos e franceses tratados no hospital psiquiátrico, o autor conclui que “parece-
nos que no caso aqui apresentado, o acontecimento desencadeador é principalmente a
atmosfera sangrenta, cruel, a generalização de práticas desumanas, a impressão pertinaz que
têm os indivíduos de assistirem um verdadeiro apocalipse”.25
Nesse sentindo, ainda que o Lima Barreto tenha um histórico de doenças que
acometeram a sua família – tanto o pai, quanto sua mãe –, essas condições não podem ser
entendidas apenas pela via biológica. O processo de colonização hierarquizou os humanos e
causou danos brutais. O conceito de raça, nesse contexto, foi usado como construção social
que reforçou os preconceitos e o racismo nas relações sociais. As lutas de Lima Barreto não
podem ser entendidas fora dessas bases analíticas, o autor sabia que apesar da sua
intelectualidade, sempre seria visto como um cidadão de segunda e terceira categoria em
razão de suas origens e de sua cor. O racismo limitou a sua cidadania, sua humanidade e
adoeceu o seu corpo e sua mente. Por isso, os escritos de Lima Barreto são sempre
atravessados pelos efeitos negativos e ideológicos dessa prática que inferioriza.
Para guiar nossa análise, é necessário abordar o conceito de raça e de racismo que faz-
nos enfrentar muitos obstáculos metodológicos e teóricos devido as suas pluralidades de
definições. Gabriela dos Reis Sampaio e Marcelo Balaban na introdução de Marcadores da
Diferença já sinalizam a dificuldade de lidar com a noção de raça – tema de todos os trabalhos
apresentados no livro –, afirmando que ela não possuiu sentido único.26 Para isso, os
historiadores defendem que o conceito é um fenômeno histórico, uma experiência que oscila
no tempo, possuindo vários significados, práticas, sentidos, formas e características conforme
as vivências de diferentes indivíduos em variados contextos.27 Racismo, nesse sentido, é
analisado a partir da perspectiva da história social, é refletido em diferentes marcas e
realidades, sendo, também, produtor de desigualdades sociais. Portando, de acordo com
Sampaio e Balaban a violência do racismo praticada no tempo da escravidão foi ressignificada
23
Ibidem, p.287.
24
Ibidem, p. 212.
25
Ibidem, p. 213.
26
SAMPAIO, Gabriela dos Reis; LIMA; Ivana Stolze; BALABAN, Marcelo (orgs.). Marcadores da diferença:
raça e racismo na história do Brasil. Salvador: EDUFBA, 2019.
27
Ibidem, p.8.
17
Pensando um pouco mais no conceito de raça, Munanga nos ajuda a ilustrá-lo com as
suas reflexões. De acordo com o autor, raça, em seu sentido moderno, designa classificar as
diversidades humanas e legitimar a dominação dos sujeitos sociais sobre outros. 29 A ideia de
pureza de raça foi importada das definições da botânica e da zoologia que categorizam os
animais e os vegetais segundo as suas espécies. Depois dos séculos XVI e XVII, o conceito de
raça passou a ser usado para classificar os humanos em subgrupos. A cor da pele, os lábios, o
nariz e o tamanho do crânio, e logo depois, no século XX, o sangue se tornaram critérios para
dividir a humanidade em três raças – o branco, o negro e o indígena – , entretanto, o próprio
cruzamento entre a variabilidade humana tornou essas diferenças genéticas insuficientes
cientificamente, pois, mesmo que em menor incidência, um marcador genético de uma raça
pode ser encontrado em outra. Nesse sentido, as diferenças genéticas não são suficientes para
que o conceito seja biológico ou científico. O conceito de raça é, portanto, carregado de
ideologias que determinam as relações de poderes e de dominação.
28
Ibidem, p.10.
29
MUNANGA, Kabengele. Uma abordagem conceitual das noções de raça, racismo, identidade e etnia.
Palestra proferida. 3º ed. 2004.
30
Ibidem 1-17, p.7-8.
18
Granda Kilomba também aborda o conceito de racismo e modo como ele viola as
esferas sociais e individuais dos negros e das pessoas de cor ao negá-los o status de sujeitos e
ao negligenciar os seus interesses políticos, individuais e sociais. O racismo, em sua
perspectiva, é construído de forma simultânea a partir de três características: a construção da
diferença, a hierarquização de valores e o poder. A construção da diferença é elaborada em
comparação ao outro que “difere” do grupo entendido como norma. Nesse sentido, salienta-se
que o ponto referencial é a branquidade e o “outro” é construído como “diferente”. A partir
das diferenças, os valores hierárquicos são acionados. Assim, esses valores brancos
naturalizados são aplicados a todos os membros e servem de julgamentos para os estigmas e à
inferioridade. A terceira caraterística abordada pela autora é o poder histórico, político, social
e econômico pertencentes ao grupo dominante. É a combinação das duas características com o
poder que reproduz o racismo e a supremacia branca. O problema do racismo está na
desigualdade, não na diversidade entre as pessoas. 32
31
MILES, Robert. Racism and Migrant Labour. American Political Science Review, Boston, v. 78, n. 2, p. 542-
543, jun. 1982
32
ALBUQUERQUE, Wlamyra R. O jogo da dissimulação: Abolição e cidadania negra no Brasil. São
Paulo: Companhia das Letras, 2009, p.75-77.
33
Idem. 2019
19
34
SAMPAIO, Teodoro. “Eminência parda” e a “cor não luzidia”: negócios da liberdade e racialização no tempo
da abolição. In: SAMPAIO, Gabriela dos Reis; LIMA, Ivana Stolze & BALABAN, Marcelo (orgs.). Marcadores
da diferença: raça e racismo na história do Brasil. Salvador: EDUFBA, 2019.
35
Ibidem, p.126.
36
Ibidem, p.131.
37
Ibidem, p. 136.
20
históricos. O literato através da sua literatura militante, lutou contra práticas limitadas e
limitantes, tanto no campo do individual, quanto no institucional, motivadas por ideologias
que produziam desigualdades e discriminação. Lima Barreto produziu uma substanciosa
crítica através dos seus escritos em combate a estruturação social com base na noção de raça e
na conduta do racismo. Entretanto, a obra que vai nortear o nosso caminho é Clara dos Anjos.
Compilado a ela, abordaremos alguns outros escritos de Lima Barreto como, por exemplo, o
seu Diário Íntimo.
Lima Barreto desde o início de sua carreira já sabia o que buscava: escrever uma
literatura militante, uma expressão do meio em que vivia, uma compreensão do fenômeno
social. É possível pensarmos que Lima Barreto se enquadra em um grupo de literatos,
cronistas e poetas como João do Rio, Coelho Neto, Vagalume, entre outros, que têm em seus
escritos uma fonte importante para compreendermos o período republicano. Assim como
apontou Francisco de Assis Barbosa, “não será possível poder-se à revisão da nossa história
republicana, do 15 de novembro ao primeiro 15 de julho, trabalho que tanto se impõe, sem
21
recorrer aos romances, contos, crônicas e artigos de Lima Barreto.”38 Será entrelaçado aos
testemunhos – principalmente, ao romance Clara dos Anjos, o qual investigaremos – um
pouco do contexto político e social da época e a forma que as questões raciais atravessaram a
sua narrativa.
38
BARBORA, Francisco de Assis. Prefácio. In: BARRETO, Lima. Recordações do Escrivão Isaías Caminha.
São Paulo: Editora Brasiliense, 1956, p.9.
22
[...] o homem por intermédio da Arte, não fica adstrito aos preceitos e preconceitos
de seu tempo, de seu nascimento, de sua pátria, de sua raça; ele vai além disso, mais
longe que pode, para alcançar a vida total do Universo e incorporar sua vida na sua
do Mundo... Mais do que qualquer outra atividade espiritual de nossa espécie, a
Arte, especialmente a Literatura, a que me dediquei e com que me casei; mais do
que nenhum outro qualquer meio de comunicação entre os homens, em virtude
mesmo do seu poder de contágio, teve, tem e terá um grande destino na nossa triste
humanidade.39
Fanon produz uma importante reflexão sobre a dimensão da linguagem; ele nos diz
que o ato de fala existe para o outro. A linguagem, nesse sentido, é um fenômeno de enorme
potência, possui-la e dominá-la é dispor de racionalidade.40 Limitar o sujeito negro e
estigmatizar a sua linguagem como algo infantil e primitivo é usar das barreiras do
colonialismo para demarcar os acessos que essas pessoas podem ter, é dizer “você aí, fique no
seu lugar!”41. Ou seja, é não reconhecer as suas capacidades intelectuais e racionais. Seguindo
essa ideia, um indivíduo negro que possua capacidades intelectuais é um suspeito, pois,
estaria quebrando com as definições já estabelecidas sobre a sua falta de humanidade,
rompendo com a marca determinada pela sua condição social. Nesse sentido, podemos
entender a afirmação de Lima Barreto ao dizer que “É muito triste não ser branco”, dado que
a racionalidade dos seres de cor, considerados sub-humanos é negada a todo momento, suas
inteligências foram sempre jugadas e desvalorizadas. 42 O negro, em termos de cidadania, teve
os seus direitos políticos, jurídicos e sociais renegados desde a colonização.
Quando um preto fala de Marx, a primeira reação é a seguinte: “Nós vos educamos e
agora vocês se voltam contra seus benfeitores. Ingratos! Decididamente, não se pode
esperar nada de vocês”. E depois há ainda este argumento-porrete do empresário
agrícola europeu na África: “Nosso inimigo é o professor”. 43
Lima Barreto, portanto, usou toda a sua lucidez para denunciar as derivas políticas e
ideológicas do estado, os efeitos negativos da política de embranquecimento e a negação da
humanidade ao negro. Contudo, não devemos deixar de mencionar que o literato faz parte de
um violento processo de desumanização iniciado durante o período de colonização. O
trabalho realizado por Marcus Rediker é esclarecedor sobre essa questão. 44
39
BARRETO, Lima. Impressões de Leitura. São Paulo: Editora Brasiliense, 1956, p. 66.
40
FANON. Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Bahia: Editora EDUFBA, 2008, p.46.
41
Ibidem.
42
BARRETO, Lima. Lima Barreto: obra reunida, volume 2, 1 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2018, p.24.
43
Ibidem, p.48.
44
REDIKER, Marcus. O navio negreiro: uma história humana. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
23
Ao tentar desnudar a narrativa do “mais grandioso drama dos últimos mil anos da
história da humanidade: a transferência de 10 milhões de seres humanos da beleza negra de
seu continente natal para o recém-descoberto Eldorado do Ocidente. Eles desceram ao
inferno”.45, ou seja, a citação remete à terrível história do transporte de pessoas traficadas
através do Oceano Atlântico pelos navios negreiros. Apresentando esse contexto denso a
partir de relatos de pessoas que estiveram nesses ambientes, o historiador quebra com o
silêncio da historiografia sobre o tema. O medo, o horror, o terror, a violência e a crueldade
estavam presentes nos relatos desses viajantes. Não só dos negros escravizados, mas de todas
as pessoas que fizeram parte do cotidiano desse drama. Apesar do horror narrado pelos
testemunhos, Rediker chama a nossa atenção para o enorme encargo que a transferência dessa
população pelo Atlântico foi responsável: a ascensão do capitalismo e do mundo moderno.
45
Ibidem, p. 12.
46
Ibidem, p.16.
47
Ibidem, p. 21.
24
As reflexões feitas por Lima Barreto não apontam somente para a institucionalização
dos processos que transformou o negro em um “outro” obrigado a viver às margens, o literato
também analisou as especificidades das hierarquizações da cidadania no Brasil e, sobretudo,
os impactos negativos gerados aos negros, principalmente, os que foram justificados
analiticamente pela longa duração de sua vida em cativeiro, tirando qualquer possibilidade de
humanidade para essas pessoas. Na onda das ideias de Fanon, podemos entender a missão
literária de Lima Barreto como uma potência que rompeu com as estruturas coloniais, que
quebrou as correntes e que se livrou das mordaças que o silenciavam.
Botelho aponta que nas produções de Lima Barreto é inegável a existência de um certo
conteúdo com referências diretas e indiretas, objetivas e subjetivas sobre os acontecimentos
políticos da época. As leituras desses acontecimentos aparecem em meio aos textos ficcionais
ou não-ficcionais produzidos durante toda sua vida. 49 Por isso, Botelho defende a existência
de um projeto político de nação nas obras de Lima Barreto. Mesmo que elaborado a partir das
condições sociais as quais estava submetido e mesmo que tivesse profundo desgosto com a
então nova ordem instalada no Brasil, o literato projetou a construção e a condução do
Estado-Nação em seus escritos, assim como apontou Sevcenko, com quem concordou
Botelho. Ou seja, o trabalho de Botelho pretendeu “localizar o Brasil desejado pelo escritor”,
apontando as reflexões cotidianas de Lima Barreto e com elas, compreendendo o painel de
suas ideias. 50
48
BOTELHO, Denílson. A pátria que quisera ter era um mito”: uma introdução ao pensamento político de
Lima Barreto. Dissertação (Mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas, 1996.
49
Ibidem.
50
Ibidem, p.9.
25
Como escritor independente, o literato via que a sua missão era contribuir através dos
seus escritos para “uma ligação harmônica entre os homens”.53 A literatura seria o caminho
para a união, para a harmonia, à fraternidade e à solidariedade entre os homens. Lima Barreto
desejava uma sociedade igualitária e julgava a prática do autoritarismo como prejudicial na
busca por essa igualdade. O autoritarismo não era um mal pertencente somente ao contexto
brasileiro, mas também, ao internacional. Assim como afirma Botelho, de acordo com o
literato, a Alemanha e os Estados Unidos do pós-guerra de 1914 eram os principais
responsáveis por essa “mania organizadora” cheia de regulamentos e leis. 54 Outra crítica feita
pelo autor e apresentada por Botelho é sobre o patriotismo exacerbado existente no Brasil.
Nesse sentido, Lima Barreto vê esse sentimento patriótico acentuado como “uma ideia
religiosa e de religião que morreu”, que coloca em guerras combatentes que não sabem nem o
real motivo de estarem em luta.55
Botelho também nos apresenta nesse trabalho suas reflexões sobre Lima Barreto ser ou
não um monarquista. Entretanto, o historiador nos esclarece dizendo que apesar de o autor de
Clara dos Anjos ser contra a República, isso não lhe tornou um monarquista, o que foi negado
inclusive por ele mesmo. As severas críticas ao regime republicano se deram pelo fato de o
literato não concordar com as políticas instaladas pelas elites que ocupavam o poder, onde a
51
Ibidem, p. 35 -36.
52
Ibidem, p. 37.
53
Ibidem, p. 50.
54
Ibidem, p. 59-60.
55
Ibidem, p. 63.
26
56
BOTELHO, Denílson. A pátria que quisera ter era um mito”: uma introdução ao pensamento político de
Lima Barreto. Dissertação (Mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas, 1996.
57
“Meu objetivo é demostrar que o tão citado “projeto político-literário” de Lima Barreto é mais complexo do
que apontam alguns autores que procurei apresentar brevemente até aqui. A militância política deste escritor não
pode ser entendida somente através da simpatia pelas ideias anarquistas, como quis Francisco de Assis Barbosa,
ou pelos parâmetros do liberalismo reformista que Sevcenko lhe atribuiu, ou ainda pelo ecletismo com que
Arnoni Prado diagnosticou seu ideário político.” In: BOTELHO, Denílson. Letras militantes: história, política e
literatura em Lima Barreto, op. cit. p.32.
58
op. cit. p. 37.
27
Botelho conclui que não somente através dos jornais, como em toda produção literária e por
meio da sua rede de interlocutores, Lima Barreto se ocupou da missão de lutar pela cidadania
das camadas mais baixas da população, os excluídos pelos dirigentes: “Sua obra é impregnada
por esse objetivo de instrumentalizar, no plano das ideias e pela palavra escrita, um povo
desde sempre excluído social e politicamente. A Floreal é apenas o primeiro passo dessa
trajetória.”59 Outro marco foi a edição do seu primeiro romance que incomodando muita gente
de forma proposital. Então, podemos dizer que Lima Barreto sempre soube o que pretendia e
a sua literatura foi o caminho encontrado para expôs suas ideias e lidar com os problemas da
sociedade em que vivia. Por isso, Botelho nos diz que as suas ideias políticas não podem ser
entendidas fora da sua concepção do que seria a literatura. Para o literato, a sua escrita era
composta de uma função social.
59
Ibidem, p. 58.
60
CANDIDO, Antônio. “Os olhos, a barca e o espelho”. In: CANDIDO, Antônio. A educação pela noite e
outros ensaios. SP: Ática, 1987.
61
Ibidem, p. 39.
62
Ibidem, p. 39.
63
Ibidem, p. 40.
64
Ibidem p. 45.
28
Magali Gouveia Engel, apresenta-nos alguns dos combates que o autor realizou por
meio da sua literatura, principalmente os referentes ao “apagamento das memórias de lutas
dos escravizados pela liberdade” e os que relatam a visão que inferiorizava os negros, assim
como fez na crônica “Meia página de Renan” de 3 de julho de 1919. 66 Nesse escrito, Lima
Barreto se opôs à visão de Ernest Renan que afirma serem os “negros” e os “chineses”
pertencentes a raças inferiores.67 Nesse sentindo, o literato contestou a afirmação de Renan,
argumentando que o filósofo nada sabia sobre os negros, já que as rebeliões do Haiti, o papel
de Louverture e a própria realidade do Brasil não foram mencionados por Renan e facilmente
desmentiriam essa concepção. Visto que, mesmo sobre o regime de escravização, os negros
nunca aceitaram a condição de inferioridade imposta e “revoltaram-se
constantemente”.68Através dessa passagem, Magali Gouveia Engel salienta o domínio e os
conhecimentos teóricos, filosóficos e históricos do literato nos debates sobre raça, tanto no
campo intelectual como no científico. Ou seja, Lima Barreto sustentou os seus argumentos a
partir de um saber histórico “mais consistente das realidades escravistas latino-americanas –
porque produzido a partir da articulação entre saberes e experiências.” 69 E é através dessa
literatura que vai procurar lutar contra essa realidade de injustiças.
A escrita de Lima Barreto, em seu conjunto, busca desvendar as memórias que,
inscritas nas ruas, nas praças, nos bairros, na arquitetura da cidade, revelaram não
apenas as marcas da exploração, da dominação, das discriminações, enfim das
profundas desigualdades do passado e do presente da sociedade brasileira, mas
também as histórias daqueles que lutaram e continuavam lutando para transformar
essa realidade opressa e injusta.70
65
Ibidem, p. 49.
66
ENGEL, Magali Gouveia. “Lima Barreto: dilemas e embates de um intelectual mulato na República dos
Bruzundangas”. In: CHALHOUB, Sidney e PINTO, Ana Flávia Magalhães (orgs.). Pensadores negros,
pensadoras negras. Brasil, séculos XIX e XX.1a ed. Cruz das Almas/Belo Horizonte : EDUFRB/Ed. Fino Traço,
2016, v.11, p. 165-189.
67
Ibidem, p. 166,
68
Ibidem, p. 167.
69
Ibidem, p. 167.
70
Ibidem, p. 168.
29
registrou essas experiências, fazendo referência à questão racial de diferentes formas nas suas
narrativas. A autora conclui dizendo que mesmo em meio as possíveis ambiguidades e
contradições, Lima Barreto procurou valorizar em seus escritos a característica miscigenada
da identidade brasileira. O literato usou de argumentos do próprio campo científico para
combater o racismo e as teorias evolucionistas. Isto é, construiu a sua crítica a partir da
intimidade que tinha com as correntes sobre as teorias raciais, dizendo que “a raça é uma
abstração, uma criação logica, cujo fim é fazer o inventário da natureza viva, dos homens, dos
animais, das plantas e que, saindo do campo da história natural, não tem mais razão de ser”.71
Ou seja, denunciando o racimo como uma construção social criada para inferiorizar a raça
negra, não como algo naturalmente e biologicamente determinado. Portanto, Magali Gouveia
Engel defende que Lima Barreto é um homem do seu tempo, e que, contrariamente ao que
aprendemos durante um logo período na historiografia, silenciando essas diferentes vozes, o
literato reivindicou o seu lugar e combateu o racismo científico que inferiorizava as raças
dentro de uma sociedade racialmente miscigenada.
Um tempo, portanto, em que ecoaram muitas vozes, que – como a do grande escritor
e intelectual brasileiro – munidas, muitas vezes, com as armas dos próprios
adversários, se empenharam em construir interpretações da realidade mestiça a qual
pertenciam, que confrontavam as pseudo-verdades propagadas por “trapalhões
antropólogos e etnográficos. 72
71
Ibidem, p. 176.
72
Ibidem, p. 183.
73
M. G. ; CORREA, M. L. (Org.) ; SANTOS, R. A. (Org.) . Os intelectuais e a cidade (séculos XIX e XX). 1a.
ed. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2012.
30
Coelho Neto e João do Rio –, atuaram e interviram nesse espaço, articulando projetos e ideias
através de seus escritos.
Ao abordar a atuação do Lima Barreto, Engel salienta que o literato fez da sua
literatura um instrumento de transformação social. Foi através dela que ele denunciou as
desigualdades raciais, sociais e os problemas da administração arbitrária do governo
republicano. Ou seja, o teor crítico e denunciativo da literatura feita por Lima Barreto está
presente em toda a sua trajetória de intelectual, acrescido de um tom provocativo e sarcástico.
74
Nesse sentido, o autor de Clara dos Anjos fez da sua pena um instrumento de militância. 75
Sobre as reformas habitacionais e o “aperfeiçoamento” da cidade, Lima Barreto foi bastante
crítico. O autor publicou na impressa várias crônicas denunciando a atitude da administração
governamental. Segundo ele, os serviços realizados pelo poder público não consideraram a
condição de cidadãos, dos mais humildes e dos moradores dos morros e dos subúrbios do Rio
de Janeiro, os principais atingidos por essas reformas. O literato denunciava também os
interesses dessas obras, que na maioria das vezes, favorecia a especulação imobiliária dos
bairros da Zona Sul, enquanto nos subúrbios havia uma total ausência de políticas públicas
que atendessem e melhorassem as demandas daquelas áreas. Portanto, ao abordar as
diferentes visões e intervenções feitas pelos intelectuais através de suas narrativas dentro e
fora do campo intelectual, a historiadora conclui dizendo que “para Lima Barreto, tais ações
eram, em sua própria essência, excludentes e, enquanto tais, politicamente condenadas e
denunciadas pela sua pena militante.”76
74
ENGEL, M. G.; CORRÊA, M. L.; SANTOS, R. A. (Org.). Os intelectuais e a cidade (séculos XIX e XX). 1a.
ed. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2012, p. 117.
75
Ibidem, p. 118.
76
Ibidem, p. 143.
31
Definia-se assim, para Lima Barreto, a imagem de um escritor cuja biografia servia
de base para a definição de sua ligação orgânica com interesses das camadas
iletradas da capital federal (fato supostamente comprovado tanto pelo fato de que
residisse nos subúrbios quanto por sua origem mestiça). 77
Leonardo Pereira salienta que apesar das evidências do teor autobiográfico de suas
obras, os seus romances não podem ser reduzidos a essa categoria de análise, o que “acaba
por obscurecer a possibilidade de que venhamos a compreender, em sua complexidade, o tipo
de testemunho produzido pelo escritor”, isto é, diminuindo o sentido da sua escrita militante
para apenas um relato pessoal e autobiográfico. É necessário entender o sentido de seus
escritos de forma mais complexa, acompanhando a forma que se construiu e se apresentou ao
mundo das letras, compreendendo os diálogos, as redes de interlocuções e o debate que o
literato se inseriu.
O limite racial foi a temática debatida por Lima Barreto nessa obra, além das questões
sobre os problemas do jornalismo e da imprensa. Todavia, o historiador evidencia a denúncia
feita pelo literato através de sua narrativa com relação ao racismo e o preconceito de classe.
Dado que, mesmo usando da lógica liberal para encontrar o caminho do sucesso, o esforço
não bastava já que as barreiras sociais impostas aos negros e mestiços atrapalhavam os sonhos
de ascensão. Lima Barreto proporcionou com esse romance uma tomada de consciência da
77
Ibidem, p. 176.
78
Ibidem, p. 187.
32
A autora frisa o traço de oralidade expresso em muitos dos escritos de Lima Barreto,
visto que o uso da “linguagem que lhes falasse de perto” tornaria a leitura mais próxima.
Defendendo uma literatura mais aproximada da linguagem do povo, o literato acreditava que
esse era o passaporte para a cidadania. Desse modo, construiu na sua arte o desejo de intervir
no social, denunciando e combatendo as mazelas.
79
Ibidem, p. 194.
80
DE ASSIS, Lúcia Maria. Literatura e militância na belle époque–o caso de Lima Barreto. Anthesis, v. 6,
n. 11, p. 116-135, 2018, p. 117.
81
Ibidem, p. 129-130.
33
Lima Barreto se impôs através da sua escrita, defendeu e discutiu sobre as mais
diversas questões sociais e enxergou na literatura a capacidade de conceber a solidariedade
humana.
Para Lima Barreto, militante é a literatura que tem escopo sociológico e sua função
não se limita à diversão; ao contrário, visa despertar no leitor a consciência para os
problemas sociais, políticos e morais que o circundam, dando-lhe uma melhor
compreensão de si mesmo e de sua sociedade.83
Para finalizarmos essas exposições sobre a missão literária de Lima Barreto, trazemos
para a análise as reflexões feita por Nicolau Sevcenko em seu conhecidíssimo trabalho A
literatura como missão. Analisando as obras de Lima Barreto e Euclides da Cunha, apesar de
pertencerem a gerações diferentes e de terem posicionamentos distintos, Sevcenko afirma que
a produção literária de ambos possibilita uma visão sobre o contexto histórico. Dizendo que
Realmente, poucos índices podem proporcionar uma visão tão transparente dos
principais campos de tensões históricas que marcaram o período sob estudo, quanto
um cotejamento crítico entre as obras de Euclides da Cunha e Lima Barreto.
Definindo as perspectivas fundamentais que se colocaram aos agentes e pacientes
dos processos de mudanças então em curso, esses escritores opõem-se num choque
radical, envolvendo a totalidade das suas obras.84
Ainda que opostos, suas obras possibilitam considerações cruciais sobre as tensões
“presentes no interior do mundo social da Primeira República”.85 Os dois autores
impulsionaram em suas narrativas questões do período, como, por exemplo, a crítica ao
cosmopolitismo, visto que eram contra essa prática da burguesia brasileira de assimilação
direta com a Europa. De acordo com Sevcenko, para os autores somente a originalidade
possibilitaria ao país ser equiparado aos outros países, acreditando que o olhar deveria ser
mais voltado para o interior do Brasil e não para fora dele. Ou seja, mesmo que em
antagonismo, os temas como: raça, civilização e ciência, estavam presente na produção
literária tanto de Euclides da Cunha como de Lima Barreto.
82
Ibidem, p. 131.
83
Ibidem, p. 132.
84
SEVCENKO, Nicolau. Literatura como Missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República.
São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 120.
85
Ibidem, p. 120.
34
86
Ibidem, p. 123.
87
Ibidem, p. 126.
88
Ibidem, p. 128.
35
Era ano de 1923 quando o romance Clara dos Anjos foi publicado pela Revista Souza
Cruz, na cidade do Rio de Janeiro. O “inédito” romance, como foi divulgado na época, foi
escrito por Afonso Henriques de Lima Barreto. A primeira versão dessa narrativa em formato
de conto apareceu em Diário Íntimo, no ano de 1904, entretanto, desde 1903 Lima Barreto já
registrava entre as suas íntimas palavras as ideias desse projeto. 90
Clara dos Anjos, mulher mulata, 23 anos. Tenente Frutuoso, do Exército, positivista
etc., noivo de Carlota de Sá Bandeira.
Guedes (Camilo da Costa), português, interessado; mais tarde, enriquece, parte para
Europa, onde fica, doando alguma coisa à Clara, sua amiga, com quem tem uma
filha (visconde mais tarde de qualquer coisa)
A gente Sá Bandeira, família de pequeno emprego, da relação de Clara, que quem o
pai era padrinho. 91
Lima Barreto não conseguiu ver essa obra publicada, nem em livro, nem impressa nas
páginas da revista, mas o autor costumava publicar seus escritos em formatos reduzidos para
serem avaliados e, somente assim, examinava a possibilidade de render um livro.92
Possivelmente essa tenha sido uma das maiores sacadas de Lima Barreto, enquanto sujeito
negro literato que trazia em sua narrativa as denúncias das derivas do Estado: o autor
caminhava na contramão a um grupo de escritores que buscava traduzir a realidade brasileira
nos moldes europeus, ele tematizava a realidade vivida e os problemas dessa sociedade. Ter
feitos essas escolhas acarretou ao autor encontrar diversas dificuldades e limites para publicar
suas obras. Por isso, se pode pensar que, enquanto ele sabia muito bem que o fato de não ser
branco e de abordar certos temas políticos e ideológicos lhe causavam certos impedimentos, a
escolha por publicações em formato de contos implicaria em uma análise menos sofisticada.
Ao fazer isso, o autor aponta de forma sutil a falta e os limites da sua liberdade. Não só Lima
Barreto como muitos outros literatos e pensadores, que tiveram seus projetos individuais
impactados pelos limites impostos pelas suas origens, desenvolveram estratégias, alianças e
modos de fazer parte do debate público, da construção e da reflexão da sociedade, como bem
89
“Revista Souza Cruz”. A Noite, 06 de abril de 1923, p.3
90
BARRETO, Lima. Lima Barreto: obra reunida, volume 2, 1 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2018, p.614.
91
Ibidem, p. 474 – 475.
92
Ibidem, p.406.
36
93
salientou Ana Flávia Magalhães Pinto . Partindo dessa ideia, podemos entender o fato de
parte de Clara dos Anjos ter aparecido como um conto em Histórias e Sonhos, livro publicado
em dezembro de 1920.
A Revista Souza Cruz dividiu Clara dos Anjos em dezesseis partes, com a primeira
publicação em fevereiro de 1923 e a última na edição de maio de 1924. A recepção do
romance foi bastante elogiada em diversos jornais e revistas da época. Como exemplo temos o
jornal O Brasil, de 1923, que, na coluna “Publicações”, enaltece a obra e a iniciativa da
revista em trazer Clara dos Anjos entre suas páginas, dizendo ser:
[...] farta colaboração, como sempre, bem selecionada, há a salientar-se, entre outros
trabalhos de destaque, que a “Revista Souza Cruz” inicia, de Lima Barreto, o
saudoso escritor patrício, de tanto mérito, a publicação, inédita, de seu romance
Clara dos Anjos. E só isto vale pelo melhor elogio.94
93
PINTO, Ana Flávia Magalhães. Escritos De Liberdade. Campinas: Editora Unicamp, 2018, p. 376
94
“Publicações”. O Brasil, 21 de fevereiro de 1923, p.5.
37
A Revista Souza Cruz, de acordo com uma publicação feita no jornal A Noite, de 1923,
é a “primeira em seu gênero, a de maior circulação no país, e aquela mais entretida, na
divulgação dos escritores da jovem literatura”, “[...] as páginas de mais valor de edição que
ora circula”.95 Criada por Albino Souza Cruz, a revista surge na cidade do Rio de Janeiro no
ano de 1916 e veicula até 1935. O objetivo do periódico era acompanhar as transformações da
sociedade e os processos de modernização. Tinha como intenção abranger uma gama de
temas, informações e debates que existiam no contexto da época. Uma revista cultural, que
abordaria assuntos de teatro, artes, música, arquitetura, questões do cotidiano e da vida
urbana, além de proporcionar reflexões políticas e literárias que contribuiriam para os debates
culturais e sociais do Brasil do século XX.96
A “Revista Souza Cruz” vem, modestamente, mas com a maior alegria, formar ao
lado das publicações desse gênero, que já possuímos, e magnificas, como aqui no
Rio a Careta, o Fonfon, Selecta e a Revista da Semana e, em S. Paulo, a Cigarra,
para citar apenas alguns exemplos. Nas nossas páginas, a inumerável e inteligente
clientela dos incomparáveis produtos da Companhia Souza Cruz encontrarão de
tudo: arte, ciência, literatura, indústria, conselhos da economia doméstica,
advertência das elegâncias e da moda. Esta “Revista” adota como seu programa
requintado e fino daqueles que deseja para seus leitores e não se poupará a esforços
e sacrifícios para a todas agradar. Queremos que leiam, com o mesmo encanto nas
capitais como no interior do país, o sábio e operário, a dona de casa e as crianças, de
modo que, em todos os lares, se torne um hábito delicioso folhear-lhe as páginas,
ler-lhe os lindos contos, as belas poesias, as crônicas leves e graciosas, as
informações interessantes. 97
95
“Revista Souza Cruz”. A Noite, 6 de maio de 1923, p.2.
96
Essas informações foram tiradas do site oficial da Revista Souza Cruz. Disponível em:
<https://www.revistasouzacruz.com.br> acesso em 04 jun.2020.
97
Revista Souza Cruz, 30 de novembro de 1916, p.3.
98
“Pagina Feminina”. Revista Souza Cruz, 30 de novembro de 1916, p.16.
38
consumidores dos produtos da Companhia Souza Cruz, grupo diversificado que ia do sábio, à
dona de casa e até criança. Ou seja, já nesse primeiro momento podemos perceber que o
periódico tinha intenções além das literárias, evidenciando seus objetivos econômicos com os
produtos da própria companhia e aproximando seus interesses com os do grupo elitizado da
cidade.
Ana Luiza Martins apoiada nas perspectivas da Nova História, analisa a revista em uma
dupla dimensão, como fonte e objeto de análise. 99 A primeira reflexão que a autora propõe é
sobre as possíveis ciladas que esse documento pode gerar, já que o passado nas revistas é
retratado por múltiplos registros de caráter lúdico e remete a uma leitura rápida. O uso desse
material gera o que pode ser chamado “espelho de disforme”, podendo refletir imagens
corrompidas e adulteradas, principalmente, se suas partes forem retiradas, entre muitas outras
coisas e analisadas de forma desconectada com imaginário do seu tempo. Fugir dessa cilada
nem sempre é tarefa fácil, porém ter a revista como fonte histórica e testemunho do passado é
de grande validade. Entretanto, é importante considerar e ter atenção às negociações, aos
acordos e às relações que aconteciam em suas páginas, em outras palavras, é necessário
historicizar as suas produções, analisando suas especificidades e as suas ligações com o
contexto.
Em A Imprensa e o Dever da Verdade, obra fruto da conferência que ocorreu na Bahia
em 1919, Ruy Barbosa investigou as questões ligadas à ética e à liberdade da imprensa. Nessa
obra, sua crítica girou em torno da corrupção e da subordinação dos jornais e dos jornalistas
em relação aos governantes da república. Para ele, sendo a imprensa “a vista da nação”, o seu
dever era informar e servir o povo, e não omitir e propagar a mentira oficial dos governantes.
100
O autor defendeu uma imprensa livre e independente, clara e cristalina.
Já lhe não era pouco ser o órgão visual da nação. Mas a imprensa, entre os povos
livres, não é só o instrumento da vista, não é unicamente o aparelho do ver, a
serventia de um só sentido. Participa, nesses organismos coletivos, de quase todas as
funções vitais. É, sobretudo, mediante a publicidade que os povos respiram. 101
Ruy Barbosa acreditava que em uma nação livre, a imprensa tem um papel fundamental.
Ela faz parte das funções mais importantes desse organismo coletivo, simboliza, além da
visão, a complexa ação respiratória desse corpo moral, “[...] representa, com a mesma
principalidade, o papel de nutrição, de aviventação, de regeneração, que lhe é comum em todo
99
MARTINS, Ana Luiza. Revistas em revista: imprensa e práticas culturais em tempos de República, São Paulo
(1890-1922). São Paulo: Edusp, 2001, p. 5-6
100
BARBOSA, Rui. A imprensa e o dever da verdade. São Paulo: Com-Arte; Editora da Universidade de São
Paulo, 1990, p.13.
101
Ibidem, p. 21.
39
O autor ainda salienta que esse mal foi mais expressivo durante a república, que desde
seu início já simpatizou com a corrupção, onde “[...] o ideal dos governos está na
irresponsabilidade”.104 A imprensa se tornou a manifestação da opinião dominante, porém,
nem todo jornalismo se converteu a esse negócio. Entretanto, a estratégia usada pelos
dominantes foi pôr a imprensa contra a imprensa, ou seja, “[...] desatinar a opinião pública,
deixá-la muitas vezes indecisa entre o rasto de verdade e o da mentira, ou, muitas outras,
induzi-la a tomar a pista falsa pela verdadeira”.105 A partir dessa leitura, podemos evidenciar o
surgimento e a consolidação de um capitalismo jornalístico. Ao analisarmos a postura crítica
de Barbosa, podemos entender os perigos que representavam o surgimento de uma nova
classe política não partidária cujo trabalho visava conscientizar. O autor, na realidade, aponta
para os medos que representa uma sociedade conscientizada.
Relacionando as afirmações de Barbosa às de Martins, a autora também chama atenção
para os perigos de trabalhar com essas fontes. Ela enfatiza que na virada do século XIX para o
século XX, a imprensa transformou-se em uma grande empresa, com o propósito de ser
vendida e de obter lucros. Ou seja, ocorreu uma mercantilização desses periódicos que
passaram a veicular tudo que era rentável. Nesse sentido, as revistas tornaram-se uma espécie
de vitrine de mercado e de interesses. Para enfatizar esse ponto, a autora destaca o estudo
sobre a Revista Kosmos, realizado por Antônio Dimas. Segundo ele, a revista talvez tenha
servido de porta-voz para as modernizações que ocorreram no Rio de Janeiro durante governo
de Rodrigues Alves; apesar de admitir que não tenha comprovação dessa ligação, Ana Luiza
Martins infere dizendo ser “[...] exatamente porque o conluio entre poder e editor era de tal
102
Ibidem, p. 21.
103
Ibidem, p. 22.
104
Ibidem, p. 24.
105
Ibidem, Op. Cit., p. 25.
40
ordem, que o produto vinha muito bem embalado, na ordem natural das coisas”.106 Nesse
sentido, através dos escritos, das propagandas e das publicidades, os interesses dos grupos
dominantes, dos segmentos públicos e das relações capitalistas foram potencializados e
penetraram no interior de algumas dessas páginas.
Ou seja: tudo ficava muito bem disfarçado. Desmontado o ideário vendido pelo
periódico, revela-se o quanto suas páginas higienizadas, de um Itamarati e de uma
população brancas, estavam longe de retratar o cotidiano sofrido de um País
analfabeto, atrasado e arcaico. 107
preferências. Francisco Barbosa de Assis diz que essa equipe que se reuniu em volta do
projeto era formada pela heterogeneidade. Infelizmente, a revista não resistiu por muito
tempo, cancelando suas publicações em sua quarta edição, durante os primeiros meses de
1908109. A consequência disso, talvez, possa ter sido o fato de o periódico ter tido como
principal objetivo publicar sem grandes pretensões econômicas, além de ter a intenção de
conscientizar os seus leitores, longe dos “mandarinatos literários, aos esconjuros dos
preconceitos, aos formulários das regras de toda a sorte, que comprimem de modo tão insólito
no momento atual.”110
Outra referência que vale ser destacada está no nome escolhido por Lima Barreto para a
revista. Floreal é o nome de um dos poemas de Victor Hugo, importante escritor da literatura
Francesa e crítico do fanatismo e da tirania.111 Foi também uma grande influência na poesia
brasileira, como destacou Mucio Teixeira:
Não houve prova, porque não passasse: foi pobre, foi perseguido, foi proscrito,
sozinho, vagabundo, vituperado, escarnecido; mas continuou impassível, com
prodigiosa obstinação, o seu enorme trabalho.
Nos momentos que parecia extenuado, levantava-se de repente com obras cheias de
novas forças e de novas promessas.
Na tribuna, no teatro, na pátria, no exilo, na poesia, na crítica, em moço e depois de
septuagenário foi sempre audaz, obstinado, descomedido, provocador, áspero,
furioso, selvagem.112
Victor Hugo é uma das referências de Lima Barreto e o romance escolhido para nomear
o sonho de uma revista livre idealizada por ele é publicado em meados de 1865. O poema
reproduz a divulgação da notícia do dia, onde o vendedor de jornal anuncia aos gritos a boa
notícia da vitória da primavera sobre o inverno, ademais da possível analogia do poema com a
idealização de um projeto capaz de fazer florescer novas ideias e conscientização de uma
sociedade – a primavera – contra uma imprensa capitalista e controladora – o inverno–,
“Ordre du jour de Floréal” possibilita outra referência.
109
Ver mais em: BARBOSA, Francisco de Assis. A vida de Lima Barreto: 1881-1922. Belo Horizonte:
Autêntica Editora, 2017; SCHWARCZ, Lilia Moritz. Lima Barreto: triste visionário. São Paulo: Companhia das
Letras, 2017.
110
“Artigo inicial”. Floreal, 25 de outubro de 1917, p. 5.
111
TEIXEIRA, Múcio. Hugonianas: poesias de Victor Hugo: traduzidos por poetas brasileiros. 1885, p. 10.
112
Ibidem. 1885, p. 34-35.
113
CALLIPO, Daniela Mantarro. Victor Hugo: sobretudo, poeta. Lettres Francaises, p. 11-28, 2011
42
de Béranger, compositor cuja obra era qualificava como medíocre.”114 Muitos escritos de
Lima Barreto também foram considerados sem os refinamentos exigidos pela elite de
literatos, mas o próprio autor já declarou inúmeras vezes que a intensão dos seus escritos era
atingir a todos e a Floreal fez parte desse projeto de uma imprensa livre e democrática.
Outro trabalho que destaca as operações que ocorrem no interior da imprensa é “A luta
por uma imprensa livre” de E.P Thompson, de 1952. Narrando sobre o acidente que ocorreu
com ele e a sua esposa, em 1947, quando foram atacados por uma gangue de bandidos
fascistas por estarem lendo um jornal socialista em Trieste, o autor diz que jornais britânicos,
na época, abordaram esse ocorrido com várias conjunturas e tratamentos. Mesmo sendo um
incidente sem importância, o autor usou esse fato para abordar a degeneração que a imprensa
britânica sofreu.
Eu não deveria ter mencionado esse incidente sem importância a não ser pelo fato de
que eu estava justamente em uma boa posição de ver a imprensa que não é “inferior
a nenhuma do mundo”, uma vez que meu próprio nariz foi a matéria-prima para essa
papelada de mentiras. Mas, sem dúvida, cada leitor terá exemplos melhores que o
meu. É apenas necessário imaginar esse tipo de desonestidade calculada e
sensacional quando ela é aplicada a algum episódio de grave implicações
internacionais.115
Apontando para a configuração da atual imprensa “livre”, declara que essas degradações
são traições para com os que lutaram por essa liberdade. A luta pela liberdade de imprensa
passou por vários momentos, da censura mais branda ao controle mais severo sobre toda e
qualquer publicação, no século XVI, feita pelo governo inglês, pela Igreja, pela Corporação
de Londres e pelas Empresas de Papelaria.116 Muitas vezes, essas rígidas censuras geravam
duras penas, como, por exemplo, multas altíssimas e até orelhas decepadas.
114
Ibidem, p.22-23
115
THOMPSON, Edward Palmer. E.P.Thompson: panfletário antifascista. Tradução: João Ernani Furtado Filho.
Fortaleza: Plebeu Gabinete de Leitura, 2019, p. 62.
116
Ibidem, p. 63.
117
Ibidem, p. 65.
118
Ibidem, p. 68.
43
sobre a imprensa popular, percebendo que a completa censura seria “perigosa e fútil”, o autor
afirma que o governo decidiu utilizar de outra estratégia para limitar esses periódicos: o uso
dos recursos financeiros. “Dessa época em diante, as considerações financeiras tornaram-se da
maior importância – o custo do papel, para o leitor, e o custo de rodar um folheto
independente do controle do grande capital”.119 Uma grande batalha por redução das taxas
sobre a imprensa começou a ser travada; ao fim, essa luta representou uma conquista
importante para o movimento dos trabalhadores organizados.
Após a redução das taxas e do fim da grande censura, os jornais passaram a ser um
grande negócio, em busca de lucros e investimentos. Indo conforme as reflexões feitas por
Ruy Barbosa e Ana Luiza Marins apresentadas aqui, Thompson afirma que essa liberdade
dependente das vendas e das receitas publicitarias, “[...] são muito menos “livres”.120
Os métodos pelos quais o Daily Herald era comercializado e dada a sua vasta
circulação (o aumento das triagens de 400.000 para 1.750.000 é noticiado como
tendo custado £ 1.325.000, ou £ 1 por cabeça), tais métodos, que beneficiam os
anunciantes e idiotizam e distraem as pessoas das realidades da sociedade
capitalista, são incompatíveis tanto com a liberdade real, quanto com as tradições do
movimento da classe trabalhadora.121
119
Ibidem, p.71.
120
Ibidem, p. 80.
121
Ibidem, p. 84.
122
Ibidem. p. 88.
44
destacarmos que a imprensa brasileira do século XX é filha da imprensa régia, que promovia
grandes censuras. Esses periódicos, em sua grande maioria, estavam cada vez mais
imbricados com a política e com os interesses das elites, pensando e sustentando a construção
da nacionalidade brasileira a partir das ideias e dos interesses da branquitude. Não seria pura
coincidência que essa categoria de “imprensa como empresa” nasça com a consolidação do
capitalismo e com a ampliação e a diversificação de empresas. A própria Revista Souza Cruz
pertenceu à Companhia Souza Cruz, grande empresa de tabaco que colocou em
funcionamento a primeira máquina de produção de cigarros no Brasil.
Para além de uma imagem luxuosa e moderna, a revista era um meio de divulgação dos
produtos da própria companhia e de outras empresas. Ou seja, a revista utilizava da
propaganda de bens de consumo em busca de lucro, confirmando e ideia de que a imprensa
virou uma empresa, não sendo apenas uma revista literária. Nesse sentido, as imagens que
ilustravam as suas páginas eram mulheres jovens e bonitas segurando cigarros (FIGURA 2).
Isto é, retratando a criação e a divulgação da modernidade através do ato de consumir
cigarros. Inclusive, já em sua primeira edição, há anúncios sobre a qualidade dos produtos que
a Souza Cruz fabricava, dizendo que: “Os cigarros Souza Cruz têm a preferência porque são
saudáveis” e “Os cigarros Souza Cruz tem a preferência porque empregam fumos de primeira
qualidade”, ou seja, a revista não estava livre das pretensões comerciais do seu tempo. 123
123
Revista Souza Cruz, 30 de novembro de 1916, p 8 – 9.
45
Tatiana Siciliano, Everardo Rocha, Maria Carolina Medeiros e Melba Porter abordam
a importância do lugar das propagandas nas revistas.124 Afirmam, parafraseando Everardo
Rocha, que “[...] através da publicidade podemos compreender a lógica de uma determinada
época e sociedade”. Ou seja, as propagandas e anúncios impressos vendem e determinam um
modo de vida, um estilo, o jeito de se vestir, de comportar e, acima de tudo, indicam os
produtos necessários a serem consumidos para alcançar determinada elegância e distinção.
Podemos dizer então, que as imagens de cigarros que fizeram parte da maior parte dos
anúncios da Revista Souza Cruz se enquadravam entre os artigos da modernidade que se
desejava implementar. Isto é, através desses reclames podemos refletir sobre os costumes,
sobre o imaginário da época e sobre algumas das características que a revista propagou.
A revista é, como já foi dito, uma importante fonte para quem se propõem pensar o
cotidiano e as circulações de ideias na cidade do Rio de Janeiro. Essa ideia tem concordância
com o que Gisele Martins Venâncio apontou, em seu trabalho, sobre a trajetória editorial de
Oliveira Vianna.125A historiadora atesta para o fato de as revistas e os jornais terem a
característica de “obras em movimentos” e diz servirem de “espaço de experimentação” de
126
ideias e de trabalhos ainda em curso. Além disso, assegura que esses espaços de
intercâmbios intelectuais tiveram papel fundamental durante a primeira metade do século XX.
Ou seja, através dessas publicações periódicas, se torna viável estudarmos algumas das
dimensões do cotidiano da história carioca.
Sergio Lamarão certifica que partir da década de 1860 as revistas que circulavam
desde o início do século XIX ganharam maior presença na cidade.127 O início do processo de
modernização do Rio de Janeiro marcou esse momento. Segundo ele, a maioria das
publicações desse período iam de encontro as ideias de remodelação e modernização da
cidade. A própria Revista Souza Cruz, no seu lançamento, se compara em questão de gênero
com a Careta, a Fon-Fon, a Selecta e a Revista da Semana. Lamarão define o estilo de
algumas dessas revistas. Segundo ele, a Fon-Fon e a Careta se enquadravam em uma linha
mais humorística, onde a sátira política e as charges estavam presentes, além das pretensões
literárias ligadas ao simbolismo e ao parnasianismo. A Selecta dava destaque ao público
feminino, com artigos de moda, novela e receitas. De modo geral, os formatos dessas revistas
124
SICILIANO, Tatiana; ROCHA, Everardo; MEDEIROS, Maria Carolina; PORTER, Melba. “Flagrantes e
anúncios: temporalidades em perspectiva na revista ilustrada Fon-Fon!”. Contracampo, v. 38 n. 3, 2019, p. 8
125
VENANCIO, Giselle Martins. Na trama do arquivo: a trajetória de Oliveira Vianna (1883 1951). Tese
(Doutorado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, 2003.
126
Ibidem. p.97.
127
LAMARÃO, Sérgio. “As revistas como fonte para a história da cidade do Rio de Janeiro”. Revista do
Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, v. 6, p. 129-143, 2012.
46
seguem o mesmo estilo, ainda que com características diferentes, enquadrando-se no que
ficou conhecido como revistas ilustradas.
Siciliano, Rocha, Medeiros e Porter, no trabalho já referenciado, tentaram
compreender, através de uma análise específica da Fon-Fon, o modo como as revistas
ilustradas se tornaram uma das principais construtoras e mediadoras dos novos tempos na
capital. Nesse sentido, definem esse gênero de revista como “[...] um dos principais meios de
comunicação da virada do século XIX para o século XX”, onde as regras da cartilha do ser
moderno se materializavam, uma espécie de pedagogia do estilo burguês.128 Elas circulavam
em grande número e “ajudavam os habitantes da urbe a acompanhar a sua temporalidade, em
um ritmo acelerado e repleto de informações visuais, como a charge e a fotografia”.129 O
recurso visual poderia, ainda, possibilitar o acesso a todos os tipos de leitores, até mesmo os
não alfabetizados. Entretanto, segundo os autores, as mulheres eram as que formavam o
principal grupo consumidor das revistas ilustradas, já que:
As revistas ilustradas veiculavam comportamentos femininos que deveriam servir de
modelos e polidez e elegância, bom tom a ser copiado pelas demais leitoras:
“sobriedade de cores”, “repertório clássico com uso de peças francesas, sem
requintes, nem exageros”; “usos de chapéus”.130
128
Op. Cit., p, 8.
129
Ibidem, p. 10.
130
Ibidem, p, 13.
47
páginas para as mulheres, composta de assuntos entendidos como sendo para o público
feminino.131 Entretanto, há também publicações sobre as áreas econômica, política e do
comércio, que certamente eram de interesse geral. Toda essa edição é composta por uma
escrita de fácil compreensão, provavelmente, de forma intencional, visto que o objetivo era o
de alcançar a todos os tipos de públicos ou, pelo menos, alcançar os que poderiam pagar pelos
produtos da Companhia Souza Cruz. Essa afirmação encontra-se com o que Leonardo
Pereira132 defende ao dizer que no final do século XIX o pequeno jornalismo, geralmente
ligado a grupos políticos, cedeu espaço para uma nova categoria de imprensa mais popular. O
grande marco desse momento foi o surgimento da Gazeta de Notícia, fundada por Ferreira de
Araújo em 1874. A partir disso, a intenção dessa imprensa era chegar a mais camadas da
sociedade. As vendas avulsas, os preços mais baratos e as transformações nos textos, tornando
a leitura mais fácil, são mudanças inauguradas nessa época. Porém, mesmo com essa “nova
feição”, Pereira salienta que a imprensa não deixou de “[...] se colocar a serviço dos projetos
políticos de certas parcelas da sociedade”.133
Nelson Werneck Sodré, escrevendo sobre a história da imprensa nacional, apresenta-nos
a visão analítica semelhante à de Leonardo Pereira. 134 O autor diz que o aumento da produção
gerada por essa “nova feição”, cada vez mais interessada por diferentes atores sociais 135
,
ocasionou uma ampliação de leitores. Ainda que o número de analfabetos nesse período fosse
significativo, os jornais e revistas passaram a ser as artérias por onde circulavam as ideias da
cidade, o espaço onde as relações e os conflitos dos diferentes atores sociais eram
esquadrinhados e acompanhados.
132
PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. “Literatura e história social: a geração boêmia no Rio de Janeiro
do fim do Império”. História Social, Campinas, SP, v. 1, n. 1, p. 29-64, 1994.
133
Ibidem, p.49.
134
SODRÉ, Nelson Werneck. História da Imprensa no Brasil. São Paulo: Mauad,1994.
135
Ibidem.
136
De acordo com a pesquisa realizada e patrocinada pela própria Souza Cruz feitas no ano de 2018, a revista
teve seu fim em 1935. Ver em: Revista Souza Cruz. Op. Cit.
48
Jornal (RJ) com o título “A isenção de direito para o papel de imprensa” onde o nome da
revista foi citado.
137
“A isenção de direitos para o papel de imprensa”. O Jornal, 18 de junho de 1936, p. 7.
138
A Associação de Imprensa foi idealizada por Gustavo de Lacerda com o objetivo de luta pelos interesses dos
jornalistas. Essa agremiação existe até os dias atuais, sendo seu atual presidente Maurício de Azêdo. Essas
informações podem ser encontradas no site oficial da associação. http://www.abi.org.br/
139
Site oficial da Souza Cruz, op. Cit.
49
Sem pretensões de elevação nos lucros, a mudança dos preços estava diretamente
ligada ao encarecimento da matéria-prima de base. A solução encontrada pela Fon-Fon foi a
de aumentar os preços para os anunciantes. Segundo a matéria, entre o preço de venda e o dos
140
Ver mais em: PETRY, Michele Bete. Revista como exposições: Arte do Espetáculo e Arte Nova (Rio de
Janeiro, 1895 – 1904). Tese (Doutorado) – Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Ciência e
Educação. 2016.
141
“Aviso da Revista Souza Cruz”. Revista Souza Cruz, maio de 1918, p. 15.
142
“Crise do papel e o preço dos anúncios”. Fon-Fon, 2 de setembro de 1916, p.20.
50
anúncios, a melhor opção era manter o valor das vendas, já que a sua alteração poderia
prejudicar a triagem do exemplar. Com isso, conforme a nova tabela de preço da revista, o
valor do anúncio para uma página inteira, sem ser em lugar especial, foi para
120$000(líquidos).
A “ciranda do papel”, como chamou Ana Luiza Martins ao abordar essa questão, foi
ocasionada pela ampliação da produção editorial. O crescimento da cidade, o aumento da
leitura, a profissionalização do setor e a expressiva produção fez com que a dependência desse
produto crescesse ainda mais. A oscilação dos preços foi a consequência desse problema, uma
vez que quase toda a demanda de papel vinha do mercado externo, especialmente dos Estados
Unidos, e o processo de importação era complexo e burocrático. Piorando muito mais com a
Primeira Guerra Mundial, que contribuiu para dificultar esse transporte.143
Mesmo com a instalação da indústria do papel no Brasil, a produção não era nada
simples. Necessitava de maquinários e de produtos químicos que também vinham de fora.
Além disso, Martins salienta que o resultado do produto nacional não era recomendado para
publicações luxuosas, possuindo qualidade inferior ao importado. Entretanto, alguns jornais e
revistas, tentando não perder as suas assinaturas ou parar por completo com a produção, em
alguns casos, optaram pelo uso dos produtos inferiores ou pela redução de algumas de suas
páginas. A Revista da Semana optou por essa solução, quando em seu quadro de “Notícias e
Comentários”, pede desculpas ao leitor pelo uso de papel com qualidade inferior.
A crise mundial do papel envolveu-nos também, e não é demais renovas aos nossos
leitores e anunciantes os pedidos de desculpa pelas perturbações que ela provocou
no programa de desenvolvimento da “Revista da Semana”, não só nos compelindo a
lançar mão de qualidades inferiores de papel, embora custando o triplo dos preços
normais do melhor couché, como determinando a redução prudente de páginas com
sacrifício tanto do texto como da matéria paga, excluindo ou transferindo a
publicação de avultada qualidade de anúncios. 144
Provavelmente, mesmo que em nenhuma de suas edições esse tema tenha aparecido
como justificativa, a Revista Souza Cruz optou pelo aumento do preço de suas assinaturas ao
ter que reduzir suas páginas, ou alterar o seu papel de impressão. Talvez, a opção de aumentar
os preços de seus anúncios também não tenha ajudado muito, mesmo que isso tenha
acontecido em algum momento, uma vez que, grande parte das propagandas em suas páginas
eram dos próprios produtos da Companhia Souza Cruz. Ademais, os organizadores da revista
se orgulhavam de até mesmo os seus anúncios serem interessantíssimos. Ou seja, aludindo
haver uma escolha minuciosa sobre o que deveria ser anunciado em suas páginas, não
143
“Oficina da Palavra” In: MARTINS, Ana Luiza. Revista em revista, op.cit.
144
“A “Revista da Semana e a crise do papel”. Revista da Semana, 3 de junho de 1916, p.21.
51
cedendo a qualquer tipo de reclame que não fosse considerado digno para os leitores da
revista. Percebemos isso quando, na edição de janeiro de 1919, há um aviso que chama a
atenção do leitor para os seus interessantíssimos anúncios, já que, “na Revista Souza Cruz
nada deve deixar de ser lido”.
“Na natureza nada se perde” – disse Lavoisier. “E na “Revista Souza Cruz” nada
deve deixar de ser lido” – acrescentamos nós. As páginas de anúncios de nossa
revista devem, portanto, ser folheadas atentamente. Tendo sempre em vista o
interesse dos nossos leitores, somos escrupulosíssimos na escolha dos nossos
anúncios. Recusamos sistematicamente, fazer reclame de artigos que não sejam
superiores o digno do maior consumo do Brasil. Conhecemos nossos leitores, somos
gratos a preferência que nos dão e, por isso, não recuamos diante de sacrifício algum
para servi-los com o maior critério. As nossas páginas de anúncios podiam ser
inúmeras, se aceitássemos sem maior exame os pedidos que nos são dirigidos. Mas
nós não cedemos, nem cederemos nesse terreno. Só anunciamos o que é ótimo. E
entre os anúncios, reunimos o útil ao agradável, intercalamos trabalhos literários de
fino lavor e informações interessantíssimas.145
Segundo essa citação, podemos deduzir que mesmo diante dos sacrifícios que a crise do
papel pode ter causado para a revista, os responsáveis pelo periódico optaram por manter seus
critérios com os anúncios e as propagandas, não cedendo a qualquer um. O que por
consequência, possivelmente, reduziu o número de investimentos em suas páginas. Nesse
sentido, as assinaturas representavam, então, a maiores garantias de continuidade para o
exemplar.
Apesar da alteração em seu preço de venda, embasado nas reflexões que Carolina
Vianna Dantas realizou sobre a revista Kosmo, a Revista Souza Cruz não estava entre as mais
caras. Segundo Dantas, em 1904, quando a Kosmo é lançada, o seu preço era de 2$000 avulso
e 20$000 por ano, ou seja, mais que o dobro do preço da Revista Souza Cruz. Na comparação
feita, a autora concluiu que a Kosmo era uma das mais caras em seu gênero. Chegou a essa
conclusão ao relacionar seu preço com os valores de outras revistas, com itens de consumo
básicos e com a média dos salários da maioria dos funcionários públicos e operários na época.
Dizendo que:
[...] quem quisesse adquirir um exemplar da revista La mole Parisiense teria que
pagar 4$000; se a opção fosse a nacional Revista da Semana se pagaria $300; se
fosse o seminário O Malho, $200. Já o quilo do queijo do reino custava 6$000, o
quilo da manteiga mineira, 3$000 e do açúcar, $400. Em média os salários da
maioria dos funcionários públicos variam de 60$000 a 300$000, já os rendimentos
dos funcionários de médio e alto escalão iam de 300$000 a 600$000. Um operário,
que tinha seu salário pago por hora, para conseguir ter uma renda mensal de 50$000
deveria trabalhar de 12 a 16 horas por dia, incluindo os sábados e pelo menos dois
domingos por mês, quando não todos. 146
145
“Na ‘Revista Souza Cruz’ nada deve deixar de ser lido". Revista Souza Cruz, 25 de janeiro de 1919, p.17.
146
DANTAS, Carolina Vianna. Brasil – café com leite. op.cit.
52
Portanto, com base nos preços, podemos concluir que a revista possuía valores mais
populares e acessíveis, o que poderia contribuir para que a mesma chegasse para além dos
circuitos da alta burguesia, o que pode ter colaborado para a decisão de Lima Barreto em
publicar nessa revista. Era vontade do autor ver os seus textos publicados e circulando por
todos os lugares, desejava ter sua “obra em movimento”, além do fato das publicações
contribuírem com uma quantia extra para as suas despesas mensais. Apesar de ter contribuído
gratuitamente em vários periódicos, de acordo com um bilhete de Francisco Shettino, de 13 de
dezembro de 1918, a Revista Souza Cruz pagava pelos seus escritos.
Fui ao escritório do Dr. Herbert Moses ontem, e fiz-lhe entregar teu artigo para a
Revista Souza Cruz, perguntou-me ele como ficou combinado sobre o preço do
mesmo, ao que respondi nada saber. Entretanto, assegurou-me que iria falar ao
Pereira da Silva sobre isso, e o quantum faria imediatamente chegar às minhas mãos
hoje.147
147
MARTINS, Ana Luiza. Revistas em revista, op.cit.
53
Ainda que tenha publicado em vários lugares, mesmo sem receber nada em troca, não
era em qualquer lugar que os escritos de Lima Barreto ganhavam espaço. Francisco Assis
Barbosa garante que o literato no início de sua vida como escritor, para se tornar conhecido,
acreditava que servir a imprensa burguesa era o único caminho. O que lhe custou caro por
várias vezes, já que era impossível adequar “[...]seu temperamento às restrições que a vida
profissional impõe à inteligência e até mesmo ao caráter”.148 A sua contribuição na Fon-Fon é
exemplo disso. Mário Pederneira, quando diretor da revista, convenceu o literato a colaborar
com o periódico, entretanto, sua passagem foi rápida e logo o escritor concluiu ser inútil optar
pelo caminho da imprensa burguesa para torna-se reconhecido no meio literário.149 Além
disso, o literato não ficou satisfeito com o modo como foi tratado pelos proprietários da
revista, não suportando a atitude de superioridade deles, o que feriu diretamente o seu
orgulho, por isso, decidiu enviar uma carta encerrando as suas contribuições.
Após apresentar algumas das características da revista que serviu de espaço para a
publicação do romance Clara dos anjos e de defender o uso desse documento com fonte,
ainda que apresente certos perigos, cabe agora abordamos sobre as próprias contribuições do
literato para a revista. Essa reflexão parte da premissa de que, apesar de já ter certa
notoriedade no meio literário da época, não era em todos os lugares que os seus projetos
ganhavam espaços. O abandono da Fon-Fon por se sentir preterido e a própria iniciativa, logo
em seguida, de construir um periódico – a Floreal – onde pudesse publicar livremente, sem o
controle dos “Senhores da Imprensa”, contribui para essa afirmação.
Em busca de compreendermos melhor esse espaço que perpetuou a voz a Lima Barreto
– que, inclusive, deixou a última versão, de um de seus romances, produzida, antes dele
morrer, para ser publicado em páginas da revista –, o próximo passo é analisar alguns dos
escritos de sua autoria impressos pela Revista Souza Cruz. Através disso, podemos entender
um pouco mais do perfil da revista e da participação do literato nessas páginas.
A primeira vez que o literato aparece no periódico é no ano de 1917, mais precisamente,
em julho deste ano, na nona edição da revista desde a sua criação. Nessa edição, o nome de
Lima Barreto aparece em uma crônica escrita por Castruccio onde o autor dá destaque aos
“vultos de valor” que compõem a jovem geração de estudiosos com menos de trinta anos que
148
BARBOSA, Francisco de Assis. A vida de Lima Barreto: 1881-1922. Belo Horizonte: Autêntica Editora,
2017, p. 162.
149
Ibidem, p. 163.
54
150
Castruccio era como o Dr. Álvaro Sá de Castro Menezes assinava nas páginas da Revista Souza Cruz. Castro
Menezes morreu no dia 7 de março de 1920, vítima de uma morte súbita. A homenagem que a Associação
Comercial lhe prestou nas páginas do A Noite (RJ) diz que ele um “espirito complexo e fulgurante da geração de
intelectuais que atinge à madureza neste momento de transição social”. Autor de Estrada de Damasco, Jardim
de Heloísa e de Quadros da Guerra. Inclusive, Quadros da Guerra teve êxito até na Europa, através de uma
tradução para o francês. Além de autor, foi jornalista durante muitos anos e um grande estudioso de economia.
Contribuiu para a Revista Sousa Cruz e em outros periódicos como, por exemplo, A Tribuna, O Imparcial e o
Jornal do Commercio. “Castro Menezes foi o comentador brilhante dos fatos, das ideias, dos antagonismos,
bordando a crônica de arte, entretecendo o tópico leve da ironia, abordando os problemas da alta transcendência
que absorvia a política e assoberbavam o governo”. (“A morte repentina de Castro Menezes”. A Noite, 7 de
marco de 1920, p. 2.)
151
“Chonica”. Revista Souza Cruz, julho de 1917, p. 10.
152
ENGEL, Magali Gouveia. Os intelectuais e a imprensa. Rio de Janeiro: Mauad Editora Ltda, 2015.
55
153
PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. Literatura e história social. op. cit.
154
DANTAS, Carolina Vianna. Brasil—café com leite. op. cit.
155
SCHWARCZ, Lilia Moritz. Lima Barreto-triste visionário. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 2017.
p. 189.
56
Carolina Vianna Dantas vai evidenciar que, perpassando por diversas ambiguidades,
esses intelectuais estavam comprometidos com a intervenção da sociedade, indo além de “[...]
simplesmente “cooptados” pelo poder constituído”.156 Abordando sobre vários temas, as
trajetórias desses sujeitos possuíam contornos fluidos. Nesse sentido, a imprensa representou
o principal suporte de intervenção política para essa rede de letrados. Porém, Dantas salienta
que ainda alguns periódicos não assumissem um projeto político determinado, declarando em
muitos casos um perfil de neutralidade, como é o caso da Kosmos e da Garnier – fontes
escolhidas na reflexão da autora – , através da análise de suas páginas, é possível compreender
qual era o “passaporte de entrada” para fazer parte de determinado grupo de colaboradores. 157
Ou seja, ainda que o autor de Clara dos Anjos se diferencie de alguns desses intelectuais em
suas reflexões e que tenha sofrido injustiças por conta de suas origens e do seus’
posicionamentos político e literário, o que acabou lhe rendendo muitos prejuízos e dores, o
literato fez parte dos “vultos de valor” que estavam interpretando o Brasil. Isso se confirma
com a própria afirmação de Castruccio, ao colocar Lima Barreto no meio dos nomes dos
destacados literatos que floresceram naquele contexto.
Em janeiro de 1918, Lima Barreto publicou o seu primeiro conto para a Revista Souza
Cruz, o “Congresso Pan-Planetário”. Posteriormente, esse escrito iria fazer parte da obra
Histórias e Sonhos de 1920, o que confirma a mania do literato de testar nos periódicos os
seus trabalhos que futuramente poderiam compor um livro. Em janeiro de 1921, Lima Barreto
publica o que corresponderia ao primeiro capítulo da obra Cemitério dos Vivos, nas páginas
da revista 158
, “As origens” foi o único trecho desse trabalho publicado ainda em vida. De
acordo com Francisco de Assis Barbosa, essa obra começou a ser escrita durante a segunda
passagem do literato pelo hospício. Barbosa denominou essa fase da vida de Lima Barreto de
“declínio”.
Em fins de 1919, repetir-se-ia o mesmo trágico episódio de 1914. Pela segunda vez,
Lima Barreto seria conduzido num carro forte de polícia para o hospício, durante
156
DANTAS, Carolina Vianna. Brasil—café com leite. op. cit. p. 60.
157
Ibidem, p. 64
158
“As Origens”. Revista Souza Cruz, janeiro de 1921, p. 37.
57
uma nova crise de loucura. Passara toda uma noite, precisamente a noite de Natal,
errando pelos subúrbios, em pleno delírio. 159
A obra Cemitérios dos vivos seria composto das anotações que o literato fazia em seu
“Diário de Hospício” durante a internação. O próprio Lima Barreto, em uma entrevista dada
durante esse momento, declara qual seria o conteúdo do romance que permaneceu inacabado.
159
BARBOSA, Francisco de Assis. A vida de Lima Barreto: 1881 – 1922. 11 ed. Belo Horizonte: Autêntica
Editora, 2017. p. 291.
160
BARRETO, Lima. Diário do Hospício; O cemitério dos vivos. São Paulo: Companhia das Letras, 2017, 295.
161
“As Origens”. Revista Souza Cruz,1921, p. 37.
162
RODRIGUES, Pedro Henrique Belchior. Tristes subúrbios: literatura, cidade e memória na experiência de
Lima Barreto (1881-1922). Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal Fluminense, Instituto de História,
2011. p. 25.
58
aos 17 anos prestou concurso em uma repartição pública, onde obteve o cargo de funcionário.
Sem familiares no Rio de Janeiro, foi viver em uma pensão, a da viúva Dias. Apesar de viver
fora do ambiente da família desde muito cedo, ele era tímido e não possuía sociabilidade
feminina. Acreditava ter uma irremediável falta de habilidade com as damas, por isso, preferia
evitá-las de todas as formas, evitando até mesmo comprar em lojas onde as funcionárias eram
mulheres.
Devido a essa timidez, não ficou muito confortável quando viu que uma moça vivia na
pensão; com pouco menos idade que ele, a menina em questão era D. Ephygenia, filha da
dona da casa. A jovem moça ajudava nos afazeres da pensão, enquanto a mãe ficava nos
fundos. Ela vigiava as refeições, guiava o copeiro e atendia as reclamações. A presença da
jovem quase fez com que Vicente abandonasse a estalagem, mas ele ficou com vergonha de
parecer ridículo diante de um de seus amigos quando contasse o real motivo da sua saída.
Mesmo tentando evitar, a moça veio ao seu encontro, o que o deixou igual a um
seminarista diante de sua presença. Ainda assim, a observava, chegando à conclusão de que
não era nem bonita, nem feia; era pequena, parecendo uma gatinha, com seus olhos estirados,
agachada na escrivaninha alta, onde comandava o refeitório. Era nessa posição que ele mais
gostava de vê-la, pois assim, ficava inteiramente insignificante o seu olhar de penetração, que,
de quando em quando, se jogava sobre ele com o desejo de lhe adivinhar.
Passados dois meses, D. Ephygenia começou a tecer perguntas sobre os estudos do
rapaz, deixando Vicente aborrecido, pois já se encontrava chateado com eles, afinal, o que
mais os estudos poderiam lhe dar? No mais, era só mais título que não serviria de nada além
de trambolho e de enfeite de botocudo. Já tinha as noções suficiente e já não estava mais
tentado a sonhar em enriquecer com as carreiras de nossa terra, considerando que não havia
nascido afortunado e jamais aceitaria um emprego que tivesse de abdicar de suas opiniões ou
que o fizesse perder a sua autonomia e independência intelectual. O esforço de se formar
vinha mais dos desejos do seu pai, e ele assim o fazia para atender a um capricho do seu
falecido.
O caso era: seu pai teve problemas com um primo em razão da herança do seu avô, o
que gerou uma briga com tiros e processos. Depois de um ano na cadeia, seu pai ganhou a
liberdade. Apesar de nunca ter contado essa história, todos sabiam o jeito que o tal primo
tratava o seu pai, cheio de presunção, só porque tinha título de engenheiro, inclusive antes da
briga, de fato, o seu pai já era desprezado publicamente por esse parente. E o tal primo,
sempre que questionado sobre o seu grau de parentesco, dizia serem eles familiares muito
59
distantes. Vicente acreditava que isso era devido aos traços da raça negra de seu pai, que,
como todos os antropologistas nacionais, colocava os defeitos e as qualidades da raça nos
traços e nos sinais que ficavam à vista de todos.
O ódio que seu pai sentia continuou a existir, mesmo depois que se casou e de ter tido
um filho – o personagem protagonista. Com isso, todos os esforços eram para garantir os
estudos de Vicente, tudo para dar uma lição no tal parente. Apesar de ter se dedicado aos
estudos até o seu pai morrer, Vicente não tinha atrações pela carreira de doutor, o que tinha
eram grandes ambições intelectuais. Era o seu desejo examinar a certeza da ciência. Essa
vontade veio depois da leitura de uma defesa de júri, onde o réu foi condenado pela
irresponsabilidade gerada pelo peso da tara da sua origem. O pai do réu era alcoólatra e foi
processado por rixas. “O povo diz tal pai, tal filho, a ciência moderna também”. Essa
semelhança lhe pareceu um absurdo, conhecia filhos de alcoólatra que não eram nem
alcoólatras, tampouco criminosos. No mais, como um vício pode vir por geração, já que, em
geral, é um habito individual. “Por que mecanismos iam essas modificações transformar-se
em caracteres adquiridos e capazes de ser constituírem em herança?” Isso não lhe saiu da
memória, vivia pensando “se um simples bêbado, pode gerar um assassino; um quase-
assassino (meu pai) bem é capaz de dar origem a um bandido (eu)”, não podia ser, algo estava
errado. Era necessário estudar, depressa, essa alusão cientifica.
O contato com as prédicas positivistas lhe dera, mesmo que por negação, algumas
noções de metafísica das ciências. Com isso, decidiu estudá-las e verificar o grau de exatidão
dos métodos e a suas conexões com o real. Desejou avaliar a colaboração da fatalidade da
nossa inteligência nas leis, “nas contingências dela, as ideias primeiras”.163 Para ele, parecia
que estávamos cometendo um erro quanto á experiencia e ao método experimental. Caindo
nas mesmas armadilhas que os escolásticos medievais com os seus princípios aristotélicos,
cheios de silogismo, alusões e preconceitos lógicos. Principalmente nos confins de estudos
sociais e biologia deveria haver uma crítica rigorosa. Crítica, essa, que já estava sendo feita
por espíritos mais livres, libertos das tradições das academias e das universidades. Por isso,
decidiu abandonar os estudos superiores e executar seu plano seguindo o programa de vida
que tinha em vista.
Essa descrição do que seria o primeiro capítulo do Cemitério dos vivos publicado na
revista é importante para apontarmos algumas outras questões e características da escrita de
Lima Barreto e das lutas que travava em suas narrativas. A primeira delas é o uso das suas
163
“As Origens”. Revista Souza Cruz, 1921, p. 39.
60
próprias experiências para criar as suas histórias e os seus personagens. Assim como Vicente,
Lima Barreto parecia não ter muitas intimidades com mulheres. Apesar de refletir e escrever
sobre várias questões femininas como, por exemplo, o casamento, o feminismo e a violência,
o literato não deixou nenhum registro de que tivesse se relacionando sentimentalmente com
alguém, apenas narrou algumas de suas aventuras carnais:
[...] O que mais gostei dela foi o olhar. Tem um olhar inteligente, móbil e sequioso,
olhar que, com as asas das narinas, móveis e finas, dá-lhe um grande acento de
desejo, de fúria carnal, mais fúria que lascívia, mais lascívia que volúpia, mais
volúpia que amor. Fedra e Safo, uma e outra coisas. Falei-lhe. Ela me disse que me
conhecia. De fato, ela morava na Rua das Marrecas e, por cima da sua casa, no
sótão, o Nicolau Ciâncio. Fui lá muitas vezes e a vi com volumes de Racine,
Marivaux, Beaumarchais. Ela, lembrou, estreara na É fita, uma revista, como todas
as outras. “C’est le triste retour des choses d’ici bas” ... Devia ser deliciosa, essa
Guilhermina.164
[...] O que queria dizer é que, agora, quase um mês passado, eu não tenho nenhum
interesse em continuar a aventura. Não lhe tenho amor, não me sinto atraído por ela,
por isso não encontro justificativa em mim mesmo para arrastá-la, como se diz, a um
mau passo. Havemos de ver...165
Há inúmeras aproximações nesse conto com a história de vida do literato, porém, o que
mais confirma essa ideia é a referência ao pai. O pai de Lima Barreto também desejou ver seu
filho com título de doutor. Mas, ao ingressar no ensino superior, o autor se sentia cada vez
mais distante desse desejo, questionando a “mania de doutor” que tanto existia no Brasil. Em
1897 deu início no curso de engenharia civil na Politécnica, enfim o sonho de João Henriques
parecia virar realidade, o filho seria doutor.168 Entretanto, do mesmo modo que a personagem,
Lima Barreto não se sentia parte daquele universo da Politécnica e abandonou o ensino assim
164
BARRETO, Lima. Lima Barreto: obra reunida, volume 2. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2018, p. 567–
568.
165
Ibidem, p. 597.
166
SCHWARCZ, Lilia Moritz. Lima Barreto, op. cit, p. 17.
167
BARRETO, Lima. Lima Barreto: obra reunida, op.cit, p. 567– 568. p.429.
168
SCHWARCZ, Lilia Moritz. Lima Barreto, op. cit, p .119.
61
que o seu pai enlouqueceu. Em 1903 deixou registrado em seu Diário Íntimo os mandamentos
do seu decálogo, sair da universidade era o primeiro deles.
O meu decálogo:
1 – Não ser mais aluno da Escola Politécnica.
2 – Não beber excesso de coisa alguma
3 – E ... 169
Desde muito que eu desejava abandonar o meu curso. Aquela atmosfera da escola
superior, não me agradava nos meus dezesseis anos, cheios de timidez, de pobreza e
de orgulho. Todos os meus colegas, filhos de graúdo de toda sorte, que me tratavam,
quando me tratavam, com um compassivo desdém, formavam uma ambiência que
me intimidavam que me abafava, se não me asfixiava. Fui perdendo o estímulo;
mas, a autoridade moral de meu pai, que me queria ver formado, me obrigava a ir
tentando. [...] Desgostava-me e era reprovado...170
A crítica à “mania de doutor” feita por Lima Barreto aparece em muitos dos seus
escritos. Principalmente no livro Os Bruzundangas, obra que faz uma alusão ao Brasil, sua
política, seu povo e sua organização social. O autor aborda no capítulo intitulado “A Nobreza
da Bruzundangas” algumas informações sobre esse rico país e a sua grande nobreza. De
acordo com ele, a nobreza da Bruzundanga se divide em dois ramos: nobreza doutoral e
nobreza de palpite.
A nobreza doutoral é formada por cidadãos que se formam nas escolas superiores de
medicina, de direito e de engenharia. Após conquistar seus títulos, o cidadão obtém
privilégios especiais aceitos pelo resto do povo. Ter um doutor na família virou sinônimo do
enobrecimento que todos desejavam, entretanto, os que eram realmente pobres poucas vezes
conseguiam alcançar a formatura. Ter um título de doutor era a mesma coisa que ter um dom
e a pessoas passava a ocupar conjuntamente vários “cargos bem técnicos e atinentes aos seus
diplomas”.171 Já que,
A nobreza dos doutores se baseia em alguma coisa. No conceito popular, ela é
firmada na vaga superstição de que os seus representantes sabem; no conceito das
moças casadeiras é que os doutores têm direito, pelas leis divinas e humanas, a
ocupar os lugares mais rendosos do Estado; no pensar dos pais de família, ele se
escuda no direito que têm os seus filhos graduados nas faculdades em trabalhas
pouco e ganhar muito.172
Nem Lima Barreto, nem o seu personagem Vicente, desejavam mais fazer parte desse
universo dos cursos superiores, já que para obter um cargo importante teriam que renunciar
aos seus ideais ou serem próximos a alguém com fortuna, o que não era possível em nenhum
169
BARRETO, Lima. Lima Barreto, op. cit., p. 567– 568
170
Ibidem, p. 142.
171
REZENDE, Beatriz (org.). Os Bruzundangas Numa e ninfa/ Lima Barreto. 1.ed, São Paulo: Carambaia,
2017, p. 57.
172
Ibidem, p. 60.
62
dos casos. Ou seja, no fundo, o diploma tinha mais um valor econômico do que intelectual.
Há outra alusão nesse conto publicado que comprova, mais uma vez, a aproximação entre o
literato e a sua criação: a crítica ao positivismo.
O positivismo ganhou força no Brasil, principalmente, na cidade do Rio de Janeiro a
partir da segunda metade do século XIX. Ivan Lins nos diz que para termos uma ideia da
penetração do positivismo no Rio de Janeiro a partir de 1870, basta analisar a imprensa da
época, onde há alusões às doutrinas de Comte.173 Inclusive, o próprio José do Patrocínio se
dizia positivista nesse tempo. A atração dos meios de ensino pelas ideias positivistas também
fora enorme nesse período. De acordo com Lins:
Propagada por pensadores, essa corrente filosófica que defendia que o conhecimento
científico era a única forma de conhecimento, também atingiu Lima Barreto que,
provavelmente, de acordo com Francisco de Assis Barbosa, já em 1897 frequentava a
capelinha do apostolado positivista. O personagem Vicente Mascarenhas aborda essa
iniciação do literato ao positivismo. Apesar de ir ao culto, Lima Barreto rebateria os
argumentos dos jovens iniciados na filosofia.
[...] o positivismo defendia que o conhecimento científico era o único, verdadeiro, e
dependia dele o progresso da humanidade. Colegas chegados de Lima, como Carlo
Costa, jurava pela filosofia de Auguste Comte. Já Lima, como provou em várias de
suas histórias e contos futuros, nunca se deixou contaminar pela voga.175
Por isso, a maior crítica realizada nesse conto está ligada ao desenvolvimento das
teorias científicas que passaram a dar a ciência à autoridade para interpretar a realidade. O
positivismo foi uma dessas teorias, que recorreu à ciência para explicar o homem e a
organização social. Nesse sentido, o desenvolvimento das teorias sociais e biológicas, como
explicações para a sociedade, foi justificado pela busca do progresso e do florescimento da
realidade que deveria ser transformada.
Quando o personagem Vicente se questiona sobre a validade do argumento do júri, que
julga e condena o réu com base nas irresponsabilidades do seu pai, alegando que o vício vinha
pela geração, podemos dizer que Lima Barreto está questionando os princípios científicos
173
LINS, Ivan. História do Positivismo no Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1964, p. 235.
174
Ibidem, p. 253.
175
SCHWARCZ, Lilia Moritz. Lima Barreto, op. cit., p. 111.
63
Como descrito por Sidney Chalhoub, a destruição do Cabeça de Porco representou uma
investida na aniquilação da memória de um importante cenário de luta dos negros pela
liberdade. “Em outras palavras, a decisão da política de expulsar as classes populares das
áreas centrais da cidade podia estar associada a uma tentativa de desarticulação da memória
recente dos movimentos sociais urbanos” 178. Em síntese, concluímos que a massa de
populares, ― as chamadas “classes perigosas” ― foram vistas pelos políticos como as
portadoras preferenciais de vícios e de desordem. A opressão aos populares era legitimada
pela ação legal da polícia, que trabalhava em favor da ordem republicana. A pobreza, nesse
sentido, era sinônimo de ociosidade e vícios, criando o malfeitor, que deveria ser evitado em
nome da civilidade e do progresso. Partindo dessa lógica, a política republicana definiu a sua
noção de “classes perigosas” ou simplesmente “classes pobres”, onde os negros eram os seus
maiores suspeitos, devido aos vícios de sua raça e do seu antigo estado de escravização. Em
vista disso, nem mesmo a liberdade institucional conseguiu acabar com essa degeneração
entendida como natural nesses sujeitos.
176
MAMIGONIAM, Beatriz G. “Do que" o preto mina" é capaz: etnia e resistência entre africanos
livres”. Afro-Ásia, n. 24, p. 71-95, 2000.
177
Ibidem, p. 19.
178
CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: cortiços e epidemias na corte imperial. São Paulo: Editora Companhia
das Letras, 2018, p.26.
64
Lima Barreto foi um dos críticos do processo de criação e de afirmação de uma imagem
de identidade realizado no Brasil. Amparados nos ideais de progresso e civilização, a
definição do que deveria ser o perfil brasileiro ganhou respaldo das teorias científicas com
bases europeias. A ressignificação dessas ideias deu, para as atitudes de discriminação e para
o racismo, o ar de neutralidade da ciência. Nesse sentido, quando Lima Barreto escreve em
seu diário que “[...] a capacidade mental dos negros é discutida a priori e a dos brancos, a
posteriori”179, podemos entender que o literato estava se referindo a atitudes racistas com
bases biológicas que desqualificavam o negro e que lhe negavam a humanidade e a
capacidade intelectual. Não sabemos se o réu da história de Vicente era negro, branco ou
mestiço, mas ele foi condenado por conta de um vício do seu pai, como se a carga genética
definisse a priori quem seria um suspeito preferencial. Essas ideologias racistas que possuíam
nas suas justificativas o uso da ciência moderna para definir seus suspeitos e criminosos, com
base nos supostos defeitos de origem, atravessam toda a narrativa de Lima Barreto. O autor
questionou o fato de serem as capacidades mentais, dos negros, definidas e limitadas pelas
suas feições e origens.
[...] Discutindo a incapacidade mental desta ou aquela raça, temos o ar de dizer com
o poeta grego — os bárbaros, gente vil que não ama a filosofia e ciências; ele se
dirigia ao avô de Kant e ao tio de Descartes. Se a feição, o peso, a forma do crânio
nada denota quanto a inteligência e vigor mental entre indivíduos da raça branca, por
que excomungará o negro? [...] A ciência é um preconceito grego; é ideologia; não
passa de uma forma acumulada de instinto de uma raça, de um povo e mesmo de um
homem. Se há três geometrias etc.180
Outra importante aparição do literato nas páginas da Revista Souza Cruz foi na edição
de outubro e novembro de 1921. O título do artigo era “O Destino da Literatura”, e podemos
dizer que, nesse escrito, Lima Barreto deixou registrado o seu testamento literário.181 O artigo
foi escrito para uma conferência em sua homenagem que ocorreu em Rio Preto. Quem melhor
nos conta essa história é o seu principal biografo, segundo Francisco de Assis Barbosa,
Ranulfo Prata, escritor e jovem médico, tinha por Lima Barreto uma grande admiração e
sensibilidade. Vendo o doloroso estado de saúde do literato, que vivia perambulando pelas
ruas do Rio de Janeiro bêbado, como se fosse um pobre desconhecido, Prata resolveu tentar
ajudá-lo. Muito comovido com seu drama familiar, Prada convidou o escritor para passar uns
dias em Mirassol, cidade do interior de São Paulo. Lima Barreto aceitou o convite e foi de
passagem para a cidadezinha do interior. Lá, visitou e conheceu vários companheiros de
179
BARRETO, Lima. Lima Barreto: obra reunida, op. cit., p. 567– 568, p. 478.
180
Ibidem. p.479.
181
BARBOSA, Francisco de Assis. A vida de Lima Barreto: 1881 – 1922. 11 ed. Belo Horizonte: Autêntica
Editora, 2017. p.324.
65
letras, inclusive, o próprio Monteiro Lobato com quem já trocava cartas há algum tempo.
Barbosa nos diz que, Ranulfo Prata tentou de todo modo afastar o literato do vício da bebida e
até conseguiu, durante algum tempo, recuperar um pouco de sua aparência saudável. Mas,
infelizmente o plano não obteve sucesso e o autor acabou desaparecendo misteriosamente.
Esse fato ocorreu depois que os amigos de Prata, muito contentes com a presença de Lima
Barreto, resolveram organizar uma conferência na qual o tema seria o destino da literatura.
Lima Barreto não conseguiu se pronunciar nesta conferência e em nenhuma outra durante
toda a sua vida. Seu estado natural de timidez nunca o permitiu realizar tal ato. Porém, aceitou
esse convite, talvez por educação ou gratidão ao amigo Prata, porém, quando chegou o grande
dia, o literato simplesmente desapareceu e só foi encontrado, após buscas, em um bueiro,
completamente bêbado. O artigo “O Destino da Literatura” foi escrito para essa conferência e
jamais foi pronunciado por ele. Entretanto, esse trabalho foi publicado nas páginas da revista.
O artigo começa com o autor dizendo ser a primeira vez – no caso, seria – que ele iria
fazer o que se conhece como conferência literária. Esse gênero, ao mesmo tempo que é fácil, é
muito difícil. É necessário para quem o cultiva saber das letras, ter habilidade, elegância e
outras qualidades de um conferencista, para assim, obter sucesso na atividade.
182
“O Destino da Literatura”. Revista Souza Cruz, outubro de 1921, p. 26.
66
eventos. O que era desvantajoso, já que a palestra era o mais proveitoso gênero que se
cultivava no Brasil.
Só podemos entender as angústias de Lima Barreto a partir do próprio debate que ele
travou contra o racismo e as suas consequências. Com isso, podemos nos questionar: como
seria lidar com o reconhecimento de seu trabalho e ao mesmo tempo ter a sua humanidade
negada? Como se enquadrar em uma sociedade onde o negro teve a sua beleza
constantemente questionada? Encaminhando nossos pensamentos, Toni Morrison, em O olho
mais azul, de 1970, traz uma reflexão em sua narrativa que nos ajuda a entender essa questão.
Pecola, uma menina negra que desejava ser bela, todos os dias orava a Deus pedindo para ter
olhos mais azuis, somente assim, alcançaria a tão sonhada beleza. Quando o seu pedido foi
finalmente atendido, a jovem menina passou a ser considerada por todos um monstro. Já que,
as concepções de beleza e consequentemente, ter olhos azuis, já foram determinadas pela
sociedade como sendo características somente da cor branca. É nesse sentido que podemos
compreender um pouco dos medos que Lima Barreto tinha da exposição em conferências. O
literato sabia que a sua intelectualidade seria julgada a partir da sua aparecia física,
considerada fora dos padrões de beleza já determinados. Diferentemente da publicação de um
livro ou de um conto, onde o autor não tem o contato direto com quem produz a crítica, ver
pessoalmente suas capacidades serem negadas provavelmente produziu marcas e cicatrizes
bem mais dolorosas. Decerto, Lima Barreto as conhecia muito bem.
Apesar disso, somente aceitou esse convite porque estava encerrando o que prontamente
chamava “carreira literária”. Venceria seus temores para abordar o tema e começaria com um
questionamento sobre o que a literatura e a arte têm para contribuir com a felicidade de um
povo, de uma nação, da humanidade. Essas são indagações que todo homem que escreve para
o público já fez. Essas questões representam “[...] o resumo do problema da importância e do
destino da literatura que se contém no da arte em geral.” 183 Esse questionamento é feito por
todos e o debate não está encerrado, e nunca ficará, até que concordem que “[...] o fenômeno
artístico é um fenômeno social e o da arte é social para não dizer sociológico.184
Refletindo sobre o que é a arte, faz uso da obra de Tolstói – O que é Arte?– para dizer
que o fundador dessa ciência foi o filosofo Baumgarten. Segundo a sua definição, a arte teria
por “[...] objeto o conhecimento da beleza, sendo que esta é o perfeito ou o absoluto,
percebido pelos sentidos e tem por destino deleitar e excitar este ou aquele desejo nosso”.185
183
“O Destino da Literatura”. Revista Souza Cruz, outubro de 1921, p. 27.
184
Ibidem, p. 28.
185
“O Destino da Literatura”. Revista Souza Cruz, outubro de 1921, p. 27.
67
Com isso, nos diz que a importância da obra literária que encontra a beleza, sem
ignorar os atributos externos de forma, deve estar na “[...] exteriorização de um certo e
determinado pensamento de interesse humano, que fale do problema angustioso do nosso
destino em face o Infinito e do Mistério que nos cerca, e aluda às questões de nossa conduta
de vida.”187 Para melhor deslindar, usa como exemplo o livro de Dostoiévski, O Crime e o
Castigo. Resumindo o romance, Lima Barreto nos diz que a beleza dessa obra está
Mesmo que a Grécia – o que não é verdade – tivesse por ideal de arte realizar
unicamente a beleza plástica, esse ideal não podia ser o nosso, porque, com o
acúmulo de ideias que trouxe o tempo, com a descobertas modernas que alargaram o
mundo e a consciência do homem, e outros fatores mais, o destino da Literatura e da
Arte deixou de ser unicamente a beleza, o prazer, o deleite dos sentidos, para ser
coisa muito diversa.189
186
Ibidem.
187
Ibidem.
188
Ibidem, p 22.
189
“O Destino da Literatura”. Revista Souza Cruz, outubro de 1921, p. 23.
68
A arte de forma geral, seguindo os ensinamentos de Guyan na obra A Arte sob o ponto
de vista sociológico, eleva o homem da vida pessoal para a vida universal pelos sentimentos
mais profundos dos seres humanos. Ela ementa a consciência da existência, os pensamentos
mais sublimes e os sentimentos mais elevados.190 O homem por meio da arte não se limita aos
preconceitos do seu tempo, ele incorpora a sua vida no mundo, indo muito mais longe,
alcançando a vida total do universo. A arte, incluindo a literatura, “[...] teve, tem e terá um
grande destino na nossa triste humanidade.”191 O destino da literatura é pregar o ideal de
fraternidade, a justiça e entendimento entre os homens, uma missão quase que divina.
Ela sempre fez baixar das altas regiões da abstração da Filosofia e das inacessíveis
revelações da Fé, para torná-las sensíveis a todos, as verdades que interessavam e
interessam a perfeição da nossa sociedade; ela explicou e explica a dor dos humildes
aos poderosos e as angustiosas dúvidas destes, àqueles; ela faz compreender, uns aos
outros, as almas dos homens dos mais desencontrados nascimentos, das mais
dispersas épocas, das mais divergentes raças; ela se apieda tanto do criminoso, do
vagabundo, quanto de Napoleão prisioneiro ou de Maria Antonieta subindo à
guilhotina; ela, não cansada de ligar as nossas almas, umas às outras, ainda nos liga
à árvore, à flor, ao cão, ao rio, ao mar e à estrela inacessível; ela nos faz
compreender o Universo, a Terra, Deus e o Mistério que nos cerca, para o qual abre
perspectivas infinitas de sonhos e de altos desejos.192
190
Ibidem, p. 23.
191
Ibidem, p. 24.
192
“O Destino da Literatura”. Revista Souza Cruz, novembro 1921, p. 24.
69
Dostoiévski e Cervantes. 193 Esses autores contribuíram diretamente com a missão do literato,
formando as bases da sua literatura militante.
Ferreira chama atenção para o grande estudo feito pelo autor, construindo seus escritos
com influências de nomes importantíssimos. Lima Barreto criou o seu suporte teórico e,
apesar das suas limitações econômicas, teve acesso às leituras que vinham de fora do Brasil,
como, por exemplo, Voltaire, Dostoiévski, Tolstoi, Balzac, Flaubert, Eça, Taine, Bouglé e o
Ribot. Ele mesmo confessa ter estudos esses nomes e ter buscado neles o segredo do fazer.
Lima Barreto fez uma literatura de qualidade, ainda que tenha sido acusado de desleixo por
muitos críticos. O literato buscou inspirações nesses autores, em especial nos russos, para se
construir e realizar a sua literatura autobiográfica, critica, denunciante e militante.
Dostoiévski, dentre todos os autores russos, recebeu uma atenção especial de Lima
Barreto. O autor de Crime e Castigo ficcionalizou a sua vida tal como Barreto
também fez. Além disso, o autor russo representou em suas obras, as grandezas e
misérias de seu país, caminho seguindo também pelo escritor brasileiro. Ademais,
Dostoiévski registrou seu sofrimento de ser um prisioneiro e Barreto o de estar
internado em um hospício. Em Recordações da Casa dos Mortos, de Dostoievski, e
Cemitério dos Vivos, de Lima Barreto, os autores transformaram as suas
experiências de cárcere forçado em inspiração para a matéria-prima de seus
romances. Os sofrimentos no real foram transportados para a ficção.194
Essa análise sobre Revista Souza Cruz e sobre a atuação de Lima Barreto em suas
páginas é importante visto que, em muitos momentos, seus escritos foram silenciados pela
própria imprensa e as suas obras sofreram muitos tabus por parte de alguns editores. Os
organizadores das páginas do periódico estudado consideraram Lima Barreto parte dos
“vultos de valor” da intelectualidade, mesmo que as suas ideias fossem opostas a muitos dos
importantes nomes da intelectualidade da época, como, por exemplo, o próprio Coelho Neto.
Lima Barreto usou das páginas dessa revista com um dos meios para legitimar a sua ação
intelectual, defendendo a transformação social e denunciando o racismo à deriva do Estado.
Fazendo uso de uma escrita simples, porém, cheia de referências sofisticadas, que
demonstrando a dedicação, tinha na produção a sua construção literária.
Mesmo que a Revista Souza Cruz não tenha declarado, de maneira aberta, seu perfil, a
colaboração de Lima Barreto diz um pouco das escolhas que esse periódico fez durante a sua
existência. Apesar das diversidades de autores e temas, esse espaço propagou as ideias de
Lima Barreto até mesmo depois da sua morte. Como é o caso o romance Clara dos Anjos, que
saiu pela primeira vez em folhetim pela revista, logo depois de falecimento.
193
FERREIRA, Luciana da Costa. “Os percursos literários do leitor Lima Barreto”. Revista Garrafa 24, Rio de
Janeiro, v. 9, n. 26, p. 1 – 13, mai./ago. 2011.
194
Ibidem.
70
Inclusive, sobre a publicação do romance pela Revista Souza Cruz, há uma evidência
que contribui para afirmarmos que foi o próprio autor quem decidiu que aquela versão sairia
no periódico. Em uma carta enviada a Almáquio Cirne, em 5 de janeiro de 1921, Lima
Barreto faz referências aos livros inéditos que tinha nas mãos de diversos editores naquele
momento. Ao final dessa carta, depois de reclamar da falta de pressa que os editores tinham
para imprimir suas obras, o literato avisa ao amigo sobre a publicação de um dos seus
romances que sairia nas páginas da Revista Souza Cruz.
Acabo um romance que vou publicar seccionado na Revista “Souza Cruz”, cuja
diretoria me encomendou há um ano. Desenvolvi um conto, Clara dos Anjos, que
está no meu último livro. Saiu coisa bem diferente, se bem que o fundo seja o
mesmo. O título é o do conto.195
Lima Barreto não teve tempo de ver impressa essa obra, apenas sua outra versão em
conto. A revista manteve a publicação do folhetim e de muitos outros trabalhos inéditos do
autor, o que contribuiu diretamente para a divulgação da sua ação política realizada através de
sua literatura. Até o fim da revista, o nome Lima Barreto apareceu em um total de 48 vezes,
sem contar com as edições que se perderam com tempo, o que impossibilitou uma verificação
exata. Aqui escolhemos analisar apenas alguns deles, mas a atuação do literato no periódico
foi bastante significativa e foi através das páginas a Revista Souza Cruz que o romance Clara
dos Anjos pode se recuperado e pôde tornar-se livro, vencendo as consequências do tempo.
195
BARRETO, Lima, escritor e jornalista. Carta a Almáquio Cirne, referindo-se aos livros inéditos que tinha em
mão de diversos editores. Todos os Santos (RJ), 5 de jan. 1921. Série Correspondência enviada. 2 p. Dat. Orig.
Coleção Lima Barreto. Disponível em:
http://objdigital.bn.br/objdigital2/acervo_digital/div_manuscritos/mss1448652/mss1448652.pdf. Acesso em: 01
nov. 2020.
71
Parece-me que o nosso dever de escritor sincero e honesto é deixar de lado todas as
velhas regras, toda a disciplina exterior dos gêneros, e aproveitar de cada um deles o
que puder e procurar, conforme a inspiração própria, para tentar reformar certas
usanças, sugerir dúvidas, levantar julgamentos adormecidos, difundir as nossas
grandes e altas emoções em face do mundo e do sofrimento dos homens, para soldar,
ligar a humanidade em uma maior, em que caibam todas, pela revelação das almas
individuais e do que elas têm em comum e dependente entre si. 196
Não desejamos mais uma literatura contemplativa, o que raramente ela foi; não é
mais uma literatura plástica que queremos, a encontrar beleza em deuses para
sempre mortos, manequins atualmente, pois a alma que os animava já se evolou com
a morte dos que os adoravam.
Não é isso que os nossos dias pedem; mas uma literatura militante para maior glória
da nossa espécie na terra e mesmo no Céu. 197
Ainda que jovem, nesse momento de sua vida já sentia as consequências que as
condições de negro e pobre lhe trazia. Muito antes disso, em sua infância, o literato constatou
o estigma gerado pelo racismo. Em 16 de maio de 1908 escrevendo em seu diário sobre a
“mania de suicídio”, que tinha desde criança, deixou transparecer esse sentimento. O primeiro
momento em que sentiu uma tristeza tão forte capaz de desejar tirar a própria vida foi aos sete
anos, logo após a morte de sua mãe, quando passou por um episódio em que foi acusado
injustamente de furto. O menino Lima Barreto que sofria pela recente perca de sua
196
BARRETO, Lima. Lima Barreto: obra reunida, op.cit., p 12.
197
Ibidem, p. 13.
198
Ibidem, p. 452.
72
progenitora, ainda teve que experienciar as injustiças e as dores causadas pelo racismo, que já
o havia condenado desde o seu nascimento. Aos 27 anos escrevendo linhas cheias de dores, o
literato ainda era acompanhado pela vontade de tirar a própria vida, o que lhe faltava, apenas,
dizia ele, era a coragem. Antes, quando mais novo, o que lhe impediu foi a certeza da sua
inteligência. Mas em sua juventude, cansado e insatisfeito com o rumo que a sua vida vinha
tomando, Lima Barreto já se sentia amolado e colocava em dúvida a única coisa que lhe daria
a felicidade que tanto almejava: sua intelectualidade.
Uma passagem no livro de Fanon pode nos ajudar a compreender um pouco essa
declaração do literato. 200 Fanon nos conta que M.Achille, um professor universitário negro
em Lyon, cidade da França, ao participar de uma conferência, narrou um episódio pessoal que
sofreu em uma peregrinação de estudantes. Durante o ritual religioso, um padre, percebendo a
presença do professor, chegou perto e lhe perguntou o motivo de estar ali fazendo uso,
enquanto perguntava, de uma linguagem estigmatizada, a qual Fanon chamou de petit-nègre.
Como resposta, Achille usou de um francês pronunciado muito corretamente, o que
constrangeu o padre. Com essa história, Fanon chama atenção para algumas observações: a
primeira delas é sobre o fato de um branco, ao se dirigir ao negro, escolher usar uma
linguagem que o infantiliza com a intenção de se aproximar e de se fazer entendido,
colocando o sujeito negro na posição de uma criança diante de um adulto; o segundo ponto é,
ao fazer uso desse tipo de linguagem, o branco estigmatiza o negro, aprisionando-o em uma
ideia definida, onde a sua intelectualidade e a sua civilidade são limitadas pelo tom de sua
pele. A partir dessa reflexão, podemos pensar o caso de Lima Barreto, que mesmo provando
sua inteligência, teve o acesso ao verdadeiro mundo intelectual da época – o branco – negado
a todo momento. Por isso, a sua “mania de suicido”, diante dessa situação, pode ser entendida
pelo fato dele ter constatado, em sua juventude, que mesmo possuindo as qualidades
necessárias para ingressar na humanidade, elas não seriam reconhecidas ou suficientes.
Quando um outro tenta obstinadamente me provar que os negros são tão inteligentes
quanto os brancos, digo: a inteligência também nunca salvou ninguém, pois se é em
nome da inteligência e da filosofia que se proclama a igualdade dos homens,
também é em seu nome que muitas vezes de decide seu extermínio.201
199
BARRETO, Lima. Lima Barreto: obra reunida, op.cit, p. 544 – 545.
200
FANON. Frantz. Pele negra, máscaras brancas. op.cit.
201
Ibidem, p.43.
73
Coincidência ou não, Lima Barreto nasceu em 13 de maio de 1881, sete anos antes da
abolição institucionalizada da escravatura. Esse evento ficou marcado em sua mente e
202
SIMÕES JUNIOR, Alvaro Santos. Estudos de literatura e imprensa. São Paulo: Editora da Unesp, 2014.
203
FERREIRA, Lígia Fonseca. Com a palavra Luiz Gama. São Paulo: Editora Imprensa Oficial, 2011.
204
Ibidem, p. 38 – 39.
74
registrado em seus escritos. O literato e o seu pai foram juntos assistir os festejos da abolição
no Largo do Paço e também foram à missa campal no Campo de São Cristóvão, onde se
somaram a uma multidão ansiosa pelo fim da escravidão. O autor escreveu que o clima desse
momento foi de uma alegria total como nunca vira antes, o que gerou um sentimento de vida
em harmonia. Não só ele, como todas as crianças do colégio em que estudava ficaram
contentes com a nova lei. Mesmo sem saberem seu real sentido, o sentimento era de
liberdade.205 Ainda que não tenha conhecido a injustiça da escravidão, pessoalmente, como
Luiz Gama, o literato era intimamente atingindo por ela. Neto de escravizados, como bem
aponta Francisco de Assis Barbosa, foi através da ficção que Lima Barreto procurou explicar
o próprio caso, retomando as origens da sua família e fazendo dela os personagens das suas
histórias. 206 Isso acontecem tanto no romance de Clara dos Anjos, como em muitos de seus
outros escritos.
[...] é preciso desnudar o rei, tomar a literatura sem reverências, sem reducionismo
estéticos, dessacralizá-la, submetê-la ao interrogatório sistemático que é uma
obrigação do nosso ofício. Para historiadores a literatura é, enfim, testemunho
histórico.209
Nesse sentido, os autores afirmam que a literatura é evidência histórica. O que cabe ao
historiador é fazer as perguntas corretas para que a obra ficcional não caia no pressuposto da
falta de evidências objetivas. Para isso, apresentam duas observações que são importantes
neste caso. Como primeiro caminho, os autores apontam para a necessidade de “destrinchar
sempre as especificidades de cada testemunho”, seja ele ficcional ou não. O papel do
historiador é produzir o interrogatório que desvende a lógica social do texto. 210 O segundo
pressuposto é a necessidade de o historiador reconhecer as características próprias da
literatura. Nesse momento, cabe ao pesquisador social elaborar perguntas obrigatórias para
205
BARBOSA, Francisco de Assis. A vida de Lima Barreto, op. cit., p 55 – 56.
206
Ibidem, p. 35.
207
Ibidem, p.7
208
CHALHOUB, Sidney; PEREIRA, Leonardo A. de Miranda (orgs.). A história contada: capítulos da história
social da literatura no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988.
209
Ibidem, p.7.
210
Ibidem, p.8.
75
esse tipo de pesquisa como, por exemplo: “De que literatura está falando? Quais as suas
características? Como determinado autor – ou ‘escola’ – concebe a sua arte?” 211
Dito isto,
confirmam dizendo que o que realmente é importante na pesquisa são os processos históricos
no qual essas obras e esses autores estão refletindo através dos seus enredos e dos seus
personagens, “o que interessa é inserir autores e obras literárias específicas em processos
históricos determinados.”, ou seja, cabe ao historiador perceber os diálogos, a interlocução e
os debater que os literatos travaram em seus escritos. 212
Como outro exemplo, temos o “História em Coisas Miúdas” organizado por Sidney
Chalhoub, Margarida Neves e Leonardo Pereira.215 Neste trabalho, os volumes publicados
abordam a relação entre crônica e testemunho histórico a partir de vários escritores
brasileiros. Os historiadores, por meio da crônica, apresentam as conexões entre o gênero e
os acontecimentos sociais de diversos períodos. Nesse sentido, reconhecem nesses textos
expressões e intervenções da realidade. Apesar de interagirem com os acontecimentos do seu
tempo, somente recentemente esses textos receberam mais atenção e a importância deles foi
valorizada, “tanto como campo da experimentação literária quanto como testemunho de um
tempo vivido.”216 A crônica então, usa como matéria-prima as discussões e as tensões do
contexto em que são produzidas. Sem a intenção de resumir a definição e as características
desse gênero, os historiadores afirmam que o significativo é abordar a historicidade dessas
211
Ibidem, p.8.
212
CHALHOUB, Sidney; PEREIRA, Leonardo A. de Miranda (orgs.). A história contada. op. cit., p.8.
213
CHALHOUB, Sidney. Diálogos políticos em Machado de Assis. A história contada: capítulos da história
social da literatura no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, p. 95-122, 1998
214
Ibidem, p.97.
215
CHALHOUB, Sidney; NEVES, Margarida S., PEREIRA, Leonardo A. M.(org.), História em cousas miúdas:
capítulos de História Social da crônica no Brasil. Campinas: Ed. da Unicamp, 2005.
216
Ibidem, p.14.
76
narrativas, por isso, é necessário ter um olhar crítico que “enxerga onde as grandes vistas não
pegam” como salientou Machado de Assis. 217
É a partir desse campo teórico e metodológico que analisaremos algumas das versões
do romance Clara dos Anjos escrito por Afonso Henriques de Lima Barreto. A proposta é, a
partir dos movimentos das personagens, entender o debate e o sentido político que o literato
travou através dessa obra, principalmente, como as injustiças e o racismo atravessaram toda a
sua escrita.
A editora responsável pela primeira edição de Clara dos Anjos surgiu no ano de 1947.
Tinha sua sede matriz na Rua Miguel Couto, número 35, Rio de Janeiro. Possuía também uma
filial na Rua 7º de Abril, número 34 na cidade de São Paulo. No Jornal do Comercio de 1° de
julho de 1947, foi publicado o texto, outorgado em cartório, que oficializava o surgimento
dessa editora. “[...] aos quatorze dias do mês de abril, nesta cidade do Rio de Janeiro, em meu
cartório, à rua Buenos Aires número quarenta e sente”.220 Em presença do tabelião Fernando
de Azevedo Milanez e de algumas testemunhas outorgantes, se constitui uma sociedade
217
Ibidem, p. 13 – 20.
218
BARRETO, LIMA. Clara dos Anjos. Rio de Janeiro: Editora Mérito, 1948.
219
“Livros Novos”. Revista da Semana, 19 de março de 1949.
220
“Escritura de constituição da Editora Mérito S.A.”. Jornal do Comércio, 1 de julho de 1974, p. 12.
77
Essa jovem editora, já em seu primeiro ano nos negócios dos livros, decidiu editar e
reeditar algumas das obras do literato brasileiro. Além de Clara dos Anjos, a editora foi
responsável pela reedição do romance O Triste fim de Policarpo Quaresma, também no ano
de 1948. Em 22 de maio de 1949, o jornal Diário Carioca divulgou mais um lançamento
proporcionado pela Editora Méritos, o livro Recordações do Escrivão Isaias Caminha. Em
agosto desse mesmo ano, ainda prosseguindo as publicações das obras de Lima Barreto, a
editora apresentou o romance Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá. Essa reedição foi
dividida em dois livros, já que o volume continha trezentas páginas, e, além do romance, a
obra foi completada com dezoito contos extraídos de jornais e revistas, ademais de possuir o
prefácio escrito por Paulo Rónai.221
Com uma ânsia de produção, escreveu vários projetos, alguns foram abandonados pelo
caminho, outros o acompanharam por toda sua vida. Um deles, talvez o primeiro e o que
mais deu sentido a toda sua trajetória literária, foi o de escrever uma história sobre a
escravidão negra no Brasil e as suas influências na construção de uma nacionalidade
brasileira222. Desejou produzir uma espécie de Germinal negro, que seria a sua grande obra-
221
Diário de Notícia,14 de agosto de 1949, p. 3; Diário de Notícia, 21 de agosto de 1949, p. 3.
222
Isso pode ser visto com muita clareza em seu diário íntimo. “Eu sou Afonso Henriques de Lima Barreto.
Tenho vinte e dois anos. Sou filho legítimo de João Henriques de Lima Barreto. Fui aluno da Escola Politécnica.
No futuro, escreverei a História da Escravidão Negra no Brasil e sua influência na nossa nacionalidade”. Ver em:
BARRETO, Afonso Henriques de Lima. Diário íntimo: Memórias [1953]. BARBOSA, Francisco de Assis
(ORG.). São Paulo: Brasiliense, 1956, p.4.
78
prima, onde, de acordo com Barbosa, a intenção era “introduzir em nossa literatura uma nova
escola, o “negrismo”.223
Veio-me à ideia, ou antes, registro aqui uma ideia que me está perseguindo.
Pretendo fazer um romance em que se descrevam a vida e o trabalho dos negros
numa fazenda. Será uma espécie de Germinal negro, com mais psicologia especial e
maior sopro de epopeia. Animará um drama sombrio, trágico e misterioso, como os
do tempo da escravidão. Como exija pesquisa variada de impressões e eu queira que
esse livro seja, se eu puder ter uma, a minha obra-prima, adiá-lo-ei para mais tarde.
Temo muito pôr em papel impresso a minha literatura. Essas ideias que me
perseguem de pintar e fazer a vida escrava com os processos modernos do romance,
e o grande amor que me inspira — pudera! — a gente negra, virá, eu prevejo, trazer-
me amargos dissabores, descomposturas, que não sei se poderei me pôr acima delas.
Enfim — “une grande vie est une pensée de la jeunesse réalisé par l’âge mür”, mas
até lá, meu Deus! que de amarguras! que de decepções! Ah! Se eu alcanço realizar
essa idéia, que glória também! Enorme, extraordinária e — quem sabe? —uma fama
europeia. Dirão que é o negrismo, que é um novo indianismo, e a proximidade
simplesmente aparente das coisas turbará todos os espíritos em meu desfavor; e eu,
pobre, sem fortes auxílios, com fracas amizades, como poderei viver perseguido,
amargurado, debicado?
Mas... e a glória e o imenso serviço que prestarei a minha gente e a parte da raça a
que pertenço. Tentarei e seguirei avante. “Alea jacta est”. Se eu conseguir ler esta
nota, daqui a vinte anos, satisfeito, terei orgulho de viver! Deus me ajude!226
O Germinal, de Zola, conta a história da vida e das condições precárias dos operários
franceses em uma mina de carvão na França. O enredo da obra gira entorno das lutas dos
trabalhadores por melhorias, o que ocasionou inconformidades e revoltas. A obra é composta
por uma história com ar de realidade, onde os personagens são descritos não de forma
idealizada e romântica, mas como seres humanos reais passíveis de erros e de falhas, tomando
consciência da sua situação social. Essa obra fez parte do ciclo Rougon-Macquart publicados
223
BARBOSA, Francisco de Assis. A vida de Lima Barreto, p 152.
224
SILVA, Eduardo Cesar Ferreira da. Obra de Émile Zola no Brasil: Textos e notas para um estudo de
recepção crítica. Dissertação (Mestrado) –Universidade Federal de Santa Cantarina, Centro de Comunicação e
Expressão. 1999.
225
Ibidem, p. 24 – 28.
226
BARRETO, Lima. Lima Barreto: obra reunida, op. cit, p. 498.
79
entre o ano de 1870 e 1893, com o total de 20 volumes. De acordo com Eduardo Cesar
Ferreira da Silva, foram esses trabalhos que trouxeram para o autor a fama e o dinheiro.227
Nelson Werneck Sodré nos diz que no Germinal, de Zola, volta-se para a classe operária do
mineiro. Como era de costume em suas criações, o autor leu autores socialistas, percorreu as
regiões das minas, conversou com trabalhadores e andou pelas aldeias onde moravam
operários, para assim produzir a obra.228
Sodré salienta que o naturalismo, o qual Zola é uma grande referência, surgiu no Brasil
em um momento de muitas mudanças, tanto políticas – com a república e a abolição –, como
mudanças no comportamento da população – destacando-se, aqui, a urbanização, o avanço da
burguesia, o crescimento ferroviário e a ampliação dos jornais. Ou seja, esse movimento
literário surge em um momento onde ocorriam grandes transformações políticas, filosóficas,
cientificas e sociais. Crítico do movimento, N. W. Sodré diz que a importância do naturalismo
pode ser conferida pelo fato de que a literatura mudou os seus processos, se adequando ao
momento, criando formas que pareciam mais apropriadas para operar e acompanhar as
consequências das mudanças da sociedade. Nesse sentido, não demorou para a literatura
buscar enquadrar o conjunto social com novos instrumentos capazes de dar conta dos novos
temas. “O naturalismo, por isso, foi a criação de uma época e sua universalização
correspondeu menos à universalização das transformações que se vinha operando, o que era
impossível, do que à universalização de seus efeitos”. 229
Caracterizando o papel de Zola,
Sodré alegou que foi a curiosidade universal que assinalou seu ofício.
“[...]curiosidade que se explicava pela necessidade de dar guarida a tudo aquilo que
vinha afetando, de forma tão profunda, a vida em sociedade. Curiosidade que
chegou aos limites da bisbilhotice, que se perdeu, por isso mesmo, em número
detalhes, desmandando-se em minúcias desprovidas de significação, perdendo-se em
pesquisas estéreis, despojadas de importância, para a vida como para a literatura.
Ver bem não era ver tudo, já naquele tempo.”230
Ou seja, de acordo com essa ideia, o levantamento extensivo feito pelo naturalismo fez
com que muitas das suas criações perdessem a substância literária. Por isso, o autor diz que a
leitura desses naturalistas, onde Zola é o representante, se tornou cansativa. Transportar para a
criação literária os recursos científicos, foi a armadilha que condenou o movimento, já que, os
recursos serviam de maneira ampla, mas o seu uso e abuso na interpretação dos sentimentos
227
SILVA, Eduardo Cesar Ferreira da. Obra de Émile Zola no Brasil. p. 30.
228
SODRÉ, Nelson Werneck. O Naturalismo no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965, p. 33.
229
Ibidem, p. 33, p. 202.
230
Ibidem, p. 203.
80
eram inadequados para representar a realidade. Porém, ele não anula a importância do
movimento, o naturalismo elucidou novos caminhos e concepções.
Alan Flor tendo o objetivo de construir um dialogo a partir do olhar dos próprios
romancistas acerca do naturalismo, elaborou um trabalho observando os pontos convergentes
e divergente dos próprios pertencentes a escola. 231 A autora diz que esse movimento estético-
literário foi colocado em um lugar de marginalização no campo da história da literatura
brasileira, sobretudo, devido ao olhar da crítica literária. Analisando os discursos de José
Veríssimo e Sílvio Romero, Flor diz que os autores defenderam que o naturalismo no Brasil
não foi um movimento acabado. O termo era mais usado para se estabelecer uma diferença
com o romantismo do que para delimitar seus preceitos. Veríssimo e Romero criticaram a fato
de o movimento estético-literário ter sido uma imitação do modelo francês. Romero ainda
salienta que o mérito da fundação da doutrina não decorreu dos aptos brasileiros, que criaram
uma imitação de maneira não habilidosa. Veríssimo aponta que a importação do movimento
sem nenhuma alteração ligada a legitimidade brasileira contribuiu para a desqualificação.
Outro problema apontado por esses dois autores e exposto por Flor, foi que os adeptos do
naturalismo brasileiro remeteram o movimento somente à figura de Émile Zola, deixando de
lado outros escritores que tornariam a doutrina mais promissora, ou seja, reduzindo a escola
ao trabalho de Zola. Outra crítica bem acentuada feita ao movimento naturalista brasileiro foi
sobre o seu caráter pornográfico, criando uma imagem pouco literária para o naturalismo.
Com uma visão diferente, Flor apresenta a concepção de Araripe Júnior. Segundo ele,
esse autor foi o primeiro a enxergar o movimento para além de uma imitação europeia. O
naturalismo brasileiro, de acordo com Araripe Júnior, ainda que importado da Europa, sofreu
modificações e adaptações da realidade social e política do Brasil, visto que, ao ser importado,
não permaneceu exatamente igual ao que era em seu lugar de origem. Nesse sentido, a
adaptação brasileira é uma qualidade, pois, de acordo com Araripe Junior, o modelo europeu
se ajustou à realidade brasileira.232 Os defensores do naturalismo legitimam os seus discursos
justificando que diferente da simples imitação da obra de Zola, o que sentem por esse escritor
é admiração. Afirmam que o movimento possibilitou a construção de obras para além da
receita literária dos romances românticos, abrindo as portas para o século XX. O naturalismo
seria então, conforme os seus defensores, o “´[...] resultado da evolução e a única forma pela
231
FLOR, Alan. “O Naturalismo no Brasil Sob Suspeição”. In: ABRALIC (Org.). Anais do XIV Congresso
Internacional Fluxos e correntes: trânsitos e traduções literárias. Belém, Pará: Abralic, 2015.
232
Ibidem.
81
qual a literatura contemporânea poderia atender às exigências dos leitores e dos críticos de seu
tempo.233
Taine foi uma das referências para o autor, assim como o naturalista Eça de Queiroz,
por quem tinha grande admiração. Entretanto, apesar da crítica à objetividade do
conhecimento cientificista, Lima Barreto foi um homem do seu tempo e os princípios teóricos
com pressupostos naturalistas propagados no contexto o atingiram. N. W. Sodré no trabalho
referenciado, afirma que mesmo em épocas diferentes, as imposições do naturalismo não
deixaram de ocupar o lugar de importância no desenvolvimento literário. Suas heranças e
alguns dos seus elementos foram transferidos para literatura moderna.234 Essa afirmação nos
ajuda a justificar a proximidade de Lima Barreto com o movimento.
O autor de Clara dos Anjos, porém, ao recorrer ao naturalismo de Zola, injetou nele o
protagonismo dos seus ancestrais e, em simultâneo, fez desses corpos negros os sujeitos e os
atores principais na arquitetura da modernidade brasileira. Os preceitos do naturalismo, nos
escritos de Lima Barreto, foram enegrecido e, com isso, o autor introduziu no movimento
questões raciais e abordou as atrocidades de uma sociedade hierarquizada que Emile Zola não
comentou. O “pai do naturalismo” focou os seus escritos apenas na realidade do cotidiano dos
trabalhadores brancos franceses do século XIX e ignorou as violências cometidas aos negros.
Ainda que a Revolução Francesa tenha pregado a liberdade, cabe questionar: que liberdade
era essa? Que grau de pessoas ela atingiu? Dado que a consolidação do capitalismo
estruturante no contexto francês trouxe consigo novas formas de hierarquização da sociedade.
233
Ibidem, p.9.
234
SODRÉ, Nelson Werneck. O Naturalismo no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965. p. 213.
82
Pap Ndiaye, observou que desde o século XVIII as autoridades criaram leis que proibiam a
estadia de franceses negros na metrópole, como, também, proibiam o casamento inter-
racial.235 Nesse sentido, a prerrogativa da igualdade, um dos princípios estruturantes da
república, foi negada aos negros. Ao longo dos séculos XIX e XX, as autoridades francesas
instituíram leis implacáveis para fazer da França um país exclusivamente branco, como
discorre, em seus estudos, o autor Joseph Zobel, entretanto, esses acontecimentos não
aparecem na narrativa de Émile Zola, que abordou em seu Germinal as péssimas condições de
vida dos trabalhadores das minas de carvão no interior da França. 236
A partir dessa reflexão, podemos apontar as diferenças dos escritos de Émile Zola para
os escritos desenvolvidos por de Lima Barreto. Diferente do autor francês, o literato brasileiro
não silenciou atrocidades cometidas pelo Estado contra os negros e não brancos. O literato
trouxe para a sua ficção personagens periféricos e excluídos. Não temos a intenção de negar
as inovações literárias iniciadas com Zola, nem de negar a sua importância para a literatura,
como já foi mencionado aqui. Porém, ao interpretarmos os escritos de Lima Barreto e a sua
intenção de desenvolver uma espécie de Germinal Negro, não podemos deixar de evidenciar
que o autor pretendia destacar o protagonismo dos negros na construção da nação brasileira. O
literato introduziu a questão racial em suas obras e, sobretudo, exigiu o reconhecimento dos
negros enquanto seres humanos. Nesse sentido, podemos dizer que Clara dos Anjos faz parte
do Germinal Negro que Lima Barreto pretendeu escrever.
Na parte inicial da primeira edição do livro Clara dos Anjos existe uma sessão dedicada
as obras do autor. Nessa exibição, as produções de Lima Barreto estão divididas nas
categorias “romances”, “humorismo”, “contos”, “sátiras” e “crônicas”, o que totalizaram um
total de dez obras publicadas. O livro Clara dos Anjos aparece como referência a edição em
folhetins, feita pela Revista Sousa Cruz, ou seja, com o mesmo formato, publicado em
1923.237 Sobre isso, há uma importante curiosidade que aparece no Diário de Notícias do dia
28 de dezembro de 1948, que nos ajuda a pensar um pouco sobre a recepção do romance. Na
coluna intitulada “A propósito de Clara dos Anjos” escrita por Raimundo Magalhães Junior, o
autor contestou a omissão do editor do livro, acusando-o de não referenciar a cooperação de
duas importantes pessoas que tornaram a publicação desse romance possível. As pessoas
235
NDIAYE, Pap. La condition noire: essai sur une minorité française. Calmann-Lévy, 2008.
236
ZOBEL, De Joseph. La Rue Case – Negres. França: Presence Africaine, 2014.
237
BARRETO, LIMA. Clara dos Anjos. op. cit. p. 7.
83
seriam o próprio R. Magalhães Junior e o poeta Pretextato da Silveira. A nota foi um protesto
pela atitude sem cortesia do editor da edição de 1948.238
Até que, em uma conversa com um auxiliar da Livraria Freitas Bastos, a sugestão de
procurar por Pretextato da Silveira surgiu, já que o poeta também era um dos colaboradores
da revista. Em um primeiro momento, Silveira disse que não tinha mais a coleção da revista.
Depois, ao saber o que exatamente R. Magalhães Junior estava procurando, o poeta acusou
lembrar-se de haver guardado as páginas que continham o romance, pelo fato de a história ter
um personagem carteiro. Foi desse modo que o texto completo da narrativa foi encontrado.
Logo em seguida, R. Magalhães Junior entregou o material ao Sr. Valverde, que o deu para a
Editora Méritos S.A, de acordo com o seu relato. Porém, a referência a essas duas pessoas
importantíssimas na recuperação do romance foi ignorada pelo editor da primeira edição do
livro, a justificativa para tal atitude, feita pelo Sr. Valverde e que aparece nessa coluna, foi a
de que ele já havia conseguido uma cópia do romance com outra pessoa, o Elói Pontes, antes
mesmo de receber o material de Magalhães Junior.
238
“A propósito de Clara dos Anjos”, Diário de Notícias, 28 de dezembro de 1948, p.2.
84
as páginas do jornal, o qual também era um dos fundadores, para publicar a sua reivindicação
pelo reconhecimento da sua ação em prol da busca pela obra publicada no mesmo ano.
Outra evidência com a qual podemos reforçar a recepção positiva do livro no contexto
em que foi publicado, foi fato de a obra Clara dos Anjos ter sido escolhida como o “livro do
mês” em novembro de 1948. O grupo “Livro do Mês” selecionava os livros de destaque do
mês e remetia-os para todos os seus associados. Os livros eram entregues nas casas dos
associados que desejassem fazer parte do clube.”239 A iniciativa de escolher um livro por mês
foi criada pelo clube para exaltar os notáveis escritores que aumentavam o brilho da cultura.
A intenção era desenvolver o gosto pelas belas letras e o amor pelos autores da literatura. 240
Na matéria intitulada “Reedição das obras-primas da nossa ficção” no jornal Letra e Artes:
Suplementos de A Manhã (RJ), de agosto de 1948, é ressaltada a importância dos clubes de
livros na vida do leitor moderno. Segundo a matéria, o êxito dessas organizações se dava pelo
fato de os leitores modernos serem exigentes, mas terem pressa, melhor dizendo: os novos
ledores querem ler um bom livro sem terem o trabalho de procurá-lo nas livrarias. Esses
clubes selecionavam os melhores livros e enviavam aos seus sócios, que tinham como
vantagem receberem, no conforto de suas casas, a obra do intelectual escolhido. No Brasil,
havia duas organizações desse tipo: o “Livro do Mês” e o “Círculo Literário”. A tarefa do
“Livro do Mês” era a de selecionar o melhor livro publicado mensalmente, tanto nacional,
quanto estrangeiro. 241
No O Jornal de dezembro de 1948, o artigo “Balanço Literário de
1948” também aborda a importância desses clubes em divulgar as letras nacionais e
estrangeiras.
239
“Livro do Mês”. Diário de Notícias, 12 de outubro de 1947, p. 4.
240
“A Expansão de Obras-primas Nacionais. Gazeta de Notícia, 13 de novembro de 1948, p. 3.
241
“Reedição das obras primas da nossa ficção”. Letras e Artes: Suplementos de A Manhã, 15 de agosto de 1948,
p. 12
85
admirável novela quase inédita do grande romancista carioca, desde que havia até
então aparecido apenas em certa revista de mesquinha tiragem.242
Clara dos Anjos foi o livro escolhido para o mês de novembro, pela seleção “Livro do
Mês”, o que confirma a relevância e a recepção dessa obra para os leitores do clube. Em 17 de
outubro de 1948, no jornal Diário de Notícia, na coluna “Movimento Literário” é publicada
uma nota informando a escolha. Conforme a notícia, o romance apareceu a mais de vinte anos
e nunca mais se falou sobre ele, se mantendo no esquecimento. Lúcia Miguel Pereira que teve
acesso aos originas, disse ser o livro indispensável para conhecer a personalidade de Lima
Barreto. 243 Raul Lima, escrevendo para essa mesma coluna do Diário de Notícia no dia 28 de
novembro de 1948, também exalta a escolha feita pelo “Livro do Mês”. Em suas palavras, diz
que a Editora Méritos é a responsável pela vitoriosa organização do livro de Lima Barreto,
um romance quase inédito. Além de Clara dos Anjos, em outubro deste mesmo ano outra obra
do literato foi escolhida para ser o livro do mês: O Triste fim de Policarpo Quaresma.
De volta a análise do livro da primeira edição, de acordo com seu editor, o manuscrito
dessa história representa o começo de um projeto que não teve fim, tendo sido ele carregado
durante uma vida inteira, de 1904 até 1922. Os temas que fazem parte de Clara dos Anjos vão
aparecer em muitos dos outros escritos de Lima Barreto, com forma e sentido mais amplo.
Ainda segundo ele, Clara dos Anjos representa muito possivelmente a primeira tentativa de
Lima Barreto nos domínios da ficção”244. O editor concluiu essa sessão dizendo que o texto
editado é o mesmo publicado pela Revista Souza Cruz, uma vez que, o acesso ao manuscrito
original não foi possível por estar o material extraviado no momento da edição.
O prefácio escolhido para essa edição é escrito por Lúcia Miguel Pereira, importante
historiadora, crítica literária e conhecedora da obra de Lima Barreto. Neste prefácio a autora
aponta para o fato dessa versão não ser exatamente igual a que o literato esboçou em seu
Diário Íntimo, em 1904. Apesar de os personagens serem os mesmos, as circunstâncias são
outras. Segundo ela, no primeiro roteiro criado por Lima Barreto a obra não terminaria como
o fim dessa versão. Clara, depois do abandono do seu sedutor, encontraria novos amantes e
outros problemas pelo caminho e, por fim, terminaria sua vida sustentando o seu amante
inválido, entretanto, Lima Barreto abandona esse romance, mas não despreza o tema, tendo o
assunto aparecido em outros dos seus escritos. Apesar de as mudanças, o enredo da história é
o mesmo: a jovem moça mulata que é seduzida e abandonada pelo seu abusador branco. A
242
“Balanço Literário de 1948”. O Jornal, 25 de dezembro de 1948, p. 8
243
“Movimento Literário”. Diário de Notícia, 17 de outubro de 1948, p. 3.
244
BARRETO, LIMA. Clara dos Anjos, op. cit. p 7.
86
Um último ponto importantíssimo que deve ser mencionando e analisado sobre essa
primeira edição é a escolha que os seus editores fizeram ao selecionar a capa do livro. A capa
da edição de 1948 contém a representação de uma favela carioca (FIGURA 1), ou seja, ainda
que a história de Clara dos Anjos se passe no subúrbio do Rio de Janeiro e o seu autor
demarque esse lugar de forma bem nítida, a edição de 1948 representa esse espaço de outra
forma. Nesse sentido, cabe pensarmos sobre o motivo dessa ação e a razão que levou aos
editores a fazerem essa escolha.
BARRETO, Lima. Clara dos Anjos. Rio de Janeiro: Ed. Mérito, [1948]. 299 p.
245
Ibidem, p. 15.
246
Ibidem, p. 16.
87
247
CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: cortiços e epidemias na corte imperial. São Paulo: Editora Companhia
das Letras, 2018, p. 19.
248
VAZ, Lilian Fessler. Dos cortiços às favelas e aos edifícios de apartamentos—a modernização da moradia no
Rio de Janeiro. Análise social, vol. XXIX, nº 127, p. 581-597, 1994.
88
o afastamento desse grupo de pessoas que viviam em condições precárias. Os altos preços
dos aluguéis e as diversas investidas municipais para evitar a presença dessas habitações
populares do núcleo moderno expulsaram esses moradores do centro da cidade. De acordo
com a autora, essa “classe de populares passou a viver dispensada pelos subúrbios, pelas casa-
de-cômodos do entrono imediato e pelas favelas, que passaram a fazer parte da imagem
urbana carioca num contraponto à modernização”.249 Nesse contexto, a autora nos diz que a
questão da habitação passou de uma construção para uma área, o que contribuiu para a
separação das classes sociais no espaço da cidade. Principalmente depois do decreto n° 391,
de 10 de fevereiro de 1903, criado por Pereira Passos, que regulava todas as construções,
criando exigências técnicas e arquitetônicas, ou seja, ainda que o subúrbio representasse uma
opção de moradia mais acessível ao trabalhador, principalmente depois da evolução do
transporte ferroviário que permitia a circulação mais rápida por lugares mais distantes, as
exigências criadas pelo prefeito dificultaram essas construções. Nesse sentido, a ocupação dos
morros próximos ao centro se tronou uma alternativa de moradia para os mais pobres, como
bem salientou Vaz. 250
251
Entretanto, apesar de Luiz de Aguiar Costa Pinto demostrar, em sua análise, que a
concentração de negros, entre os moradores das favelas do Rio de Janeiro no ano de 1949, era
bastante significativa: “ enquanto que, em cada 100 habitantes do Rio de Janeiro, 27 são de
cor – na população das favelas, em cada 100 habitante, 71 são de cor” 252, esse mesmo estudo
também demonstra os diversos lugares que os sujeitos negros ocupavam no Distrito Federal e
a heterogeneidade dos moradores das favelas, inclusive os variados tipos de ocupações e
trabalhos realizados por essas pessoas. É evidente que a expressiva massa de pessoas pobres
de cor em áreas deterioradas é uma significativa manifestação da segregação que o Estado
produziu, como também abordou o autor. Porém, a imagem construída sobre esses espaços
contribuiu para o olhar preconceituoso e estereotipado a respeito de seus moradores,
representados como malandros e marginais. Nesse sentido, como foi apontado por Licia
Valladares253, se construiu um pensamento específico sobre esses lugares entendidos como
249
Ibidem, p. 586.
250
Ibidem, p.587.
251
PINTO, Luiz de Aguiar Costa. O negro no Rio de Janeiro: relações de raças numa sociedade em
mudança. Brasiliana, 1953.
252
Ibidem, p.130.
253
VALLADARES, Licia. A gênese da favela carioca. A produção anterior às ciências sociais. Revista brasileira
de ciências sociais, v. 15, p. 05-34, 2000, p. 05-34
89
“um outro mundo”, onde os seus moradores eram largados a própria sorte e seriam, eles
mesmos, os responsáveis pelos males da cidade.
Pouco importa terem sido intelectuais das mais variadas tendências ideológicas e
políticas, com propósito distintos em suas visitas e subidas ao morro. O importante
era partilharem, todos, de um mesmo entendimento sobre o que eram e
representavam tais áreas e seus moradores no contexto da capital federal e da jovem
República, era estarem todos informados por um mesmo conjunto de concepções,
por um mesmo mundo de valores e ideias. A ponto de participarem da construção de
um arquétipo, de uma imagem padrão que se tornou consensual a respeito desse
“mundo diferente” que imergia na paisagem carioca pela contramão da ordem.254
Seguindo os costumes de Lima Barreto, nessa edição foi acrescentada uma coleção de
contos que também estiveram presentes na primeira publicação de Triste Fim de Policarpo
Quaresma, no ano de 1915. Os contos foram: “Um Especialista”, “O filho da Gabriela”, “A
nova Califórnia”, “O homem que sabia javanês”, “Um e outro”, “Miss Edith e o seu tio” e
“Como o ‘homem’ chegou”. O conto “Um Especialista” é de 1904, o mesmo ano que Lima
254
Ibidem, 2000, p. 8.
90
Barreto começou a esboçar Clara dos Anjos. Além disso, essa narrativa é significativa para a
nossa reflexão e vai de encontro como o que o literato também se propôs com as diversas
versões do romance. A narrativa do conto se passa na cidade do Rio de Janeiro e relata as
experiências de dois amigos: O Comendador, português de cinquenta anos que saiu de Recife
e veio para a Capital, e Coronel Carvalho, também português, que veio para o Brasil ainda
criança e se tornou o Coronel da Guarda Nacional, homem possuidor de boa fortuna,
construída nos negócios da bolsa e nas especulações de propriedades.
Como era de costume entre os amigos, todas as tardes eles iam para o largo da Carioca
tomar café e licores e conversarem até que chegasse a hora dos teatros. Seus assuntos, em
geral, se tratavam de relações amorosas e de negócios. Os dois amigos eram assíduos
frequentadores da “[...] escusa casa de ren-dez-vous”. O Comendador, apesar de casado, não
deixava de ter a vida solta, assim como o seu amigo, o Coronel, que era viúvo e sem filhos.
Em uma dessas tardes de conversas, o Comendador contou ao amigo sobre a sua preferência
por mulheres de cor, o que fazia com que fosse em buscas dessas mulheres pelas noites, em
praças mal iluminadas e pelas ruas de baixa prostituição. A mulata, para ele, “[...] é a canela, é
cravo, é a pimenta; é, enfim, a especiaria de requeime acre e capitoso que nós, os portugueses,
desde Vasco da Gama, andamos a buscar, a procurar”255 Ou seja, fazendo uma alusão a
intensa busca pelas especiarias – produtos de grande valor comercial – e controle de suas rotas
pelo Império Português durante a Era das Navegações. Nesse sentido, a mulata representava o
produto exótico, valioso, quente e de origem disputada. Seu amigo, o Coronel,
diferentemente, preferia as estrangeiras, bailarinas, cantoras e meretrizes, esse era o seu fraco.
255
BARRETO, Lima. Clara dos Anjos. op. cit, p. 206.
256
SCHETTINI, Cristiana. Que tenhas teu corpo: uma história social da prostituição no Rio de Janeiro das
primeiras décadas republicanas. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2006.
257
Ibidem, p.95.
91
comum no Brasil, principalmente no Rio de Janeiro, onde, à época, chegava uma massiva leva
de europeus. 258
Seguindo o enredo do conto, depois de quinze dias sem ver o amigo, o Coronel resolveu
procurá-lo e encontrou o Comendador em sua loja, na rua dos Pescadores. Naquele mesmo
dia, saíram como de costume. Curioso para saber o motivo do sumiço imprevisto do amigo, o
Coronel não se conteve em perguntar qual era a razão de tão longa ausência. O Comendador,
cheio de alegria, diz que o motivo do sumiço era o fato de ter “achado” uma mulata deliciosa.
Um dia depois do último encontro que tiveram antes da sua ausência, o Comendador foi a
bordo de um paquete que chegava do Norte para promover relações comerciais. Entretanto, o
homem com quem foi se encontrar não apareceu, porém, em troca, encontrou a “esplêndida
mulata”, que também estava a bordo do mesmo paquete. Logo procurou saber quem era e
descobriu que a jovem chamava-se Alice, teria vindo para o Rio de Janeiro acompanhada de
um alferes do Exército, mas a companhia apenas fora o meio que encontrou para chegar à
cidade e “mercar” seus encantos por aqui. Foi maravilhado com a jovem que o Comendador
passou os últimos quinze dias, se apossando desse lindo primor, que nunca havia conhecido
igual, nem mesmo quando se envolveu há 27 anos com uma mulata de Pernambuco, assim a
descreve para o amigo:
258
Ibidem, p. 100.
259
DE AZEVEDO, Celia Maria Marinho. Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites--século
XIX. São Paulo: Annablume, 1987.
260
Ibidem p.72.
92
˗ É uma coisa extraordinária! Uma maravilha! Nunca vi mulata igual. Como esta,
filho, nem a que conheci em Pernambuco há 27 anos! Qual! Nem de longe! Calcula
que ela é alta, esguia, de bom corpo; cabelo negros corridos, bem corridos: olhos
pardos. É bem fornida de carnes, roliça; nariz não muito afilado, mas bom! E que
boca, Chico! Uma boca breve, pequena, com uns lábios roxos, bem quentes... Só
vendo mesmo! Só! Não se descreve.261
Nesse momento do conto, Lima Barreto aborda através de seus personagens a ideia de
sexualização e lascividade que constituiu o imaginário estereotipado sobre as mulatas. Mariza
Corrêa nos diz que seria necessário a construção de um inventário estilo Lévi-Strauss para dar
conta da quantidade de ervas e especiarias que a mulata foi comparada. 262 Esse sujeito
sexualizado e desejável esteve/está presente na literatura, no teatro e em muitos outros
universos. A autora nos diz que esse mesmo discurso que construiu essa imagem de desejo
sobre a mulher mulata, fora utilizado para desqualificá-las. Nesse sentido, se torna impossível
analisar as relações de gêneros separadamente das relações raciais, já que, como bem apontou
a autora, a mulata foi definida em contraste de proximidade e de afastamento com relação à
263
branca. O próprio Nina Rodrigues, em umas das suas análises médico-legais, produziu
uma classificação das formas de hímen que desqualificaria as mulheres mestiças: de acordo
com Mariza Corrêa, ainda que tanto as mulheres brancas, quanto as mestiças pudessem ter
diversas formas de hímen, a classificação feita com relação às não brancas apresentava
facilmente confusão sobre o que seria um hímen rompido, contribuindo, dessa forma, para a
desqualificação das queixas sobre abusos no corpo dessas pessoas.
Teófilo de Queiros Júnior salienta que o homem branco soube recorrer aos mecanismos
e às justificativas para lhe garantir relações extraconjugais sem ferir a ordem social vigente.
264
Nesse sentido, a amoralidade em que as mulheres de cor foram condicionadas, servindo de
estímulos sexuais, formava as bases dos argumentos para essas relações fora do casamento.
Somado a isso está o fato dessas mulheres também serem as responsáveis pela iniciação dos
jovens rapazes na vida sexual, já que a castidade e a honestidade das solteiras brancas não
poderiam ser destituídas. Cabiam às escravas negras e às mulatas proporcionarem tais
experiências. Nesse sentido, de acordo com Queiros Junior a mulata representou o meio do
caminho entre as brancas e as negras. Ou seja, a junção dos exóticos atrativos das negras
261
BARRETO, Lima. Clara dos Anjos. Rio de Janeiro: Ed. Mérito, 1948, p. 208.
262
CORRÊA, Mariza. “Sobre a invenção da mulata”. Cadernos Pagu, n. 6/7, p. 35-50, 1996.
263
Ibidem, p.44.
264
QUEIROZ JÚNIOR, Teófilo. Preconceito de Côr e a Mulata na Literatura Brasileira. São Paulo: Editora
Ática, 1975.
93
somados aos contornos estéticos das brancas. Queiros parafraseando Florestan Fernandes e
Roger Bastide nos diz:
Graças a seus encantos físicos, foi a mulata avaliada através de critérios opostos de
apreciação. Por reunir peculiaridade físicas das brancas e das negras, constitui-se ela
num tipo de beleza sui generis: a “de mulher branca, com o acréscimo dessa
pontinha de fogo, dessa lascívia atraente que lhe dá o sangue negro”.265
Entretanto, mesmo tendo a sua beleza exaltada e sendo desejada entres os homens
brancos, as mulheres mulatas não possuiriam nenhum mecanismo de defesa que lhes pudesse
proteger contra esses assédios, segundo contas o mesmo autor. Nesse caso, a exploração de
seus atrativos físicos como forma de ascensão e alternativa de fuga da condição que lhe deu
origem foi um dos caminhos encontrados por essas mulheres. É a Alice, do conto de Lima
Barreto, um exemplo de jovem mulata que veio para o Rio de Janeiro com a intenção de
encontrar melhores condições de vida e fez usos dos seus atrativos para alcançar os seus
objetivos. A história de Alice é igual a de tantas outras meninas e mulheres de mesma origem;
pessoas, estas, que serviam para as aventuras sexuais, porém, não para o matrimônio, é nesse
sentindo que o conto se desenvolve.
O Comendador combina de encontrar com o amigo e com o seu mais novo “achado”
para uma noite de diversões no cassino. A primeira parte do espetáculo se deu de modo frio,
contido em maneiras convencionais, todavia, a partir da segunda parte as coisas mudaram e o
espetáculo chegou em seu auge: “Da sala aos camarotes subia um estranho cheiro – um odor
azedo de orgia.”266 O Coronel passou boa parte da noite observando a mulata e os efeitos que
ela causava no restante das pessoas. Quando saíram do cassino, ficou um pouco para trás e
pôde ouvir as observações de alguns:
Um rapazola dissera:
- Que mulatão!
Um outro refletiu:
- Esses portugueses são os demônios para descobrir boas mulata. É faro.
Ao passarem os dois, alguém, a quem ele não viu, maliciosamente observou:
- Parecem pai e filha.267
O último comentário chocou o Coronel, de fato os dois tinham certos traços que se
assemelhavam, mas ele resolveu calar-se diante de tal observação. Ao chegarem no hotel,
265
Ibidem, p. 29.
266
BARRETO, Lima. Clara dos Anjos. op. cit., 1948, p. 201.
267
Ibidem, p. 211.
94
sentaram os três em uma mesa redonda na entrada e ali puseram-se a conversar. No primeiro
momento da conversa, a mulata declarou as suas preferências pelo Recife, não gostava do Rio
de Janeiro. Concordava que na capital tinha mais pessoas e mais dinheiro, mas o Recife
possuía as melhores comidas, os melhores bairros e era mais bonito. Com essa afirmação
concordou o Comendador, declarando para a mulata que viveu durante seis anos na cidade,
local onde começou a sua vida comercial. Ao questionar onde Alice viveu, o Comendador,
distraído, não percebeu que coincidentemente os dois viveram no mesmo lugar: na rua João
de Barro. A jovem continuou dizendo que se criou pelas bandas de Olinda, mas que depois da
morte de sua mãe, a quase oito anos, por ordem do juiz, foi viver na casa do Dr. Hildebrando.
Curioso, o Coronel perguntou para a jovem quantos anos tinha, já que a sua mãe havia
morrido há muito tempo. Alice tinha 26 anos, ficou órfã aos 18 anos, e, durante todo esse
tempo, viveu pelo mundo, de mão em mão, tendo uma vida de tormentos. Só encontrou pelo
caminho três homens que lhe deram alguma coisa, o resto, apenas queriam usar do seu corpo
e lhe maltratar, ofendendo-a e espancando-a. Bem que sua mãe a avisara: “toma cuidado,
minha filha, toma cuidado. Esses homens só querem os nossos corpos por segundo, depois
vão-se e nos deixam um filho nos quartos, quando não nos roubam como fez teu pai
comigo.”268
Novamente a curiosidade do Coronel falou mais alto e ele quis saber mais da história
de sua progenitora. Porém, a jovem não sabia exatamente como tal caso havia acontecido, só
sabia o que sua mãe lhe havia contado. Segundo ela, a mãe era honesta e vivia com os seus
pais na cidade do Cabo. Foi lá que ela conheceu um caixeiro português com quem veio viver
no Recife. Alice nasceu deles dois e logo depois do seu nascimento, seu pai voltou ao Cabo
para liquidar uma herança de sua mãe. Recebendo a herança, partiu para o Rio de Janeiro e
nunca mais souberam notícias. Foi nesse momento que a história chamou a atenção do
Comendador, quem questionou se a jovem saberia qual era o nome de seu pai. Alice responde
dizendo não se lembrar exatamente, mas pensava ser Mota ou talvez Costa. O Comendador, já
bastante nervoso, questionou se a jovem não se lembraria das feições desse homem e Alice,
mais uma vez, diz que não lembra de nada. Espantada com a atitude do Comendador, a jovem
perguntou qual era o motivo daquele interesse e em um ato sem pensar disse: “Quem sabe o
Sr. não é meu pai?”269 Esse comentário gerou uma grande tensão entre todos e o Coronel,
observando o nervosismo do amigo, tentou sair dessa situação perguntando se Aline nunca
268
Ibidem, p. 213.
269
Ibidem, p. 214.
95
mais soube de algo sobre o seu pai. Com a indagação do Coronel, a jovem lembrou-se que,
seis meses antes da morte da sua mãe, tinha ouviu falar que o seu pai estava no Rio de
Janeiro, implicado em um caso de falsificação de moedas. O Comendador que já estava em
estado de choque, ao ouvir a informação, pergunta para a jovem, que ainda não havia
percebido o que estava acontecendo, quando foi que ela havia recebido essa notícia. Alice
respondeu dizendo que teria sido por volta de fevereiro de 1893. Depois dessa confirmação, o
Comendador permaneceu por um tempo com olhos esbugalhados, tentando engolir todas as
sílabas que tinham sidos pronunciadas. O amigo e a jovem mulata, ambos sem entender o que
estava acontecendo, ficaram se entreolhando e esperando por uma explicação. Até que, com
supremo esforço e quase sem voz o Comendador diz: “- Meu Deus! É minha filha!”270
O surpreendente conto imprimido no final da edição de 1948 traz para a análise alguns
pontos da literatura feita por Lima Barreto que merecem ser destacados. O primeiro deles é
com relação à prostituição de mulheres, atividade presente na realidade do Rio de Janeiro
desde antes da República e que foi intensificada com a chegada dos imigrantes na Capital.
Essas mulheres, como bem apontou Schettini Pereira, faziam parte de uma rede de
sociabilidade que ultrapassavam o binômio vítima x cafetão. Incorporadas nos cenários de
diversões, entendidos, por muito tempo, como apenas masculino, a historiadora propõe
encontrar entre essas diversas mulheres muitas maneiras de manter e cultivar relações,
salientando a importância dessas redes para a manutenção da vida das prostitutas no centro da
cidade.
Ao abordar a conduta dos redatores do Rio nu, a autora possibilita uma associação
entre raça e nacionalidade, nas relações sexuais, de forma hierarquizada. Ao compararem as
270
Ibidem, p. 215.
96
especialidades sexuais das mulheres estrangeiras com as das mulatas brasileiras, os redatores
do jornal contribuem para o imaginário de que as mulatas possuem habilidades sexuais
“naturais”, enquanto a desenvoltura das francesas eram entendidas como
“profissionalismo”.271 Além disso, por serem especialistas com relação ao sexo, eram elas as
únicas capazes de satisfazer todos os desejos masculinos. “Era, assim, a identidade racial das
brasileiras – mulatas, baianas – que as tornavam especialistas da modalidade degradante, e por
isso, mesmo, a única capaz de satisfazer o desejo sexual do narrador do conto.”272, ou seja, as
diferenças raciais também estavam presentes no universo da prostituição, relacionados com os
critérios de classe e gênero, contribuindo para o imaginário sobre esses corpos mulatos que,
ao mesmo tempo que eram desejados, eram desqualificados.
271
PEREIRA, Cristiana Schettini. "Que tenhas teu corpo”, op. cit. p. 290.
272
Ibidem, p.290.
273
CAULFIELD, Sueann. Em defesa da honra: moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro, 1918- 1940.
Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2000.
274
Ibidem, p.27.
97
Tito Brandão da Silva, o personagem principal desse conto era filho de Clara,
descendente direta de uma ex-escravizada que engravidou de um dos filhos do capitão das
milícias, o José Manuel Brandão. A família dos Brandão foi viver na corte depois da
Independência. Durante o Segundo Reinado, com a retirada de Pedro I, a família que
participava ativamente das agitações da cidade, se recolheu ao seu casarão na rua de São
Pedro, onde o Senhor Brandão morreu de desgosto. Os filhos mais novos, sob os cuidados da
irmã mais velha, dona Rosa, continuaram a viver no casarão da família; entre os Brandão, se
comentava o fato de Clara ser filha de César Brandão, o ultimogênito. Dona Engrácia, mãe de
Clara, era criada da casa e foi libertada pela família quando todos se mudaram para o Rio de
Janeiro. Ela possuía uma beleza precisa e o jovem senhor sempre demonstrou interesse nela,
o que, de acordo com o conto, era prática comum e “[...] estava nos costumes do tempo, quase
sem prostituição pública e de aventuras amorosas difíceis. Não só Clara, como outros
nascidos na casa, não possuíam o reconhecimento dos pais. Muito pelo contrário, os irmãos
Brandão tratavam todos com a indiferença comum para esses casos. Somente a irmã, Dona
Rosa, que possuía por esses sobrinhos inconfessáveis cuidados e carinhos”.275
Nesse primeiro momento do conto, Lima Barreto relata uma comum situação de
exploração violenta feita contra as mulheres escravizadas: a exploração sexual. Essa temática
vai estar presente em todas as narrativas de Clara dos Anjos. Abdias Nascimento aborda esse
tema: de acordo com ele, os escravizados eram vistos pelos seus senhores apenas como força
de trabalho e lucro, nesse sentido, esses sujeitos eram considerados inumanos e não mereciam
276
nenhum respeito, nem mesmo com relação ao possível desejo de construir família. Por
isso, Nascimento diz que a proporção de mulher para homem era muito menor e as poucas
mulheres que ali coexistiam eram impedidas de construir uma estrutura familiar estável 277, já
que, sendo seres rotulados somente para exploração, a mulher africana era vista como
propriedade dos senhores, inclusive, sendo vistas como propriedade sexual. Usando as
palavras do Manifesto das Mulheres Negras, Nascimento exemplifica esse fato.
As mulheres negras brasileiras receberam uma herança cruel: ser o objeto de prazer
dos colonizadores. O fruto deste covarde cruzamento de sangue é o aclamado e
proclamado como “ o único produto nacional que merece ser explorado: a mulata
275
BARRETO, Lima. Lima Barreto, op.cit. p. 472.
276
NASCIMENTO, Abdias. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. São Paulo:
Editora Perspectiva SA, 2016.
277
Ibidem, p.73.
98
brasileira''. Mas se a qualidade do “produto” é dita ser alta, o tratamento que ela
recebe é extremamente degradante, sujo e desrespeitoso.278
Lima Barreto exibe em seus escritos um altíssimo nível de consciência e crítica social.
Nas primeiras linhas que anuncia o que seria o romance Clara dos Anjos, o literato já
apresenta o tom do enredo que pretendia desenvolver com essa obra. A exploração sexual da
mulher negra é uma realidade social que vai contra a suposta interação saudável das relações
raciais defendidas por Gilberto Freyre, indo contra também ao mito da democracia racial.
Como bem apontou Nascimento, o mulato bastardo é fruto do violento estrupo da mulher
negra pelos brancos, não de uma relação harmoniosa entre as raças, dessa forma, Lima
Barreto vai abordar essa ideia de superioridade e abuso do homem branco com relação às
mulheres negras. Ou seja, ele vai apresentar em sua narrativa os conflitos existentes sobre a
perspectiva de raça e gênero, essa temática aparece com frequência nas narrativas de Lima
Barreto.
O conto continua e a ficção segue imitando a vida do próprio Lima Barreto. Assim
como a sua mãe, a personagem Clara recebe uma educação comum às moças de sua idade,
mas, diferente das jovens de “boa” família, não se casa com um político ou com um doutor.
Ela se casa com Miguel da Costa, filho de uma “cabrocha” com um português. O pai de Tito,
278
Ibidem, p. 74.
279
DE SOUZA, Keyle Sâmara Ferreira. “Duas Claras dos Anjos e uma Rosa: a identidade e a representação da
mulher negra na Literatura Brasileira”. Línguas & Letras, v. 17, n. 36, 2016
280
Ibidem, p.41.
99
Miguel, também é fruto de uma relação inter-racial amancebada entre uma mulata e um
homem branco. Aos 14 anos, depois do abandono do pai, teve que assumir as
responsabilidades e da casa e ir em busca de um ofício. Aos 25 anos, já possuía um certo
reconhecimento como litográfico e foi nessa época em que se casou com Clara. Tinham mais
três filhos, Tito era o mais moço e nasceu em um melhor período, financeiramente falando, da
realidade seus pais. Clara recebeu uma herança de César Brandão, que havia morrido, porém,
ela também não teve tempo de gozar desse dinheiro, pois morreu um ano depois. Durante todo
o conto, podemos encontrar ligações com a vida de Lima Barreto. Sua mãe também morreu
enquanto ele ainda era bem menino e o seu pai quem ficou responsável pela sua criação e a
dos seus irmãos. Outra semelhança está no fato do litográfico ter o sonho de ver o seu filho
formado, assim como o pai de Lima Barreto, entretanto, o pai de Tito morre antes disso se
realizar, fazendo com que ele tenha que assumir a responsabilidade da família.
281
BARRETO, Lima. Lima Barreto: obra reunida, op. cit., p. 475.
100
É entre o Rio Comprido e o Catumbi que a família de Clara residia no ano de 1886.
No conto, essa família é composta por Manuel Antônio dos Anjos, sua mulher dona
Florência, a babá – uma ex-escravizada de cinquenta e tantos anos – e a única filha do casal:
Clara. Viviam bem, Manuel era contínuo na Secretaria de Agricultura e o pouco que ganhava
somado à sagaz economia de sua mulher, dava para satisfazer a todos. A vida era tranquila,
Manuel saia cedo para pegar o bonde e ir trabalhar; no fim do expediente, no caminho de
volta para casa, sempre parava para conversar, e, às quatro horas da tarde, subia para jantar e
descansar. Dona Florência também pouco saía, não era de festas, saia um domingo ou outro
para ir à missa. Manuel se esforçava muito para dar a melhor educação para Clara, por isso,
junto ao trabalho habitual, arrumou outros extras para assim custear os estudos da filha no
Externato de Nossa Senhora do Amparo. Porém, já muito cansado, não conseguiu mantê-la no
282
Ibidem, p. 615.
283
Ibidem, p. 616.
284
MATTOS, Hebe. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista. Rio de Janeiro:
Arquivo Nacional, 1995.
101
colégio. Mesmo assim, Clara foi capaz de adquirir alguma noção de piano, o que já era
suficiente para tocar as valsas da época.
Diferentemente dos seus pais, Clara era uma jovem de 16 anos que não se agradava
com a vida monótona. Sempre que podia, ia em busca de diversão, geralmente ia às festas que
seu padrinho oferecia. Lá, a jovem era sempre requisitada para mostrar as suas habilidades de
pianista. Seu padrinho era Carlos Alves da Silva, o primeiro oficial da Secretaria do Império,
e foi escolhido para assumir essa função, por seu pai, antes mesmo do seu nascimento. A
simpatia de Manuel dos Anjos com Carlos Alves da Silva não vinha da repartição, foi numa
festa de batismo, que o contínuo ajudou a servir, que a admiração pelos Alves da Silva
começou.
285
BARRETO, Lima. Lima Barreto: obra reunida, op. cit., p. 619.
286
Ibidem, p. 620.
287
Ibidem, p. 622.
102
a passividade e fidelidade com o seu senhor. É nesse sentido que Brookshaw vai dizer que na
literatura abolicionista se construiu o estereótipo de Escravo Fiel versus Escravo Desprezível
e, depois da Lei do Ventre Livre, foi substituído pela primazia de Escravo Imoral versus
Escravo Demônio.288 Portanto, assim como salienta o autor, esse tipo de literatura possuía um
tom eminentemente racista, mesmo que disfarçados entre a benevolência do literato branco.
“A literatura abolicionista partiu da premissa que a escravidão era ruim para os donos de
escravos porque os colocava em contato com degenerados morais. Seu propósito era incutir
medo nas pessoas.”289 No fim, a abolição era o meio encontrado pelo senhor branco para se
livrar do “flagelo da escravidão.”290
Portanto, quando Lima Barreto traz para a sua narrativa a admiração de Manuel dos
Anjos pelos Carlos Alves da Silva após ouvi-lo declamar o poema de Castro Alves, a
interpretação que podemos fazer é que o literato estava se referenciando a esse tipo de
literatura benevolente que esconde, entre as suas linhas, o racismo e o preconceito com
relação aos negros. Podemos confirmar a nossa posição ao abordar a postura seguinte de
Carlos Alves da Silva, que, ao entrar em casa pela manhã, repreende severamente uma velha
escrava, porque àquela hora ainda não tinha preparado o café matinal. Lima Barreto, em um
288
BROOKSHAW, David. Raça e Cor na literatura brasileira. Trad. Marta Kirst. Porto Alegre: Mercado
Aberto, 1983, p. 29 – 32.
289
Ibidem, p. 32.
290
Ibidem, p. 34.
291
Ibidem, p. 37
103
tom irônico e sarcástico, questiona essa atitude através dos seus personagens: “Eram os restos
– quem sabe? – das inflamadas estâncias de Castro Alves”.292
O conto segue e Manuel decide que Alves da Silva seria o padrinho de sua filha. E
quando Clara finalmente nasce, o amanuense tenta, de todas as formas e com diversas
desculpas, se livrar do compromisso, mas, no fim, decidiu batizar a menina, quem teve como
madrinha a sua noiva. Depois desse ocorrido, a família de Alves da Silva passou a ter pela
família Dos Anjos benevolente proteção, recebendo-os sempre em sua casa, sentando-se
juntos na mesa, porém, sem deixar de demonstrar a distância que existia entre eles: “Longe de
se afetarem com esse tratamento, o contínuo e a esposa acolhiam-no com orgulho. Guardando
a convicção de sua real inferioridade, um tal tratamento era, para eles, como um prêmio
conferido à retidão de sua honesta vida de casal”.293
Em uma das comemorações pelo aniversário do seu padrinho, Clara foi convocada
para, como de costume, animar a festa com os seus dotes de pianista. Entre uma palestra e
outra com seus convidados pela sala, Alves da Silva percebe que a comadre o chama no
portão de forma muito assustada. A mãe e o pai de Clara já não iam mais às festas, mandavam
apenas a filha para cumprir a educação. Mas, naquela semana em especial, Manuel dos Anjos
não passava bem e Dona Florência foi buscar Clara, porque seu pai, já muito mal, perguntava
e clamava por ela. A saída de Clara da festa provocou uma tristeza enorme e o seu padrinho,
tomado pelo despeito, expressa seus sentimentos dizendo: “- É isso! Essa gentinha pilha-se
assim, assim, julga-se gente... Tem uns dengues, uns derriços...” 294 Ou seja, mascarados com
a suposta benevolência e cuidado que tinham com a família de Clara dos Anjos, o sentimento
de servidão e inferioridade com relação a eles afloraram.
292
BARRETO, Lima. Lima Barreto: obra reunida, op.cit., p. 623.
293
Ibidem, p.625.
294
Ibidem, p. 637.
104
uma parada repentina em razão de um caminhão, que estava descarregando na loja, estar
impedindo o carro de cumprir passagem. Durante esse imprevisto, o doutor Alfredinho,
impaciente, pôs-se a reclamar dos problemas da cidade. O médico sem entender muito o
motivo de tanto incômodo do amigo, lhe perguntou se essa reclamação era somente por conta
da pequena parada que o carro foi obrigado a fazer. Alfredinho prontamente responde dizendo
que não, o motivo era maior: a cidade era uma colônia, feia, suja e relaxada. O motivo de tal
precariedade, de acordo com o bacharel, era o negro, foi o negro que matou o Brasil, a raça
inferior, incapaz de ser civilizada. “Não são árias – doutor Gomensoro – , não são árias”, diz
Alfredinho. O médico sem entender, perguntou sobre o que a amigo estava falando e
Alfredinho então pôs a explicar-lhe a teoria já comprovada pela filologia, linguística,
arqueologia e a pré-história da raça civilizadora que seriam opostas às raças inferiores – estas
295
últimas influenciariam maleficamente a civilização. O médico não concordava com os
argumentos do amigo, para ele a civilização não é intrínseca à raça. Ao chegar no ponto de
destino, o advogado resolveu seguir o médico na visita ao Manuel.
Clara teve que ir trabalhar em um atelier para colaborar com as despesas da casa. Na
maioria das tardes, quando desembarcava do bonde, encontrava a babá e a mãe, que vinham
espera-la. Foi em uma de tarde de verão em que a sua mãe e a babá não foram, que o
adolescente foi ao encontro de Clara. A partir daí, os encontros foram se intensificando a
ponto de nem um dos dois saber qual deles havia tomado a inciativa de beijar o outro
primeiro. Mas o adolescente não tinha os mesmos sentimentos genuínos que Clara, e armou
uma emboscada para convencer a jovem de ir com ele a um chateau. Nesse dia, antes de
295
Ibidem, 643.
105
chegar ao lugar programado pelo adolescente, eles pararam em uma confeitaria e Clara,
assustada com a atitude do convite, questionou o que ele pretendia. Percebendo que a menina
estava “arisca”, o adolescente usou de toda a sua lábia para enganar ainda mais a jovem
mulata, dizendo que naquele dia completava anos e que resolveu lhe oferecer um
banquetezinho para lhe pedir em noivado, mas que, por hora, ninguém poderia saber da
novidade. Com essas palavras, Clara se acalmou e tomou alguns goles cerveja, encantada com
o pedido do adolescente.
Como era de se esperar, o adolescente abandonou Clara. Mas antes disso, ainda
haveria tempo para humilhar ainda mais a jovem, marcando, ele, um encontro, como de
costume. Ao chegar no local de sempre, diferentemente dos outros dias, ambos começam a
conversa e o adolescente lhe contou que precisaria ir para o Norte completar os preparatórios.
Clara, desesperada, cai em um choro de desespero e angústia. Mesmo com as justificativas
feitas por ele, Clara percebeu qual era a real situação: seria abandonada, desonrada. Porém,
ele continuou dizendo que voltaria, que não a abandonaria e Clara começou a cessar o choro e
acalmar-se um pouco. Foi quando, ao levantar para lavar o rosto alguém bateu na porta do
296
BARRETO, Lima. Lima Barreto: obra reunida, op. cit., p. 664.
106
quarto. O adolescente depois de verificar quem era, diz ter sido um engano, mas, logo em
seguida, pede para que a jovem lhe espere ali por um tempo. Ele justifica dizendo que precisa
entregar para alguém uma carta, a pedido de seu pai, e sai, deixando a porta entreaberta. A
jovem obedeceu, e, distraída, esqueceu de verificar a porta. De repente um outro rapaz adentra
o quarto em que Clara estava. Ao olhar bem para o seu rosto, ela o reconheceu, era amigo do
adolescente com quem Clara costumava se encontrar, já os tinham visto juntos pela cidade.
Nesse momento, a jovem entendeu o que estava acontecendo ali: era uma armadilha planejada
por quem acreditou ser o seu grande amor. Naquela situação, a jovem suplicava para que o
rapaz a deixasse ir embora, mas ele, de todas as formas, tentou agarrá-la e Clara, sentindo que
não conseguiria fugir, pôs-se a gritar por socorro. Graças aos seus pedidos desesperados,
algumas pessoas conseguem entrar no quarto, empurrando violentamente a porta. Clara e o
rapaz acabam na subdelegacia. Lá, a jovem, mais uma vez, sente na pele a dor do
preconceito, sendo humilhada. O pai do adolescente, ao ser avisado da situação do seu filho,
depois das denúncias põe-se a argumentar. Qual seria a pena para o que o filho tinha feito?
Quais eram as provas? A vítima era uma mulatinha! Os códigos não poderiam obrigar que
pessoas de situações diferentes, de cores e educação diferentes se casassem só porque se
encontravam. Isso não estaria certo, afinal, a vítima era uma mulatinha.
297
CAULFIELD, Sueann. Em defesa da honra, op.cit, p. 278.
107
pressupostos, que nos inícios dos anos 1930 ficaram conhecidos como aforismo, definiram os
lugares dessas mulheres diante da sociedade: “as brancas para casar, as mulatas para fornicar,
as negras para trabalhar.”298
Martha de Abreu Esteves produziu um rico trabalho que reflete sobre os conflitos em
torno dos comportamentos sexuais das mulheres no regime republicano. Essa política sexual
converteu “[...] as características físicas, psíquicas e sexuais dos indivíduos em insígnias de
classe social e instrumento de dominação. De acordo com a historiadora, os negros recém -
libertados eram vistos como depravados e com baixos padrões morais. Por isso, cabia ao
Estado centralizar e regularizar os caminhos para o progresso, surgindo a necessidade de uma
política sexual. Ao analisar diversos processos criminais de defloramento e estupro, a autora
sugere que os conceitos morais que eram aplicados pelos juristas e pelos médicos, nesses
processos, por muitas vezes, não consideravam a realidade das mulheres pobres que
precisavam ir para a rua trabalhar. Nesse sentido, essas mulheres tinham seus
comportamentos julgados com base nos conceitos morais que atingiam as mulheres de elite,
generalizados para todas as classes sociais, sem considerar as diferenças. Assim, as mulheres
de cor já eram naturalmente sedutoras e imorais. Foi dentro dessas concepções
preconceituosas que muitos desses jovens tiveram suas denúncias colocadas em dúvidas.
Martha Abreu demonstra, com a sua pesquisa, que muitas das moças estudadas por ela
driblaram os paramentos da moral higiênica, impostos pelo aparato jurídico e pela polícia da
época. Usando como referência o próprio romance Clara dos Anjos, de Lima Barreto, Abreu
298
Ibidem, p. 294.
299
Ibidem, p. 293.
300
ESTEVES, Martha de Abreu. Meninas perdidas: os populares e o cotidiano do amor no Rio de Janeiro da
Belle Époque. Rio de janeiro: Paz e Terra, p. 1890-1920, 1989, p. 114.
108
nos diz que, diferentemente de Clara, muitas outras mulheres pobres puderam construir
opções e criaram uma outra história da moralidade, logicamente, nos limites de uma
sociedade hierarquizada pela cor e classe. Porém, a historiadora também salienta que a
narrativa feita pelo literato esconde outros significados que vão além do universo da
moralidade feminina. Nesse sentido, vivendo em um mundo que marginalizava os negros e
mulatos, ainda que tivessem assimilado e interpretado as regras desse universo, seus esforços
não eram suficientes para fazer com que fossem reconhecidos e julgados de maneira justa por
essa sociedade. É refletindo sobre esses “outros significados” que o presente trabalho tem
pretendido se desenvolver. 301
301
Ibidem, p. 204.
302
BARRETO, Lima. Clara dos Anjos. op.cit, p. 26.
303
HANSEN, Patrícia Santos. “João Ribeiro, historiador”. Revista do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro, v. 173, p. 183-208, 2012
304
Ibidem.
109
intenção de “retornar à antiga tradição dos nossos cronistas e primeiros historiadores”, dando
305
foco ao estudo da terra e das gentes que a habitavam. Dessa forma, o seu objetivo era
produzir a história do Brasil de um ponto de vista interno. Patrícia Hansen sugere que essa
noção de “interno” se refere mais à noção de identidade do que a uma posição espacial e
geográfica. Em outras palavras, eram as ações dos agentes internos que interessavam o autor.
Esse manual propunha uma análise sobre a formação da identidade brasileira, que rompia com
a cronologia oficial de uma história externa, resumida em histórias políticas e administrativas.
O autor, que ficou conhecido como historiador após esse trabalho, interpretou e escreveu
sobre o Brasil se baseando em uma filosofia original, onde as “feições e fisionomias” internas,
próprias do Brasil seriam as responsáveis pela formação dessa identidade, ou seja, dando
destaque aos agentes e aos movimentos que foram pouco considerados pela escrita da história
estritamente política, considerando as particularidades da formação brasileira.
O trecho que introduz a publicação do romance Clara dos Anjos faz parte de um dos
capítulos do manual intitulado “As três raças. A sociedade”. A questão da definição da
identidade brasileira estava no seio das preocupações do contexto intelectual do qual João
Ribeiro fez parte. Definir um perfil do que seria a raça nacional era umas das urgências da
intelectualidade brasileira. Em “Feições e fisionomia”, Patrícia Hansen demonstra como o
manual expressou essa questão. Para o entendimento, a autora destaca três conceitos que
considerou de importância fundamental para compreender a intelectualidade do período. Um
deles é o conceito de desmoralização que, segundo ela, se tornou um eixo explicativo para os
fatores que teriam levado o Brasil para aquela condição de crise. Essa visão negativa e
pessimista que tinha, a respeito da sociedade brasileira, era um traço da personalidade de João
Ribeiro e foi isso o que gerou identificação, da parte do autor, para com os fundadores da
Academia Brasileira de Letras. É a partir dessa concepção de história do Brasil que o autor vai
construir a sua obra.
De acordo com as afirmações de João Ribeiro, o processo de desmoralização teve o
seu início com a colonização e com as suas causas relacionadas “[...] aos interesses
meramente econômicos e práticos dos portugueses no Brasil”.306A permanência e
continuidade desse processo necessitou de um meio e, para João Ribeiro, esse meio foi a
miscigenação, isto é, a fusão das raças, dos costumes e da cultura foram os fatores principais
305
Ibidem, p. 196.
306
HANSEN, Patrícia Santos. Feições e fisionomia: a História do Brasil de João Ribeiro. Rio de Janeiro:
Access, 2000, p. 98.
110
307
SILVA, Roberto Candido da. O Polígrafo Interessado: João Ribeiro e a construção da brasilidade. 2008.
Tese de Doutorado. Universidade de São Paulo. Tese (Doutorado). Universidade de São Paulo, Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas, 2008
308
Ibidem.
111
É através dessas ideias que entendemos Clara dos Anjos, como uma consequência e
uma crítica às ideologias que estava em voga no período, onde a imagem homogeneizada da
identidade brasileira foi pensada e projetada. Portanto, a interpretação defendida é que essa
obra produziu uma crítica ao racismo e ao projeto de mestiçagem que visou o branqueamento
da sociedade. Ainda que o sujeito mestiço, como Clara, tenha passado pelo processo de
assimilação e ressignificação com o elemento dominador – tanto pela investida dos brancos,
como dos próprios negros –, esse mestiço foi inferiorizado devido às marcas que carregava
em seu corpo e, para além dele, teve também a sua humanidade subjugada. Nesse sentido, os
dilemas enfrentados por Clara do Anjos, assim como os do seu próprio criador, podem ser
entendidos como consequências das trocas que foram iniciadas no seio do Atlântico, com o
navio negreiro e com o processo de colonização, feito sobre as bases estigmatizantes e racistas
da época. Desse modo, através da sua literatura, Lima Barreto demonstrou o compromisso
que travou durante toda a sua vida contra o racismo que inferiorizou os negros.312 Então,
vamos ao romance.
309
MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus identidade negra.
Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019.
310
Ibidem, p. 53.
311
Ibidem, p. 91.
312
BROOKSHAW, David. Raça e Cor na literatura brasileira. op. cit., p. 169.
112
Nessa versão, Clara dos Anjos é uma mulata que é filha de Joaquim dos Anjos, um
homem que, quando jovem, gostava de violão e de modinhas – por muito tempo ele acreditou
ser músico de certa ordem. Desgostoso com a música, embarcou em outros ramos. Foi
encaixotador, guia, servente, pajem e muitas outras coisas, até que, a convite de um
engenheiro inglês, que veio ao Brasil estudar, foi para o Rio de Janeiro e lá, já habituado à
cidade, decidiu não voltar para Diamantina. Já conhecido pela cidade, arrumou emprego no
escritório de um grande advogado, que não lhe pagava grandes coisas. Mas, o desejo de
Joaquim era ter um emprego público, o que acabou conseguindo após dois anos como
funcionário no escritório de advocacia. Virou carteiro e garantiu o direito à aposentadoria.
Joaquim dos Anjos casou- se com D. Engrácia e ambos foram viver em uma modesta
casa nos subúrbios da cidade. Dessa relação a única filha que sobreviveu foi Clara. A jovem
menina, lá pelos seus dezessete anos, gozava de recanto e carinho dos seus pais. Não podia
sair de casa sozinha, a não ser que fosse acompanhada por D. Margarida, uma viúva muito
séria e respeitosa, que morava na redondeza. Com essa senhora, Clara ia alguns domingos ao
cinema do Méier ou Engenho de Dentro, já que seus pais não gostavam de sair de casa e
tinham uma vida bastante sedentária.
Os únicos divertimentos de Joaquim dos Anjos eram as habituais partidas de solo que
se prestava a jogar com os seus companheiros: o Sr. Antônio da Silva Marramaque, padrinho
de Clara, e o Sr. Eduardo Lafões. Aos domingos, no fundo do quintal da casa de Joaquim, os
amigos se reuniam para jogar e tomar alguns goles de parati e café. Marramaque era o mais
político de todos, mas foi aposentado por conta do seu estado de semi-aleijado, pois já não
realizava nenhum ofício. Entretanto, quando mais jovem fez parte de uma modesta rede de
literatos e poetas, onde se discutia muito sobre literatura e política. Porém, depois da Revolta
da Armada, em 1893, a roda se desfez. Mesmo assim, quando falava dessa parte de sua vida,
se orgulhava muito em dizer que conheceu Paula Ney e Luiz Murat e que nunca deixou de
lado a sua mania de política. Havia, em sua alma, um desejo de pôr no papel as suas ideias e o
seu forte sentimento de justiça. Lafão era um operário, português de nascimento, que veio
para o Brasil ainda criança. Muito correto em sua conduta, pôde chegar a conquistar alguma
posição na repartição de água da cidade. Apesar de não possuir toda a ilustração de
Marramaque, Lafão também tinha as suas paixões pela política. Foi em uma dessas rodas de
jogos e conversas, banhados de parati e de café, que Lafão perguntou à Joaquim se poderia
trazer para os anos de Clara um mestre de violão e de modinha, o Cassi. O padrinho de Clara,
113
no mesmo momento, expressou a sua opinião sobre a postura do sujeito, dizendo que tipo
como o dele não deveria frequentar casas de família.
Cassi Jones de Azevedo era um rapaz de pouco menos de trinta anos, branco, também
morador do subúrbio da cidade e filho de Manoel Borges de Azevedo e Salustiana Baeta de
Azevedo. Esse jovem rapaz era responsável pelo encanto e pela sedução de inúmeras moças
pobres da redondeza. Mesmo com a sua pouca idade, já tinha mais de dez defloramentos em
sua conta, mas ele, contando sempre com o apoio de sua mãe, conseguia constantemente se
livrar das obrigações do casamento e de punições. Sua mãe, que possuía presunções de fidalga
e alta estirpe, não poderia aceitar ver o seu filho casado com uma preta criada, com uma
mulata pobre ou com uma moça branca lavadeira. Diferentemente de sua vaidosa mãe, o pai
de Cassi Jones não aceitava a postura do filho, tanto que proibiu que o mesmo frequentasse a
casa da família após inúmeros desgostos. Além de Cassi Jones, o casal tinha mais duas outras
filhas: Catarina e Irene. As duas jovens também sentiam grande desprezo pelo irmão, tanto
pela sua conduta, quanto pela sua ignorância e pelos seus modos de educação. Por conta das
ordens do pai, a mãe de Cassi abrigou escondido o filho no porão da casa. Lá, ele dividia
espaço com os galos-de-briga que criava. A sua incapacidade para o trabalho contribuiu para
que ele visse nessa prática um meio mais fácil de ganhar algum dinheiro.
Junto à Cassi se uniam outros rapazes da mesma índole, como o Ataliba do Timbó, um
mulato claro, quem foi obrigado a casar com uma jovem, em razão do seu defloramento. Não
tendo as mesmas influências que Cassi, ele viu-se obrigado a casar. Timbó tinha como
ocupação o cargo de agente de jogo de bicho. O outro companheiro de Cassi era Zezé Mateus,
um branco sem dentes, de fisionomia empastada, que topava qualquer ofício. Era o mais
inofensivo de todos e estava em estado de ruína humana. Franco Souza, esse, sim, era um
malandro. Intitulado advogado, enganava a algumas pessoas pela cidade. Apesar da postura,
vivia decentemente com a sua mulher e os seus filhos. O último era o Arnaldo, modinheiro de
um tipo mais nojento que Cassi. Vivia de furtos no trem e da venda desses itens roubados.
Apesar da proximidade, Cassi não tinha por esses rapazes nenhum tipo de sentimento de
amizade. Na verdade, não sentia sentimento algum nem mesmo pela sua família, até pela sua
mãe que sempre lhe defendeu, só a tratava com ternura quando estava em detenção. “O seu
fundo e os seus princípios explicavam de algum modo essa sua aridez moral e sentimental.” 313
Marramaque sabia a atmosfera de corrupção que rondavam as raparigas de cor, como a
sua afilhada, condenadas pela sociedade em sua condição moral e social. Mesmo honestas, já
313
BARRETO, Lima. Clara dos Anjos. op. cit, p. 55.
114
eram julgadas, imagine as que não resistiam as tentações? Por isso, aconselhou o seu
compadre a não permitir que Cassi fosse à festa, mas o carteiro decidiu experimentar, afinal, o
rapaz sabia com quem se metia. Clara, que ouvia a tudo, ficou curiosa e ansiosa com a notícia.
Quem seria esse Cassi? Ela, que sempre foi criada sobre muito zelo e mimos, não tinha noção
da sua real condição de mulher mulata diante da sociedade. Mas Clara sonhava através das
músicas, da poesia e do estado de espírito, que ansiava por conhecer e ouvir esse violeiro que
dá má fama ela não sabia.
Chegou o dia da festa e Clara ficou toda arrumadinha em um vestido de crepom e
rendas, com sapatos de verniz e meias, ansiosa com a chegada do violeiro. Quando Cassi
chegou, jogou um olhar guloso sobre os seios empinados da jovem e logo foi convidado a
cantar. Depois de um tempo de relutância e de insistência de Clara, ele então decide
demonstrar o seu lado de violeiro e escolheu a modinha “Na Roça” para a ocasião, e assim
começou:
Mostraram-me um dia
Na roça dançando
Mestiça formosa
De olhar azougado...
Sorria a mulata
Por quem o feitor
Diziam que andava
Perdido de amor.314
Clara sentia cada palavra com um prazer artístico, levando-a a um estado de amor e
satisfação, um êxtase místico que sentia por cada palavra e olhar que Cassi jogava sobre ela.
Marramaque, que via tudo acontecer, logo demonstrou sua antipatia pelo rapaz. Cassi
percebeu os olhares do padrinho de Clara e não demorou muito tempo para ir embora. A festa
seguiu. Ao seu final, Joaquim e a mulher, recolhidos na sala de jantar, começaram a comentar
sobre as atitudes de Cassi Jones. D. Engrácia, com uma atitude decisiva, diferentemente do
normal, diz não querer mais que o rapaz frequentasse a sua casa. Joaquim concordou com a
mulher e Clara, que ouvia tudo do seu quarto, começou a chorar em silêncio.
D. Engrácia, assim como a mãe de Lima Barreto, era filha de ex-escravizada com um
dos filhos do senhor da casa onde morava. A suspeita da paternidade era confirmada pela
forma que a menina foi tratada, recebendo boa instrução e educação. Mas o seu temperamento
pacato sempre foi o mesmo, não saia quase nunca e morria de medo que a filha errasse, se
perdesse. Mesmo com esses cuidados excessivos, não foi capaz de ensinar para a filha os reais
perigos que corria a sua honestidade de donzela, seja pela sua condição de mulher, seja pela
314
Ibidem, p. 77.
115
sua cor. Ao contrário, o excesso de zelo só gerava em Clara uma curiosidade alimentada em
sua pequena alma de mulher. Cheias de sonhos acrescidos pelo gosto de modinhas, Clara
sonhava com um amor sincero, um amor sem obstáculos, que nem mesmo a raça, classe ou
qualquer outra condição poderia vencê-lo. Por algum momento, até surgiu em sua mente a
dúvida se o fato dela ser mulata e ele branco traria algum impedimento para o romance. Mas,
logo concluiu que não, afinal era uma paixão sincera e ela precisava se libertar, precisava sair,
ir ao teatro e ao cinema. Não conhecia nada, nem mesmo na venda do Seu Nascimento ela
podia ir sozinha – e, à época, esse lugar não era considerado mal frequentado. A jovem vivia
sonhando e suspirando por amor, em seu pensamento não pairava nenhuma responsabilidade
ou consciência da sua existência. Não havia, em seu meio de convívio, representações que lhe
pudesse fazer compreender a sua individualidade social naquela sociedade. De resto, Cassi
não teria coragem de desonrar uma família honesta, ele não poderia ser culpado de tudo que
diziam, as moças que deveriam ser oferecidas demais. E Clara, em sua ingenuidade de jovem
menina apaixonada, concluiu que Cassi era digno do seu amor mais sincero.
Leonardo Flores era um dos que frequentavam o estabelecimento do Seu Nascimento.
Era um verdadeiro poeta que já havia tido algum reconhecimento pelo Brasil. Mas, devido ao
álcool e aos desgostos da vida, tornou- se um triste homem, amnésico. Apesar de já ter
publicado dez volumes, não ganhou dinheiro algum com isso e acabou vivendo da
aposentadoria do governo federal. Flores era reconhecido pela vizinhança, todos o tinham
como uma celebridade e lamentavam o destino que a sua vida havia tomado. Muitos trabalhos
abordam as semelhanças desse personagem com a vida do próprio autor. De acordo com Nilce
Camila de Carvalho e Ricardo Sorgon Pires, esse personagem é a representação de um
intelectual negro da época. 315 Os autores sustentam que o pós-abolição foi um período onde
poucos negros tiveram possibilidade de ascensão social vivendo às derivas do Estado. Quando
um desses sujeitos se destacava, logo era visto com preconceitos. 316 Do mesmo modo que o
autor, Leonardo Flores abriu mão de todas as honrarias da vida por causa dos seus propósitos
artísticos. Pobre e mulato, foi humilhado e ridicularizado diante de uma sociedade que o
rebaixou, mas, mesmo assim, cumpriu com o seu dever e executou a sua profissão, foi
poeta!317 Lima Barreto através desse personagem demonstra toda a dor e os danos que o
racismo pode causar. Um racismo que adoece a mente e alma, e mata o corpo.
315
DE CARVALHO, Nilce Camila; PIRES, Ricardo Sorgon. Reflexões acerca do intelectual negro em Clara
Dos Anjos: A proximidade entre Lima Barreto e seu personagem Leonardo Flores. Recorte, v. 11, n. 1, 2014.
316
Ibidem, p 3.
317
BARRETO, Lima. Clara dos Anjos. op. cit., p. 131.
116
A narrativa segue e o amor que Clara sentia pelo Cassi cresce cada dia mais, mesmo
que os seus pais e o seu padrinho não aceitassem tal coisa. Já Cassi estava em busca de mais
uma de suas vítimas e Clara era perfeita para esse papel. Ele precisava, porém, acabar com os
impedimentos para tal feito. Sabendo que não poderia ronda a sua casa, pois assim seria
reconhecido e denunciado, tinha que pensar bem em como agir. Afinal, nem sempre podia
contar com as benevolências dos delegados e juízes que julgavam errado, em seu íntimo, o
casamento entre pessoas diferentes. Por isso, foi atrás de um intermediário para facilitar o
contato com a jovem. O dentista Menezes foi quem o ajudou nesse contato. Cuidando dos
dentes da jovem, foi através dele que Clara e Cassi puderam trocar cartas de amor. Quando os
seus pais e padrinhos descobriram sobre as cartas de amor, ficaram chocados. Joaquim até
pensou que se ele realmente quisesse casar com a filha, não seria contra. Mas, Marramaque
logo lembrou o amigo que se essa fosse a intenção do rapaz, ele não escolheria Clara, que era
mulata e pobre. Clara, que ouvia tudo do seu quarto, pôs-se a chorar e a sentir raiva do seu
próprio padrinho. Com isso, decidiu escrever uma carta contando tudo que havia acontecido.
Cassi, ao receber a notícia pelas mãos do Menezes, planejou fria e cruelmente o assassinato de
Marramaque.
Clara, ao saber do crime cometido contra seu padrinho, logo pensou que o culpado
poderia ser Cassi. Mas, mesmo assim, aceitou conversar com o violeiro. Cassi, que já não
contava com a proteção de antes, decidiu dar fim ao serviço e ir embora, tinha que fugir do
Rio de Janeiro. Por isso, vendeu os seus galos-de-briga e decidiu depositar o dinheiro na
Caixa Econômica para poder pegar, assim, o que lhe fosse necessário. Para isso, foi até o
centro da cidade. Raramente ia ao centro, não gostava. No centro da cidade, em meio aquela
multidão, toda sua fama acabava, naquele lugar ele não era nada. “Na “cidade”, como se diz,
ele percebia toda a sua inferioridade de inteligência, de educação; a sua rusticidade.” 319 Diante
daquelas pessoas ele era apenas um medíocre suburbano.
Para não ser visto por algum conhecido que poderia estar pela redondeza, decidiu
atravessar a cidade pelos becos que dariam na rua da Misericórdia. Penetrando por essas ruas,
Cassi Jones foi abordado por uma das suas vítimas do passado, que após ser desonrada e
318
Ibidem, p. 131-132.
319
BARRETO, Lima. Clara dos Anjos. op. cit., p. 170
117
abandonada por ele, acabou entre as inúmeras mulheres que viviam ali em um estado de
degradação e miséria, niveladas pelo seu grau de rebaixamento. Ao reconhecê-lo, a rapariga
quis jogar sobre ele todo o seu rancor. Pior que ele, era a sua mãe, que ao saber da gravidez, a
pôs para fora de casa sem dó nem piedade, sem ao menos considerar o neto que estava em sua
barriga. Aos prantos, a pobre contou que o filho, fruto dessa relação, se encontrava na
detenção, pois havia se metido com ladrões. Cassi, com a ajuda dos guardas da ronda,
conseguiu se livrar da mulher e seguiu o seu caminho, decidindo voltar para casa e nunca
mais passar por ali. Entretanto, nem mesmo após saber que tinha um filho e que ele estava na
detenção, a notícia lhe causou qualquer tipo de pensamentos ou sentimentos com relação a
isto. Seu único questionamento foi: como uma negra como aquela poderia abordá-lo, assim,
no meio da rua? Se alguém tivesse visto, no outro dia a notícia já estaria no noticiário e nos
jornais do subúrbio.
O encontro com Clara aconteceu e os planos de Cassi seguiram como o esperado. Em
uma noite de chuva, a jovem deixou a janela aberta e o rapaz pôde entrar. Sem nenhuma
violência ou brutalidade, Cassi tomou Clara para si. Depois disso, abandonou a jovem, que
passou dias suspirando e não acreditando no que havia acontecido. Ele era gentil e lhe
prometeu casamento, nem mesmo a sua cor ou a sua pobreza impediu que o amor
acontecesse, mas o sentimento de Cassi eram outros. Logo os sintomas da gravidez
começaram a aparecer atestando que Clara estava irremediavelmente perdida. A jovem já não
sabia o que fazer.
[...] Agora, é que percebia bem quem eram o tal Cassi. O que os outros diziam dele
era a pura verdade. A inocência dela, a sua simplicidade de vida, a sua boa-fé, e o seu ardor
juvenil tinham-na completamente cegado. Era mesmo o que diziam… Por que a escolhera?
Porque era pobre e, além de pobre, mulata. Seu desgraçado padrinho tinha razão..., Fôra
Cassi que o matara.320
Diante dessa situação, Clara decidiu que pediria ajuda a D. Margarida, só essa senhora
forte e decidida poderia fazer algo por ela. Lhe pediria um adiantamento, com isso, abortaria.
Mas acabou confessando tudo para a velha senhora, que em seguida, contou para sua mãe. D.
Engrácia sabendo do ocorrido, pôs-se a chorar copiosamente, lamentando-se. D. Margarida
que era a mais decidida, resolveu que deveriam ir até a casa do rapaz conversar com a família.
Chegando lá, contaram todo o ocorrido para a mãe do rapaz, D. Salustiana, que como resposta
disse não poder fazer nada, tratando Clara com total desdém.
-Ora, vejam você só! É possível? É possível admitir-se que meu filho está casado
com esta…
320
Ibidem, p. 291.
118
-Casado com gente dessa laia… Qual!...Que diria meu avô, Lord Jones, que foi
cônsul da Inglaterra em Santa Catarina - que diria ele, se visse tal vergonha? Qual!
-Engraçado, essas sujeitas! Queixam-se de abusarem delas… É sempre a mesma
cantiga...Por acaso, meu filho as amarra, as amordaça, as ameaça com faca e
revólver? Não. A culpa é dela, só dela. 321
Clara saiu da casa dos pais de Cassi, junto à D. Margarida e sua mãe, completamente
desolada com a cena de humilhação que havia passado. Agora sabia sua real situação diante a
sociedade, foi preciso passar por tudo isso para saber que ela não era igual às outras moças.
A educação que recebera, de mimos e vigilâncias, era errôneas. Ela devia ter
aprendido de boca dos seus pais que a sua honestidade de moça e de mulher tinha
todos os inimigos, mas isto ao vivo, com exemplos, claramente… [...] Ora, uma
mulatinha, filha de um carteiro! O que era preciso, tanto a ela como às suas iguais
era educar o caráter, revestir-se de vontade, como possuía essa varonil D. Margarida,
para se defender de Cassis e semelhantes, e bater-se contra todos os que se
opusessem, por este ou aquele modo, contra a elevação dela, social e moralmente.
Nada a fazia inferior às outras, senão o conceito geral e a covardia com que elas o
admitiam.322
A jovem mulata após ter consciência de tudo, disse aos prantos, abraçada à mãe: “-
Nós não somos nada nesta vida”.323 É assim que a última versão dessa narrativa foi encerrada.
Como já foi dito, não sabemos se o romance teria outro fim caso o literato tivesse tido tempo
para continuar a escrevê-lo, mas sabemos que, mesmo em diferentes versões, Clara ao
descobrir a sua condição de mulata diante da sociedade, se torna capaz de entender as
consequências do racismo.
Vera Regina Teixeira diz que Lima Barreto foi um homem que, consciente da sua
condição social e da organização em que estava sujeito, usou o seu ofício de escritor como
arma de combate. 324 É através desse romance que o autor vai expor o infortúnio de uma pobre
mulata moradora do subúrbio do Rio de Janeiro, realizando uma biópsia da sociedade
325
suburbana carioca. Teixeira salienta que na versão de 1904, Clara é apresentada com
espírito forte e corajoso, passando por inúmeras dificuldades: foi seduzida, ficou gravida, foi
abandonada, casou, ficou viúva e, no fim, terminou sustentando seu último companheiro.
Nessa versão, Clara é uma heroína capaz de lidar com as dificuldades que a sua condição de
marginalizada lhe trazia. Na versão seguinte, Clara é uma jovem que, depois da morte de seu
pai, aceita um trabalho no Centro para ajudar no sustento de sua casa, nesse contexto ela é
seduzida e humilhada pelo adolescente galanteador. É apenas em 1919 com a reaparição da
321
BARRETO, LIMA. Clara dos Anjos. op.cit, p. 200.
322
Ibidem, p. 200.
323
Ibidem, p. 201
324
TEIXEIRA, Vera Regina. " ‘Clara dos Anjos’ de Lima Barreto: Biópsia de uma Sociedade”. Luso-Brazilian
Review, p. 41-50, 1980.
325
Ibidem, p.42.
119
obra que o autor, de forma mais polida, cria o que foi última versão em formato de conto.
Nesse texto, Clara é uma personagem mais inocente, que apesar de todos os cuidados da sua
mãe, acaba sofrendo a mesma fatalidade: sem nenhuma proteção social, é seduzida e
abandonada por um indivíduo cujo prestígio lhe é beneficial diante da justiça. “O conto de
Clara dos Anjos é, portanto, não só um simples relato sobre o destino de uma mulata pobre,
mas, também uma denúncia contra a injustiça social.” 326 É desse conto que surge o romance,
escrito depois da sua segunda internação do literato no hospício. Mesmo com a saúde já
abalada, Teixeira nos diz que o autor, em seus últimos anos, se agarrou à literatura, e entre
dezembro de 1921 e janeiro de 1922, escreveu totalmente a obra, fazendo uma reelaboração
da velha história que já lhe acompanhava por toda a vida. “Este Clara dos Anjos é a história
de várias tragédias que assolam homens e mulheres desgraçadas e para quais o ‘o subúrbio é o
refúgio dos infelizes’.”327
Portando, podemos concluir que, mesmo com diferentes Claras do Anjos – uma
primeira mais corajosa, que enfrentou a pobreza e as dificuldades como uma heroína; outra
menos valente, porém capaz de ir em busca do seu sustento e, por último, uma Clara mais
inocente, que mal saia de casa, cuidada com muitos mimos e zelo por uma família, que apesar
de pobre, pôde proporcionar a jovem certa instrução e educação –, ainda assim, o destino da
personagem não mudou. Ou seja, ainda que Clara mude de contexto, assimilado os ideais de
moralidade do grupo superior daquela sociedade, a jovem acaba sempre sendo julgada,
humilhada e rebaixada à inferioridade que a condição de mulata lhe trazia.
Leo Spitzer, tem, eu seu trabalho, objetivo de examinar, a partir de um estudo
comparado das experiências, a trajetória assimilacionista de indivíduos ao mundo dos
dominantes, procurando entender, assim, o modo como esses sujeitos se identificaram e se
orientaram ao longo do tempo. 328 Com a intenção de também compreender o “embaraço da
marginalização” – que é o momento em que o os indivíduos no processo de assimilação,
descobrem as barreiras que os impedem de participar dos privilégios do mundo dos
dominantes – o autor supracitado pode nos orientar na análise do caso envolto às tantas
histórias das Claras dos Anjos de Lima Barreto. 329
326
TEIXEIRA, Vera Regina. " Clara dos Anjos" de Lima Barreto: Biópsia de uma Sociedade. Luso-Brazilian
Review, p. 41-50, 1980, p.46.
327
Ibidem, p.47.
328
SPITZER, Leo. Vidas de entremeio: assimilação e marginalização na Áustria, no Brasil e na África
Ocidental, 1780-1945. Rio de Janeiro EDUERJ, 2001.
329
Ibidem, p.16.
120
Esses indivíduos estudados por ele – família Rebouças, afro-brasileira; os May, uma
família crioula de Serra Leoa a África Ocidental e a família austro-judaica Zweig-Brettauer –
no período pós-emancipação, fizeram parte de uma sociedade onde a ordem e os valores
culturais eram definidos desde um grupo poderoso economicamente: a burguesia. Nesse
sentido, o autor salienta que os caminhos de inserção completa dessas famílias foram
bloqueados pelas barreiras das diferenças, percebidas e manifestadas de diversas maneiras.
De acordou com Spitzer, a cor da pele era um determinante crucial para a aceitação do
mundo dos dominantes. Nesse sentido, quanto mais clara fosse a pele, mais fácil seria a
integração desses sujeitos, e esse foi um dos critérios que pautaram a ideologia do
embranquecimento. A ideia de aproximação das características físicas com o branco, fariam
com que as raças inferiores fossem se apagando do Brasil, levando-o para uma cultura
superior, dando um fim positivo para a mestiçagem. Referenciando Thomas Skidmore, essa
noção se distanciava das ideias racistas fora do Brasil e tinham em seus pressupostos “a
crença no “inatismo das diferenças raciais” e a convicção da “degeneração do sangue
330
Ibidem, p. 50.
121
misturado”.” 331 Por isso, Spitzer salienta que a cor, somada ao víeis cultural, trazia maiores
oportunidades para os sujeitos que se aproximavam dos brancos, afastando-os da cor da
escravização. Ou seja, uma “saída de emergência dos mulatos”, que acontecida de forma
consciente ou inconsciente. 332
Ainda que as mulatas tenham, a partir dessa ideia, gozado (aparentemente) de certos
benefícios que as favoreciam devido à sua cor mais clara, somado isso às ideias eróticas que
pairavam sobre elas, vivendo em uma sociedade patriarcal que garantia de forma legitimada
ao homem branco fácil acesso aos seus corpos, elas nunca ocupariam o lugar no pedestal
destinados somente as brancas. Um exemplo disso é apresentado por Spitezer ao analisar a
situação das mulheres da família Rebouças comparada aos irmãos nascidos homens. O autor
nos diz que, mesmo que elas tenham adotado e internalizado alguns valores materiais e
culturais do grupo superior, tanto na aparência, quando na manifestação pública, e tenham
evitado qualquer associação com o grupo inferiorizado, essas mulheres tiveram menos
oportunidade de mobilidade social. Com o acesso à instrução formal rudimentar por conta do
preconceito sexual e da condição social da família, as filhas dos Rebouças, decerto, foram,
instruídas apenas nas artes domésticas, sempre dependendo do status social do homem que
deveriam servir para alcançar certa mobilidade, seja essa figura masculina o seu pai ou o seu
futuro marido. As mulheres de cor, nesse sentido, além de estarem subordinadas aos
preconceitos de gêneros, também eram reféns da discriminação racial e, ainda que usassem a
sua imagem sexualizada em seus movimentos em busca de sua “promoção” pessoal, como
sugere Leo Spitzer, ainda assim, foram duplamente inferiorizadas em sua condição de mulher
de cor.
Portanto, é a partir dessa explanação que podemos refletir sobre a interpretação que o
literato fez da condição das mulheres mulatas com a história de Clara dos Anjos. Clara foi
uma jovem que passou pelo embranquecimento, tanto da sua aparecia física, quanto o
embranquecimento cultural. Ela foi criada com bases nos valores da elite predominantemente
branca, seus pais aceitaram, internalizaram e interpretaram essas normas, promovendo uma
identificação da família, mesmo que inconscientemente, com as ideologias do grupo
dominante. Porém, isso não lhe garantiu total escape da ideia de subordinação e de
discriminação que a sua origem lhe trazia, e ela não pôde escapar dessa realidade em
331
SKIDMORE, Thomas E. Preto no branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro. Paz e Terra, 1976.
apud SPITZER, Leo. Vidas de entremeio. op. cit, p.123
332
Ibidem, p. 124.
122
nenhuma de suas versões. Apesar da sua assimilação e da sua adaptação social e moral, a
noção de inferioridade de sua raça sempre falou mais alto. Entretanto, como salientou Leo
Spitzer, essa adaptação da ideologia burguesa não acontecia de forma inalterável ou uniforme.
Ainda que o objetivo tenha sido o de assegurar a reprodução de valores da elite, a história não
se desenvolvia sem contradição. “Isso ilustra claramente a maleabilidade e o carácter
multifacetado dessa ideologia, assim como sua capacidade de acolher as contradições”,
contribuindo para uma diferenciação no processo de identificação com o grupo dominante. 333
Portanto, as famílias estudadas pelo autor em seu “[...] processo de assimilação numa
‘situação de marginalidade’ não se percebiam automaticamente como marginalizados – não se
viam, necessariamente, como aspirantes barrados, excluídos, rejeitados e inaceitáveis aos
privilégios e ao poder do grupo dominante.”334 As barreiras estruturais e psicológicas,
objetivas e subjetivas também se alteravam e variavam quanto a sua função excludente, o que
contribuía para a permeabilidade da camada subalterna de múltiplas formas e à percepção
sobre elas. Por isso, a interpretação e a reação desses indivíduos das camadas inferiorizadas,
em resposta a marginalização, também aconteciam de formas variadas, contribuído para o que
Spitzer chamou “embaraço da marginalização”. 335
333
SPITZER, Leo. Vidas de entremeio. op. cit., p .154.
334
Ibidem, p. 156.
335
Ibidem, p. 147 -158.
123
336
MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil, op. cit., p. 57.
337
Ibidem, p.81.
124
Eduardo de Oliveira e Oliveira em sua análise sobre o trabalho desenvolvido por Carl
N. Degler, nos diz que esse é um trabalho altamente controverso. Já que, a questão racial do
Brasil não pode ser vista como fruto de um entendimento entre os elementos da sociedade.
Como salienta Oliveira, Degler viu no papel atribuído aos mulatos o de aceitação e de
encorajamento ao branqueamento, a válvula de escape pela mistura racial. “ Assim o negro no
Brasil pode esperar que seus filhos sejam capazes de furar as barreiras que mantiveram para
trás, caso ele se case com gente mais clara.”339 As diferenças apontadas por Degler com
relação aos negros em comparação com o Estados Unidos, fez com que o autor defendesse
uma posição favorável para o caso brasileiro, onde o mulato e um tipo socialmente mais
aceito. Entretanto, Oliveira salienta que o fato de o Brasil não ter reconhecido a desigualdade
e racismo nas relações raciais, contribuiu para a limitação e imposição de barreiras aos dos
negros e mulatos. Assim, Oliveira esclarece que a tentativa de compreender o mulato como o
mediador de dois pólos sem conflitos é distorcer o real problema. Para o autor, a
miscigenação não pode ser entendida com tolerância, ela é resultado da exploração e
degradação da mulher negra. O mulato não é solução para o problema brasileiro, ele é “um
obstáculo epistemológico”340 .
338
DEGLER, Carl N. Neither black nor White: Slavery and race relations in Brazil and the United States. New
York: Mecmillan Company, 1971, 182.
339
OLIVEIRA, Eduardo de Oliveira e. “O mulato: um obstáculo epistemológico”. Argumento, jan. de 1974, p.
67.
340
Ibidem,p. 72.
125
Segundo Ivana Stolze Lima a mestiçagem fez parte da experiência histórica brasileira
provocando um silenciamento sobre as questões raciais, articulando um discurso de
hierarquias racializadas.341 Portanto, o mito da democracia racial criada por Gilberto Freyre
em 1933 contribuiu para suavização do próprio conflito racial. Como já abordado aqui, a
intelectualidade no final do século XIX se empenhou fortemente para analisar o perfil do
Brasil. De acordo com o que salientou Ivana Stolze Lima, o período do pós-abolição
reconstruiu “[...] a desigualdade em termos naturais, biológicos, orgânicos. Muitos dos
homens das letras e da política defendiam que a superioridade branca seria algo
cientificamente atestado.”342 Foi nesse campo de debate que a mestiçagem contribuiu para
diferentes formas e construções do racismo.
modo, a mulata na obra de Lima Barreto pode ser entendida com uma representação da
discriminação racial, que vai além de um preconceito somente de classe. Clara é o objeto
sexual de desejo do homem branco, mas não poderia ultrapassar as barreiras desses limites.
Ela não ocupa o lugar sagrado destinado às mulheres brancas. A ela, foi determinada a
posição degradada e subjugada de abuso material e sexual.
Por fim, podemos interpelar essa narrativa com a ajuda que Frantz Fanon nos
oferece.345 Dedicando-se a entender os relacionamentos entre a mulher de cor e o europeu, o
autor propõe refletir até que medida a relação autêntica desses sujeitos permanecerá enquanto
o sentimento de inferioridade também estiver presente.346Para isso, analisar o romance
autobiográfico ``Je Suis Martiniquaise de Mayotte Capécia.347 Mayotte ama um homem
branco, porém, não exige nada dele além de um pouco de brancura. Essa seria a sua mágica
salvação. Mas, depois de passar por um episódio de discriminação ao ir com o seu
companheiro para uma noite em Didier, ela percebe que as pessoas daquele lugar não a
tolerava e o motivo era a sua cor. Nesse sentido, o que Fanon salienta é que as barreiras que
impedem que Mayotte faça parte desse circuito não são econômicas e sim raciais. Desse
modo, embranquecer o seu corpo e seus pensamentos eram um meio de encontrar alguma
aproximação com a brancura. Ser branco, nesse sentido, é ser digno e aceito.
À vista disso, era a cor e todos os seus significados que impediam que Mayotte fizesse
parte daquela sociedade. Sua mãe, durante sua infância, lhe ensinou o quanto a vida de uma
mulher de cor era difícil, era necessário embranquecer para tentar se salvar. Com essa
interpretação, podemos tentar entender as atitudes de Clara diante de Cassi na construção feita
por Lima Barreto. A jovem é a representação da mulata no Rio de Janeiro daquele contexto,
vivendo em lugar onde o embranquecimento era uma ideologia defendida. Era necessário
tentar encontrar meios que lhe fizessem ser reconhecida e assim, reparar a sua situação
inferiorizada. Ainda que para isso o escolhido fosse da pior espécie como Cassi, o que
importava era a sua brancura. A única saída para Clara e Mayotte é o mundo branco.
345
FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Bahia: Editora EDUFBA, 2008.
346
Ibidem, p. 54.
347
CAPÉCIA, Je suis Martiniquaise. Paris: Córrea, 1948.
348
FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. op.cit., p.56.
127
Mayotte ama um homem branco do qual aceita tudo. Ele é o seu senhor. Dele ela
não reclama nada, não exige nada, senão um pouco de brancura na vida. E quando,
perguntando-se se ele é bonito ou feio, responde: “Tudo o que sei é que tinha olhos
azuis, que tinha os cabelos loiros, a pele clara e que eu o amava”.349
Clara recebia aquelas cartas com uma emoção de receber mensagens divinas.
Entretanto, eram pessimamente escritas, a ponto de não serem, às vezes, entendidas,
tão caprichosas que era a ortografia delas. A filha do carteiro não vida nada disso;
esquecera-se até das más ausências que faziam do namorado. Para ela, ele era o
modelo do cavalheirismo e da lealdade. Estava sempre a sonhar com ele, com aquele
Cassi da viola.350
Porém, como Fanon nos diz, os brancos não se casam com mulheres negras, mas
correr esse risco era necessário “[...] porque precisam da brancura a qualquer preço.351 Clara e
Mayotte correram esse risco e no fim, o que restou foi a dor do abandono e da interiorização
pelos seus amantes brancos. É nesse momento que surge o sentimento de inferioridade
abordado por Fanon, é nesse instante que Clara e Lima Barreto, em particular, descobrem que
não é possível superar as barreiras impostas, não eram nada nessa vida. O processo que
ocorreu com as personagens que o autor analisa, também acontece com Clara. Mesmo que
Lima Barreto não tenha colocado, de forma objetiva, entre as falas de sua personagem a busca
consciente pelo embranquecimento, como aconteceu com as apresentadas por Fanon, Clara e
sua família também interiorizaram os valores do mundo dos brancos. O medo de D. Engrácia
talvez, por ter acompanhado a realidade ainda mais de perto por conta da sua vivência na casa
do senhor, possa ser justificado por essa perspectiva. Ela temia pelo sofrimento destinado à
Clara, pois conhecia as restrições que o mundo impunha a ela e a sua filha. Por isso, é
provável que o literato tenha construído essa personagem limitando-a ao ambiente de sua
casa. Dizendo que toda a instrução que havia recebido enquanto jovem foi esquecida, a única
coisa com o que se dedicava era as atividades domésticas. Uma vez que, D. Engrácia que
havia passado pelo mesmo processo, já compreendia que a sua condição de marginalizada não
poderia ser reparada. Ela foi excluída daquele mundo e nada do que fizesse mudaria essa
realidade, nem mesmo sua inteligência ou a porcentagem de sangue branco que corria em suas
veias. Por essa razão, preferia viver excluída.
As barreiras sociais que separavam os mundos dos brancos do mundo dos negros, não
foram completamente eliminadas em relação aos mestiços. A mestiçagem tendeu para
suavização do conflito racial, porém, como apontando aqui, a avalição do caráter intransigível
inferiorizado do elemento negro não era possível de ser superado. De modo que, mesmo que o
349
Ibidem, , p. 54
350
BARRETO, LIMA. Clara dos Anjos. op.cit.., p.149.
351
FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. op.cit.,p.58 – 59.
128
mulato alcançasse certa mobilidade social, infiltrando no mundo dos brancos, ele jamais
alcançaria todos os privilégios. Já que, não será capaz de se livrar completamente do elemento
que o inferioriza diante do branco. Portanto, ao propor a eliminação do negro por meio do
embranquecimento, recusando reconhecer realidade social e tentando incumbir as
desigualdades por meio de embaraços de tolerância racial, o que se manifesta é o racismo que
tem em sua base na ideológica de mestiçagem. Conforme enfatizou Roger Bastide e Florestan
Fernandes: Um racismo “[...] penetrado dos valores e das normas dos brancos.” 352
Sueli Carneiro nos diz que a miscigenação é fruto da violação sexual dos senhores
brancos contra as mulheres negras e indígenas, sendo a base das construções das hierarquias
de gênero e raça presentes na sociedade brasileira.353Nesse sentido, a socióloga destaca a
importância do entendimento das experiências históricas das mulheres negras, elas fazem
“[...] parte de um contingente de mulheres com identidade de objeto.” 354
Por isso, a
perspectiva que analisa a opressão de gênero separada da de raça e classe, não é capaz de
interpretar todas as opressões que as mulheres de cor enfrentaram/enfrentam. O racismo,
desse modo, é o determinante da hierarquização no próprio gênero. “O racismo estabelece a
inferioridade social dos segmentos negros da população em geral e das mulheres negras em
particular, operando ademais como fator de divisão na luta das mulheres pelos privilégios que
355
se instituem para as mulheres brancas. Por isso, para as mulheres de cor às desigualdades
de gêneros são somadas com as opressões do racismo, sendo duplamente julgadas.
Diferentemente da imagem “ [...]folclorizada e marginalizada, tratada como coisa primitiva,
coisa do diabo”356, a mulher branca é a musa, rainha do lar, a ótima mãe, dócil, angelical e
frágil. Portanto, concluímos que o literato Afonso Henriques de Lima Barreto ao dar para a
sua narrativa e para a personagem o nome que contradiz essa ideia, o objetivo era demonstrar
que dentro dessa sociedade racista Clara não seria clara, tampouco, dos anjos.
352
FERNANDES, Florestan; Brancos e negros em São Paulo. op. cit., p.229.
353
CARNEIRO, Sueli. Enegrecer o feminismo: a situação da mulher negra na América Latina a partir de uma
perspectiva de gênero. Racismos contemporâneos. Rio de Janeiro: Takano Editora, v. 49, p. 49-58, 2003.
354
Ibidem, p. 49.
355
Ibidem, p. 50.
356
Ibidem, Ibidem.
129
CONSIDERAÇÕES FINAIS:
Lima Barreto, que também foi atingido pelo violento processo de desumanização dos
negros, iniciado desde a colonização, usou toda a sua lucidez para denunciar as derivas
políticas e ideológicas do Estado que negou a humanidade aos sujeitos negros. Portanto, a
sua literatura militante foi entendida aqui como arma de luta e de resistência em defesa de
uma democracia mais inclusiva. Os processos que transformara o negro em um “outro” e que
foram justificados analiticamente pela longa duração da sua vida em cativeiro, tiraram
qualquer possibilidade de cidadania desses sujeitos negros, considerados cidadãos de segunda
e terceira categoria.
O literato dialogando com essas teorias, manifestou através da narrativa de Clara dos
Anjos os efeitos dessas ideias. Clara dos Anjos é uma consequência e uma crítica a essas
ideologias. Em diferentes versões, o autor vai abordar a história da jovem mulata que é
seduzida e abandonada pelo seu amante branco, sendo marginalizada em sua condição de
mulher e de não branca. Ou seja, a reflexão que Lima Barreto propõe com essa obra é que o
sujeito mestiço, como Clara, ainda que tenha passado pelo processo de assimilação e
ressignificação com o elemento dominador, vai continuar sendo inferiorizado por conta da sua
origem. Desse modo, através dessa história, Lima Barreto vai demonstrar o compromisso que
travou durante toda a sua vida contra o racismo que negou a humanidade aos negros e
mulatos. Clara após ser humilhada e abandonada, começa a ter consciência da sua condição
de mulher mulata erotizada e duplamente marginalizada por conta de sua raça e gênero.
Vivendo em uma sociedade patriarcal que garantia de forma legitimada ao homem branco o
fácil acesso aos seus corpos, as mulheres de cor nunca ocupariam o lugar no pedestal
destinado às brancas. Para elas, o lugar determinado era o da servidão: material e sexual.
Interpelando essa perspectiva com a história do próprio Lima Barreto, podemos compreender
quando o autor relata os seus sentimentos diante de um ato de racismo:
Hoje, comigo, deu-se um caso que, por repetido, mereceu-me reparo. Ia eu pelo
corredor afora, daqui do Ministério, e um soldado dirigiu-se a mim, inquirindo-me
se era contínuo. Ora, sendo a terceira vez, a coisa feriu-me um tanto a vaidade, e foi
preciso tomar-me de muito sangue frio para que não desmentisse com azedume.
Eles, variada gente simples, insistem em tomar-me como tal, e nisso creio ver um
formal desmentido ao professor Broca ( de memória). Parece-me que esse homem
afirma que a educação embeleza, dá, enfim, outro as à fisionomia. Porque então essa
gente continua a me querer contínuo, porque?
Porque... o que é verdade na raça branca, não é extensivo ao resto; eu, mulato ou
negro, como queiram, estou condenado a ser sempre tomado por contínuo.
Entretanto, não me agasto, minha vida será sempre cheia desse desgosto e ele far-
me-á grande.
Era de perguntar se o Argolo, vestido assim como eu ando, não seria tomado por
contínuo; seria, mas quem o tomasse teria razão, mesmo porque ele é branco.
Quando me julgo – nada valho; quando me comparo, sou grande. Enorme consolo.
(grifo meu)357
Lima Barreto tinha consciência da sua realidade depreciada provocada pelo racismo,
ele sabia o quanto era rejeitado pelo mundo branco. Nem mesmo a sua erudição ou sua
intelectualidade poderia lhe salvar de ser estereotipado e rebaixado mentalmente, moralmente
e socialmente. Os privilégios dados a raça branca, não se estendia aos negros e mulatos. Por
357
BARRETO, Lima. Lima Barreto: obra reunida, op. cit., p.469.
131
isso, por muito tempo, a compreensão de sua escrita foi acusada de ser apenas uma confissão
biográfica, um testemunho triste e revoltado, contribuindo para o imaginário de uma literatura
de periferia. Pensando sobre isso, podemos entender quando em uma passagem no romance, o
literato nos diz que Cassi era um homem completamente ignorante e que as cartas escritas
para Clara eram quase ilegíveis. Mas, mesmo assim, a jovem as recebia como se fossem letras
divinas. Ou seja, não importava a sua qualidade real, ele já possuía pelo simples fato de ser
branco. Por tanto, compreendemos que a crítica que o literato se propôs nesse contexto foi
evidenciar que o trabalho feito por um branco era tido de muito mais valor do que o feito por
um negro ou mulato. Tanto é que, Leonardo Flores que foi poeta durante a vida inteira, não
alcançou nenhum prestígio social. A barreira que limitou Leonardo Flores e Lima Barreto, em
particular, foi racismo que negou suas competências intelectuais. Naquela sociedade, a sua
imagem era sempre de contínuo, feio e ignorante. Uma vez que, “ser branco é como ser rico,
como ser bonito, como ser inteligente”.358
Mas Lima Barreto não se calou, não aceitou o silenciamento imposto aos negros e
mulatos. O literato trouxe para sua ficção personagem periféricos e excluídos com a intenção
de desenvolver uma espécie de Germinal Negro, destacado o protagonismo desses sujeitos na
construção da nação brasileira. Lima Barreto introduziu a questão racial em suas obras e
exigiu o reconhecimento dos negros enquanto seres humanos. Por isso, defendemos aqui que
Clara dos Anjos fez parte do Germinal Negro que o autor pretendeu escrever. Por fim, ao
evidenciarmos o modo como o racismo atravessou sua escrita, podemos compreender quando
o autor diz que “é triste não ser branco”. 359 Não ser branco, nesse sentido, é não ter seus
direitos fundamentais garantidos na ordem social, é ser marginalizado, desumanizado, é ser
considerado “coisa”, é, como apontou Fanou, inexistir.360
358
FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. op. cit., p. 60.
359
BARRETO, Lima. Lima Barreto, op. cit., p.539.
360
FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. op. cit., p.125.
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A Notícia (1894 – 1948)
Revista Souza Cruz (1916 – 1923)
Fon-Fon (1916 – 1948)
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