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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE - UFF

Programa de Pós-graduação em História – PPGH – UFF

Mestrado em História

Juliana Pinho Leite

“Não somos nada nessa vida”: A denúncia do racismo em Clara dos Anjos. (1914-1948)

Dissertação apresentada ao programa de Pós-


graduação em História da Universidade Federal
Fluminense, como requisito parcial para obtenção
do grau de Mestre. Área de concentração: História
Social, Linha de Pesquisa: Cultura e Sociedade.

Orientadora: Prof. Dra. Larissa Moreira Vianna

Niterói

2021
JULIANA PINHO LEITE

“NÃO SOMOS NADA NESSA VIDA”: A DENÚNCIA DO RACISMO EM CLARA DOS ANJOS.
(1914-1948)

Dissertação apresentada ao programa de Pós-


graduação em História da Universidade Federal
Fluminense, como requisito parcial para obtenção
do grau de Mestre. Área de concentração: História
Social, Linha de Pesquisa: Cultura e Sociedade.

Banca examinadora

1a Examinadora Profa Dra Larissa Moreira Vianna – Orientadora


Universidade Federal Fluminense (UFF)

2a Examinadora Profa Dra Monica Lima e Souza


Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

3o Examinador(a) Prof Dr Alain Pascal Kaly


Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ)

Suplente

Profa Dra Renata Figueiredo Moraes


Uniersidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ)

Profa Dra Marina Annie Martine Berthet


Universidade Federal Fluminense (UFF)

Niterói
2021
À minha querida avó Maria da Glória, que durante toda a sua vida me ensinou a ser cada vez mais
forte e corajosa. É por ela que eu cheguei até aqui
AGRADECIMENTOS

Agradeço imensamente a Professora Doutora Larissa Vianna que incentivou a minha escolha
e me acolheu generosamente em todo esse processo, sempre com muito carinho e
compreensão. Sem a sua orientação sempre cuidadosa eu jamais conseguiria concluir esta
etapa;

Agradeço ao Professor Alain Pascal Kaly que durante toda a minha trajetória acadêmica foi o
meu maior incentivador. Nossa relação ultrapassou as paredes da academia e se tornou uma
grande amizade. Muito obrigada por toda parceria intelectual, pela confiança, pela
generosidade e pelo incentivo a minha entrada no mestrado, seja por empréstimos de livros,
seja com uma palavra amiga;

Agradeço, igualmente, à professora Doutora Mônica Lima que concordou em fazer parte de
minha qualificação e de estar, de novo, comigo, na banca de defesa. Os comentários e
sugestões durante todo o processo de escrita foram essenciais, além do maravilhoso curso
oferecido pela UFRJ e ministrado pela professora Mônica Lima que tive a oportunidade de
cursar e enriquecer o meu trabalho;

Agradeço a CAPES, instituição que fomentou esta pesquisa;

Agradeço ao Programa de Pós Graduação em História Social oferecido na Universidade


Federal Fluminense e ao Grupo de Estudo e Pesquisa Cultura Negra no Atlântico (CULTNA),
por enriquecer esta pesquisa com seus debates e reuniões sempre acalorados;

Agradeço a todos os meus amigos pelo estimulo e incentivo. Em especial, a Juliana Pereira e
Caio Sérgio pelas nossas discussões acadêmico-afetivas sobre os mais variados assuntos,
pelas diversas leituras críticas, pelas correções, pelas longas conversas por telefone, os
desabafos e por sempre se colocarem à disposição para minhas dúvidas a qualquer hora;

Agradeço ao meu companheiro Yuri Ribeiro pela presença, o amor e a paciência de suportar
todas minhas crises nervosas e os meus momentos mais difíceis ao longo do mestrado. Sou
muito grata por ter me amado e ter ficado ao meu lado mesmo quando eu não merecia;

Por fim, agradeço aos meus familiares que estiveram ao meu lado durante todas as fases deste
trabalho. Em especial, aos meus pais que com o amor e carinho de sempre me apoiaram e me
deram força para trilhar esse caminho. Sem o apoio de todos eu jamais conseguiria.
RESUMO

Esta dissertação trata do modo como o literato Afonso Henriques de Lima Barreto, ao longo
do contexto em que estava inserido, expressou e lidou com os problemas diretamente ligados
ao racismo. Adotamos nessa pesquisa o conceito de racismo a partir da sua carga política e da
sua prática ideológica, que inferioriza e produz atitudes discriminatórias manifestadas em
diferentes maneiras e em vários contextos históricos. Lima Barreto através da sua literatura
militante, lutou contra práticas limitadas e limitantes, tanto no campo do individual, quanto no
institucional. Será entrelaçado aos seus testemunhos, principalmente ao romance Clara dos
Anjos, que analisaremos o modo como as questões raciais atravessaram a sua narrativa. Este
trabalho se estrutura em três capítulos: no primeiro capítulo abordaremos parte da trajetória de
Lima Barreto, tentando compreender a sua missão literária e a sua luta social; no segundo
capítulo produziremos uma análise sobre a primeira publicação de Clara dos Anjos com o
objetivo de compreendermos os espaços que perpetuaram a voz de Lima Barreto; e, no
terceiro capítulo procuramos perceber, a partir da obra Clara dos Anjos, o debate político
travado pelo autor, principalmente, o modo que as injustiças e o racismo aparecem na escrita
do romance.

Palavras – Chave: Lima Barreto, racismo, Clara dos Anjos, literatura, Rio de Janeiro e
produção intelectual
ABSTRACT

This dissertation deals with the way in how the literate Afonso Henriques de Lima Barreto,
throughout the context in which he was inserted, expressed and dealt with the problems
directly linked to racism. In this research, we adopted the concept of racism from its political
load and its ideological practice, which lowers and produces discriminatory attitudes
manifested in different ways and in various historical contexts. Lima Barreto, through his
militant literature, struggled against limited and limiting practices, both in the individual and
institutional fields. It will be intertwined with the testimonies – especially to the novel Clara
dos Anjos – that we will analyze the way in how racial issues crossed its narrative. This work
is structured in three chapters: in the first chapter we will approach part of Lima Barreto's
trajectory, trying to understand his literary mission and his social struggle; in the second
chapter we will produce an analysis of Clara dos Anjos' first publication with the aim of
understanding the spaces that perpetuated Lima Barreto's voice; and in the third chapter we
try to understand – from Clara dos Anjos – the political debate waged by the author, mainly
the way the injustices and racism appear in the writing of the novel.

Keywords: Lima Barreto, racism, Clara dos Anjos, literature, Rio de Janeiro, intellectual
production.
SUMÁRIO

LISTA DE ILUSTRAÇÕES .................................................................................................................. 9


INTRODUÇÃO:................................................................................................................................... 10
1. A MISSÃO LITERÁRIA DE AFONSO HENRIQUES DE LIMA BARRETO:
ALGUMAS INTERPRETAÇÕES. ..................................................................................................... 22
2. A REVISTA SOUZA CRUZ: O LANÇAMENTO DE CLARA DOS ANJOS. ............................... 35
2.1. LIMA BARRETO NA REVISTA SOUZA CRUZ: OUTRAS PUBLICAÇÕES. ......................................... 53
3. AS CLARAS DOS ANJOS DE LIMA BARRETO. ....................................................................... 71
3.1. A FICÇÃO COMO TESTEMUNHO HISTÓRICO:............................................................................... 71
3.2. A PUBLICAÇÃO DO LIVRO CLARA DOS ANJOS: UM SONHO QUE NÃO SE REALIZOU. ............... 76
3.3. A CLARA EM SEU ÍNTIMO: .......................................................................................................... 96
3.4. A ÚLTIMA VERSÃO DE CLARA DOS ANJOS. .............................................................................. 108
CONSIDERAÇÕES FINAIS: ........................................................................................................... 129
REFERÊNCIAS: ................................................................................................................................ 132
FONTES IMPRESSAS: ........................................................................................................................ 132
FONTES MANUSCRITA: .................................................................................................................... 132
HEMEROTECA DIGITAL – BIBLIOTECA NACIONAL: .......................................................................... 132
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: ...................................................................................................... 133
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1– Capa da Revista Souza Cruz (1923) ..................................................................................... 36
Figura 2- Capa da Revista Souza Cruz (1923) ...................................................................................... 44
Figura 3 - Capa da Edição de Clara dos Anjos de 1948 ....................................................................... 86
10

INTRODUÇÃO:

[...]Se me esforço por fazê-lo literário é para que ele possa ser lido, pois quero falar
das minhas dores e dos meus sofrimentos ao espírito geral e no seu interesse, com a
linguagem acessível a ele. É este o meu propósito, o meu único propósito”. 1

Era ano de 1889 quando nasceu a primeira república brasileira. Havia, nessa época, a
ideia de superar o passado, o atraso e seguir em busca da civilização. A república surgiu,
nesse contexto, entrelaçada às ideias de solução e de salvação do povo brasileiro. Segundo
Maria Tereza Chaves de Mello, a república representava uma oposição ao passado, era o
futuro cheio de expectativas sociais e “modernização à brasileira”2: a liberdade, a cidadania, o
povo e a democracia eram palavras-chave para a propaganda republicana3, contudo, essa
república foi implementada um ano após a abolição jurídica da escravidão, e, entre as suas
ideias, não havia nenhuma concessão de meios financeiros ou de terras para que os negros
libertos pudessem reiniciar as suas vidas com dignidade. Consequentemente, o novo regime
governamental já nascia comprometendo o futuro de uma grande parte da população do país
e, em simultâneo, criando meios e mecanismos favorecendo as estruturações dos cidadãos já
privilegiados. É importante destacar que os negros usaram diversas armas (fugas,
enfrentamentos, abortos...) de mobilizações políticas nos planos individuais e coletivos ao
longo de mais de três séculos, revelando, no século XIX, uma nova arma de luta: a escrita. 4
Foi neste contexto político e histórico brasileiro que o intelectual Afonso Henriques de Lima
Barreto produziu as suas críticas e os seus escritos.

O literato em suas obras, como por exemplo: Claras dos Anjos, de 1922; Recordações
do Escrivão Isaías Caminha, de1909; O Triste fim de Policarpo Quaresma, de 1911, entre
outras, deu ênfase nas questões ligadas às desigualdades sociais e raciais existentes durante o
período de construção do Brasil republicano. Portanto, Lima Barreto foi um autor que refletiu
sobre o que hoje é chamado período de pós-abolição. Vivendo no Rio de Janeiro, a então
capital da república e o lugar de berço para o projeto civilizatório que se instalaria no Brasil, o
autor acompanhou e fez parte do cotidiano dessa população, produzindo e deixando para a
posteridade, através de suas reflexões, um acervo literário de grande valor para as próximas
gerações, principalmente, sobre a exclusão institucionalizada dos brasileiros negros. As

1
BARRETO, Lima. Recordações do Escrivão Isaías Caminha. São Paulo: Ática, 1995, p. 120.
2
Ibidem, p. 16.
3
MELLO, Maria Tereza Chaves de. “A modernidade republicana”. Tempo, v. 13, n. 26, p. 15-31, 2009.
4
Ver em: CHALHOUB, Sidney. Visões de Liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
11

críticas às identidades política, católica, jurídica e ideologicamente impostas, estão presentes


por toda sua obra literária.

Afonso Henriques de Lima Barreto – seu nome de batismo –, literato natural da cidade
do Rio de Janeiro, nasceu no dia 13 de maio de 1881, em uma humilde casa que ficava na rua
Ipiranga, no bairro de Laranjeiras. Filho de João Henriques de Lima Barreto e Amália
Augusta Barreto, era mulato e pobre. O autor teve contato desde muito cedo com as
desigualdades sociais e com o racismo gerados pelo tom da sua pele, à época entendida como
uma cor de seres inferiores e sem capacidades racionais. O seu pai “era mulato, quase preto.
Nascera liberto, é verdade, mas trazia na pele o estigma da cor” 5, sendo este filho da
escravizada Carlota Maria dos Anjos com um português madeireiro, que nunca o reconheceu
como filho legítimo.6 Amália Augusta Barreto, por sua vez, era neta da escravizada Maria da
Conceição, trazida da África num navio negreiro. Entre os muitos filhos que a escravizada
gerou, nascera a Geraldina Leocádia da Conceição, mãe de Amália Barreto. Apesar de
libertas, mãe e filha ainda viveram como agregadas na casa dos Pereira de Carvalho – é
relevante pontuar que foi nesta casa que João Henriques de Lima Barreto conheceu a sua
esposa.

A família dos Barretos mudou-se muitas vezes devido a precária saúde de Amália
Augusta, que começou a sentir os sintomas da tuberculose logo depois dos primeiros partos.
Antes de conceber Lima Barreto, Amália Augusta teve outra gravidez onde o filho não
resistiu, morrendo depois de oito dias. Chamou-o Nicomedes. Os efeitos desse parto difícil
renderam para a jovem mãe um traumatismo e uma paralisia nas pernas, ficando dependente
de muletas pelo resto da vida. João Henriques passou a vida tentando salvar a saúde de sua
amada mulher e as constates mudanças representaram as tentativas de melhorar a condição de
vida para Amália Augusta. Após residir em Laranjeiras, foram para o Flamengo,
posteriormente foram para a rua Marrecas, mais próximo da Santa Casa da Misericórdia. A
ida para o subúrbio, em seguida, foi ideia de João Henriques, pois, segundo Lilian Moritz
Schwarcz, para ele, o bairro teria um melhor clima e preços mais baixos de arrendamentos. 7
Viveram também no Engenho Novo, no Meier, no Catumbi e no bairro de Paula Matos.
Entretanto, mesmo com todas essas mudanças e com a constante busca pelo tratamento,
Amália Augusta Barreto morreu em dezembro de 1887, vítima de tuberculose. De acordo com

5
BARBOSA, Francisco de Assis. A vida de Lima Barreto: 1881 – 1922. 11 ed. Belo Horizonte: Autêntica
Editora, 2017, p 31.
6
Ibidem, p 32.
7
SCHWARCZ, Lilia Moritz. Lima Barreto: triste visionário. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.p.56.
12

Schwarcz, a doença de Amália deve ter incomodado muito os Barreto, para além do
sofrimento físico da perda da genitora da família. Vivendo em um período em que os sujeitos
eram classificados pelos seus estigmas hereditários, onde os mestiços eram vistos como
naturalmente degenerativos pela sua raça, a doença da mãe do literato contribuiu ainda mais
para o sofrimento gerado pelo preconceito na vida dos Barretos. 8

Mas um dos diagnósticos deveria incomodar os Barretos: o fato de a tuberculose ser


entendida como um sinal hereditário de degeneração, muito próprio dos grupos
mestiçados. Naquele contexto, a estigmatização dos doentes era frequente. Mesmo
com o incremento das iniciativas médico-higienistas de controle da moléstia nas
camadas sociais mais pobres, ela era encarada com grandes doses de ambiguidade:
produzida tanto solidariedade, quanto isolamento. Se era preciso cuidar dos
indivíduos infectados, eles eram também vistos como “agentes corruptos do meio
social”, ou transmissores de germes.9

Lima Barreto relembrou a imagem da mãe em muitos dos seus escritos. A própria
história da vida de Amália Augusta, sendo mestiça, fruto da exploração de uma ex-
escravizada com o Senhor da casa, pode ser vista como referência para o autor escrever o
romance Clara dos Anjos. Francisco de Assis Barbosa, o principal biógrafo de Lima Barreto,
nos diz ser através da ficção que o literato vai explicar e descrever o seu próprio caso,
aludindo as suas origens e às questões que atingiam o seu núcleo familiar. Pertencendo Lima
Barreto à categoria dos escritores que mais confessam através de suas obras, conforme já
observou Astrojildo Pereira, e tendo o próprio romancista dito certa vez que tudo o que
escrevia eram capítulos das suas memórias.10

Não só Clara dos Anjos, como a maioria de seus personagens foram inspirados em
seus familiares, nas questões e nos conflitos que enfrentavam cotidianamente. João Henriques
de Lima Barreto também foi, sem dúvida, a referência de algumas das suas criações. Tendo
uma admiração enorme por seu progenitor, podemos dizer que Lima Barreto retratou em
muitas de suas obras a figura do seu amado pai. É o caso, por exemplo, do Major Policarpo
Quaresma em O Triste Fim de Policarpo Quaresma e do pai do personagem principal em
Recordações do Escrivão Isaías Caminha.

Por seu pai, tão amigo e inteligente, Lima Barreto há de conservar uma grande
admiração de toda a vida. Muito provavelmente dele se lembrou, mais ainda talvez
que no retrato de Policarpo Quaresma, ao traçar o perfil do pai de Isaías Caminha.
“Meu pai, o seu corpo anguloso, seco, a sua dor contida, que se escapava no seu
olhar e na sua fisionomia transtornada. Via-os às tardes, nos dias de bom humor,

8
Ibidem, p. 51 – 57.
9
BARBOSA, Francisco de Assis. A vida de Lima Barreto: 1881 – 1922. 11 ed. Belo Horizonte: Autêntica
Editora, 2017, p. 57
10
Ibidem, p. 23
13

mudá-la de chofre, fazer-se risonho, vir para mim, sentar-se à mesa, e, à luz do
lampião de querosene, explicar-me pitorescamente as lições do dia seguinte.” Sim,
não há dúvida que são o mesmo pai, um e outro, como o filho deste, Isaías, é o
próprio romancista.11

De acordo com Barbosa, Lima Barreto aprendeu a ler com a sua mãe, uma jovem
professora que liderou um colégio para meninas no bairro das Laranjeiras. Sua trajetória
educacional começou com a própria progenitora, seguindo para as aulas em uma escola
pública localizada na rua Rezende. Depois, o adolescente Lima Barreto cursou no Liceu
Popular Niteroiense, colégio de grande prestígio na época. Os seus estudos nesse período
foram financiados pelo seu padrinho, o Visconde de Ouro Preto. Ao sair do Liceu Popular
Niteroiense, prestou exames para o Ginásio Nacional, o velho Colégio Pedro II. Ao final de
sua vida educacional, o literato ingressou na Escola Politécnica, permanecendo lá, ainda que
contra a própria vontade, até que tivesse que abandonar seus estudos para assumir como chefe
a sua grande família, logo depois que o seu pai enlouquecera.

Após a morte da mãe e antes da loucura do pai, os Barretos foram viver na rua
Riachuelo, no centro. A mudança foi justificada por Schwarcz devido a “maré favorável” que
o pai de Lima Barreto conquistou profissionalmente. Tornando-se técnico das oficinas
tipográficas da Tribuna Liberal e mestre da oficina de composição da Imprensa Nacional.12
Porém, esse bom momento acabaria no período da Proclamação da República, “era um novo
Brasil que se montava: sem escravos e sem seu soberano. E, nessa maré, o pai de Lima,
infelizmente, acabou associado a tudo que parecia antigo sendo vinculado ao regime
monárquico.”13 João Henriques era compadre de Visconde de Ouro Preto e o apoio a ele lhe
rendeu uma demissão – que o genitor de Lima Barreto não esperou acontecer de fato, indo
embora antes mesmo de ser demitido, o que demonstra um pouco do comportamento do pai
de Lima Barreto tão parecido com o do autor. Os dois não renunciavam as suas ideias e
convicções, defendendo-as mesmo que isso lhes redessem grandes prejuízos.

Com tantos anúncios desagradáveis, o pai de Lima não esperou o sinal vermelho.
Quando soube que constava de uma “lista”, e depois de um colega provocá-lo por
ter participado do “bota-fora de Ouro Preto”, João Henriques, tranquilo no trabalho e
de caráter tempestuoso na vida, vestiu o paletó de alpaca que havia acabado de
pendurar e afirmou que “não daria esse gosto” ao Rui Barbosa. Ninguém iria demiti-
lo. Saiu da Tribuna e da Imprensa Nacional, onde fora tipógrafo por doze anos sem
interrupção.14

11
Ibidem, p. 70
12
SCHWARCZ, Lilia Moritz. Lima Barreto: triste visionário. São Paulo: Companhia das Letras, 2017, p. 58.
13
Ibidem, p. 73
14
Ibidem, p. 75 – 76.
14

Depois da demissão, a família foi viver na Ilha do Governador e João Henriques virou
administrador da Colônias dos Alienados, por indicação de Ouro Preto. Por coincidência, esse
foi seu último emprego, pois ele enlouqueceu em 1902, abandonando o ofício. Neste contexto,
a família dos Barretos junto à nova companheira de João Henriques e os três filhos dela,
mudaram-se para o Engenho Novo, vivendo lá até Lima Barreto ser admitido para uma vaga
de amanuense da Secretária de Guerra.

Com a doença do pai, Lima Barreto se tornou o principal responsável pela sua família,
o que gerou no Literato a necessidade de angariar mais recursos para o sustento de todos. Para
isso, o autor deu algumas aulas como professor, porém, percebendo que os recursos
financeiros recebidos pelas aulas não eram suficientes, decidiu participar de um concurso
público. Lilia Schwarcz aponta para o fato de ser a falta de opção que levou Lima Barreto a se
inscrever no concurso para a vaga de amanuense na Secretaria de Guerra, profissão que se
tornava comum no meio intelectual da época.15 Depois de oito dias de provas, o autor
conquistou o segundo lugar na classificação; Schwarcz e Barbosa dizem que o que levou o
literato a ficar com essa posição foi a sua má letra, já que na prova de caligrafia recebeu nota
3 e o seu competidor conseguiu conquistar a nota 9.16 Mesmo ficando em segundo lugar,
Lima Barreto logrou preencher a vaga, assumindo o cargo no dia 28 de outubro de 1903.
Ainda que considerasse o seu emprego indigno por passar o seu tempo sendo obrigado a
copiar uns documentos e a redigir alguns outros, o autor não viu outra alternativa. O salário
não era dos melhores, mas dava, limitando com muito afinco os gastos, para sustentar a sua
família. Com isso, mudaram-se pela última vez, o que fez com que o literato estivesse de
volta ao subúrbio, para o bairro de Todos os Santos, onde viveu até a sua morte, em 1922.17

A vida de Lima Barreto não foi nada fácil, desde a sua infância teve que lidar com a
doença da mãe e depois com a do pai, que enlouqueceu, visto que o jovem autor virou o único
responsável pela sua família após a loucura de João Henriques. A loucura também foi o
motivo do “declínio” de Lima Barreto, como bem apontou Francisco Barbosa. Por duas vezes,
o autor foi internado no hospício devido as suas crises: a primeira foi em 1914 e a segunda
1919, ele mesmo narrou esses episódios em seu Diário do Hospício. Vivendo em uma
sociedade onde era julgado pela sua cor cotidianamente, Lima Barreto teve diversas crises e
episódios de alcoolismo que contribuíram para a sua morte no dia 1° de novembro de 1922.

15
Ibidem, p. 143.
16
Ibidem, p. 144
17
Ibidem.
15

De acordo com Barbosa, quem encontrou o literato morto foi a sua irmã, Evangelina Barreto.
Ao entrar no quarto do irmão no final da tarde encontrou o escritor morto, sentado, com o
volume da Revue des Deux Mondes entre seus braços.18

Podemos pensar a condição da saúde de Lima Barreto a partir das reflexões de Sueli
Carneiro.19 A autora nos diz que as consequências mais perversas do racismo e da
discriminação social são “os danos psíquicos e, sobretudo, o golpe na autoestima que os
mecanismos discriminatórios produzem nas vítimas do racismo.” 20 Essa manifestação
preconceituosa causou e causa o adoecimento dos sujeitos negros que carregam em seus
corpos as marcas da escravização e da opressão. A inferiorização, a marginalização e a
desumanização pela sociedade potencializaram os danos na saúde mental desses sujeitos.
Lima Barreto é uma das vítimas do racismo e da política de embranquecimento que adoece,
inferioriza e nega a humanidade ao negro. Porém, o literato não é a vítima triste e deprimida
que escrevia sobre as suas decepções, como por muito tempo foi propagado, Lima Barreto é
um intelectual que usou a sua narrativa – arma de mobilização e posicionamento político –
para apontar e denunciar os efeitos negativos que o racismo gerou na sociedade. Foi um
lúcido pensador brasileiro, que refletiu sobre as derivas políticas e as ideológicas do estado.
Os efeitos negativos dessa política são os responsáveis pelas condições não só psicológicas,
como físicas e sociais as quais o literato foi submetido.

Para mais análise sobre isso, podemos iluminar as nossas reflexões a partir das
conclusões realizadas por Fanon, como, por exemplo, na obra Os Condenados da Terra onde
o autor aborda, apoiado em concepções marxistas, os efeitos destrutivos que os violentos
processos de colonização e, consequentemente, o de descolonização na Argélia e na África
trouxeram para os colonizados. 21 Tratando, inclusive, o supracitado autor, dos danos à saúde
mental desses homens. Ao evidenciar e denunciar a violência acometida na colonização a
partir de um panorama político e histórico, Fanon afirma que se o processo de colonização
teve em suas bases a violência, o de descolonização também precisa ser feita sobre a mesma
via, já que, “[...] a descolonização é sempre um fenômeno violento” 22, entretanto, essa guerra
deixou múltiplas feridas, incluindo as perturbações mentais. “A verdade é que a colonização,

18
BARBOSA, Francisco de Assis. A vida de Lima Barreto. 1881 – 1922. 11 ed. Belo Horizonte: Autêntica
Editora, 2017, p. 338 – 339.
19
CARNEIRO, Sueli. Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil. São Paulo: Selo Negro, 2011.
20
Ibidem
21
FANON, F. Os Condenados da Terra. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1968. p.74
22
Ibidem, p.51.
16

na sua essência, já se apresenta como uma grande provedora dos hospitais psiquiátricos.”23 Ao
negar sistematicamente a humanidade do outro, o regime colonial causa feridas físicas e
mentais, produzidas e reproduzidas pela opressão. 24 Assim, ao realizar um estudo sobre os
doentes argelinos e franceses tratados no hospital psiquiátrico, o autor conclui que “parece-
nos que no caso aqui apresentado, o acontecimento desencadeador é principalmente a
atmosfera sangrenta, cruel, a generalização de práticas desumanas, a impressão pertinaz que
têm os indivíduos de assistirem um verdadeiro apocalipse”.25

Nesse sentindo, ainda que o Lima Barreto tenha um histórico de doenças que
acometeram a sua família – tanto o pai, quanto sua mãe –, essas condições não podem ser
entendidas apenas pela via biológica. O processo de colonização hierarquizou os humanos e
causou danos brutais. O conceito de raça, nesse contexto, foi usado como construção social
que reforçou os preconceitos e o racismo nas relações sociais. As lutas de Lima Barreto não
podem ser entendidas fora dessas bases analíticas, o autor sabia que apesar da sua
intelectualidade, sempre seria visto como um cidadão de segunda e terceira categoria em
razão de suas origens e de sua cor. O racismo limitou a sua cidadania, sua humanidade e
adoeceu o seu corpo e sua mente. Por isso, os escritos de Lima Barreto são sempre
atravessados pelos efeitos negativos e ideológicos dessa prática que inferioriza.

Para guiar nossa análise, é necessário abordar o conceito de raça e de racismo que faz-
nos enfrentar muitos obstáculos metodológicos e teóricos devido as suas pluralidades de
definições. Gabriela dos Reis Sampaio e Marcelo Balaban na introdução de Marcadores da
Diferença já sinalizam a dificuldade de lidar com a noção de raça – tema de todos os trabalhos
apresentados no livro –, afirmando que ela não possuiu sentido único.26 Para isso, os
historiadores defendem que o conceito é um fenômeno histórico, uma experiência que oscila
no tempo, possuindo vários significados, práticas, sentidos, formas e características conforme
as vivências de diferentes indivíduos em variados contextos.27 Racismo, nesse sentido, é
analisado a partir da perspectiva da história social, é refletido em diferentes marcas e
realidades, sendo, também, produtor de desigualdades sociais. Portando, de acordo com
Sampaio e Balaban a violência do racismo praticada no tempo da escravidão foi ressignificada

23
Ibidem, p.287.
24
Ibidem, p. 212.
25
Ibidem, p. 213.
26
SAMPAIO, Gabriela dos Reis; LIMA; Ivana Stolze; BALABAN, Marcelo (orgs.). Marcadores da diferença:
raça e racismo na história do Brasil. Salvador: EDUFBA, 2019.
27
Ibidem, p.8.
17

para as relações sociais e de trabalho de toda a organização da sociedade, não se limitando ao


cativeiro.28 Ou seja, o lugar social dos negros e negras no pós-abolição foi cotidianamente
definido pela cor da pele. O racismo reproduziu as desigualdades, limitou a cidadania e
estabeleceu mecanismos de exclusão em seus múltiplos sentidos e manifestações.

Pensando um pouco mais no conceito de raça, Munanga nos ajuda a ilustrá-lo com as
suas reflexões. De acordo com o autor, raça, em seu sentido moderno, designa classificar as
diversidades humanas e legitimar a dominação dos sujeitos sociais sobre outros. 29 A ideia de
pureza de raça foi importada das definições da botânica e da zoologia que categorizam os
animais e os vegetais segundo as suas espécies. Depois dos séculos XVI e XVII, o conceito de
raça passou a ser usado para classificar os humanos em subgrupos. A cor da pele, os lábios, o
nariz e o tamanho do crânio, e logo depois, no século XX, o sangue se tornaram critérios para
dividir a humanidade em três raças – o branco, o negro e o indígena – , entretanto, o próprio
cruzamento entre a variabilidade humana tornou essas diferenças genéticas insuficientes
cientificamente, pois, mesmo que em menor incidência, um marcador genético de uma raça
pode ser encontrado em outra. Nesse sentido, as diferenças genéticas não são suficientes para
que o conceito seja biológico ou científico. O conceito de raça é, portanto, carregado de
ideologias que determinam as relações de poderes e de dominação.

A hierarquização da humanidade com base nos critérios de raça legitimou a suposta


superioridade de uns sobre os outros, onde o negro foi considerado o mais degenerado, sendo
sujeito a toda categoria de discriminação. O racismo é a consequência dessa ideologia que
determina as relações de poder na sociedade. Munanga salienta que o conceito de racismo é
abordado a partir da hierarquização das raças que possuem “características psicológicas,
morais, intelectuais e estéticas e que se situam numa escala de valores desiguais.”, portanto, o
racismo é a consequência mais severa que a noção de raça gerou, pois, a partir da ideia de
superioridade de uns sobre outros, a moral, a cultura e o intelecto passaram a ser relacionados
e julgados desde características físicas e biológicas. 30

Wlamyra R. de Albuquerque, ao produzir um trabalho que buscou perceber as


articulações entre a questão racial no fim do período de escravidão no Brasil, nos apresenta o
fértil debate iniciado em 1970 sobre o conceito de racialização na historiografia norte-

28
Ibidem, p.10.
29
MUNANGA, Kabengele. Uma abordagem conceitual das noções de raça, racismo, identidade e etnia.
Palestra proferida. 3º ed. 2004.
30
Ibidem 1-17, p.7-8.
18

americana. O propósito dessa investigação se deu quando pesquisadores começaram a refletir


sobre o porquê e sobre como a noção de raça fundamentou o surgimento de hierarquias
sociais nos Estados Unidos. Barbara Fields é um exemplo de pesquisadora, referenciada por
Albuquerque, que conferiu historicidade ao conceito de raça. Para Fields, a noção de raça é
uma criação ideológica e um produto histórico que está sempre em construção em diferentes
contextos sociais. Partido da mesma ideia, a historiadora apresenta-nos as definições de
Robert Miles em Racism and Migrant Labour(1982), onde o autor entende o racismo como
um “processo de significação”, que durante o século XIX construiu um discurso que
reconhecia o negro biologicamente e culturalmente como um ser inferior em comparação a
31
ideia de supremacia branca. Ou seja, a racialização das relações sociais foi justificada a
partir desses discursos e fundamentou de diferentes maneiras o processo emancipacionista no
Brasil, como bem apontado por Albuquerque.

Granda Kilomba também aborda o conceito de racismo e modo como ele viola as
esferas sociais e individuais dos negros e das pessoas de cor ao negá-los o status de sujeitos e
ao negligenciar os seus interesses políticos, individuais e sociais. O racismo, em sua
perspectiva, é construído de forma simultânea a partir de três características: a construção da
diferença, a hierarquização de valores e o poder. A construção da diferença é elaborada em
comparação ao outro que “difere” do grupo entendido como norma. Nesse sentido, salienta-se
que o ponto referencial é a branquidade e o “outro” é construído como “diferente”. A partir
das diferenças, os valores hierárquicos são acionados. Assim, esses valores brancos
naturalizados são aplicados a todos os membros e servem de julgamentos para os estigmas e à
inferioridade. A terceira caraterística abordada pela autora é o poder histórico, político, social
e econômico pertencentes ao grupo dominante. É a combinação das duas características com o
poder que reproduz o racismo e a supremacia branca. O problema do racismo está na
desigualdade, não na diversidade entre as pessoas. 32

Em outro trabalho produzido por Wlamyra Albuquerque temos um exemplo da forma


33
como o racismo pode ser manifestado de diferentes maneiras. A historiadora analisa a
celebração feita pelo Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, no ano de 1955, em

31
MILES, Robert. Racism and Migrant Labour. American Political Science Review, Boston, v. 78, n. 2, p. 542-
543, jun. 1982
32
ALBUQUERQUE, Wlamyra R. O jogo da dissimulação: Abolição e cidadania negra no Brasil. São
Paulo: Companhia das Letras, 2009, p.75-77.
33
Idem. 2019
19

comemoração ao centenário de nascimento do engenheiro Teodoro Sampaio.34 Na


homenagem em questão, Gilberto Freyre produziu um discurso crítico sobre o fato de nenhum
estudioso até o momento ter investigado sobre as enormes contribuições da figura de
Sampaio, grande colaborador da história intelectual brasileira e contribuinte de Euclides da
Cunha na produção da obra Os Sertões.

Durante o discurso, Freyre salientou que Sampaio em sua “eminência parda”35


contribuiu para a elaboração do destacado livro de Euclides da Cunha. Albuquerque destaca
que ao acentuar, mesmo que entre aspas, a condição de pardo de Sampaio, o que Freyre está
ressaltando é a ideia de “representação bem-sucedida da mestiçagem”.36 O fato de Sampaio
não ter sido reconhecido principalmente pela Academia de Letras da Bahia, que recusou o
pedido de torná-lo parte dos autores imortais, rompe com a defesa do autor sobre a
conciliação racial. Segundo a autora, a abordagem de Freyre ao qualificar o engenheiro a
partir de atributos raciais demonstra outro modo pensar a trajetória desse intelectual, visto que
Teodoro Sampaio – sendo filho de liberta com um homem branco –, mesmo tendo
conquistado certo apoio no mundo dos brancos, foi atravessado pelas questões raciais do
contexto em que viveu. O próprio fato de a sua origem ser destacada junto aos seus sucessos,
já reproduz umas das nuances do racismo. Sabendo que, ao mencionar as suas elevações
mestiças, o autor caracteriza a ideia naturalizada de que a intelectualidade é, por si só, branca,
e que, por isso, Sampaio – sendo um mestiço – mereceria esse lugar de destaque. A ironia da
trajetória de Sampaio está no fato de as próprias estruturas de poder escravista e de lógica
paternalista serem os apoios do engenheiro para enfrentar os episódios de “preconceito
social”.37 Ele movimentou-se e traduziu, dessa maneira, as condições raciais ao seu favor e
em prol dos seus objetivos.

Com essas explanações conceituais, podemos iluminar a nossa análise e podemos


pensar como, ao longo do contexto em que estava inserido, o literato Lima Barreto expressou
e lidou com os problemas diretamente ligados ao racismo. Adotaremos, então, a noção do
conceito de racismo a partir da sua carga política e da sua prática ideológica, que inferioriza e
produz atitudes discriminatórias manifestadas de diferentes maneiras. Com isso,
reconhecemos que o racismo deve ser pensado em suas dinâmicas e em variados contextos

34
SAMPAIO, Teodoro. “Eminência parda” e a “cor não luzidia”: negócios da liberdade e racialização no tempo
da abolição. In: SAMPAIO, Gabriela dos Reis; LIMA, Ivana Stolze & BALABAN, Marcelo (orgs.). Marcadores
da diferença: raça e racismo na história do Brasil. Salvador: EDUFBA, 2019.
35
Ibidem, p.126.
36
Ibidem, p.131.
37
Ibidem, p. 136.
20

históricos. O literato através da sua literatura militante, lutou contra práticas limitadas e
limitantes, tanto no campo do individual, quanto no institucional, motivadas por ideologias
que produziam desigualdades e discriminação. Lima Barreto produziu uma substanciosa
crítica através dos seus escritos em combate a estruturação social com base na noção de raça e
na conduta do racismo. Entretanto, a obra que vai nortear o nosso caminho é Clara dos Anjos.
Compilado a ela, abordaremos alguns outros escritos de Lima Barreto como, por exemplo, o
seu Diário Íntimo.

Clara do Anjos é um romance publicado em 1923 depois da precoce morte de Lima


Barreto. O literato não teve tempo de ver essa obra lançada e, talvez, nem tenha tido tempo de
escrever, de fato, o seu o final, considerando que muitos estudiosos de Lima Barreto levantam
a hipótese de que o romance esteja ainda incompleto. Apesar das incertezas dessa hipótese, a
verdade é que o literato se dedicou durante toda a sua vida a produzi-la, a obra é importante
de tal modo, que a mesma personagem compõe várias versões com enredos bem semelhantes.
Se a narrativa de Clara dos Anjos, lançada em formato de livro em 1948, é ou não a
definitiva, nunca saberemos. O que sabemos é que em todas as suas versões anteriores, Lima
Barreto procurou abordar os principais problemas sociais, políticos e culturais do contexto em
que viveu. Trazendo para a literatura a realidade em que viveu, a personagem principal do
romance é uma jovem mulata, moradora do subúrbio carioca. Neta de ex-escravizados, filha
de um carteiro com uma dona de casa, Clara do Anjos viveu durante muito tempo sobre os
intensivos cuidados de seus pais, principalmente de sua mãe, quem tentou, com uma
excessiva proteção, evitar que Clara conhecesse as dores que a sua condição de mulata
poderia lhe causar. Porém, Clara, com a sua inocência de jovem menina, acaba sendo
seduzida, abusada e abandonada por Cassi Jones, um homem branco de má reputação nas
redondezas, que usava de toda a sua lábia – e de alguma habilidade como violeiro – para
seduzir as moças e, em seguida, abandoná-las.

Lima Barreto desde o início de sua carreira já sabia o que buscava: escrever uma
literatura militante, uma expressão do meio em que vivia, uma compreensão do fenômeno
social. É possível pensarmos que Lima Barreto se enquadra em um grupo de literatos,
cronistas e poetas como João do Rio, Coelho Neto, Vagalume, entre outros, que têm em seus
escritos uma fonte importante para compreendermos o período republicano. Assim como
apontou Francisco de Assis Barbosa, “não será possível poder-se à revisão da nossa história
republicana, do 15 de novembro ao primeiro 15 de julho, trabalho que tanto se impõe, sem
21

recorrer aos romances, contos, crônicas e artigos de Lima Barreto.”38 Será entrelaçado aos
testemunhos – principalmente, ao romance Clara dos Anjos, o qual investigaremos – um
pouco do contexto político e social da época e a forma que as questões raciais atravessaram a
sua narrativa.

No primeiro capítulo, abordaremos algumas referências bibliográficas com o objetivo


percorrer um pouco mais da trajetória de Lima Barreto, tentando compreender a sua missão
literária e a sua luta social. No segundo capítulo, a intenção é produzir uma análise sobre a
primeira publicação de Clara dos Anjos. O objetivo é compreendemos um pouco dos espaços
que perpetuaram a voz de Lima Barreto, especialmente, a Revista Souza Cruz e com isso,
analisar as características da escrita do literato. No terceiro capítulo procuramos perceber, a
partir de Clara dos Anjos, o debate político travado pelo autor, principalmente, o modo que as
injustiças e o racismo atravessaram a escrita do romance.

38
BARBORA, Francisco de Assis. Prefácio. In: BARRETO, Lima. Recordações do Escrivão Isaías Caminha.
São Paulo: Editora Brasiliense, 1956, p.9.
22

1. A MISSÃO LITERÁRIA DE AFONSO HENRIQUES DE LIMA BARRETO:


ALGUMAS INTERPRETAÇÕES.

[...] o homem por intermédio da Arte, não fica adstrito aos preceitos e preconceitos
de seu tempo, de seu nascimento, de sua pátria, de sua raça; ele vai além disso, mais
longe que pode, para alcançar a vida total do Universo e incorporar sua vida na sua
do Mundo... Mais do que qualquer outra atividade espiritual de nossa espécie, a
Arte, especialmente a Literatura, a que me dediquei e com que me casei; mais do
que nenhum outro qualquer meio de comunicação entre os homens, em virtude
mesmo do seu poder de contágio, teve, tem e terá um grande destino na nossa triste
humanidade.39

Fanon produz uma importante reflexão sobre a dimensão da linguagem; ele nos diz
que o ato de fala existe para o outro. A linguagem, nesse sentido, é um fenômeno de enorme
potência, possui-la e dominá-la é dispor de racionalidade.40 Limitar o sujeito negro e
estigmatizar a sua linguagem como algo infantil e primitivo é usar das barreiras do
colonialismo para demarcar os acessos que essas pessoas podem ter, é dizer “você aí, fique no
seu lugar!”41. Ou seja, é não reconhecer as suas capacidades intelectuais e racionais. Seguindo
essa ideia, um indivíduo negro que possua capacidades intelectuais é um suspeito, pois,
estaria quebrando com as definições já estabelecidas sobre a sua falta de humanidade,
rompendo com a marca determinada pela sua condição social. Nesse sentido, podemos
entender a afirmação de Lima Barreto ao dizer que “É muito triste não ser branco”, dado que
a racionalidade dos seres de cor, considerados sub-humanos é negada a todo momento, suas
inteligências foram sempre jugadas e desvalorizadas. 42 O negro, em termos de cidadania, teve
os seus direitos políticos, jurídicos e sociais renegados desde a colonização.

Quando um preto fala de Marx, a primeira reação é a seguinte: “Nós vos educamos e
agora vocês se voltam contra seus benfeitores. Ingratos! Decididamente, não se pode
esperar nada de vocês”. E depois há ainda este argumento-porrete do empresário
agrícola europeu na África: “Nosso inimigo é o professor”. 43

Lima Barreto, portanto, usou toda a sua lucidez para denunciar as derivas políticas e
ideológicas do estado, os efeitos negativos da política de embranquecimento e a negação da
humanidade ao negro. Contudo, não devemos deixar de mencionar que o literato faz parte de
um violento processo de desumanização iniciado durante o período de colonização. O
trabalho realizado por Marcus Rediker é esclarecedor sobre essa questão. 44

39
BARRETO, Lima. Impressões de Leitura. São Paulo: Editora Brasiliense, 1956, p. 66.
40
FANON. Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Bahia: Editora EDUFBA, 2008, p.46.
41
Ibidem.
42
BARRETO, Lima. Lima Barreto: obra reunida, volume 2, 1 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2018, p.24.
43
Ibidem, p.48.
44
REDIKER, Marcus. O navio negreiro: uma história humana. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
23

Ao tentar desnudar a narrativa do “mais grandioso drama dos últimos mil anos da
história da humanidade: a transferência de 10 milhões de seres humanos da beleza negra de
seu continente natal para o recém-descoberto Eldorado do Ocidente. Eles desceram ao
inferno”.45, ou seja, a citação remete à terrível história do transporte de pessoas traficadas
através do Oceano Atlântico pelos navios negreiros. Apresentando esse contexto denso a
partir de relatos de pessoas que estiveram nesses ambientes, o historiador quebra com o
silêncio da historiografia sobre o tema. O medo, o horror, o terror, a violência e a crueldade
estavam presentes nos relatos desses viajantes. Não só dos negros escravizados, mas de todas
as pessoas que fizeram parte do cotidiano desse drama. Apesar do horror narrado pelos
testemunhos, Rediker chama a nossa atenção para o enorme encargo que a transferência dessa
população pelo Atlântico foi responsável: a ascensão do capitalismo e do mundo moderno.

Ao abordar o drama entre os cativos, o historiador aponta a importâncias dos laços e


relações que eles construíram entre si, o que contribuiu para a sobrevivência de muitos. De
acordo com Rediker, “sua criatividade e capacidade de resistência os tornaram indestrutíveis,
em termos coletivos, e nesse ponto reside o capítulo mais glorioso de todo o período”.46 Nesse
sentido, a comunicação através de expressões corporais, danças, gritos, cantos, percussão e
narrativas contribuiu para o surgimento de uma língua universal, uma identidade de grupo. As
inúmeras formas de resistir e lutar dos cativos lançaram para o mundo moderno os pilares da
democracia política. A consciência de justiça, liberdade, dignidade e igualdade desses
escravizados foram expressas e ressignificadas através das armas de luta que possuíam, como,
por exemplo, as greves de fome e o suicido.

O “navio fantasma”, para usar a expressão do próprio historiador, produziu o conceito


de raça, alterando as relações sociais, formando as classes e hierarquizando as pessoas como
superiores e inferiores. “Os números podem encobrir a tortura generalizada e o terror, mas as
sociedades europeia, africana e americana ainda lidam com suas consequências, os múltiplos
legados de raça, classe e escravidão” Assim como já foi dito anteriormente, as lutas das
pessoas inferiorizadas começaram desde a partida forçada da África, e os seus meios, os
mecanismos e as armas foram se diferenciando ao logo do tempo.47 A literatura militante feita
por Lima Barreto durante o período republicano é um desses mecanismos de resistência e de
luta.

45
Ibidem, p. 12.
46
Ibidem, p.16.
47
Ibidem, p. 21.
24

As reflexões feitas por Lima Barreto não apontam somente para a institucionalização
dos processos que transformou o negro em um “outro” obrigado a viver às margens, o literato
também analisou as especificidades das hierarquizações da cidadania no Brasil e, sobretudo,
os impactos negativos gerados aos negros, principalmente, os que foram justificados
analiticamente pela longa duração de sua vida em cativeiro, tirando qualquer possibilidade de
humanidade para essas pessoas. Na onda das ideias de Fanon, podemos entender a missão
literária de Lima Barreto como uma potência que rompeu com as estruturas coloniais, que
quebrou as correntes e que se livrou das mordaças que o silenciavam.

Abordando sobre o perfil e a vida do literato Lima Barreto, os trabalhos


desenvolvidos por Denílson Botelho nos permitem percorrer um pouco mais da trajetória do
autor. O trabalho intitulado A pátria que quisera ter era um mito tem como intenção construir
um perfil político detalhado das ideias de Lima Barreto.48 Utilizando-se de artigos e crônicas
publicados na imprensa, Botelho acompanhou a trajetória individual do literato, discorrendo
sobre as suas reflexões políticas e sociais, além de apresentar, partindo das concepções
defendidas pela “micro-história”, o que esse perfil pôde oferecer para a compreensão da
história do período. Ou seja, reconstruindo o contexto republicano a partir da análise de uma
situação individual, nesse caso, a trajetória e o perfil político do literato Lima Barreto.

Botelho aponta que nas produções de Lima Barreto é inegável a existência de um certo
conteúdo com referências diretas e indiretas, objetivas e subjetivas sobre os acontecimentos
políticos da época. As leituras desses acontecimentos aparecem em meio aos textos ficcionais
ou não-ficcionais produzidos durante toda sua vida. 49 Por isso, Botelho defende a existência
de um projeto político de nação nas obras de Lima Barreto. Mesmo que elaborado a partir das
condições sociais as quais estava submetido e mesmo que tivesse profundo desgosto com a
então nova ordem instalada no Brasil, o literato projetou a construção e a condução do
Estado-Nação em seus escritos, assim como apontou Sevcenko, com quem concordou
Botelho. Ou seja, o trabalho de Botelho pretendeu “localizar o Brasil desejado pelo escritor”,
apontando as reflexões cotidianas de Lima Barreto e com elas, compreendendo o painel de
suas ideias. 50

48
BOTELHO, Denílson. A pátria que quisera ter era um mito”: uma introdução ao pensamento político de
Lima Barreto. Dissertação (Mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas, 1996.
49
Ibidem.
50
Ibidem, p.9.
25

Apresentando um resumo da biografia de Lima Barreto, Botelho aponta a intimidade


que o literato tinha com o subúrbio carioca. Era um “boêmio andarilho” que circulava por
esses espaços com bastante familiaridade e intimidade com os moradores e com as ruas
daquele lugar. Isso lhe rendeu “uma visão de mundo singular”, transformando algumas dessas
pessoas em seus personagens.51 A miséria e a exclusão dessa região provocada pelo poder
público aparecem por toda a sua narrativa. Como afirma Botelho, o desafio de Lima Barreto
“era tentar compreender e explicar a miséria e o infortúnio do povo brasileiro”52, e foi através
da literatura que Lima Barreto escolheu lutar contra esse mundo de injustiças e de brutais
desigualdades. Partindo de um projeto maximalista, o literato defendia uma revolução no
Brasil capaz de tirar o poder das mãos das elites. Apesar disso, Botelho nos alerta que o autor
tinha um modo de pensar próprio e independente, o maximalismo seria apenas um caminho
para lutar contra a desigualdade social. A mudança deveria ser social e não somente política.

Como escritor independente, o literato via que a sua missão era contribuir através dos
seus escritos para “uma ligação harmônica entre os homens”.53 A literatura seria o caminho
para a união, para a harmonia, à fraternidade e à solidariedade entre os homens. Lima Barreto
desejava uma sociedade igualitária e julgava a prática do autoritarismo como prejudicial na
busca por essa igualdade. O autoritarismo não era um mal pertencente somente ao contexto
brasileiro, mas também, ao internacional. Assim como afirma Botelho, de acordo com o
literato, a Alemanha e os Estados Unidos do pós-guerra de 1914 eram os principais
responsáveis por essa “mania organizadora” cheia de regulamentos e leis. 54 Outra crítica feita
pelo autor e apresentada por Botelho é sobre o patriotismo exacerbado existente no Brasil.
Nesse sentido, Lima Barreto vê esse sentimento patriótico acentuado como “uma ideia
religiosa e de religião que morreu”, que coloca em guerras combatentes que não sabem nem o
real motivo de estarem em luta.55

Botelho também nos apresenta nesse trabalho suas reflexões sobre Lima Barreto ser ou
não um monarquista. Entretanto, o historiador nos esclarece dizendo que apesar de o autor de
Clara dos Anjos ser contra a República, isso não lhe tornou um monarquista, o que foi negado
inclusive por ele mesmo. As severas críticas ao regime republicano se deram pelo fato de o
literato não concordar com as políticas instaladas pelas elites que ocupavam o poder, onde a

51
Ibidem, p. 35 -36.
52
Ibidem, p. 37.
53
Ibidem, p. 50.
54
Ibidem, p. 59-60.
55
Ibidem, p. 63.
26

maior parte da população foi lançada à miséria e o sentimento de solidariedade entre os


homens foi esquecido pelos dirigentes desse regime.

Em outro trabalho desenvolvido por Denílson Botelho como requisito para a


conclusão do seu doutoramento em 2001, o autor se propôs analisar a trajetória intelectual de
Lima Barreto, sua produção e as redes com as quais dialogou, traçando assim o seu perfil e a
sua militância político-literária. O objetivo dessa análise foi compreender como a carreira
literária de Lima Barreto estava diretamente associada com as suas ideias políticas da época,
ou seja, como o autor usou de uma literatura de forma engajada. Através disso, Botelho se
propôs compreender como o autor pode ser situado politicamente no contexto histórico do
século XX. A pergunta que norteou o trabalho do historiador foi: “Afinal, por que estudar
Lima Barreto?”56, pensando através das reflexões feitas por Marc Bloch sobre ir em busca de
compreender o passado pelas questões do presente, o autor citado procurou no testemunho de
Lima Barreto o guia para passear no tempo dos primeiros anos republicanos, chamando a
atenção para o engajamento político que realizou através da sua missão literária, afirmando e
reforçando a indissociabilidade da obra do escritor com um projeto político complexo, que vai
muito além do liberalismo e do ecletismo, e que não pode ser entendido apenas pela sua
aproximação com as ideias anarquistas.57

Um importante marco na carreira político-literária de Lima Barreto foi a criação da


revista Floreal em 1907. Mesmo que a vendagem tenha sido pequena, esse início como
escritor e editor de uma revista própria foi essencial para que começasse a ser mais notado no
meio literário, até mesmo por José Veríssimo, que na época era um respeitável crítico. De
acordo com Botelho, a revista representou “um grito e um desabafo de quem quer escrever e
não encontra espaço”.58 Lima Barreto sempre encontrou dificuldade em publicar e editar seus
trabalhos, tanto é que o seu primeiro romance foi editado fora do Brasil por intermédio do seu
amigo Antônio Noronha Santos, quem levou uma carta e os originas do livro Recordações do
escrivão Isaías Caminha para ser editado em Lisboa, em 1909. Nesse sentido, Denílson

56
BOTELHO, Denílson. A pátria que quisera ter era um mito”: uma introdução ao pensamento político de
Lima Barreto. Dissertação (Mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas, 1996.
57
“Meu objetivo é demostrar que o tão citado “projeto político-literário” de Lima Barreto é mais complexo do
que apontam alguns autores que procurei apresentar brevemente até aqui. A militância política deste escritor não
pode ser entendida somente através da simpatia pelas ideias anarquistas, como quis Francisco de Assis Barbosa,
ou pelos parâmetros do liberalismo reformista que Sevcenko lhe atribuiu, ou ainda pelo ecletismo com que
Arnoni Prado diagnosticou seu ideário político.” In: BOTELHO, Denílson. Letras militantes: história, política e
literatura em Lima Barreto, op. cit. p.32.
58
op. cit. p. 37.
27

Botelho conclui que não somente através dos jornais, como em toda produção literária e por
meio da sua rede de interlocutores, Lima Barreto se ocupou da missão de lutar pela cidadania
das camadas mais baixas da população, os excluídos pelos dirigentes: “Sua obra é impregnada
por esse objetivo de instrumentalizar, no plano das ideias e pela palavra escrita, um povo
desde sempre excluído social e politicamente. A Floreal é apenas o primeiro passo dessa
trajetória.”59 Outro marco foi a edição do seu primeiro romance que incomodando muita gente
de forma proposital. Então, podemos dizer que Lima Barreto sempre soube o que pretendia e
a sua literatura foi o caminho encontrado para expôs suas ideias e lidar com os problemas da
sociedade em que vivia. Por isso, Botelho nos diz que as suas ideias políticas não podem ser
entendidas fora da sua concepção do que seria a literatura. Para o literato, a sua escrita era
composta de uma função social.

Antônio Cândido também abordou o teor de literatura como missão social


desenvolvida por Lima Barreto. 60 Segundo o autor, para Lima Barreto a literatura deveria ser
capaz de transmitir as ideias, de abordar os problemas humanos e de “contribuir para libertar
o homem e melhorar a sua convivência.”61 Deveria ser sincera e capaz de passar as ideias e os
sentimentos do autor. Nesse sentido, Candido nos diz que Lima Barreto fundiu, em sua escrita
empenhada, os problemas sociais e pessoais, “preferindo os que são ao mesmo tempo, uma
coisa e outra”62, como, por exemplo, a pobreza e o preconceito. O autor critica a realização de
uma obra ficcionista feita pelo literato, dizendo que os seus romances às vezes foram pouco
elaborados ficcionalmente, afirmando que escritos de Lima Barreto são testemunhos e
reflexões “de cunho individual ou intuito social – como se o fato e a elaboração não fossem de
todo distintos para quem a literatura era uma espécie de paixão e dever; e até uma forma de
existência pela qual sacrificou outras.”63 Nesse sentido, Candido salienta que o literato
canalizou a sua vida pela literatura, configurando a sua militância social, a sua participação na
sociedade. Por isso, sua obra tem um tom de autobiografia e “é uma expansão íntima e, ao
mesmo tempo, uma análise metafórica da sociedade brasileira”, ou seja, Lima Barreto fez das
suas mágoas e das suas críticas a sua arte e luta social. 64

59
Ibidem, p. 58.
60
CANDIDO, Antônio. “Os olhos, a barca e o espelho”. In: CANDIDO, Antônio. A educação pela noite e
outros ensaios. SP: Ática, 1987.
61
Ibidem, p. 39.
62
Ibidem, p. 39.
63
Ibidem, p. 40.
64
Ibidem p. 45.
28

Essas “questões particulares” exposta com “espírito geral” exprimem o ritmo


profundo da escrita de Lima Barreto, a sua passagem constante da particularidade
individual para a generalidade da elaboração romanesca (e vice-versa), que importa
numa espécie de concepção do homem e do mundo, a partir de um modo singular de
ver e sentir. Daí o interesse de tudo aquilo que, na sua obra, pode ser chamado
literatura íntima: diários, correspondências, até os desabafos frequentes dos escritos
de circunstância. 65

Magali Gouveia Engel, apresenta-nos alguns dos combates que o autor realizou por
meio da sua literatura, principalmente os referentes ao “apagamento das memórias de lutas
dos escravizados pela liberdade” e os que relatam a visão que inferiorizava os negros, assim
como fez na crônica “Meia página de Renan” de 3 de julho de 1919. 66 Nesse escrito, Lima
Barreto se opôs à visão de Ernest Renan que afirma serem os “negros” e os “chineses”
pertencentes a raças inferiores.67 Nesse sentindo, o literato contestou a afirmação de Renan,
argumentando que o filósofo nada sabia sobre os negros, já que as rebeliões do Haiti, o papel
de Louverture e a própria realidade do Brasil não foram mencionados por Renan e facilmente
desmentiriam essa concepção. Visto que, mesmo sobre o regime de escravização, os negros
nunca aceitaram a condição de inferioridade imposta e “revoltaram-se
constantemente”.68Através dessa passagem, Magali Gouveia Engel salienta o domínio e os
conhecimentos teóricos, filosóficos e históricos do literato nos debates sobre raça, tanto no
campo intelectual como no científico. Ou seja, Lima Barreto sustentou os seus argumentos a
partir de um saber histórico “mais consistente das realidades escravistas latino-americanas –
porque produzido a partir da articulação entre saberes e experiências.” 69 E é através dessa
literatura que vai procurar lutar contra essa realidade de injustiças.
A escrita de Lima Barreto, em seu conjunto, busca desvendar as memórias que,
inscritas nas ruas, nas praças, nos bairros, na arquitetura da cidade, revelaram não
apenas as marcas da exploração, da dominação, das discriminações, enfim das
profundas desigualdades do passado e do presente da sociedade brasileira, mas
também as histórias daqueles que lutaram e continuavam lutando para transformar
essa realidade opressa e injusta.70

O objetivo de Engel é demonstrar como Lima Barreto, se reconhecendo como mulato,


foi alvo de discriminação racial e social na sociedade brasileira e de que modo o literato

65
Ibidem, p. 49.
66
ENGEL, Magali Gouveia. “Lima Barreto: dilemas e embates de um intelectual mulato na República dos
Bruzundangas”. In: CHALHOUB, Sidney e PINTO, Ana Flávia Magalhães (orgs.). Pensadores negros,
pensadoras negras. Brasil, séculos XIX e XX.1a ed. Cruz das Almas/Belo Horizonte : EDUFRB/Ed. Fino Traço,
2016, v.11, p. 165-189.
67
Ibidem, p. 166,
68
Ibidem, p. 167.
69
Ibidem, p. 167.
70
Ibidem, p. 168.
29

registrou essas experiências, fazendo referência à questão racial de diferentes formas nas suas
narrativas. A autora conclui dizendo que mesmo em meio as possíveis ambiguidades e
contradições, Lima Barreto procurou valorizar em seus escritos a característica miscigenada
da identidade brasileira. O literato usou de argumentos do próprio campo científico para
combater o racismo e as teorias evolucionistas. Isto é, construiu a sua crítica a partir da
intimidade que tinha com as correntes sobre as teorias raciais, dizendo que “a raça é uma
abstração, uma criação logica, cujo fim é fazer o inventário da natureza viva, dos homens, dos
animais, das plantas e que, saindo do campo da história natural, não tem mais razão de ser”.71
Ou seja, denunciando o racimo como uma construção social criada para inferiorizar a raça
negra, não como algo naturalmente e biologicamente determinado. Portanto, Magali Gouveia
Engel defende que Lima Barreto é um homem do seu tempo, e que, contrariamente ao que
aprendemos durante um logo período na historiografia, silenciando essas diferentes vozes, o
literato reivindicou o seu lugar e combateu o racismo científico que inferiorizava as raças
dentro de uma sociedade racialmente miscigenada.

Um tempo, portanto, em que ecoaram muitas vozes, que – como a do grande escritor
e intelectual brasileiro – munidas, muitas vezes, com as armas dos próprios
adversários, se empenharam em construir interpretações da realidade mestiça a qual
pertenciam, que confrontavam as pseudo-verdades propagadas por “trapalhões
antropólogos e etnográficos. 72

Em outro trabalho desenvolvido por Magali Engel, a historiadora se propõe a


desenvolver uma reflexão a partir das narrativas dos intelectuais que circulavam no Rio de
Janeiro durante a Primeira República, os quais abordavam, em sua literatura, muitos dos
problemas dos cotidianos dos habitantes cariocas. 73 Segundo ela, esse espaço privilegiado de
debates de ideias e projetos possibilitou uma análise sobre as visões desses intelectuais com
relação às questões habitacionais, o foco escolhido pela autora nesse artigo. O problema de
moradia no Rio de Janeiro aumentou durante o período republicano, as chamadas reformas
urbanas interviram nos espaços da cidade com a justificativa da busca da modernização e isso
teve como consequência o agravamento das condições de moradia dos pobres e dos
trabalhadores. A investigação da historiadora parte da hipótese de que em diferentes
compreensões e dimensões sobre o social, os intelectuais – Lima Barreto, Olavo Bilac,

71
Ibidem, p. 176.
72
Ibidem, p. 183.
73
M. G. ; CORREA, M. L. (Org.) ; SANTOS, R. A. (Org.) . Os intelectuais e a cidade (séculos XIX e XX). 1a.
ed. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2012.
30

Coelho Neto e João do Rio –, atuaram e interviram nesse espaço, articulando projetos e ideias
através de seus escritos.

Ao abordar a atuação do Lima Barreto, Engel salienta que o literato fez da sua
literatura um instrumento de transformação social. Foi através dela que ele denunciou as
desigualdades raciais, sociais e os problemas da administração arbitrária do governo
republicano. Ou seja, o teor crítico e denunciativo da literatura feita por Lima Barreto está
presente em toda a sua trajetória de intelectual, acrescido de um tom provocativo e sarcástico.
74
Nesse sentido, o autor de Clara dos Anjos fez da sua pena um instrumento de militância. 75
Sobre as reformas habitacionais e o “aperfeiçoamento” da cidade, Lima Barreto foi bastante
crítico. O autor publicou na impressa várias crônicas denunciando a atitude da administração
governamental. Segundo ele, os serviços realizados pelo poder público não consideraram a
condição de cidadãos, dos mais humildes e dos moradores dos morros e dos subúrbios do Rio
de Janeiro, os principais atingidos por essas reformas. O literato denunciava também os
interesses dessas obras, que na maioria das vezes, favorecia a especulação imobiliária dos
bairros da Zona Sul, enquanto nos subúrbios havia uma total ausência de políticas públicas
que atendessem e melhorassem as demandas daquelas áreas. Portanto, ao abordar as
diferentes visões e intervenções feitas pelos intelectuais através de suas narrativas dentro e
fora do campo intelectual, a historiadora conclui dizendo que “para Lima Barreto, tais ações
eram, em sua própria essência, excludentes e, enquanto tais, politicamente condenadas e
denunciadas pela sua pena militante.”76

O literato usou da sua arma de escrita para combater as desigualdades, compromissado


com as questões da realidade republicana, a sua literatura comprometida debateu e denunciou
os conflitos e injustiças do seu tempo, principalmente, os de cunho raciais. Sobre essa
temática, temos o trabalho feito por Leonardo Affonso de Miranda Pereira onde é
desenvolvida uma análise através do romance Recordações do Escrivão Isaías Caminha a
respeito da abordagem da temática racial feita por Lima Barreto nessa obra. De acordo com o
historiador, Lima Barreto foi um intelectual que produziu um testemunho ao avesso da
modernidade da Belle Époque. Sua literatura foi acusada de ter um sentido biográfico,
principalmente o romance Recordações do Escrivão Isaías Caminha, recebido por alguns
como um simples “panfleto de ataque”. Nesse sentido,

74
ENGEL, M. G.; CORRÊA, M. L.; SANTOS, R. A. (Org.). Os intelectuais e a cidade (séculos XIX e XX). 1a.
ed. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2012, p. 117.
75
Ibidem, p. 118.
76
Ibidem, p. 143.
31

Definia-se assim, para Lima Barreto, a imagem de um escritor cuja biografia servia
de base para a definição de sua ligação orgânica com interesses das camadas
iletradas da capital federal (fato supostamente comprovado tanto pelo fato de que
residisse nos subúrbios quanto por sua origem mestiça). 77

Leonardo Pereira salienta que apesar das evidências do teor autobiográfico de suas
obras, os seus romances não podem ser reduzidos a essa categoria de análise, o que “acaba
por obscurecer a possibilidade de que venhamos a compreender, em sua complexidade, o tipo
de testemunho produzido pelo escritor”, isto é, diminuindo o sentido da sua escrita militante
para apenas um relato pessoal e autobiográfico. É necessário entender o sentido de seus
escritos de forma mais complexa, acompanhando a forma que se construiu e se apresentou ao
mundo das letras, compreendendo os diálogos, as redes de interlocuções e o debate que o
literato se inseriu.

Analisando a narrativa do romance, Leonardo Pereira apresenta o modo como o


literato recorreu à obra fictícia para abordar as questões da realidade social, como, por
exemplo, as ligadas à discriminação racial. As sucessivas decepções do personagem Isaías
evidenciam as prerrogativas dos privilégios garantidos aos brancos e os obstáculos impostos
aos negros e mestiços. Já que mesmo embasado nos discursos liberais dos ideólogos das
modernidades, onde o esforço e o saber levariam o homem ao futuro grandioso, em que o
“poder da vontade” possibilitaria a Isaías a tão sonhada “consideração de toda gente”, ainda
assim, o personagem foi condenado pelo pecado original de sua cor. Nesse sentido, tentando
superar as marcas impostas ao seu corpo desde o seu nascimento, Isaías acreditou que as
conquistas intelectuais anulariam essa origem de inferiorizado. Seria por meio do saber e da
erudição que ultrapassaria os limites impostos pela sociedade. Porém, o sonho foi uma ilusão
e Isaias evidenciou a fragilidade dos seus planos e de suas visões de mundo. Portanto, através
dessa análise, Leonardo Pereira apresenta distância da imagem projetada e da realidade vivida
do personagem da história.78

O limite racial foi a temática debatida por Lima Barreto nessa obra, além das questões
sobre os problemas do jornalismo e da imprensa. Todavia, o historiador evidencia a denúncia
feita pelo literato através de sua narrativa com relação ao racismo e o preconceito de classe.
Dado que, mesmo usando da lógica liberal para encontrar o caminho do sucesso, o esforço
não bastava já que as barreiras sociais impostas aos negros e mestiços atrapalhavam os sonhos
de ascensão. Lima Barreto proporcionou com esse romance uma tomada de consciência da

77
Ibidem, p. 176.
78
Ibidem, p. 187.
32

condição racial e social que inferiorizavam os homens de cor no período republicano. Ao


propor tal reflexão, Lima Barreto o faz com as aramas que dominava: a literatura, ou, mais
precisamente, a narrativa ficcional. É por meio dos protocolos narrativos próprios ao romance,
gênero já consagrado, que o literato estruturaria sua reflexão.79

No artigo “Literatura e Militância na Belle Époque – o caso de Lima Barreto” a autora


Lúcia Maria de Assis examina o significado da literatura militante de Lima Barreto. A autora
salienta que para Lima Barreto a literatura teve um papel social, denunciando e combatendo
as injustiças.80 Foi através dela que o autor de Clara dos Anjos se manifestou, traduzindo as
questões e os problemas do meio onde vivia. Lúcia Maria de Assis, entretanto, chama atenção
para o fato de a literatura não ser acessível a todos no contexto republicano. “Na verdade, ela
contribuía para separar as pessoas entre os que compreendiam e os que nem liam”, ou seja,
um espaço de poder da classe dominante que tinha acesso à escola. Nesse sentido, era a elite
quem decidia o que deveria ser lido, o que justifica o fracasso de muitos escritores que
lutavam contra esse domínio. Já que, nessa perspectiva, só seria consumido o que agradasse
os dominantes. O próprio Lima Barreto foi levado ao isolamento por conta de seu modo de
fazer literatura. Para ele, a modalidade linguística empregada na criação literária deveria ser
aquela falada pelo povo, a língua do povo, que o povo entende. Por isso, por muitas vezes a
sua obra foi acusada de desleixada, porém, na verdade, foi o próprio literato quem escolheu
desenvolver sua escrita de forma mais adequada com a linguagem popular. Considerando que,
histórica e culturalmente, a literatura é também o direito à voz, o que defendia Lima Barreto
era a voz da população menos favorecia que deveria ser considerada cidadã como qualquer
outra.81

A autora frisa o traço de oralidade expresso em muitos dos escritos de Lima Barreto,
visto que o uso da “linguagem que lhes falasse de perto” tornaria a leitura mais próxima.
Defendendo uma literatura mais aproximada da linguagem do povo, o literato acreditava que
esse era o passaporte para a cidadania. Desse modo, construiu na sua arte o desejo de intervir
no social, denunciando e combatendo as mazelas.

A literatura militante impõe uma tomada de posição entre os agentes em ação


(escritor, intelectual, político etc.), definindo-se estes a favor ou contra determinada

79
Ibidem, p. 194.
80
DE ASSIS, Lúcia Maria. Literatura e militância na belle époque–o caso de Lima Barreto. Anthesis, v. 6,
n. 11, p. 116-135, 2018, p. 117.
81
Ibidem, p. 129-130.
33

situação. Além disso, pressupõe a condição indisfarçável de confronto que move


esses agentes nos diversos campos existentes. 82

Lima Barreto se impôs através da sua escrita, defendeu e discutiu sobre as mais
diversas questões sociais e enxergou na literatura a capacidade de conceber a solidariedade
humana.

Para Lima Barreto, militante é a literatura que tem escopo sociológico e sua função
não se limita à diversão; ao contrário, visa despertar no leitor a consciência para os
problemas sociais, políticos e morais que o circundam, dando-lhe uma melhor
compreensão de si mesmo e de sua sociedade.83

Para finalizarmos essas exposições sobre a missão literária de Lima Barreto, trazemos
para a análise as reflexões feita por Nicolau Sevcenko em seu conhecidíssimo trabalho A
literatura como missão. Analisando as obras de Lima Barreto e Euclides da Cunha, apesar de
pertencerem a gerações diferentes e de terem posicionamentos distintos, Sevcenko afirma que
a produção literária de ambos possibilita uma visão sobre o contexto histórico. Dizendo que

Realmente, poucos índices podem proporcionar uma visão tão transparente dos
principais campos de tensões históricas que marcaram o período sob estudo, quanto
um cotejamento crítico entre as obras de Euclides da Cunha e Lima Barreto.
Definindo as perspectivas fundamentais que se colocaram aos agentes e pacientes
dos processos de mudanças então em curso, esses escritores opõem-se num choque
radical, envolvendo a totalidade das suas obras.84

Ainda que opostos, suas obras possibilitam considerações cruciais sobre as tensões
“presentes no interior do mundo social da Primeira República”.85 Os dois autores
impulsionaram em suas narrativas questões do período, como, por exemplo, a crítica ao
cosmopolitismo, visto que eram contra essa prática da burguesia brasileira de assimilação
direta com a Europa. De acordo com Sevcenko, para os autores somente a originalidade
possibilitaria ao país ser equiparado aos outros países, acreditando que o olhar deveria ser
mais voltado para o interior do Brasil e não para fora dele. Ou seja, mesmo que em
antagonismo, os temas como: raça, civilização e ciência, estavam presente na produção
literária tanto de Euclides da Cunha como de Lima Barreto.

O autor de Clara dos Anjos ao contrário de Euclides da Cunha desaprovou as


concepções cientificas sobre as teorias raciais, dizendo ser uma fonte de “preconceitos e

82
Ibidem, p. 131.
83
Ibidem, p. 132.
84
SEVCENKO, Nicolau. Literatura como Missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República.
São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 120.
85
Ibidem, p. 120.
34

superstições”.86 De acordo com Sevcenko, sendo ele mulato e vivendo e convivendo no


subúrbio carioca, os usos feitos sobre o conceito de raça pela ciência não poderiam ser
ignorados por Lima Barreto. A legitimação da inferioridade da raça negra foi questionada
durante toda a produção do literato. O racismo como consequência desse processo foi
denunciado por Lima Barreto em suas narrativas, Clara dos Anjos é uma de suas denúncias.
Nesse sentido, Sevcenko salientou que as obras desses dois autores, estudados por ele,
possibilitaram “um perfeito paralelismo assinalado por um mesmo empenho de debate,
análise e combate de questões que, para ambos, resumiam os significados mais essenciais do
período histórico em que viviam.”87, ou seja, faziam de sua escrita um debate sobre os
problemas sociais dos seus tempos, respondendo através da literatura e se dedicando a missão
de fazer dos seus escritos “um instrumento e fim da sua ação, tolhidos mesmo pelos seus
reduzidos limites”.88

86
Ibidem, p. 123.
87
Ibidem, p. 126.
88
Ibidem, p. 128.
35

2. A REVISTA SOUZA CRUZ: O LANÇAMENTO DE CLARA DOS ANJOS.

O último número da “Revista Souza Cruz” prossegue na publicação brilhante do


romance inédito de Lima Barreto, o saudoso e profundo analista dos nossos
sentimentos e costumes. “A Clara dos Anjos” que é este o título do livro que o
público vem acompanhado com interesses não pequenos, ocupa menos condições as
páginas de mais valor de edição que ora circula.89

Era ano de 1923 quando o romance Clara dos Anjos foi publicado pela Revista Souza
Cruz, na cidade do Rio de Janeiro. O “inédito” romance, como foi divulgado na época, foi
escrito por Afonso Henriques de Lima Barreto. A primeira versão dessa narrativa em formato
de conto apareceu em Diário Íntimo, no ano de 1904, entretanto, desde 1903 Lima Barreto já
registrava entre as suas íntimas palavras as ideias desse projeto. 90

Clara dos Anjos, mulher mulata, 23 anos. Tenente Frutuoso, do Exército, positivista
etc., noivo de Carlota de Sá Bandeira.
Guedes (Camilo da Costa), português, interessado; mais tarde, enriquece, parte para
Europa, onde fica, doando alguma coisa à Clara, sua amiga, com quem tem uma
filha (visconde mais tarde de qualquer coisa)
A gente Sá Bandeira, família de pequeno emprego, da relação de Clara, que quem o
pai era padrinho. 91

Lima Barreto não conseguiu ver essa obra publicada, nem em livro, nem impressa nas
páginas da revista, mas o autor costumava publicar seus escritos em formatos reduzidos para
serem avaliados e, somente assim, examinava a possibilidade de render um livro.92
Possivelmente essa tenha sido uma das maiores sacadas de Lima Barreto, enquanto sujeito
negro literato que trazia em sua narrativa as denúncias das derivas do Estado: o autor
caminhava na contramão a um grupo de escritores que buscava traduzir a realidade brasileira
nos moldes europeus, ele tematizava a realidade vivida e os problemas dessa sociedade. Ter
feitos essas escolhas acarretou ao autor encontrar diversas dificuldades e limites para publicar
suas obras. Por isso, se pode pensar que, enquanto ele sabia muito bem que o fato de não ser
branco e de abordar certos temas políticos e ideológicos lhe causavam certos impedimentos, a
escolha por publicações em formato de contos implicaria em uma análise menos sofisticada.
Ao fazer isso, o autor aponta de forma sutil a falta e os limites da sua liberdade. Não só Lima
Barreto como muitos outros literatos e pensadores, que tiveram seus projetos individuais
impactados pelos limites impostos pelas suas origens, desenvolveram estratégias, alianças e
modos de fazer parte do debate público, da construção e da reflexão da sociedade, como bem
89
“Revista Souza Cruz”. A Noite, 06 de abril de 1923, p.3
90
BARRETO, Lima. Lima Barreto: obra reunida, volume 2, 1 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2018, p.614.
91
Ibidem, p. 474 – 475.
92
Ibidem, p.406.
36

93
salientou Ana Flávia Magalhães Pinto . Partindo dessa ideia, podemos entender o fato de
parte de Clara dos Anjos ter aparecido como um conto em Histórias e Sonhos, livro publicado
em dezembro de 1920.

A Revista Souza Cruz dividiu Clara dos Anjos em dezesseis partes, com a primeira
publicação em fevereiro de 1923 e a última na edição de maio de 1924. A recepção do
romance foi bastante elogiada em diversos jornais e revistas da época. Como exemplo temos o
jornal O Brasil, de 1923, que, na coluna “Publicações”, enaltece a obra e a iniciativa da
revista em trazer Clara dos Anjos entre suas páginas, dizendo ser:
[...] farta colaboração, como sempre, bem selecionada, há a salientar-se, entre outros
trabalhos de destaque, que a “Revista Souza Cruz” inicia, de Lima Barreto, o
saudoso escritor patrício, de tanto mérito, a publicação, inédita, de seu romance
Clara dos Anjos. E só isto vale pelo melhor elogio.94

Na capa da edição de fevereiro do ano de 1923, número 74, o anúncio da publicação


da obra Clara dos Anjos aparece em destaque. “O romance inédito de Lima Barreto”, é esse o
aviso e a grande novidade que iria compor a revista durante algumas edições (FIGURA 1).

Figura 1– Capa da Revista Souza Cruz (1923)

Revista Souza Cruz, fevereiro, 1923, p.1.

93
PINTO, Ana Flávia Magalhães. Escritos De Liberdade. Campinas: Editora Unicamp, 2018, p. 376
94
“Publicações”. O Brasil, 21 de fevereiro de 1923, p.5.
37

A Revista Souza Cruz, de acordo com uma publicação feita no jornal A Noite, de 1923,
é a “primeira em seu gênero, a de maior circulação no país, e aquela mais entretida, na
divulgação dos escritores da jovem literatura”, “[...] as páginas de mais valor de edição que
ora circula”.95 Criada por Albino Souza Cruz, a revista surge na cidade do Rio de Janeiro no
ano de 1916 e veicula até 1935. O objetivo do periódico era acompanhar as transformações da
sociedade e os processos de modernização. Tinha como intenção abranger uma gama de
temas, informações e debates que existiam no contexto da época. Uma revista cultural, que
abordaria assuntos de teatro, artes, música, arquitetura, questões do cotidiano e da vida
urbana, além de proporcionar reflexões políticas e literárias que contribuiriam para os debates
culturais e sociais do Brasil do século XX.96
A “Revista Souza Cruz” vem, modestamente, mas com a maior alegria, formar ao
lado das publicações desse gênero, que já possuímos, e magnificas, como aqui no
Rio a Careta, o Fonfon, Selecta e a Revista da Semana e, em S. Paulo, a Cigarra,
para citar apenas alguns exemplos. Nas nossas páginas, a inumerável e inteligente
clientela dos incomparáveis produtos da Companhia Souza Cruz encontrarão de
tudo: arte, ciência, literatura, indústria, conselhos da economia doméstica,
advertência das elegâncias e da moda. Esta “Revista” adota como seu programa
requintado e fino daqueles que deseja para seus leitores e não se poupará a esforços
e sacrifícios para a todas agradar. Queremos que leiam, com o mesmo encanto nas
capitais como no interior do país, o sábio e operário, a dona de casa e as crianças, de
modo que, em todos os lares, se torne um hábito delicioso folhear-lhe as páginas,
ler-lhe os lindos contos, as belas poesias, as crônicas leves e graciosas, as
informações interessantes. 97

A citação acima é encontrada na primeira edição da Revista Souza Cruz, publicada em


30 de novembro de 1916. Uma revista que se dizia moderna e cheia de elegância, com
pretensão de atingir a todos. Da cidade ao interior, do trabalhador ao intelectual, do homem a
mulher e, igualmente, a criança. Essa primeira edição é composta por matérias intituladas de
“Conto Infantil”, “Conto policial”, por páginas dedicadas à moda feminina, por publicações
sobre o monopólio do fumo, trazendo, ainda, algumas notas comerciais. Além disso, há
também um artigo nomeado de “São Paulo e os seus progressos” e um editorial chamado
“Página Feminina”, dedicado exclusivamente às “[...] gentis leitoras, que nela encontrarão
uma miscelânea muito interessante e agradável”.98 Com assuntos variados, que tratavam de
arte, advertências domésticas, economia e moda, a revista se apresentou como parte de um
grupo de periódicos que eram entendidos como requintados e finos. Além disso, ainda em seu
texto de abertura, a revista apontou quais seriam os seus futuros clientes: os inteligentes

95
“Revista Souza Cruz”. A Noite, 6 de maio de 1923, p.2.
96
Essas informações foram tiradas do site oficial da Revista Souza Cruz. Disponível em:
<https://www.revistasouzacruz.com.br> acesso em 04 jun.2020.
97
Revista Souza Cruz, 30 de novembro de 1916, p.3.
98
“Pagina Feminina”. Revista Souza Cruz, 30 de novembro de 1916, p.16.
38

consumidores dos produtos da Companhia Souza Cruz, grupo diversificado que ia do sábio, à
dona de casa e até criança. Ou seja, já nesse primeiro momento podemos perceber que o
periódico tinha intenções além das literárias, evidenciando seus objetivos econômicos com os
produtos da própria companhia e aproximando seus interesses com os do grupo elitizado da
cidade.
Ana Luiza Martins apoiada nas perspectivas da Nova História, analisa a revista em uma
dupla dimensão, como fonte e objeto de análise. 99 A primeira reflexão que a autora propõe é
sobre as possíveis ciladas que esse documento pode gerar, já que o passado nas revistas é
retratado por múltiplos registros de caráter lúdico e remete a uma leitura rápida. O uso desse
material gera o que pode ser chamado “espelho de disforme”, podendo refletir imagens
corrompidas e adulteradas, principalmente, se suas partes forem retiradas, entre muitas outras
coisas e analisadas de forma desconectada com imaginário do seu tempo. Fugir dessa cilada
nem sempre é tarefa fácil, porém ter a revista como fonte histórica e testemunho do passado é
de grande validade. Entretanto, é importante considerar e ter atenção às negociações, aos
acordos e às relações que aconteciam em suas páginas, em outras palavras, é necessário
historicizar as suas produções, analisando suas especificidades e as suas ligações com o
contexto.
Em A Imprensa e o Dever da Verdade, obra fruto da conferência que ocorreu na Bahia
em 1919, Ruy Barbosa investigou as questões ligadas à ética e à liberdade da imprensa. Nessa
obra, sua crítica girou em torno da corrupção e da subordinação dos jornais e dos jornalistas
em relação aos governantes da república. Para ele, sendo a imprensa “a vista da nação”, o seu
dever era informar e servir o povo, e não omitir e propagar a mentira oficial dos governantes.
100
O autor defendeu uma imprensa livre e independente, clara e cristalina.
Já lhe não era pouco ser o órgão visual da nação. Mas a imprensa, entre os povos
livres, não é só o instrumento da vista, não é unicamente o aparelho do ver, a
serventia de um só sentido. Participa, nesses organismos coletivos, de quase todas as
funções vitais. É, sobretudo, mediante a publicidade que os povos respiram. 101

Ruy Barbosa acreditava que em uma nação livre, a imprensa tem um papel fundamental.
Ela faz parte das funções mais importantes desse organismo coletivo, simboliza, além da
visão, a complexa ação respiratória desse corpo moral, “[...] representa, com a mesma
principalidade, o papel de nutrição, de aviventação, de regeneração, que lhe é comum em todo

99
MARTINS, Ana Luiza. Revistas em revista: imprensa e práticas culturais em tempos de República, São Paulo
(1890-1922). São Paulo: Edusp, 2001, p. 5-6
100
BARBOSA, Rui. A imprensa e o dever da verdade. São Paulo: Com-Arte; Editora da Universidade de São
Paulo, 1990, p.13.
101
Ibidem, p. 21.
39

mundo orgânico, animado ou vegetativo”.102 Na falta de ar respirável, a vida não é possível, e


esse é o mal das sociedades modernas. Para o autor, essa imprensa subordinada, poluída,
corrompida e sujeita a esses espíritos perniciosos se torna um veneno social, que obstrui as
vias respiratórias com gases letais. Não há nada pior para uma sociedade livre do que uma
imprensa mercantilizada e servilizada.

Um país de imprensa degenerada ou degenerescente é, portanto, um país cego e um


país miasmado, um país de ideias falsas e sentimentos pervertidos, um país, que,
explorado na sua consciência, não poderá lutar com os vícios, que lhe exploram as
instituições. 103

O autor ainda salienta que esse mal foi mais expressivo durante a república, que desde
seu início já simpatizou com a corrupção, onde “[...] o ideal dos governos está na
irresponsabilidade”.104 A imprensa se tornou a manifestação da opinião dominante, porém,
nem todo jornalismo se converteu a esse negócio. Entretanto, a estratégia usada pelos
dominantes foi pôr a imprensa contra a imprensa, ou seja, “[...] desatinar a opinião pública,
deixá-la muitas vezes indecisa entre o rasto de verdade e o da mentira, ou, muitas outras,
induzi-la a tomar a pista falsa pela verdadeira”.105 A partir dessa leitura, podemos evidenciar o
surgimento e a consolidação de um capitalismo jornalístico. Ao analisarmos a postura crítica
de Barbosa, podemos entender os perigos que representavam o surgimento de uma nova
classe política não partidária cujo trabalho visava conscientizar. O autor, na realidade, aponta
para os medos que representa uma sociedade conscientizada.
Relacionando as afirmações de Barbosa às de Martins, a autora também chama atenção
para os perigos de trabalhar com essas fontes. Ela enfatiza que na virada do século XIX para o
século XX, a imprensa transformou-se em uma grande empresa, com o propósito de ser
vendida e de obter lucros. Ou seja, ocorreu uma mercantilização desses periódicos que
passaram a veicular tudo que era rentável. Nesse sentido, as revistas tornaram-se uma espécie
de vitrine de mercado e de interesses. Para enfatizar esse ponto, a autora destaca o estudo
sobre a Revista Kosmos, realizado por Antônio Dimas. Segundo ele, a revista talvez tenha
servido de porta-voz para as modernizações que ocorreram no Rio de Janeiro durante governo
de Rodrigues Alves; apesar de admitir que não tenha comprovação dessa ligação, Ana Luiza
Martins infere dizendo ser “[...] exatamente porque o conluio entre poder e editor era de tal

102
Ibidem, p. 21.
103
Ibidem, p. 22.
104
Ibidem, p. 24.
105
Ibidem, Op. Cit., p. 25.
40

ordem, que o produto vinha muito bem embalado, na ordem natural das coisas”.106 Nesse
sentido, através dos escritos, das propagandas e das publicidades, os interesses dos grupos
dominantes, dos segmentos públicos e das relações capitalistas foram potencializados e
penetraram no interior de algumas dessas páginas.
Ou seja: tudo ficava muito bem disfarçado. Desmontado o ideário vendido pelo
periódico, revela-se o quanto suas páginas higienizadas, de um Itamarati e de uma
população brancas, estavam longe de retratar o cotidiano sofrido de um País
analfabeto, atrasado e arcaico. 107

Configurava-se assim, um perfil de imprensa a favor de um projeto oficial nacionalista e


capitalista, que ofuscava a realidade a serviço dos interesses e de negociações. Ou seja, um
instrumento de divulgação e de propaganda de classes, grupos e indivíduos que dominavam a
sociedade. Portanto, a dubiedade encontrada nesses periódicos nos diz que, ao mesmo tempo
em que algumas revistas serviam para informar e instruir a população, também eram
utilizadas como recursos a favor de relações e operações comerciais, ademais de estarem a
serviços de órgãos dependentes e de grupos dominantes. Além disso, essa dubiedade também
pode ser encontrada no fato das revistas, autodeclaradas de classe alta e média, trabalharem
expondo as perspectivas de uma sociedade de elite, enquanto produziam uma crítica a essa
própria classe, como é o caso, por exemplo, da Revista Souza Cruz, que direciona, à época, as
suas produções quase que exclusivamente para atender aos interesses de um grupo elitizado,
em grande maioria, branco. Esse periódico, conjuntamente, publica os escritos de Lima
Barreto, crítico desses mesmos interesses.
Carolina Vianna Dantas afirma que no início dos anos 1900, com a adoção de novas
tecnologias, a impressa se intensificou.108As novidades técnicas produziram novas relações e
novos padrões, a maior busca pelo lucro representou uma das reações nesse momento. Apesar
das revistas se apresentarem, em sua maioria, como literárias e culturais, a autora salienta para
a existência de outras revistas de grupos específicos. Como é o caso da revista dirigida por
Lima Barreto, que não possuía intenções comerciais diretas, sobre esse fato, cabe aqui um
parêntese que nos ajuda a pensar as referências e as ideias de imprensa defendida pelo literato.
A Floreal foi criada em 25 de outubro de 1907. Esse projeto foi pensado por Lima
Barreto junto a um grupo de amigos com propósitos parecidos. A intenção era criar uma
revista livre, onde o grupo pudesse expor as suas opiniões e manifestações de suas
106
MARTINS, Ana Luiza. Revistas em revista: imprensa e práticas culturais em tempos de República, São Paulo
(1890-1922). São Paulo: Edusp, 2001. p. 5-6.
107
Ibidem, p. 8.
108
DANTAS, Carolina Vianna. Brasil – café com leite. História, folclore, mestiçagem e identidade nacional em
periódicos (Rio de Janeiro, 1903-1914). Tese (Doutorado) – Universidade Federal Fluminense, Instituto de
História, 2007.
41

preferências. Francisco Barbosa de Assis diz que essa equipe que se reuniu em volta do
projeto era formada pela heterogeneidade. Infelizmente, a revista não resistiu por muito
tempo, cancelando suas publicações em sua quarta edição, durante os primeiros meses de
1908109. A consequência disso, talvez, possa ter sido o fato de o periódico ter tido como
principal objetivo publicar sem grandes pretensões econômicas, além de ter a intenção de
conscientizar os seus leitores, longe dos “mandarinatos literários, aos esconjuros dos
preconceitos, aos formulários das regras de toda a sorte, que comprimem de modo tão insólito
no momento atual.”110
Outra referência que vale ser destacada está no nome escolhido por Lima Barreto para a
revista. Floreal é o nome de um dos poemas de Victor Hugo, importante escritor da literatura
Francesa e crítico do fanatismo e da tirania.111 Foi também uma grande influência na poesia
brasileira, como destacou Mucio Teixeira:
Não houve prova, porque não passasse: foi pobre, foi perseguido, foi proscrito,
sozinho, vagabundo, vituperado, escarnecido; mas continuou impassível, com
prodigiosa obstinação, o seu enorme trabalho.
Nos momentos que parecia extenuado, levantava-se de repente com obras cheias de
novas forças e de novas promessas.
Na tribuna, no teatro, na pátria, no exilo, na poesia, na crítica, em moço e depois de
septuagenário foi sempre audaz, obstinado, descomedido, provocador, áspero,
furioso, selvagem.112

Victor Hugo é uma das referências de Lima Barreto e o romance escolhido para nomear
o sonho de uma revista livre idealizada por ele é publicado em meados de 1865. O poema
reproduz a divulgação da notícia do dia, onde o vendedor de jornal anuncia aos gritos a boa
notícia da vitória da primavera sobre o inverno, ademais da possível analogia do poema com a
idealização de um projeto capaz de fazer florescer novas ideias e conscientização de uma
sociedade – a primavera – contra uma imprensa capitalista e controladora – o inverno–,
“Ordre du jour de Floréal” possibilita outra referência.

Daniela Mantarro Callipo aborda o fato de os poemas hugoanos não seguirem as


exigências das formas impostas. 113 O próprio poema que serviu de inspiração para o nome da
revista não possui refrões. Hugo, assim como Lima Barreto, não seguia as formalidades
exigidas pelos críticos, pois desejava ser lido pelo povo, a quem só eram destinadas às obras

109
Ver mais em: BARBOSA, Francisco de Assis. A vida de Lima Barreto: 1881-1922. Belo Horizonte:
Autêntica Editora, 2017; SCHWARCZ, Lilia Moritz. Lima Barreto: triste visionário. São Paulo: Companhia das
Letras, 2017.
110
“Artigo inicial”. Floreal, 25 de outubro de 1917, p. 5.
111
TEIXEIRA, Múcio. Hugonianas: poesias de Victor Hugo: traduzidos por poetas brasileiros. 1885, p. 10.
112
Ibidem. 1885, p. 34-35.
113
CALLIPO, Daniela Mantarro. Victor Hugo: sobretudo, poeta. Lettres Francaises, p. 11-28, 2011
42

de Béranger, compositor cuja obra era qualificava como medíocre.”114 Muitos escritos de
Lima Barreto também foram considerados sem os refinamentos exigidos pela elite de
literatos, mas o próprio autor já declarou inúmeras vezes que a intensão dos seus escritos era
atingir a todos e a Floreal fez parte desse projeto de uma imprensa livre e democrática.
Outro trabalho que destaca as operações que ocorrem no interior da imprensa é “A luta
por uma imprensa livre” de E.P Thompson, de 1952. Narrando sobre o acidente que ocorreu
com ele e a sua esposa, em 1947, quando foram atacados por uma gangue de bandidos
fascistas por estarem lendo um jornal socialista em Trieste, o autor diz que jornais britânicos,
na época, abordaram esse ocorrido com várias conjunturas e tratamentos. Mesmo sendo um
incidente sem importância, o autor usou esse fato para abordar a degeneração que a imprensa
britânica sofreu.

Eu não deveria ter mencionado esse incidente sem importância a não ser pelo fato de
que eu estava justamente em uma boa posição de ver a imprensa que não é “inferior
a nenhuma do mundo”, uma vez que meu próprio nariz foi a matéria-prima para essa
papelada de mentiras. Mas, sem dúvida, cada leitor terá exemplos melhores que o
meu. É apenas necessário imaginar esse tipo de desonestidade calculada e
sensacional quando ela é aplicada a algum episódio de grave implicações
internacionais.115

Apontando para a configuração da atual imprensa “livre”, declara que essas degradações
são traições para com os que lutaram por essa liberdade. A luta pela liberdade de imprensa
passou por vários momentos, da censura mais branda ao controle mais severo sobre toda e
qualquer publicação, no século XVI, feita pelo governo inglês, pela Igreja, pela Corporação
de Londres e pelas Empresas de Papelaria.116 Muitas vezes, essas rígidas censuras geravam
duras penas, como, por exemplo, multas altíssimas e até orelhas decepadas.

Em 1637, Prynne e do0is outros panfletários foram condenados ao pelourinho, a


terem suas orelhas decepadas, a uma multa de £ 5.000, e ao cárcere. Mais que isso,
Prynne foi apenado a ter as letras “S. L.” ferradas em suas bochechas, por
“Sedicioso Libelista”. 117

Após da Revolução Francesa, mais especificamente, entre anos de 1816 e 1819,


Thompson diz que as classes médias e proletariado estavam decididos a acabar com a
corrupção e mostrar a sua força. “Esses foram períodos tanto de grande atividade popular
quanto de perseguição selvagem à imprensa e expressão”.118 Depois de muitas perseguições

114
Ibidem, p.22-23
115
THOMPSON, Edward Palmer. E.P.Thompson: panfletário antifascista. Tradução: João Ernani Furtado Filho.
Fortaleza: Plebeu Gabinete de Leitura, 2019, p. 62.
116
Ibidem, p. 63.
117
Ibidem, p. 65.
118
Ibidem, p. 68.
43

sobre a imprensa popular, percebendo que a completa censura seria “perigosa e fútil”, o autor
afirma que o governo decidiu utilizar de outra estratégia para limitar esses periódicos: o uso
dos recursos financeiros. “Dessa época em diante, as considerações financeiras tornaram-se da
maior importância – o custo do papel, para o leitor, e o custo de rodar um folheto
independente do controle do grande capital”.119 Uma grande batalha por redução das taxas
sobre a imprensa começou a ser travada; ao fim, essa luta representou uma conquista
importante para o movimento dos trabalhadores organizados.
Após a redução das taxas e do fim da grande censura, os jornais passaram a ser um
grande negócio, em busca de lucros e investimentos. Indo conforme as reflexões feitas por
Ruy Barbosa e Ana Luiza Marins apresentadas aqui, Thompson afirma que essa liberdade
dependente das vendas e das receitas publicitarias, “[...] são muito menos “livres”.120

Os métodos pelos quais o Daily Herald era comercializado e dada a sua vasta
circulação (o aumento das triagens de 400.000 para 1.750.000 é noticiado como
tendo custado £ 1.325.000, ou £ 1 por cabeça), tais métodos, que beneficiam os
anunciantes e idiotizam e distraem as pessoas das realidades da sociedade
capitalista, são incompatíveis tanto com a liberdade real, quanto com as tradições do
movimento da classe trabalhadora.121

Thompson vai chamar “Senhores da Imprensa” as mentes que controlavam os


periódicos, interferindo, em grande proporção, sobre todas as questões. Mesmo que isso tenha
mudado um pouco, com o tempo, o controle restrito das grandes redes sobre a imprensa, em
busca de comércio e poder, se manteve. O que, como consequência, limita a ideia de
liberdade, criando uma imprensa capitalista, financiada por companhias e especuladores. Ou
seja, o que Thompson pretende é chamar a atenção para o fato dessa liberdade ser apenas para
um grupo de indivíduos que podem exercer sua “liberdade de imprensa” conduzindo jornais
independentes. Em contrapartida, o grande público exercita a sua “liberdade” escolhendo
entre um ou outro jornal controlado pelos “Senhores da Imprensa”.

A sugestão de que a licença irrestrita a um punhado de Senhores da imprensa é


incompatível com a liberdade e saúde de grande maioria, que – nas palavras de
Olive Schreiner – um “jornal diário que não esteja baseado no intento de disseminar
a verdade é um copo de veneno servido toda manhã para debilitar as pessoas”, esse
alvitre foi posto de lado como um ataque à “liberdade”122

É de fundamental importância fazermos algumas nuanças, após essas exposições, sobre


a liberdade da imprensa no contexto em que Lima Barreto estava inserido. É relevante

119
Ibidem, p.71.
120
Ibidem, p. 80.
121
Ibidem, p. 84.
122
Ibidem. p. 88.
44

destacarmos que a imprensa brasileira do século XX é filha da imprensa régia, que promovia
grandes censuras. Esses periódicos, em sua grande maioria, estavam cada vez mais
imbricados com a política e com os interesses das elites, pensando e sustentando a construção
da nacionalidade brasileira a partir das ideias e dos interesses da branquitude. Não seria pura
coincidência que essa categoria de “imprensa como empresa” nasça com a consolidação do
capitalismo e com a ampliação e a diversificação de empresas. A própria Revista Souza Cruz
pertenceu à Companhia Souza Cruz, grande empresa de tabaco que colocou em
funcionamento a primeira máquina de produção de cigarros no Brasil.

Para além de uma imagem luxuosa e moderna, a revista era um meio de divulgação dos
produtos da própria companhia e de outras empresas. Ou seja, a revista utilizava da
propaganda de bens de consumo em busca de lucro, confirmando e ideia de que a imprensa
virou uma empresa, não sendo apenas uma revista literária. Nesse sentido, as imagens que
ilustravam as suas páginas eram mulheres jovens e bonitas segurando cigarros (FIGURA 2).
Isto é, retratando a criação e a divulgação da modernidade através do ato de consumir
cigarros. Inclusive, já em sua primeira edição, há anúncios sobre a qualidade dos produtos que
a Souza Cruz fabricava, dizendo que: “Os cigarros Souza Cruz têm a preferência porque são
saudáveis” e “Os cigarros Souza Cruz tem a preferência porque empregam fumos de primeira
qualidade”, ou seja, a revista não estava livre das pretensões comerciais do seu tempo. 123

Figura 2- Capa da Revista Souza Cruz (1923)

Revista Souza Cruz, novembro de 1923, p.1.

123
Revista Souza Cruz, 30 de novembro de 1916, p 8 – 9.
45

Tatiana Siciliano, Everardo Rocha, Maria Carolina Medeiros e Melba Porter abordam
a importância do lugar das propagandas nas revistas.124 Afirmam, parafraseando Everardo
Rocha, que “[...] através da publicidade podemos compreender a lógica de uma determinada
época e sociedade”. Ou seja, as propagandas e anúncios impressos vendem e determinam um
modo de vida, um estilo, o jeito de se vestir, de comportar e, acima de tudo, indicam os
produtos necessários a serem consumidos para alcançar determinada elegância e distinção.
Podemos dizer então, que as imagens de cigarros que fizeram parte da maior parte dos
anúncios da Revista Souza Cruz se enquadravam entre os artigos da modernidade que se
desejava implementar. Isto é, através desses reclames podemos refletir sobre os costumes,
sobre o imaginário da época e sobre algumas das características que a revista propagou.
A revista é, como já foi dito, uma importante fonte para quem se propõem pensar o
cotidiano e as circulações de ideias na cidade do Rio de Janeiro. Essa ideia tem concordância
com o que Gisele Martins Venâncio apontou, em seu trabalho, sobre a trajetória editorial de
Oliveira Vianna.125A historiadora atesta para o fato de as revistas e os jornais terem a
característica de “obras em movimentos” e diz servirem de “espaço de experimentação” de
126
ideias e de trabalhos ainda em curso. Além disso, assegura que esses espaços de
intercâmbios intelectuais tiveram papel fundamental durante a primeira metade do século XX.
Ou seja, através dessas publicações periódicas, se torna viável estudarmos algumas das
dimensões do cotidiano da história carioca.
Sergio Lamarão certifica que partir da década de 1860 as revistas que circulavam
desde o início do século XIX ganharam maior presença na cidade.127 O início do processo de
modernização do Rio de Janeiro marcou esse momento. Segundo ele, a maioria das
publicações desse período iam de encontro as ideias de remodelação e modernização da
cidade. A própria Revista Souza Cruz, no seu lançamento, se compara em questão de gênero
com a Careta, a Fon-Fon, a Selecta e a Revista da Semana. Lamarão define o estilo de
algumas dessas revistas. Segundo ele, a Fon-Fon e a Careta se enquadravam em uma linha
mais humorística, onde a sátira política e as charges estavam presentes, além das pretensões
literárias ligadas ao simbolismo e ao parnasianismo. A Selecta dava destaque ao público
feminino, com artigos de moda, novela e receitas. De modo geral, os formatos dessas revistas

124
SICILIANO, Tatiana; ROCHA, Everardo; MEDEIROS, Maria Carolina; PORTER, Melba. “Flagrantes e
anúncios: temporalidades em perspectiva na revista ilustrada Fon-Fon!”. Contracampo, v. 38 n. 3, 2019, p. 8
125
VENANCIO, Giselle Martins. Na trama do arquivo: a trajetória de Oliveira Vianna (1883 1951). Tese
(Doutorado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, 2003.
126
Ibidem. p.97.
127
LAMARÃO, Sérgio. “As revistas como fonte para a história da cidade do Rio de Janeiro”. Revista do
Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, v. 6, p. 129-143, 2012.
46

seguem o mesmo estilo, ainda que com características diferentes, enquadrando-se no que
ficou conhecido como revistas ilustradas.
Siciliano, Rocha, Medeiros e Porter, no trabalho já referenciado, tentaram
compreender, através de uma análise específica da Fon-Fon, o modo como as revistas
ilustradas se tornaram uma das principais construtoras e mediadoras dos novos tempos na
capital. Nesse sentido, definem esse gênero de revista como “[...] um dos principais meios de
comunicação da virada do século XIX para o século XX”, onde as regras da cartilha do ser
moderno se materializavam, uma espécie de pedagogia do estilo burguês.128 Elas circulavam
em grande número e “ajudavam os habitantes da urbe a acompanhar a sua temporalidade, em
um ritmo acelerado e repleto de informações visuais, como a charge e a fotografia”.129 O
recurso visual poderia, ainda, possibilitar o acesso a todos os tipos de leitores, até mesmo os
não alfabetizados. Entretanto, segundo os autores, as mulheres eram as que formavam o
principal grupo consumidor das revistas ilustradas, já que:
As revistas ilustradas veiculavam comportamentos femininos que deveriam servir de
modelos e polidez e elegância, bom tom a ser copiado pelas demais leitoras:
“sobriedade de cores”, “repertório clássico com uso de peças francesas, sem
requintes, nem exageros”; “usos de chapéus”.130

As revistas ilustradas anunciavam as imagens desse novo Brasil que se tencionava


luxuoso e moderno, com novos padrões de consumo. Transmitindo, em suas páginas ligeiras e
de fácil acesso, os valores culturais do momento, ditando comportamentos e tornando-se
moda. Através dos recursos de imagem e da diversificação de conteúdo, atingia um público
ainda maior, passando a fazer parte das leituras periódicas de grande parte população.
Portanto, esse gênero de periódico é de grande relevância para se entender o cotidiano
do Rio de Janeiro na primeira república, ele ditava moda e comportamento, contribuindo para
o imaginário e o clima de modernidade da época. Não é intenção, aqui, fazer um estudo
detalhado sobre as revistas ilustradas, o objetivo é pensar sobre o modelo de revista que se
enquadrava a Revista Souza Cruz, responsável pela publicação do romance Clara dos Anjos e
de outros trabalhos do literato Lima Barreto.
Seguindo o que se definiu com revista ilustrada, a Revista Souza Cruz era composta
por artigos de leitura fácil, cheias de caricaturas, propagandas e figuras que chamavam
bastante a atenção do leitor. Em análise da sua primeira edição, podemos perceber, certamente
por ter como leitor um público em maior número feminino, que há um direcionamento de suas

128
Op. Cit., p, 8.
129
Ibidem, p. 10.
130
Ibidem, p, 13.
47

páginas para as mulheres, composta de assuntos entendidos como sendo para o público
feminino.131 Entretanto, há também publicações sobre as áreas econômica, política e do
comércio, que certamente eram de interesse geral. Toda essa edição é composta por uma
escrita de fácil compreensão, provavelmente, de forma intencional, visto que o objetivo era o
de alcançar a todos os tipos de públicos ou, pelo menos, alcançar os que poderiam pagar pelos
produtos da Companhia Souza Cruz. Essa afirmação encontra-se com o que Leonardo
Pereira132 defende ao dizer que no final do século XIX o pequeno jornalismo, geralmente
ligado a grupos políticos, cedeu espaço para uma nova categoria de imprensa mais popular. O
grande marco desse momento foi o surgimento da Gazeta de Notícia, fundada por Ferreira de
Araújo em 1874. A partir disso, a intenção dessa imprensa era chegar a mais camadas da
sociedade. As vendas avulsas, os preços mais baratos e as transformações nos textos, tornando
a leitura mais fácil, são mudanças inauguradas nessa época. Porém, mesmo com essa “nova
feição”, Pereira salienta que a imprensa não deixou de “[...] se colocar a serviço dos projetos
políticos de certas parcelas da sociedade”.133
Nelson Werneck Sodré, escrevendo sobre a história da imprensa nacional, apresenta-nos
a visão analítica semelhante à de Leonardo Pereira. 134 O autor diz que o aumento da produção
gerada por essa “nova feição”, cada vez mais interessada por diferentes atores sociais 135
,
ocasionou uma ampliação de leitores. Ainda que o número de analfabetos nesse período fosse
significativo, os jornais e revistas passaram a ser as artérias por onde circulavam as ideias da
cidade, o espaço onde as relações e os conflitos dos diferentes atores sociais eram
esquadrinhados e acompanhados.

A Revista Souza Cruz sobreviveu a um total de 211 edições, existindo de 30 de


novembro de 1916 a 1935. Infelizmente, nem todas as edições estão disponíveis para
consulta, o que pode ser resultado do tempo ou dos extravios desses documentos. Por essa
razão não foi possível encontrar a sua última edição, o que impediu de datar com precisão o
seu tempo de vida.136 Porém, em uma das buscas realizadas utilizando como palavra-chave o
nome da revista, foi possível encontrar, na data de 18 de julho de 1936, uma matéria no O

132
PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. “Literatura e história social: a geração boêmia no Rio de Janeiro
do fim do Império”. História Social, Campinas, SP, v. 1, n. 1, p. 29-64, 1994.
133
Ibidem, p.49.
134
SODRÉ, Nelson Werneck. História da Imprensa no Brasil. São Paulo: Mauad,1994.
135
Ibidem.
136
De acordo com a pesquisa realizada e patrocinada pela própria Souza Cruz feitas no ano de 2018, a revista
teve seu fim em 1935. Ver em: Revista Souza Cruz. Op. Cit.
48

Jornal (RJ) com o título “A isenção de direito para o papel de imprensa” onde o nome da
revista foi citado.

O conteúdo da supracitada matéria discorre sobre um parecer da alfândega que entrou


em vigor depois da interpretação feita pelo Ministério da Fazenda. Em resumo, o documento
tinha como objetivo criar critérios para determinar quais jornais e revistas não teriam os
direitos à isenção sobre os impostos do papel. A decisão da comissão julgadora do parecer foi:
“[...] verifica-se imediatamente que estão excluídos dos favores da isenção os jornais e
revistas destinados à propaganda sistemática de fábricas e os boletins de informações
individuas e coletivas”.137 Para não obter dúvidas sobre quem seria excluído, a cláusula final
desse parecer deixou claro que os periódicos que “[...]visam exclusivamente os lucros” não se
beneficiariam dessa medida governamental. Todo jornal e revista que ultrapassasse o limite de
um terço de espaço de suas páginas com anúncios e propagandas, estariam excluídos desse
benefício. A Revista Souza Cruz aparece em meio aos nomes de periódicos excluídos, o que
provavelmente contribuiu para o seu fim. Dado que, desde sua criação a propaganda e os
anúncios ocupavam quase todas as páginas de suas edições. Essa era uma de suas
características: em meio aos seus artigos, crônicas e poemas, a propaganda esteve sempre
presente, isto é, sempre esteve ultrapassando muito mais do que um terço das suas páginas.
Com relação a sua linha editorial, o periódico teve como editor, desde a sua fundação,
o advogado e jornalista Herbert Moses, que além de também ter sido diretor do O Globo, foi
presidente Associação Brasileira de Imprensa durante os anos de 1931 a 1964. 138 Sua redação
ficava localizada na Rua Gonçalves Dias, número 26, melhor dizendo, no centro da cidade,
bem próximo à famosa Rua do Ouvidor, o coração das letras. Suas páginas eram imprensas
pela Officinas Graphicar da A Noite, que tinha endereço na Rua do Carmo, 29; tinha, em
média, de 44 a 58 páginas, somente em suas edições de janeiro que esse número dobrava,
saindo juntas a edição de comemoração de natal e de ano novo. Com base nas pesquisas
realizadas pela Souza Cruz, a capa das revistas “apresentava uma nova identidade visual a
cada edição”, tendo, todos meses, uma aparência diferente, tanto em seus desenhos, como em
sua diagramação.139 Os formatos dos títulos também eram diversificados, cheios de formas

137
“A isenção de direitos para o papel de imprensa”. O Jornal, 18 de junho de 1936, p. 7.
138
A Associação de Imprensa foi idealizada por Gustavo de Lacerda com o objetivo de luta pelos interesses dos
jornalistas. Essa agremiação existe até os dias atuais, sendo seu atual presidente Maurício de Azêdo. Essas
informações podem ser encontradas no site oficial da associação. http://www.abi.org.br/
139
Site oficial da Souza Cruz, op. Cit.
49

assimétricas, sinuosas e curvas, davam grande destaque para as figuras femininas, se


enquadrando então, no que ficou conhecido por Art Nouveau.140
A revista era publicada mensalmente, somente em 1933 passou a ser bimestral.
Segundo a Souza Cruz, a revista teve cerca de 70 mil assinaturas durante toda a sua
existência. Para adquiri-la, os leitores contavam com duas opções, a assinatura anual ou a
compra avulsa. Da primeira edição até a de número 27, em fevereiro de 1919, o preço da
assinatura era de 2$000 anual, ou 200 reis o número avulso. Em março de 1919, o valor anual
passou para 5$000 e o exemplar avulso custava 500 reis cada. Porém, o anúncio de aumento
já vinha aparecendo em suas páginas desde maio de 1918, apesar da alteração só ocorrer de
fato no ano seguinte. Um dos avisos dizia: Devido à grande circulação que já alcançou vinte e
cinco mil exemplares somente podemos garantir a remessa regular, aos que forem assinantes.
Preço da assinatura anual, que somete será mantido até dia 1 de julho. 2$000.141
Com base nesse comunicado, podemos concluir que o alcance da revista foi bem
grande, atingindo cerca de 25 mil exemplares em seu segundo ano de circulação. Entretanto, a
mudança no preço pode ter tido outra explicação: o papel. O aumento da procura,
evidentemente, gera a necessidade de ampliação da produção, criando uma busca crescente
pela matéria-prima do seu produto. Isso significa que, com a ampliação das assinaturas, a
necessidade do papel também cresceu.
Em setembro de 1916 a Fon-Fon dedicou metade de uma página para abordar sobre a
crise do papel que atingia a todos, inclusive, para fora do Brasil. Segundo a matéria, onde a
autoria não aparece, o encarecimento do papel, em especial o couché que era usado para
impressão da maioria das revistas, obrigou o aumento de preço da tabela de anúncio.
Tentando reduzir, assim, os prejuízos que a crise gerava para o periódico.

O papel constitui a mais elevada despesa na manufatura de uma publicação ilustrada.


Pode afirmar-se, sem receio de engano que o papel representa 60% das despesas
totais de uma revista bem administrada. Deste simples fato se depreende a
impossibilidade de manter uma tabela de preços organizada no tempo em que o
papel custava a terça parte do que hoje custa. 142

Sem pretensões de elevação nos lucros, a mudança dos preços estava diretamente
ligada ao encarecimento da matéria-prima de base. A solução encontrada pela Fon-Fon foi a
de aumentar os preços para os anunciantes. Segundo a matéria, entre o preço de venda e o dos

140
Ver mais em: PETRY, Michele Bete. Revista como exposições: Arte do Espetáculo e Arte Nova (Rio de
Janeiro, 1895 – 1904). Tese (Doutorado) – Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Ciência e
Educação. 2016.
141
“Aviso da Revista Souza Cruz”. Revista Souza Cruz, maio de 1918, p. 15.
142
“Crise do papel e o preço dos anúncios”. Fon-Fon, 2 de setembro de 1916, p.20.
50

anúncios, a melhor opção era manter o valor das vendas, já que a sua alteração poderia
prejudicar a triagem do exemplar. Com isso, conforme a nova tabela de preço da revista, o
valor do anúncio para uma página inteira, sem ser em lugar especial, foi para
120$000(líquidos).
A “ciranda do papel”, como chamou Ana Luiza Martins ao abordar essa questão, foi
ocasionada pela ampliação da produção editorial. O crescimento da cidade, o aumento da
leitura, a profissionalização do setor e a expressiva produção fez com que a dependência desse
produto crescesse ainda mais. A oscilação dos preços foi a consequência desse problema, uma
vez que quase toda a demanda de papel vinha do mercado externo, especialmente dos Estados
Unidos, e o processo de importação era complexo e burocrático. Piorando muito mais com a
Primeira Guerra Mundial, que contribuiu para dificultar esse transporte.143
Mesmo com a instalação da indústria do papel no Brasil, a produção não era nada
simples. Necessitava de maquinários e de produtos químicos que também vinham de fora.
Além disso, Martins salienta que o resultado do produto nacional não era recomendado para
publicações luxuosas, possuindo qualidade inferior ao importado. Entretanto, alguns jornais e
revistas, tentando não perder as suas assinaturas ou parar por completo com a produção, em
alguns casos, optaram pelo uso dos produtos inferiores ou pela redução de algumas de suas
páginas. A Revista da Semana optou por essa solução, quando em seu quadro de “Notícias e
Comentários”, pede desculpas ao leitor pelo uso de papel com qualidade inferior.

A crise mundial do papel envolveu-nos também, e não é demais renovas aos nossos
leitores e anunciantes os pedidos de desculpa pelas perturbações que ela provocou
no programa de desenvolvimento da “Revista da Semana”, não só nos compelindo a
lançar mão de qualidades inferiores de papel, embora custando o triplo dos preços
normais do melhor couché, como determinando a redução prudente de páginas com
sacrifício tanto do texto como da matéria paga, excluindo ou transferindo a
publicação de avultada qualidade de anúncios. 144

Provavelmente, mesmo que em nenhuma de suas edições esse tema tenha aparecido
como justificativa, a Revista Souza Cruz optou pelo aumento do preço de suas assinaturas ao
ter que reduzir suas páginas, ou alterar o seu papel de impressão. Talvez, a opção de aumentar
os preços de seus anúncios também não tenha ajudado muito, mesmo que isso tenha
acontecido em algum momento, uma vez que, grande parte das propagandas em suas páginas
eram dos próprios produtos da Companhia Souza Cruz. Ademais, os organizadores da revista
se orgulhavam de até mesmo os seus anúncios serem interessantíssimos. Ou seja, aludindo
haver uma escolha minuciosa sobre o que deveria ser anunciado em suas páginas, não
143
“Oficina da Palavra” In: MARTINS, Ana Luiza. Revista em revista, op.cit.
144
“A “Revista da Semana e a crise do papel”. Revista da Semana, 3 de junho de 1916, p.21.
51

cedendo a qualquer tipo de reclame que não fosse considerado digno para os leitores da
revista. Percebemos isso quando, na edição de janeiro de 1919, há um aviso que chama a
atenção do leitor para os seus interessantíssimos anúncios, já que, “na Revista Souza Cruz
nada deve deixar de ser lido”.
“Na natureza nada se perde” – disse Lavoisier. “E na “Revista Souza Cruz” nada
deve deixar de ser lido” – acrescentamos nós. As páginas de anúncios de nossa
revista devem, portanto, ser folheadas atentamente. Tendo sempre em vista o
interesse dos nossos leitores, somos escrupulosíssimos na escolha dos nossos
anúncios. Recusamos sistematicamente, fazer reclame de artigos que não sejam
superiores o digno do maior consumo do Brasil. Conhecemos nossos leitores, somos
gratos a preferência que nos dão e, por isso, não recuamos diante de sacrifício algum
para servi-los com o maior critério. As nossas páginas de anúncios podiam ser
inúmeras, se aceitássemos sem maior exame os pedidos que nos são dirigidos. Mas
nós não cedemos, nem cederemos nesse terreno. Só anunciamos o que é ótimo. E
entre os anúncios, reunimos o útil ao agradável, intercalamos trabalhos literários de
fino lavor e informações interessantíssimas.145

Segundo essa citação, podemos deduzir que mesmo diante dos sacrifícios que a crise do
papel pode ter causado para a revista, os responsáveis pelo periódico optaram por manter seus
critérios com os anúncios e as propagandas, não cedendo a qualquer um. O que por
consequência, possivelmente, reduziu o número de investimentos em suas páginas. Nesse
sentido, as assinaturas representavam, então, a maiores garantias de continuidade para o
exemplar.
Apesar da alteração em seu preço de venda, embasado nas reflexões que Carolina
Vianna Dantas realizou sobre a revista Kosmo, a Revista Souza Cruz não estava entre as mais
caras. Segundo Dantas, em 1904, quando a Kosmo é lançada, o seu preço era de 2$000 avulso
e 20$000 por ano, ou seja, mais que o dobro do preço da Revista Souza Cruz. Na comparação
feita, a autora concluiu que a Kosmo era uma das mais caras em seu gênero. Chegou a essa
conclusão ao relacionar seu preço com os valores de outras revistas, com itens de consumo
básicos e com a média dos salários da maioria dos funcionários públicos e operários na época.
Dizendo que:
[...] quem quisesse adquirir um exemplar da revista La mole Parisiense teria que
pagar 4$000; se a opção fosse a nacional Revista da Semana se pagaria $300; se
fosse o seminário O Malho, $200. Já o quilo do queijo do reino custava 6$000, o
quilo da manteiga mineira, 3$000 e do açúcar, $400. Em média os salários da
maioria dos funcionários públicos variam de 60$000 a 300$000, já os rendimentos
dos funcionários de médio e alto escalão iam de 300$000 a 600$000. Um operário,
que tinha seu salário pago por hora, para conseguir ter uma renda mensal de 50$000
deveria trabalhar de 12 a 16 horas por dia, incluindo os sábados e pelo menos dois
domingos por mês, quando não todos. 146

145
“Na ‘Revista Souza Cruz’ nada deve deixar de ser lido". Revista Souza Cruz, 25 de janeiro de 1919, p.17.
146
DANTAS, Carolina Vianna. Brasil – café com leite. op.cit.
52

O próprio Lima Barreto é um exemplo de funcionário público que ao final do mês


recebia menos que 300$000 de salário. Em seu Diário Íntimo, registou seu orçamento mensal,
incluindo as despesas e as contribuições do seu pai e de um dos seus irmãos. Ao final, o
literato chega ao total de 340$000, o que provavelmente era o valor que, aproximadamente,
ele e sua família tinham para viver durante todo o mês.
Orçamento:
Ordenado...........184
Doutor Araújo......40
............................224
Despesas:
Casa.....................120
Venda....................80
Médico..................10
M. de Oliveira.........4
Café.........................3
.............................217
Orçamento definitivo:
Eu.................200$000
Papai.............140$000
Carlindo..........20$000
......................340$000
Despesas.......120$000
Armazém......100$000
......................220$000

Portanto, com base nos preços, podemos concluir que a revista possuía valores mais
populares e acessíveis, o que poderia contribuir para que a mesma chegasse para além dos
circuitos da alta burguesia, o que pode ter colaborado para a decisão de Lima Barreto em
publicar nessa revista. Era vontade do autor ver os seus textos publicados e circulando por
todos os lugares, desejava ter sua “obra em movimento”, além do fato das publicações
contribuírem com uma quantia extra para as suas despesas mensais. Apesar de ter contribuído
gratuitamente em vários periódicos, de acordo com um bilhete de Francisco Shettino, de 13 de
dezembro de 1918, a Revista Souza Cruz pagava pelos seus escritos.

Fui ao escritório do Dr. Herbert Moses ontem, e fiz-lhe entregar teu artigo para a
Revista Souza Cruz, perguntou-me ele como ficou combinado sobre o preço do
mesmo, ao que respondi nada saber. Entretanto, assegurou-me que iria falar ao
Pereira da Silva sobre isso, e o quantum faria imediatamente chegar às minhas mãos
hoje.147

147
MARTINS, Ana Luiza. Revistas em revista, op.cit.
53

Ainda que tenha publicado em vários lugares, mesmo sem receber nada em troca, não
era em qualquer lugar que os escritos de Lima Barreto ganhavam espaço. Francisco Assis
Barbosa garante que o literato no início de sua vida como escritor, para se tornar conhecido,
acreditava que servir a imprensa burguesa era o único caminho. O que lhe custou caro por
várias vezes, já que era impossível adequar “[...]seu temperamento às restrições que a vida
profissional impõe à inteligência e até mesmo ao caráter”.148 A sua contribuição na Fon-Fon é
exemplo disso. Mário Pederneira, quando diretor da revista, convenceu o literato a colaborar
com o periódico, entretanto, sua passagem foi rápida e logo o escritor concluiu ser inútil optar
pelo caminho da imprensa burguesa para torna-se reconhecido no meio literário.149 Além
disso, o literato não ficou satisfeito com o modo como foi tratado pelos proprietários da
revista, não suportando a atitude de superioridade deles, o que feriu diretamente o seu
orgulho, por isso, decidiu enviar uma carta encerrando as suas contribuições.
Após apresentar algumas das características da revista que serviu de espaço para a
publicação do romance Clara dos anjos e de defender o uso desse documento com fonte,
ainda que apresente certos perigos, cabe agora abordamos sobre as próprias contribuições do
literato para a revista. Essa reflexão parte da premissa de que, apesar de já ter certa
notoriedade no meio literário da época, não era em todos os lugares que os seus projetos
ganhavam espaços. O abandono da Fon-Fon por se sentir preterido e a própria iniciativa, logo
em seguida, de construir um periódico – a Floreal – onde pudesse publicar livremente, sem o
controle dos “Senhores da Imprensa”, contribui para essa afirmação.
Em busca de compreendermos melhor esse espaço que perpetuou a voz a Lima Barreto
– que, inclusive, deixou a última versão, de um de seus romances, produzida, antes dele
morrer, para ser publicado em páginas da revista –, o próximo passo é analisar alguns dos
escritos de sua autoria impressos pela Revista Souza Cruz. Através disso, podemos entender
um pouco mais do perfil da revista e da participação do literato nessas páginas.

2.1. LIMA BARRETO NA REVISTA SOUZA CRUZ: OUTRAS PUBLICAÇÕES.

A primeira vez que o literato aparece no periódico é no ano de 1917, mais precisamente,
em julho deste ano, na nona edição da revista desde a sua criação. Nessa edição, o nome de
Lima Barreto aparece em uma crônica escrita por Castruccio onde o autor dá destaque aos
“vultos de valor” que compõem a jovem geração de estudiosos com menos de trinta anos que

148
BARBOSA, Francisco de Assis. A vida de Lima Barreto: 1881-1922. Belo Horizonte: Autêntica Editora,
2017, p. 162.
149
Ibidem, p. 163.
54

colaboram com as “forças vivas da nação”. 150


O literato se destaca como exemplo de
romancista do “moderno espirito”, que faz parte de uma “auspiciosíssima formação de
modernos espíritos, admiravelmente aparelhados para o impulsionamento da nossa cultura e
do nosso progresso”.151 Na mesma edição, o literato aparece oficialmente como colaborador
da revista.
Reconhecido entres os nomes dos ilustres escritores e poetas, Lima Barreto aparece ao
lado de Bastos Tigres, Mario de Alencar, Raymundo Magalhães, Coelho Neto, Augusto
Ramos, entre outros que contribuíram com os seus trabalhos para compor as páginas da
Revista Souza Cruz. A variedade de nomes que ocupam as páginas da revista, demonstra a
importância da imprensa como um espaço de legitimação desses sujeitos que estavam
pensando e refletindo sobre o Brasil, o que contribui para percebemos que, mesmo entre as
diferenças, os conflitos e os limites de liberdades, Lima Barreto fez parte de um grupo de
intelectuais que atuou fortemente para tentar compreender e decifrar o Brasil. Ainda que
através de pensamentos opostos, buscando suporte em correntes teóricas diferentes, essa
geração de estudiosos tinha como ponto em comum a ideia de uma literatura voltada para as
causas sociais.
Já existem vários trabalhos na historiografia, inclusive os já referenciados aqui, que
abordam a atuação e a relação entre os intelectuais e a imprensa. Esse espaço, no final do
século XIX e início do XX, tornou-se lugar privilegiado no processo de construção e de
consolidação do autor. Magali Gouveia Engel e Flavia Fernandes de Souza organizam um
152
trabalho que abordou exatamente essa temática. De acordo com as autoras, a imprensa
desempenhou um papel muito importante para a profissionalização da atividade dos
intelectuais. É nesse espaço que a militância, a manifestação e o posicionamento desses
homens sobre vários assuntos ganharam cada vez mais contorno. Abordando questões sobre o
cotidiano, sobre política, sobre o cenário internacional, sobre economia, educação, ciência,

150
Castruccio era como o Dr. Álvaro Sá de Castro Menezes assinava nas páginas da Revista Souza Cruz. Castro
Menezes morreu no dia 7 de março de 1920, vítima de uma morte súbita. A homenagem que a Associação
Comercial lhe prestou nas páginas do A Noite (RJ) diz que ele um “espirito complexo e fulgurante da geração de
intelectuais que atinge à madureza neste momento de transição social”. Autor de Estrada de Damasco, Jardim
de Heloísa e de Quadros da Guerra. Inclusive, Quadros da Guerra teve êxito até na Europa, através de uma
tradução para o francês. Além de autor, foi jornalista durante muitos anos e um grande estudioso de economia.
Contribuiu para a Revista Sousa Cruz e em outros periódicos como, por exemplo, A Tribuna, O Imparcial e o
Jornal do Commercio. “Castro Menezes foi o comentador brilhante dos fatos, das ideias, dos antagonismos,
bordando a crônica de arte, entretecendo o tópico leve da ironia, abordando os problemas da alta transcendência
que absorvia a política e assoberbavam o governo”. (“A morte repentina de Castro Menezes”. A Noite, 7 de
marco de 1920, p. 2.)
151
“Chonica”. Revista Souza Cruz, julho de 1917, p. 10.
152
ENGEL, Magali Gouveia. Os intelectuais e a imprensa. Rio de Janeiro: Mauad Editora Ltda, 2015.
55

cultura e diversos outros assuntos, esses intelectuais, através de crônicas, de artigos, de


romances e das suas poesias, usaram as páginas dos periódicos como palco para as suas
concepções e seus conhecimentos.
Leonardo Pereira, no trabalho já referenciado, abordou a importância da década de 80
para a eclosão dessa literatura social, que passou a intervir mais diretamente na sociedade
carioca do período. O grupo que ficou posteriormente conhecido como a “geração boêmia”,
formado por poetas e romancistas, que, organizados em rodas literárias e cheio de sentimentos
nacionalistas, se voltaram para dentro da sociedade brasileira com intenção de transformá-la.
Cabia a esses intelectuais, que tentavam consolidar a literatura como profissão, interpretar e
definir um projeto de sociedade. Nessa perspectiva, Pereira salienta que a partir desse
momento, a literatura passou a ter um caráter mais social, sendo através dela que esses
homens tutelariam e transformariam o mundo simbólico da sociedade.153
Carolina Vianna Dantas também apontou que nesse momento em que o “novo” estava
sendo construído, as questões sobre do fim do regime de escravidão, sobre o novo regime de
governo e sobre a entrada do Brasil na modernidade tiveram grande importância. Era
necessário criar um perfil para o Brasil, uma identidade brasileira capaz de colocar o país no
caminho para o progresso. Assim sendo, os intelectuais, empenhados nessa construção e na
negociação, buscaram elementos que pudessem dar conta desse complexo projeto, tendo que
lidar com as demandas da nova república, com o anseio pelo moderno, e principalmente, com
o fim da escravidão. A “Republica das Letras”, como foi denominada por vários historiadores,
era formada por letrados que fizeram a literatura crescer por meio dos jornais e revistas. 154
Principalmente depois do surgimento da Academia Brasileira de Letras, que segundo Lilia
Schwarcz, funcionou “[...] como uma sorte de régua interna a distinguir os mais estabelecidos
daqueles que permaneciam como outsiders”.155 Mesmo os que não chegaram até a Academia
Brasileira de Letras, em razão de sua seletiva régua interna ou que tinham esses discursos
objetivos e lutas diferentes das do grupo dominante, ainda assim, esses intelectuais
contribuíram para os caminhos que a literatura estava surgindo naquele contexto.
Apesar de heterogênicos, esses homens compactuavam de uma mesma vontade,
intervir na sociedade em que estavam inseridos através de sua arte. Fazendo parte de uma
“rede” de sociabilidade e de trocas. Ainda que os conflitos e a discordâncias estivessem no

153
PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. Literatura e história social. op. cit.
154
DANTAS, Carolina Vianna. Brasil—café com leite. op. cit.
155
SCHWARCZ, Lilia Moritz. Lima Barreto-triste visionário. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 2017.
p. 189.
56

seio de algumas relações, esses homens conquistaram notoriedade e reconhecimento, atuando


como sujeitos sócio-políticos e usando dos periódicos com o campo onde definiriam seus
projetos: interpretaram a sociedade, mediando os seus conhecimentos e produzindo novos
significados.

Carolina Vianna Dantas vai evidenciar que, perpassando por diversas ambiguidades,
esses intelectuais estavam comprometidos com a intervenção da sociedade, indo além de “[...]
simplesmente “cooptados” pelo poder constituído”.156 Abordando sobre vários temas, as
trajetórias desses sujeitos possuíam contornos fluidos. Nesse sentido, a imprensa representou
o principal suporte de intervenção política para essa rede de letrados. Porém, Dantas salienta
que ainda alguns periódicos não assumissem um projeto político determinado, declarando em
muitos casos um perfil de neutralidade, como é o caso da Kosmos e da Garnier – fontes
escolhidas na reflexão da autora – , através da análise de suas páginas, é possível compreender
qual era o “passaporte de entrada” para fazer parte de determinado grupo de colaboradores. 157
Ou seja, ainda que o autor de Clara dos Anjos se diferencie de alguns desses intelectuais em
suas reflexões e que tenha sofrido injustiças por conta de suas origens e do seus’
posicionamentos político e literário, o que acabou lhe rendendo muitos prejuízos e dores, o
literato fez parte dos “vultos de valor” que estavam interpretando o Brasil. Isso se confirma
com a própria afirmação de Castruccio, ao colocar Lima Barreto no meio dos nomes dos
destacados literatos que floresceram naquele contexto.

Em janeiro de 1918, Lima Barreto publicou o seu primeiro conto para a Revista Souza
Cruz, o “Congresso Pan-Planetário”. Posteriormente, esse escrito iria fazer parte da obra
Histórias e Sonhos de 1920, o que confirma a mania do literato de testar nos periódicos os
seus trabalhos que futuramente poderiam compor um livro. Em janeiro de 1921, Lima Barreto
publica o que corresponderia ao primeiro capítulo da obra Cemitério dos Vivos, nas páginas
da revista 158
, “As origens” foi o único trecho desse trabalho publicado ainda em vida. De
acordo com Francisco de Assis Barbosa, essa obra começou a ser escrita durante a segunda
passagem do literato pelo hospício. Barbosa denominou essa fase da vida de Lima Barreto de
“declínio”.

Em fins de 1919, repetir-se-ia o mesmo trágico episódio de 1914. Pela segunda vez,
Lima Barreto seria conduzido num carro forte de polícia para o hospício, durante

156
DANTAS, Carolina Vianna. Brasil—café com leite. op. cit. p. 60.
157
Ibidem, p. 64
158
“As Origens”. Revista Souza Cruz, janeiro de 1921, p. 37.
57

uma nova crise de loucura. Passara toda uma noite, precisamente a noite de Natal,
errando pelos subúrbios, em pleno delírio. 159

A obra Cemitérios dos vivos seria composto das anotações que o literato fazia em seu
“Diário de Hospício” durante a internação. O próprio Lima Barreto, em uma entrevista dada
durante esse momento, declara qual seria o conteúdo do romance que permaneceu inacabado.

– Então, Lima, que é isso?


– É verdade. Meteram-me aqui para descansar um pouco. E eu aqui estou satisfeito,
pronto a voltar ao mundo
– Boa, então, esta vidinha?
– Boa, propriamente, não direi; mas, afinal, a maior, senão a única ventura, consiste
na liberdade; o Hospício é uma prisão como outra qualquer, com grades e guardas
severos que mal nos permitem chegar à janela. Para mim, porém, tem sido útil a
estadia nos domínios do Sr. Juliano Moreira. Tenho coligido observações
interessantíssimas para escrever um livro sobre a vida interna dos hospitais de
loucos. Leia O cemitério dos vivos. Nessas páginas contarei, com fartura de
pormenores, as cenas mais jocosas e as mais dolorosas que se passam dentro destas
paredes inexpugnáveis. Tenho visto coisas interessantíssimas. 160

O conto “As origens” começa com Vicente Mascarenhas, nome do personagem


principal do livro, narrando suas memórias biográficas. Nessa ocasião, Vicente descreve a
triste perca de sua mulher, que em seu leito de morte lhe deixara um pedido: “– Vicente, você
deve desenvolver aquela história da rapariga num livro.” 161
De acordo com Babosa e
Schwarcz, os personagens de Lima Barreto possuíam muitas semelhanças com próprio autor.
As características e as revoltas do literato aparecem nas vozes de suas criações. Conforme
Belchior, o método barretiano de escrita cria sempre um elo com as observações críticas do
cotidiano, “[...] do qual seleciona e recolhe informações sobre aspectos, experiências e
situações e as reconstrói num arcabouço literário flexível, sem dogmatismo de cunho
naturalista ou determinista.”162 Isto é, o autor constrói e reconstrói a sua própria história,
amparado no tempo vivido, fazendo da sua escrita o testemunho de suas próprias
experiências. Dessa maneira, podemos deduzir que a história que a mulher de Mascarenhas
mencionava possivelmente faz referência à Clara do Anjos e Vicente seria alter ego do
próprio Lima Barreto, como também já deduzido por Francisco de Assis Barbosa.
A história segue com o personagem principal contando um pouco de sua vida. Como a
maioria de toda a gente, ele quis ser “doutor”, porém não tinha quem pagasse os seus estudos,

159
BARBOSA, Francisco de Assis. A vida de Lima Barreto: 1881 – 1922. 11 ed. Belo Horizonte: Autêntica
Editora, 2017. p. 291.
160
BARRETO, Lima. Diário do Hospício; O cemitério dos vivos. São Paulo: Companhia das Letras, 2017, 295.
161
“As Origens”. Revista Souza Cruz,1921, p. 37.
162
RODRIGUES, Pedro Henrique Belchior. Tristes subúrbios: literatura, cidade e memória na experiência de
Lima Barreto (1881-1922). Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal Fluminense, Instituto de História,
2011. p. 25.
58

aos 17 anos prestou concurso em uma repartição pública, onde obteve o cargo de funcionário.
Sem familiares no Rio de Janeiro, foi viver em uma pensão, a da viúva Dias. Apesar de viver
fora do ambiente da família desde muito cedo, ele era tímido e não possuía sociabilidade
feminina. Acreditava ter uma irremediável falta de habilidade com as damas, por isso, preferia
evitá-las de todas as formas, evitando até mesmo comprar em lojas onde as funcionárias eram
mulheres.
Devido a essa timidez, não ficou muito confortável quando viu que uma moça vivia na
pensão; com pouco menos idade que ele, a menina em questão era D. Ephygenia, filha da
dona da casa. A jovem moça ajudava nos afazeres da pensão, enquanto a mãe ficava nos
fundos. Ela vigiava as refeições, guiava o copeiro e atendia as reclamações. A presença da
jovem quase fez com que Vicente abandonasse a estalagem, mas ele ficou com vergonha de
parecer ridículo diante de um de seus amigos quando contasse o real motivo da sua saída.
Mesmo tentando evitar, a moça veio ao seu encontro, o que o deixou igual a um
seminarista diante de sua presença. Ainda assim, a observava, chegando à conclusão de que
não era nem bonita, nem feia; era pequena, parecendo uma gatinha, com seus olhos estirados,
agachada na escrivaninha alta, onde comandava o refeitório. Era nessa posição que ele mais
gostava de vê-la, pois assim, ficava inteiramente insignificante o seu olhar de penetração, que,
de quando em quando, se jogava sobre ele com o desejo de lhe adivinhar.
Passados dois meses, D. Ephygenia começou a tecer perguntas sobre os estudos do
rapaz, deixando Vicente aborrecido, pois já se encontrava chateado com eles, afinal, o que
mais os estudos poderiam lhe dar? No mais, era só mais título que não serviria de nada além
de trambolho e de enfeite de botocudo. Já tinha as noções suficiente e já não estava mais
tentado a sonhar em enriquecer com as carreiras de nossa terra, considerando que não havia
nascido afortunado e jamais aceitaria um emprego que tivesse de abdicar de suas opiniões ou
que o fizesse perder a sua autonomia e independência intelectual. O esforço de se formar
vinha mais dos desejos do seu pai, e ele assim o fazia para atender a um capricho do seu
falecido.
O caso era: seu pai teve problemas com um primo em razão da herança do seu avô, o
que gerou uma briga com tiros e processos. Depois de um ano na cadeia, seu pai ganhou a
liberdade. Apesar de nunca ter contado essa história, todos sabiam o jeito que o tal primo
tratava o seu pai, cheio de presunção, só porque tinha título de engenheiro, inclusive antes da
briga, de fato, o seu pai já era desprezado publicamente por esse parente. E o tal primo,
sempre que questionado sobre o seu grau de parentesco, dizia serem eles familiares muito
59

distantes. Vicente acreditava que isso era devido aos traços da raça negra de seu pai, que,
como todos os antropologistas nacionais, colocava os defeitos e as qualidades da raça nos
traços e nos sinais que ficavam à vista de todos.
O ódio que seu pai sentia continuou a existir, mesmo depois que se casou e de ter tido
um filho – o personagem protagonista. Com isso, todos os esforços eram para garantir os
estudos de Vicente, tudo para dar uma lição no tal parente. Apesar de ter se dedicado aos
estudos até o seu pai morrer, Vicente não tinha atrações pela carreira de doutor, o que tinha
eram grandes ambições intelectuais. Era o seu desejo examinar a certeza da ciência. Essa
vontade veio depois da leitura de uma defesa de júri, onde o réu foi condenado pela
irresponsabilidade gerada pelo peso da tara da sua origem. O pai do réu era alcoólatra e foi
processado por rixas. “O povo diz tal pai, tal filho, a ciência moderna também”. Essa
semelhança lhe pareceu um absurdo, conhecia filhos de alcoólatra que não eram nem
alcoólatras, tampouco criminosos. No mais, como um vício pode vir por geração, já que, em
geral, é um habito individual. “Por que mecanismos iam essas modificações transformar-se
em caracteres adquiridos e capazes de ser constituírem em herança?” Isso não lhe saiu da
memória, vivia pensando “se um simples bêbado, pode gerar um assassino; um quase-
assassino (meu pai) bem é capaz de dar origem a um bandido (eu)”, não podia ser, algo estava
errado. Era necessário estudar, depressa, essa alusão cientifica.
O contato com as prédicas positivistas lhe dera, mesmo que por negação, algumas
noções de metafísica das ciências. Com isso, decidiu estudá-las e verificar o grau de exatidão
dos métodos e a suas conexões com o real. Desejou avaliar a colaboração da fatalidade da
nossa inteligência nas leis, “nas contingências dela, as ideias primeiras”.163 Para ele, parecia
que estávamos cometendo um erro quanto á experiencia e ao método experimental. Caindo
nas mesmas armadilhas que os escolásticos medievais com os seus princípios aristotélicos,
cheios de silogismo, alusões e preconceitos lógicos. Principalmente nos confins de estudos
sociais e biologia deveria haver uma crítica rigorosa. Crítica, essa, que já estava sendo feita
por espíritos mais livres, libertos das tradições das academias e das universidades. Por isso,
decidiu abandonar os estudos superiores e executar seu plano seguindo o programa de vida
que tinha em vista.
Essa descrição do que seria o primeiro capítulo do Cemitério dos vivos publicado na
revista é importante para apontarmos algumas outras questões e características da escrita de
Lima Barreto e das lutas que travava em suas narrativas. A primeira delas é o uso das suas

163
“As Origens”. Revista Souza Cruz, 1921, p. 39.
60

próprias experiências para criar as suas histórias e os seus personagens. Assim como Vicente,
Lima Barreto parecia não ter muitas intimidades com mulheres. Apesar de refletir e escrever
sobre várias questões femininas como, por exemplo, o casamento, o feminismo e a violência,
o literato não deixou nenhum registro de que tivesse se relacionando sentimentalmente com
alguém, apenas narrou algumas de suas aventuras carnais:
[...] O que mais gostei dela foi o olhar. Tem um olhar inteligente, móbil e sequioso,
olhar que, com as asas das narinas, móveis e finas, dá-lhe um grande acento de
desejo, de fúria carnal, mais fúria que lascívia, mais lascívia que volúpia, mais
volúpia que amor. Fedra e Safo, uma e outra coisas. Falei-lhe. Ela me disse que me
conhecia. De fato, ela morava na Rua das Marrecas e, por cima da sua casa, no
sótão, o Nicolau Ciâncio. Fui lá muitas vezes e a vi com volumes de Racine,
Marivaux, Beaumarchais. Ela, lembrou, estreara na É fita, uma revista, como todas
as outras. “C’est le triste retour des choses d’ici bas” ... Devia ser deliciosa, essa
Guilhermina.164
[...] O que queria dizer é que, agora, quase um mês passado, eu não tenho nenhum
interesse em continuar a aventura. Não lhe tenho amor, não me sinto atraído por ela,
por isso não encontro justificativa em mim mesmo para arrastá-la, como se diz, a um
mau passo. Havemos de ver...165

Em seu Diário Íntimo deixava claro em muitos momentos que constantemente


observava as moças pelas ruas, mas sempre com um olhar distante, como um observador que
de longe procura, entre a multidão, seus próximos personagens. O literato não lidou muito
bem com a sua sexualidade e nunca se casou.166 Lima Barreto casou-se com a literatura e
apenas com ela.
[...] Passeio com o João pela avenida a construir. Cais do beira-mar. Travessa do
Maia. “Ei-la”. Número 22. Que doçura de fisionomia. Pálida. Calma. Cílios poucos.
Não há nela nem revolta, nem resignação. Interessa-me. Queria-a para minha
mulher. Mas eu... Ah! meu Deus! Há de ser sempre isso. Há uns tempos a esta parte,
vai se dando uma curiosa coisa. Na rua, nos bondes, nos trens, eu me interesso por
certas moças e às vezes por cinco minutos chego a amá-las. Procuro-lhes a moradia.
Passo duas, três vezes pela porta timidamente, gauchement — onde me levará isso?
Toma tento, Afonso! Não te precipites. Olha bem. “Nosce te” ...167

Há inúmeras aproximações nesse conto com a história de vida do literato, porém, o que
mais confirma essa ideia é a referência ao pai. O pai de Lima Barreto também desejou ver seu
filho com título de doutor. Mas, ao ingressar no ensino superior, o autor se sentia cada vez
mais distante desse desejo, questionando a “mania de doutor” que tanto existia no Brasil. Em
1897 deu início no curso de engenharia civil na Politécnica, enfim o sonho de João Henriques
parecia virar realidade, o filho seria doutor.168 Entretanto, do mesmo modo que a personagem,
Lima Barreto não se sentia parte daquele universo da Politécnica e abandonou o ensino assim

164
BARRETO, Lima. Lima Barreto: obra reunida, volume 2. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2018, p. 567–
568.
165
Ibidem, p. 597.
166
SCHWARCZ, Lilia Moritz. Lima Barreto, op. cit, p. 17.
167
BARRETO, Lima. Lima Barreto: obra reunida, op.cit, p. 567– 568. p.429.
168
SCHWARCZ, Lilia Moritz. Lima Barreto, op. cit, p .119.
61

que o seu pai enlouqueceu. Em 1903 deixou registrado em seu Diário Íntimo os mandamentos
do seu decálogo, sair da universidade era o primeiro deles.

O meu decálogo:
1 – Não ser mais aluno da Escola Politécnica.
2 – Não beber excesso de coisa alguma
3 – E ... 169

Desde muito que eu desejava abandonar o meu curso. Aquela atmosfera da escola
superior, não me agradava nos meus dezesseis anos, cheios de timidez, de pobreza e
de orgulho. Todos os meus colegas, filhos de graúdo de toda sorte, que me tratavam,
quando me tratavam, com um compassivo desdém, formavam uma ambiência que
me intimidavam que me abafava, se não me asfixiava. Fui perdendo o estímulo;
mas, a autoridade moral de meu pai, que me queria ver formado, me obrigava a ir
tentando. [...] Desgostava-me e era reprovado...170

A crítica à “mania de doutor” feita por Lima Barreto aparece em muitos dos seus
escritos. Principalmente no livro Os Bruzundangas, obra que faz uma alusão ao Brasil, sua
política, seu povo e sua organização social. O autor aborda no capítulo intitulado “A Nobreza
da Bruzundangas” algumas informações sobre esse rico país e a sua grande nobreza. De
acordo com ele, a nobreza da Bruzundanga se divide em dois ramos: nobreza doutoral e
nobreza de palpite.
A nobreza doutoral é formada por cidadãos que se formam nas escolas superiores de
medicina, de direito e de engenharia. Após conquistar seus títulos, o cidadão obtém
privilégios especiais aceitos pelo resto do povo. Ter um doutor na família virou sinônimo do
enobrecimento que todos desejavam, entretanto, os que eram realmente pobres poucas vezes
conseguiam alcançar a formatura. Ter um título de doutor era a mesma coisa que ter um dom
e a pessoas passava a ocupar conjuntamente vários “cargos bem técnicos e atinentes aos seus
diplomas”.171 Já que,
A nobreza dos doutores se baseia em alguma coisa. No conceito popular, ela é
firmada na vaga superstição de que os seus representantes sabem; no conceito das
moças casadeiras é que os doutores têm direito, pelas leis divinas e humanas, a
ocupar os lugares mais rendosos do Estado; no pensar dos pais de família, ele se
escuda no direito que têm os seus filhos graduados nas faculdades em trabalhas
pouco e ganhar muito.172

Nem Lima Barreto, nem o seu personagem Vicente, desejavam mais fazer parte desse
universo dos cursos superiores, já que para obter um cargo importante teriam que renunciar
aos seus ideais ou serem próximos a alguém com fortuna, o que não era possível em nenhum

169
BARRETO, Lima. Lima Barreto, op. cit., p. 567– 568
170
Ibidem, p. 142.
171
REZENDE, Beatriz (org.). Os Bruzundangas Numa e ninfa/ Lima Barreto. 1.ed, São Paulo: Carambaia,
2017, p. 57.
172
Ibidem, p. 60.
62

dos casos. Ou seja, no fundo, o diploma tinha mais um valor econômico do que intelectual.
Há outra alusão nesse conto publicado que comprova, mais uma vez, a aproximação entre o
literato e a sua criação: a crítica ao positivismo.
O positivismo ganhou força no Brasil, principalmente, na cidade do Rio de Janeiro a
partir da segunda metade do século XIX. Ivan Lins nos diz que para termos uma ideia da
penetração do positivismo no Rio de Janeiro a partir de 1870, basta analisar a imprensa da
época, onde há alusões às doutrinas de Comte.173 Inclusive, o próprio José do Patrocínio se
dizia positivista nesse tempo. A atração dos meios de ensino pelas ideias positivistas também
fora enorme nesse período. De acordo com Lins:

[...] Determinando os fatos gerais de cada ciência fundamental e coordenando-os de


modo a tirar deles uma concepção real do mundo e do homem, através de uma visão
de conjunto da escala enciclopédica em todos os seus elementos – matemática,
astronomia, física, química, biologia, sociologia e moral – enorme foi, como não
podia deixar de ser, a atração exercida pelo Positivismo nos meios pedagógicos do
século passado.174

Propagada por pensadores, essa corrente filosófica que defendia que o conhecimento
científico era a única forma de conhecimento, também atingiu Lima Barreto que,
provavelmente, de acordo com Francisco de Assis Barbosa, já em 1897 frequentava a
capelinha do apostolado positivista. O personagem Vicente Mascarenhas aborda essa
iniciação do literato ao positivismo. Apesar de ir ao culto, Lima Barreto rebateria os
argumentos dos jovens iniciados na filosofia.
[...] o positivismo defendia que o conhecimento científico era o único, verdadeiro, e
dependia dele o progresso da humanidade. Colegas chegados de Lima, como Carlo
Costa, jurava pela filosofia de Auguste Comte. Já Lima, como provou em várias de
suas histórias e contos futuros, nunca se deixou contaminar pela voga.175

Por isso, a maior crítica realizada nesse conto está ligada ao desenvolvimento das
teorias científicas que passaram a dar a ciência à autoridade para interpretar a realidade. O
positivismo foi uma dessas teorias, que recorreu à ciência para explicar o homem e a
organização social. Nesse sentido, o desenvolvimento das teorias sociais e biológicas, como
explicações para a sociedade, foi justificado pela busca do progresso e do florescimento da
realidade que deveria ser transformada.
Quando o personagem Vicente se questiona sobre a validade do argumento do júri, que
julga e condena o réu com base nas irresponsabilidades do seu pai, alegando que o vício vinha
pela geração, podemos dizer que Lima Barreto está questionando os princípios científicos

173
LINS, Ivan. História do Positivismo no Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1964, p. 235.
174
Ibidem, p. 253.
175
SCHWARCZ, Lilia Moritz. Lima Barreto, op. cit., p. 111.
63

modernos que classificavam os sujeitos. Principalmente, o uso do argumento que justificava


um hábito ou um vício de alguém simplesmente pela origem dessa pessoa. Nesse sentido,
podemos relacionar essa crítica com as ideias de algumas “raças” serem cientificamente
“perigosas” devido as suas características biológicas e as suas origens.

O Rio de Janeiro durante a primeira República representou a principal cidade onde a


ideia de modernização e civilização estiveram presentes até em suas mudanças físicas. As
transformações e o aumento da população carioca (em sua maioria, negros ex-escravizados
vindos da Bahia durante o século XIX)176, proporcionaram as discussões feitas por parte da
elite intelectual a respeito da preocupação e da exclusão dessa população do centro
republicano. Sidney Chalhoub, ao analisar a destruição de um dos cortiços mais famosos da
capital, o Cabeça de Porco, discorre que esse foi um marco inicial na “forma de conceber a
gestão das diferenças sociais na cidade”177. As justificativas das desigualdades sociais surgem
atreladas com suspensão do direito à cidadania aos populares, os representantes das chamadas
“classes perigosas”. Essa classe era composta por pobres, em sua maioria, negros
descendentes de ex-escravizados.

Como descrito por Sidney Chalhoub, a destruição do Cabeça de Porco representou uma
investida na aniquilação da memória de um importante cenário de luta dos negros pela
liberdade. “Em outras palavras, a decisão da política de expulsar as classes populares das
áreas centrais da cidade podia estar associada a uma tentativa de desarticulação da memória
recente dos movimentos sociais urbanos” 178. Em síntese, concluímos que a massa de
populares, ― as chamadas “classes perigosas” ― foram vistas pelos políticos como as
portadoras preferenciais de vícios e de desordem. A opressão aos populares era legitimada
pela ação legal da polícia, que trabalhava em favor da ordem republicana. A pobreza, nesse
sentido, era sinônimo de ociosidade e vícios, criando o malfeitor, que deveria ser evitado em
nome da civilidade e do progresso. Partindo dessa lógica, a política republicana definiu a sua
noção de “classes perigosas” ou simplesmente “classes pobres”, onde os negros eram os seus
maiores suspeitos, devido aos vícios de sua raça e do seu antigo estado de escravização. Em
vista disso, nem mesmo a liberdade institucional conseguiu acabar com essa degeneração
entendida como natural nesses sujeitos.

176
MAMIGONIAM, Beatriz G. “Do que" o preto mina" é capaz: etnia e resistência entre africanos
livres”. Afro-Ásia, n. 24, p. 71-95, 2000.
177
Ibidem, p. 19.
178
CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: cortiços e epidemias na corte imperial. São Paulo: Editora Companhia
das Letras, 2018, p.26.
64

Lima Barreto foi um dos críticos do processo de criação e de afirmação de uma imagem
de identidade realizado no Brasil. Amparados nos ideais de progresso e civilização, a
definição do que deveria ser o perfil brasileiro ganhou respaldo das teorias científicas com
bases europeias. A ressignificação dessas ideias deu, para as atitudes de discriminação e para
o racismo, o ar de neutralidade da ciência. Nesse sentido, quando Lima Barreto escreve em
seu diário que “[...] a capacidade mental dos negros é discutida a priori e a dos brancos, a
posteriori”179, podemos entender que o literato estava se referindo a atitudes racistas com
bases biológicas que desqualificavam o negro e que lhe negavam a humanidade e a
capacidade intelectual. Não sabemos se o réu da história de Vicente era negro, branco ou
mestiço, mas ele foi condenado por conta de um vício do seu pai, como se a carga genética
definisse a priori quem seria um suspeito preferencial. Essas ideologias racistas que possuíam
nas suas justificativas o uso da ciência moderna para definir seus suspeitos e criminosos, com
base nos supostos defeitos de origem, atravessam toda a narrativa de Lima Barreto. O autor
questionou o fato de serem as capacidades mentais, dos negros, definidas e limitadas pelas
suas feições e origens.
[...] Discutindo a incapacidade mental desta ou aquela raça, temos o ar de dizer com
o poeta grego — os bárbaros, gente vil que não ama a filosofia e ciências; ele se
dirigia ao avô de Kant e ao tio de Descartes. Se a feição, o peso, a forma do crânio
nada denota quanto a inteligência e vigor mental entre indivíduos da raça branca, por
que excomungará o negro? [...] A ciência é um preconceito grego; é ideologia; não
passa de uma forma acumulada de instinto de uma raça, de um povo e mesmo de um
homem. Se há três geometrias etc.180

Outra importante aparição do literato nas páginas da Revista Souza Cruz foi na edição
de outubro e novembro de 1921. O título do artigo era “O Destino da Literatura”, e podemos
dizer que, nesse escrito, Lima Barreto deixou registrado o seu testamento literário.181 O artigo
foi escrito para uma conferência em sua homenagem que ocorreu em Rio Preto. Quem melhor
nos conta essa história é o seu principal biografo, segundo Francisco de Assis Barbosa,
Ranulfo Prata, escritor e jovem médico, tinha por Lima Barreto uma grande admiração e
sensibilidade. Vendo o doloroso estado de saúde do literato, que vivia perambulando pelas
ruas do Rio de Janeiro bêbado, como se fosse um pobre desconhecido, Prata resolveu tentar
ajudá-lo. Muito comovido com seu drama familiar, Prada convidou o escritor para passar uns
dias em Mirassol, cidade do interior de São Paulo. Lima Barreto aceitou o convite e foi de
passagem para a cidadezinha do interior. Lá, visitou e conheceu vários companheiros de

179
BARRETO, Lima. Lima Barreto: obra reunida, op. cit., p. 567– 568, p. 478.
180
Ibidem. p.479.
181
BARBOSA, Francisco de Assis. A vida de Lima Barreto: 1881 – 1922. 11 ed. Belo Horizonte: Autêntica
Editora, 2017. p.324.
65

letras, inclusive, o próprio Monteiro Lobato com quem já trocava cartas há algum tempo.
Barbosa nos diz que, Ranulfo Prata tentou de todo modo afastar o literato do vício da bebida e
até conseguiu, durante algum tempo, recuperar um pouco de sua aparência saudável. Mas,
infelizmente o plano não obteve sucesso e o autor acabou desaparecendo misteriosamente.
Esse fato ocorreu depois que os amigos de Prata, muito contentes com a presença de Lima
Barreto, resolveram organizar uma conferência na qual o tema seria o destino da literatura.
Lima Barreto não conseguiu se pronunciar nesta conferência e em nenhuma outra durante
toda a sua vida. Seu estado natural de timidez nunca o permitiu realizar tal ato. Porém, aceitou
esse convite, talvez por educação ou gratidão ao amigo Prata, porém, quando chegou o grande
dia, o literato simplesmente desapareceu e só foi encontrado, após buscas, em um bueiro,
completamente bêbado. O artigo “O Destino da Literatura” foi escrito para essa conferência e
jamais foi pronunciado por ele. Entretanto, esse trabalho foi publicado nas páginas da revista.
O artigo começa com o autor dizendo ser a primeira vez – no caso, seria – que ele iria
fazer o que se conhece como conferência literária. Esse gênero, ao mesmo tempo que é fácil, é
muito difícil. É necessário para quem o cultiva saber das letras, ter habilidade, elegância e
outras qualidades de um conferencista, para assim, obter sucesso na atividade.

Pede o gênero ao expositor desembaraço e graça, distinção de pessoa, capricho no


vestuário e – quem sabe lá? – beleza física e sedução pessoal. É o critério nacional
de que tenho muitas provas nas torturas por que têm passado aqueles meus amigos e
confrades dos quais Deus galardoou, em tão raras virtudes. 182

Em sua cidade natal, a beleza do palestrante é um requisito importantíssimo, por isso,


não realizava conferências, já que não se enquadrava nos padrões de beleza estabelecidos. O
discurso também nunca foi o seu melhor talento e já tinha se convencido disso. Já sabia desse
seu ponto fraco desde moço, quando em festas de família via os oradores de brindes sendo
eloquentes, diferentemente dele, que, mesmo com relativa superioridade intelectual, não
conseguia fazer nenhum discurso de brinde. Para se desculpar dessa característica, o escritor
diz que existem mais homens estudiosos que não consegue falar em público, Newton e
Gomes de Sousa são um deles.
O elemento que mais assustava o literato em conferências era o auditório. Diferente de
publicar um artigo ou um livro, onde a crítica fica longe do autor, aparecendo apenas por
cartas ou através de artigos em jornais e revista, falar diretamente com o público é muito mais
complicado. Em um menor sinal de desagrado, quem se expõe pode se desnortear
completamente. Esse era o seu maior pavor, motivo de sempre evitar essas categorias de

182
“O Destino da Literatura”. Revista Souza Cruz, outubro de 1921, p. 26.
66

eventos. O que era desvantajoso, já que a palestra era o mais proveitoso gênero que se
cultivava no Brasil.
Só podemos entender as angústias de Lima Barreto a partir do próprio debate que ele
travou contra o racismo e as suas consequências. Com isso, podemos nos questionar: como
seria lidar com o reconhecimento de seu trabalho e ao mesmo tempo ter a sua humanidade
negada? Como se enquadrar em uma sociedade onde o negro teve a sua beleza
constantemente questionada? Encaminhando nossos pensamentos, Toni Morrison, em O olho
mais azul, de 1970, traz uma reflexão em sua narrativa que nos ajuda a entender essa questão.
Pecola, uma menina negra que desejava ser bela, todos os dias orava a Deus pedindo para ter
olhos mais azuis, somente assim, alcançaria a tão sonhada beleza. Quando o seu pedido foi
finalmente atendido, a jovem menina passou a ser considerada por todos um monstro. Já que,
as concepções de beleza e consequentemente, ter olhos azuis, já foram determinadas pela
sociedade como sendo características somente da cor branca. É nesse sentido que podemos
compreender um pouco dos medos que Lima Barreto tinha da exposição em conferências. O
literato sabia que a sua intelectualidade seria julgada a partir da sua aparecia física,
considerada fora dos padrões de beleza já determinados. Diferentemente da publicação de um
livro ou de um conto, onde o autor não tem o contato direto com quem produz a crítica, ver
pessoalmente suas capacidades serem negadas provavelmente produziu marcas e cicatrizes
bem mais dolorosas. Decerto, Lima Barreto as conhecia muito bem.
Apesar disso, somente aceitou esse convite porque estava encerrando o que prontamente
chamava “carreira literária”. Venceria seus temores para abordar o tema e começaria com um
questionamento sobre o que a literatura e a arte têm para contribuir com a felicidade de um
povo, de uma nação, da humanidade. Essas são indagações que todo homem que escreve para
o público já fez. Essas questões representam “[...] o resumo do problema da importância e do
destino da literatura que se contém no da arte em geral.” 183 Esse questionamento é feito por
todos e o debate não está encerrado, e nunca ficará, até que concordem que “[...] o fenômeno
artístico é um fenômeno social e o da arte é social para não dizer sociológico.184
Refletindo sobre o que é a arte, faz uso da obra de Tolstói – O que é Arte?– para dizer
que o fundador dessa ciência foi o filosofo Baumgarten. Segundo a sua definição, a arte teria
por “[...] objeto o conhecimento da beleza, sendo que esta é o perfeito ou o absoluto,
percebido pelos sentidos e tem por destino deleitar e excitar este ou aquele desejo nosso”.185

183
“O Destino da Literatura”. Revista Souza Cruz, outubro de 1921, p. 27.
184
Ibidem, p. 28.
185
“O Destino da Literatura”. Revista Souza Cruz, outubro de 1921, p. 27.
67

O fundamento da beleza aparece em diversas definições sobre a ciência estética, entretanto, o


belo e a beleza podem se basear em vários critérios. Nesse sentido, o literato se questiona: o
que é beleza? Para responder a essa pergunta, Lima Barreto escolhe um autor que considera
claro, autorizado e profundo: o Taine.
[...] A Beleza para Taine, é a manifestação, por meio dos elementos artísticos e
literários, do caráter essencial de uma ideia mais completamente do que ela se acha
expressa nos fatos reais.
[...] Não é um caráter extrínseco de obra, mas intrínseco, perante o qual aquele
pouco vale. É a substância da obra, não são as suas aparências. 186

Com isso, nos diz que a importância da obra literária que encontra a beleza, sem
ignorar os atributos externos de forma, deve estar na “[...] exteriorização de um certo e
determinado pensamento de interesse humano, que fale do problema angustioso do nosso
destino em face o Infinito e do Mistério que nos cerca, e aluda às questões de nossa conduta
de vida.”187 Para melhor deslindar, usa como exemplo o livro de Dostoiévski, O Crime e o
Castigo. Resumindo o romance, Lima Barreto nos diz que a beleza dessa obra está

[...] na manifestação sem auxílio dos processos habituais do romance, do caráter


saliente da ideia que não há lógica nem rigor de raciocínio que justifiquem perante a
nossa consciência, o assassinato, nem mesmo quando é perpetrado no mais infinito e
repugnante dos nossos semelhante e tem por destino facilitar a execução de um
nobre ideal; e ainda mais: no ressumar de toda a obra que quem o pratica embora
obedecendo generalizações aparentemente verdadeiras, executando que seja o crime,
logo se sente outro – não é ele mesmo.188

Para Lima Barreto a literatura pode transformar a ideia, os preceitos, os sentimentos e a


regra. Através da literatura o argumento pode ser assimilável à memória do leitor e
incorporado por ele. Mais do que outra arte, a literatura tem o poder de contágio que a torna a
força da ligação entre os homens, contribuindo para uma harmonia entre eles. Nesse sentido, o
autor defende que esse deve ser o caminho a ser seguindo pela literatura, não o embasado nos
ideais arcaicos e mortos atribuídos à Grécia. E, sim, o caminho que a literatura deve tomar é
ser ancorada em um ideal imenso, onde se soldem as mais diferentes almas com semelhantes
sofrimentos, como, por exemplo, o da imensa dor de serem humanos.

Mesmo que a Grécia – o que não é verdade – tivesse por ideal de arte realizar
unicamente a beleza plástica, esse ideal não podia ser o nosso, porque, com o
acúmulo de ideias que trouxe o tempo, com a descobertas modernas que alargaram o
mundo e a consciência do homem, e outros fatores mais, o destino da Literatura e da
Arte deixou de ser unicamente a beleza, o prazer, o deleite dos sentidos, para ser
coisa muito diversa.189

186
Ibidem.
187
Ibidem.
188
Ibidem, p 22.
189
“O Destino da Literatura”. Revista Souza Cruz, outubro de 1921, p. 23.
68

A arte de forma geral, seguindo os ensinamentos de Guyan na obra A Arte sob o ponto
de vista sociológico, eleva o homem da vida pessoal para a vida universal pelos sentimentos
mais profundos dos seres humanos. Ela ementa a consciência da existência, os pensamentos
mais sublimes e os sentimentos mais elevados.190 O homem por meio da arte não se limita aos
preconceitos do seu tempo, ele incorpora a sua vida no mundo, indo muito mais longe,
alcançando a vida total do universo. A arte, incluindo a literatura, “[...] teve, tem e terá um
grande destino na nossa triste humanidade.”191 O destino da literatura é pregar o ideal de
fraternidade, a justiça e entendimento entre os homens, uma missão quase que divina.

Ela sempre fez baixar das altas regiões da abstração da Filosofia e das inacessíveis
revelações da Fé, para torná-las sensíveis a todos, as verdades que interessavam e
interessam a perfeição da nossa sociedade; ela explicou e explica a dor dos humildes
aos poderosos e as angustiosas dúvidas destes, àqueles; ela faz compreender, uns aos
outros, as almas dos homens dos mais desencontrados nascimentos, das mais
dispersas épocas, das mais divergentes raças; ela se apieda tanto do criminoso, do
vagabundo, quanto de Napoleão prisioneiro ou de Maria Antonieta subindo à
guilhotina; ela, não cansada de ligar as nossas almas, umas às outras, ainda nos liga
à árvore, à flor, ao cão, ao rio, ao mar e à estrela inacessível; ela nos faz
compreender o Universo, a Terra, Deus e o Mistério que nos cerca, para o qual abre
perspectivas infinitas de sonhos e de altos desejos.192

Para Lima Barreto, a arte, em especial a literatura, representava um fenômeno social. É


através da literatura que a harmonia entre homens poderia ser alcançada, é com ela que os
indivíduos teriam a chance de transformar os preconceitos e as ideias de uma sociedade. Por
ser um literato engajado nas lutas sociais do seu tempo, usou a literatura como meio de se
compreender e de expressar esse mundo através da linguagem. Os testemunhos encontrados
nas páginas da Revista Souza Cruz, deixam bem claro o que entendeu sobre o destino da
literatura e qual era a sua missão literária. Além disso, revelou as suas principais correntes
inspiradoras, o que contribuiu diretamente com a sua construção de autor.
Lima Barreto optou pela simplicidade, por criar personagens inspirados no seu
cotidiano. Interpretou e escreveu seu tempo vivido. Porém, engana-se quem acredita que
através de sua narrativa de fácil leitura não há um suporte teórico bastante requintado. De
acordo com Luciana da Costa Ferreira, a literatura feita por Lima Barreto é definida por
Antônio Candido como tendo "ares de rascunho” e era inspirada em escritores como

190
Ibidem, p. 23.
191
Ibidem, p. 24.
192
“O Destino da Literatura”. Revista Souza Cruz, novembro 1921, p. 24.
69

Dostoiévski e Cervantes. 193 Esses autores contribuíram diretamente com a missão do literato,
formando as bases da sua literatura militante.
Ferreira chama atenção para o grande estudo feito pelo autor, construindo seus escritos
com influências de nomes importantíssimos. Lima Barreto criou o seu suporte teórico e,
apesar das suas limitações econômicas, teve acesso às leituras que vinham de fora do Brasil,
como, por exemplo, Voltaire, Dostoiévski, Tolstoi, Balzac, Flaubert, Eça, Taine, Bouglé e o
Ribot. Ele mesmo confessa ter estudos esses nomes e ter buscado neles o segredo do fazer.
Lima Barreto fez uma literatura de qualidade, ainda que tenha sido acusado de desleixo por
muitos críticos. O literato buscou inspirações nesses autores, em especial nos russos, para se
construir e realizar a sua literatura autobiográfica, critica, denunciante e militante.

Dostoiévski, dentre todos os autores russos, recebeu uma atenção especial de Lima
Barreto. O autor de Crime e Castigo ficcionalizou a sua vida tal como Barreto
também fez. Além disso, o autor russo representou em suas obras, as grandezas e
misérias de seu país, caminho seguindo também pelo escritor brasileiro. Ademais,
Dostoiévski registrou seu sofrimento de ser um prisioneiro e Barreto o de estar
internado em um hospício. Em Recordações da Casa dos Mortos, de Dostoievski, e
Cemitério dos Vivos, de Lima Barreto, os autores transformaram as suas
experiências de cárcere forçado em inspiração para a matéria-prima de seus
romances. Os sofrimentos no real foram transportados para a ficção.194

Essa análise sobre Revista Souza Cruz e sobre a atuação de Lima Barreto em suas
páginas é importante visto que, em muitos momentos, seus escritos foram silenciados pela
própria imprensa e as suas obras sofreram muitos tabus por parte de alguns editores. Os
organizadores das páginas do periódico estudado consideraram Lima Barreto parte dos
“vultos de valor” da intelectualidade, mesmo que as suas ideias fossem opostas a muitos dos
importantes nomes da intelectualidade da época, como, por exemplo, o próprio Coelho Neto.
Lima Barreto usou das páginas dessa revista com um dos meios para legitimar a sua ação
intelectual, defendendo a transformação social e denunciando o racismo à deriva do Estado.
Fazendo uso de uma escrita simples, porém, cheia de referências sofisticadas, que
demonstrando a dedicação, tinha na produção a sua construção literária.
Mesmo que a Revista Souza Cruz não tenha declarado, de maneira aberta, seu perfil, a
colaboração de Lima Barreto diz um pouco das escolhas que esse periódico fez durante a sua
existência. Apesar das diversidades de autores e temas, esse espaço propagou as ideias de
Lima Barreto até mesmo depois da sua morte. Como é o caso o romance Clara dos Anjos, que
saiu pela primeira vez em folhetim pela revista, logo depois de falecimento.

193
FERREIRA, Luciana da Costa. “Os percursos literários do leitor Lima Barreto”. Revista Garrafa 24, Rio de
Janeiro, v. 9, n. 26, p. 1 – 13, mai./ago. 2011.
194
Ibidem.
70

Inclusive, sobre a publicação do romance pela Revista Souza Cruz, há uma evidência
que contribui para afirmarmos que foi o próprio autor quem decidiu que aquela versão sairia
no periódico. Em uma carta enviada a Almáquio Cirne, em 5 de janeiro de 1921, Lima
Barreto faz referências aos livros inéditos que tinha nas mãos de diversos editores naquele
momento. Ao final dessa carta, depois de reclamar da falta de pressa que os editores tinham
para imprimir suas obras, o literato avisa ao amigo sobre a publicação de um dos seus
romances que sairia nas páginas da Revista Souza Cruz.

Acabo um romance que vou publicar seccionado na Revista “Souza Cruz”, cuja
diretoria me encomendou há um ano. Desenvolvi um conto, Clara dos Anjos, que
está no meu último livro. Saiu coisa bem diferente, se bem que o fundo seja o
mesmo. O título é o do conto.195

Lima Barreto não teve tempo de ver impressa essa obra, apenas sua outra versão em
conto. A revista manteve a publicação do folhetim e de muitos outros trabalhos inéditos do
autor, o que contribuiu diretamente para a divulgação da sua ação política realizada através de
sua literatura. Até o fim da revista, o nome Lima Barreto apareceu em um total de 48 vezes,
sem contar com as edições que se perderam com tempo, o que impossibilitou uma verificação
exata. Aqui escolhemos analisar apenas alguns deles, mas a atuação do literato no periódico
foi bastante significativa e foi através das páginas a Revista Souza Cruz que o romance Clara
dos Anjos pode se recuperado e pôde tornar-se livro, vencendo as consequências do tempo.

195
BARRETO, Lima, escritor e jornalista. Carta a Almáquio Cirne, referindo-se aos livros inéditos que tinha em
mão de diversos editores. Todos os Santos (RJ), 5 de jan. 1921. Série Correspondência enviada. 2 p. Dat. Orig.
Coleção Lima Barreto. Disponível em:
http://objdigital.bn.br/objdigital2/acervo_digital/div_manuscritos/mss1448652/mss1448652.pdf. Acesso em: 01
nov. 2020.
71

3. AS CLARAS DOS ANJOS DE LIMA BARRETO.

3.1. A FICÇÃO COMO TESTEMUNHO HISTÓRICO:

Parece-me que o nosso dever de escritor sincero e honesto é deixar de lado todas as
velhas regras, toda a disciplina exterior dos gêneros, e aproveitar de cada um deles o
que puder e procurar, conforme a inspiração própria, para tentar reformar certas
usanças, sugerir dúvidas, levantar julgamentos adormecidos, difundir as nossas
grandes e altas emoções em face do mundo e do sofrimento dos homens, para soldar,
ligar a humanidade em uma maior, em que caibam todas, pela revelação das almas
individuais e do que elas têm em comum e dependente entre si. 196
Não desejamos mais uma literatura contemplativa, o que raramente ela foi; não é
mais uma literatura plástica que queremos, a encontrar beleza em deuses para
sempre mortos, manequins atualmente, pois a alma que os animava já se evolou com
a morte dos que os adoravam.
Não é isso que os nossos dias pedem; mas uma literatura militante para maior glória
da nossa espécie na terra e mesmo no Céu. 197

Afonso Henriques de Lima Barreto usou a sua literatura como um testemunho


histórico para abordar os problemas de sua época. Clara dos Anjos é uma de suas
companheiras na trajetória literária que travou durante toda a sua vida. A primeira vez que a
narrativa apareceu entre os seus escritos foi em 1904, entretanto, em 1903, nas páginas
iniciais do seu Diário Íntimo, o jovem Lima Barreto escrevendo sobre a sua origem, já
deixava claro a intenção de escrever a “história da escravidão negra no Brasil e a sua
influência na nossa nacionalidade”, projeto que possivelmente seria iniciado com a narrativa
de Clara dos Anjos. Apesar da sua pouca idade, tendo 22 anos, Barreto já sabia qual era o
objetivo da sua literatura social. “Eu sou Afonso Henriques de Lima Barreto. Tenho 22 anos.
Sou filho legítimo de João Henriques de Lima Barreto, fui aluno da Escola Politécnica. No
futuro, escreverei a História da escravidão negra no Brasil e sua influência na nossa
nacionalidade.”198

Ainda que jovem, nesse momento de sua vida já sentia as consequências que as
condições de negro e pobre lhe trazia. Muito antes disso, em sua infância, o literato constatou
o estigma gerado pelo racismo. Em 16 de maio de 1908 escrevendo em seu diário sobre a
“mania de suicídio”, que tinha desde criança, deixou transparecer esse sentimento. O primeiro
momento em que sentiu uma tristeza tão forte capaz de desejar tirar a própria vida foi aos sete
anos, logo após a morte de sua mãe, quando passou por um episódio em que foi acusado
injustamente de furto. O menino Lima Barreto que sofria pela recente perca de sua
196
BARRETO, Lima. Lima Barreto: obra reunida, op.cit., p 12.
197
Ibidem, p. 13.
198
Ibidem, p. 452.
72

progenitora, ainda teve que experienciar as injustiças e as dores causadas pelo racismo, que já
o havia condenado desde o seu nascimento. Aos 27 anos escrevendo linhas cheias de dores, o
literato ainda era acompanhado pela vontade de tirar a própria vida, o que lhe faltava, apenas,
dizia ele, era a coragem. Antes, quando mais novo, o que lhe impediu foi a certeza da sua
inteligência. Mas em sua juventude, cansado e insatisfeito com o rumo que a sua vida vinha
tomando, Lima Barreto já se sentia amolado e colocava em dúvida a única coisa que lhe daria
a felicidade que tanto almejava: sua intelectualidade.

Mulato, desorganizado, incompreensível e incompreendido, era a única coisa que


me encheria de satisfação, ser inteligente, muito e muito! A humanidade vive das
inteligências, pelas inteligências e para a inteligências, e eu, inteligente, entraria por
força na humanidade, isto é, na grande humanidade de que quero fazer parte.199

Uma passagem no livro de Fanon pode nos ajudar a compreender um pouco essa
declaração do literato. 200 Fanon nos conta que M.Achille, um professor universitário negro
em Lyon, cidade da França, ao participar de uma conferência, narrou um episódio pessoal que
sofreu em uma peregrinação de estudantes. Durante o ritual religioso, um padre, percebendo a
presença do professor, chegou perto e lhe perguntou o motivo de estar ali fazendo uso,
enquanto perguntava, de uma linguagem estigmatizada, a qual Fanon chamou de petit-nègre.
Como resposta, Achille usou de um francês pronunciado muito corretamente, o que
constrangeu o padre. Com essa história, Fanon chama atenção para algumas observações: a
primeira delas é sobre o fato de um branco, ao se dirigir ao negro, escolher usar uma
linguagem que o infantiliza com a intenção de se aproximar e de se fazer entendido,
colocando o sujeito negro na posição de uma criança diante de um adulto; o segundo ponto é,
ao fazer uso desse tipo de linguagem, o branco estigmatiza o negro, aprisionando-o em uma
ideia definida, onde a sua intelectualidade e a sua civilidade são limitadas pelo tom de sua
pele. A partir dessa reflexão, podemos pensar o caso de Lima Barreto, que mesmo provando
sua inteligência, teve o acesso ao verdadeiro mundo intelectual da época – o branco – negado
a todo momento. Por isso, a sua “mania de suicido”, diante dessa situação, pode ser entendida
pelo fato dele ter constatado, em sua juventude, que mesmo possuindo as qualidades
necessárias para ingressar na humanidade, elas não seriam reconhecidas ou suficientes.

Quando um outro tenta obstinadamente me provar que os negros são tão inteligentes
quanto os brancos, digo: a inteligência também nunca salvou ninguém, pois se é em
nome da inteligência e da filosofia que se proclama a igualdade dos homens,
também é em seu nome que muitas vezes de decide seu extermínio.201

199
BARRETO, Lima. Lima Barreto: obra reunida, op.cit, p. 544 – 545.
200
FANON. Frantz. Pele negra, máscaras brancas. op.cit.
201
Ibidem, p.43.
73

Sem possuir nenhum status social relevante diante da sociedade brasileira do


momento, o jovem Lima Barreto, vindo de uma origem humilde e marcada pela escravidão e
o racismo, assumiu a luta contra as desigualdades dessa sociedade preconceituosa. Como já
foi abordado nesse trabalho, Lima Barreto usou de sua literatura militante contra o racismo e
as injustiças sociais. Em seus escritos, ele explicita bem a sua posição de negro, reafirmando
as suas origens étnicas e a sua situação social. De acordo com Álvaro Santos Simões Junior, o
romancista sacrificou toda a sua vida em prol de dignificar a sua profissão. 202 Lima Barreto
não aceitou submeter sua intelectualidade aos interesses dos criadores e beneficiários
republicanos e atribuiu para a sua arte o papel de combate aos preconceitos. Podemos dizer
que o autor de Clara dos Anjos se inclui como parte dos intelectuais brasileiros que fez da
narrativa uma arma de luta pela liberdade. Assim como o poeta Luiz Gama, que, cerca de 50
anos antes do nascimento de Lima Barreto, usou de suas palavras contra os crimes e as
injustiças da escravidão. A escritora Ligia Fonseca Ferreira em seu trabalho sobre o Luiz
Gama, nos diz que por muito tempo a importância do poeta foi diminuída, muito pelo fato
dele ser um negro autodidata e ex-escravizado, o que, de acordo as barreiras e crenças
científicas da época, o faria jamais poder representar dignamente a literatura brasileira. 203
Contrariando essa ideia, Luiz Gama sem medo de se posicionar como um autor entre o
preconceituoso círculo de letrados brancos, denunciou através da sua voz poética e erudita os
crimes políticos, étnicos e raciais do período imperial. Com isso, Ferreira nos diz que Luiz
Gama prenunciou os futuros escritores como Cruz e Sousa e Lima Barreto, que também
fizeram das suas palavras e dos seus saberes a liberdade diante de uma sociedade injusta. 204
Esses autores, como tantos outros sujeitos, podem ser entendidos como mola de corrente bem
maiores, complexas e seculares inauguradas desde a captura na África, a travessia do
Atlântico e nas Américas. Com um olhar de longa duração, entendemos esses intelectuais
como parte de um grupo de pessoas oriundas de diversas sociedades, classes sociais,
profissionais e culturais que lançaram as bases do que viria a ser a democracia política das
Américas: liberdade, igualdade e justiça social. Lima Barreto e Luiz Gama não são somente
descendentes dessas pessoas, mas sobretudo, dão continuidade as lutas iniciadas por eles em
prol da igualdade e da justiça.

Coincidência ou não, Lima Barreto nasceu em 13 de maio de 1881, sete anos antes da
abolição institucionalizada da escravatura. Esse evento ficou marcado em sua mente e

202
SIMÕES JUNIOR, Alvaro Santos. Estudos de literatura e imprensa. São Paulo: Editora da Unesp, 2014.
203
FERREIRA, Lígia Fonseca. Com a palavra Luiz Gama. São Paulo: Editora Imprensa Oficial, 2011.
204
Ibidem, p. 38 – 39.
74

registrado em seus escritos. O literato e o seu pai foram juntos assistir os festejos da abolição
no Largo do Paço e também foram à missa campal no Campo de São Cristóvão, onde se
somaram a uma multidão ansiosa pelo fim da escravidão. O autor escreveu que o clima desse
momento foi de uma alegria total como nunca vira antes, o que gerou um sentimento de vida
em harmonia. Não só ele, como todas as crianças do colégio em que estudava ficaram
contentes com a nova lei. Mesmo sem saberem seu real sentido, o sentimento era de
liberdade.205 Ainda que não tenha conhecido a injustiça da escravidão, pessoalmente, como
Luiz Gama, o literato era intimamente atingindo por ela. Neto de escravizados, como bem
aponta Francisco de Assis Barbosa, foi através da ficção que Lima Barreto procurou explicar
o próprio caso, retomando as origens da sua família e fazendo dela os personagens das suas
histórias. 206 Isso acontecem tanto no romance de Clara dos Anjos, como em muitos de seus
outros escritos.

De acordo com Sidney Chalhoub e Leonardo Pereira assumir uma perspectiva da


história social da literatura implica “adotar um pressuposto necessariamente materialista de
análise”207, ou seja, intenção é inserir a literatura no movimento da sociedade e da realidade
em que foi produzida e está relacionada, mesmo que não assuma essa relação de forma
direta.208 Isto é,

[...] é preciso desnudar o rei, tomar a literatura sem reverências, sem reducionismo
estéticos, dessacralizá-la, submetê-la ao interrogatório sistemático que é uma
obrigação do nosso ofício. Para historiadores a literatura é, enfim, testemunho
histórico.209

Nesse sentido, os autores afirmam que a literatura é evidência histórica. O que cabe ao
historiador é fazer as perguntas corretas para que a obra ficcional não caia no pressuposto da
falta de evidências objetivas. Para isso, apresentam duas observações que são importantes
neste caso. Como primeiro caminho, os autores apontam para a necessidade de “destrinchar
sempre as especificidades de cada testemunho”, seja ele ficcional ou não. O papel do
historiador é produzir o interrogatório que desvende a lógica social do texto. 210 O segundo
pressuposto é a necessidade de o historiador reconhecer as características próprias da
literatura. Nesse momento, cabe ao pesquisador social elaborar perguntas obrigatórias para

205
BARBOSA, Francisco de Assis. A vida de Lima Barreto, op. cit., p 55 – 56.
206
Ibidem, p. 35.
207
Ibidem, p.7
208
CHALHOUB, Sidney; PEREIRA, Leonardo A. de Miranda (orgs.). A história contada: capítulos da história
social da literatura no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988.
209
Ibidem, p.7.
210
Ibidem, p.8.
75

esse tipo de pesquisa como, por exemplo: “De que literatura está falando? Quais as suas
características? Como determinado autor – ou ‘escola’ – concebe a sua arte?” 211
Dito isto,
confirmam dizendo que o que realmente é importante na pesquisa são os processos históricos
no qual essas obras e esses autores estão refletindo através dos seus enredos e dos seus
personagens, “o que interessa é inserir autores e obras literárias específicas em processos
históricos determinados.”, ou seja, cabe ao historiador perceber os diálogos, a interlocução e
os debater que os literatos travaram em seus escritos. 212

Como exemplo de análise, temos o artigo “Diálogos Políticos em Machado de Assis”


de Sidney Chalhoub. Neste trabalho, o autor, por meio das obras de Machado de Assis, vai
abordar as políticas de dominação da sociedade brasileira no século XIX e os seus diálogos
para além das relações verticais, apresentando os interesses horizontais e as solidariedades
que aconteciam fora do poder senhorial. 213 Por isso, o autor apresenta através de Machado de
Assis o “território do diálogo, da troca cotidiana direta entre senhores e escravos, senhores e
dependentes”, lugares de disputas e práticas sociais e políticas ambíguas que se estendiam
afora da simples vontade dos senhoriais. Machado de Assis, de acordo com Chalhoub, foi um
grande intérprete dessa troca e discursos dos dominados.214

Como outro exemplo, temos o “História em Coisas Miúdas” organizado por Sidney
Chalhoub, Margarida Neves e Leonardo Pereira.215 Neste trabalho, os volumes publicados
abordam a relação entre crônica e testemunho histórico a partir de vários escritores
brasileiros. Os historiadores, por meio da crônica, apresentam as conexões entre o gênero e
os acontecimentos sociais de diversos períodos. Nesse sentido, reconhecem nesses textos
expressões e intervenções da realidade. Apesar de interagirem com os acontecimentos do seu
tempo, somente recentemente esses textos receberam mais atenção e a importância deles foi
valorizada, “tanto como campo da experimentação literária quanto como testemunho de um
tempo vivido.”216 A crônica então, usa como matéria-prima as discussões e as tensões do
contexto em que são produzidas. Sem a intenção de resumir a definição e as características
desse gênero, os historiadores afirmam que o significativo é abordar a historicidade dessas

211
Ibidem, p.8.
212
CHALHOUB, Sidney; PEREIRA, Leonardo A. de Miranda (orgs.). A história contada. op. cit., p.8.
213
CHALHOUB, Sidney. Diálogos políticos em Machado de Assis. A história contada: capítulos da história
social da literatura no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, p. 95-122, 1998
214
Ibidem, p.97.
215
CHALHOUB, Sidney; NEVES, Margarida S., PEREIRA, Leonardo A. M.(org.), História em cousas miúdas:
capítulos de História Social da crônica no Brasil. Campinas: Ed. da Unicamp, 2005.
216
Ibidem, p.14.
76

narrativas, por isso, é necessário ter um olhar crítico que “enxerga onde as grandes vistas não
pegam” como salientou Machado de Assis. 217

É a partir desse campo teórico e metodológico que analisaremos algumas das versões
do romance Clara dos Anjos escrito por Afonso Henriques de Lima Barreto. A proposta é, a
partir dos movimentos das personagens, entender o debate e o sentido político que o literato
travou através dessa obra, principalmente, como as injustiças e o racismo atravessaram toda a
sua escrita.

3.2. A PUBLICAÇÃO DO LIVRO CLARA DOS ANJOS: UM SONHO QUE NÃO SE


REALIZOU.

A primeira edição de Clara dos Anjos em formato de livro é de 1948, editado e


lançado pela Editora Mérito S. A. Em uma coluna da Revista da Semana (RJ) de 1949, João
218
Luso avalia a atitude da editora em lançar e divulgar os livros do literato. O autor da
publicação diz que por muito tempo Lima Barreto ficou fora das evidências das livrarias. De
forma geral, o literato foi, por muitas vezes, ignorado e não recebeu o merecido
reconhecimento dos famosos homens das letras. João Luso reconheceu o valor dos livros de
Lima Barreto e exaltou a atitude da Editora Mérito que se propôs a divulgá-los.
Quem sabe dos seus excessos e desregramento de pobretão estúdio; da baixa boêmia
de tantos dias seguidos, as andadas intermináveis pela cidade, à mercê dos
empréstimos baratos e das libações ordinárias – não admite racionalmente e só vem
a reconhecer perante a realidade dos fatos tal soma e tal qualidade de esforço
realizado. Perdoadas – e que remédio! – certas irregularidades ou incoerências de
linguagens, tudo o mais nas suas obras: intensidade e vivacidade de observação;
poderosa desenvoltura de execução; sinceridade flagrante de comentários – merece
mais do que a atenção atraída pelos livros meramente interessantes. Os de Lima
Barreto em verdade se impõem ao respeito de se fazer amar. Deixou de ser tornar
necessário julgá-los; o que cumpre é divulga-los o mais possível. Eis o que a
Méritos S.A., em edições populares, está fazendo; e honra por isso lhe seja.219

A editora responsável pela primeira edição de Clara dos Anjos surgiu no ano de 1947.
Tinha sua sede matriz na Rua Miguel Couto, número 35, Rio de Janeiro. Possuía também uma
filial na Rua 7º de Abril, número 34 na cidade de São Paulo. No Jornal do Comercio de 1° de
julho de 1947, foi publicado o texto, outorgado em cartório, que oficializava o surgimento
dessa editora. “[...] aos quatorze dias do mês de abril, nesta cidade do Rio de Janeiro, em meu
cartório, à rua Buenos Aires número quarenta e sente”.220 Em presença do tabelião Fernando
de Azevedo Milanez e de algumas testemunhas outorgantes, se constitui uma sociedade
217
Ibidem, p. 13 – 20.
218
BARRETO, LIMA. Clara dos Anjos. Rio de Janeiro: Editora Mérito, 1948.
219
“Livros Novos”. Revista da Semana, 19 de março de 1949.
220
“Escritura de constituição da Editora Mérito S.A.”. Jornal do Comércio, 1 de julho de 1974, p. 12.
77

anônima que tinha como objetivo a edição, a impressão, o encadernamento, a fabricação, a


manufaturação, a importação, a exportação, a venda, a publicação e a negociação de livros
pelo Brasil e exterior.

Essa jovem editora, já em seu primeiro ano nos negócios dos livros, decidiu editar e
reeditar algumas das obras do literato brasileiro. Além de Clara dos Anjos, a editora foi
responsável pela reedição do romance O Triste fim de Policarpo Quaresma, também no ano
de 1948. Em 22 de maio de 1949, o jornal Diário Carioca divulgou mais um lançamento
proporcionado pela Editora Méritos, o livro Recordações do Escrivão Isaias Caminha. Em
agosto desse mesmo ano, ainda prosseguindo as publicações das obras de Lima Barreto, a
editora apresentou o romance Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá. Essa reedição foi
dividida em dois livros, já que o volume continha trezentas páginas, e, além do romance, a
obra foi completada com dezoito contos extraídos de jornais e revistas, ademais de possuir o
prefácio escrito por Paulo Rónai.221

Essa atitude de divulgar as obras de Lima Barreto, proporcionada pela editora,


trazendo para a cena literária os trabalhos que por muito tempo foram esquecidos, possibilitou
a reflexão sobre o valor de um livro publicado: nesse caso, em específico, publicação, esta,
que o autor tanto desejou durante toda a sua vida. Lima Barreto desde o início da sua vida
literária sonhava com esse reconhecimento, desejava viver da arte da escrita e ser admitido no
meio literário. Com uma literatura militante, muito crítica e sarcástica, ligada às ideias
revolucionarias e contra os males da sociedade brasileira, não foi em qualquer lugar que Lima
Barreto pôde editar e expor as suas obras. O autor nunca aceitou esconder as suas convicções
ou abdicar das suas lutas para, assim, conquistar um lugar no mundo reconhecido da
literatura.

Com uma ânsia de produção, escreveu vários projetos, alguns foram abandonados pelo
caminho, outros o acompanharam por toda sua vida. Um deles, talvez o primeiro e o que
mais deu sentido a toda sua trajetória literária, foi o de escrever uma história sobre a
escravidão negra no Brasil e as suas influências na construção de uma nacionalidade
brasileira222. Desejou produzir uma espécie de Germinal negro, que seria a sua grande obra-

221
Diário de Notícia,14 de agosto de 1949, p. 3; Diário de Notícia, 21 de agosto de 1949, p. 3.
222
Isso pode ser visto com muita clareza em seu diário íntimo. “Eu sou Afonso Henriques de Lima Barreto.
Tenho vinte e dois anos. Sou filho legítimo de João Henriques de Lima Barreto. Fui aluno da Escola Politécnica.
No futuro, escreverei a História da Escravidão Negra no Brasil e sua influência na nossa nacionalidade”. Ver em:
BARRETO, Afonso Henriques de Lima. Diário íntimo: Memórias [1953]. BARBOSA, Francisco de Assis
(ORG.). São Paulo: Brasiliense, 1956, p.4.
78

prima, onde, de acordo com Barbosa, a intenção era “introduzir em nossa literatura uma nova
escola, o “negrismo”.223

Provavelmente, a referência literária da intenção de escrever um Germinal negro veio


de obra de Émile Zola publicada em 1885. De acordo com Eduardo Cesar Ferreira da Silva 224,
os escritos de Zola chegaram inicialmente no Brasil por meio dos jornais franceses e
portugueses, que eram lidos nas principais cidades brasileiras. Outra evidência da circulação e
recepção de Zola no Brasil, apontada pelo autor, está relacionada aos anúncios feitos pelas
livrarias do Rio de Janeiro, onde as obras do literário apareciam nos catálogos.225 Com isso,
podemos deduzir que a alusão à obra de Zola nos escritos de Lima Barreto demonstre uma
certa influência do chamado “pai do naturalismo” no projeto que o literato pretendia
desenvolver.

Veio-me à ideia, ou antes, registro aqui uma ideia que me está perseguindo.
Pretendo fazer um romance em que se descrevam a vida e o trabalho dos negros
numa fazenda. Será uma espécie de Germinal negro, com mais psicologia especial e
maior sopro de epopeia. Animará um drama sombrio, trágico e misterioso, como os
do tempo da escravidão. Como exija pesquisa variada de impressões e eu queira que
esse livro seja, se eu puder ter uma, a minha obra-prima, adiá-lo-ei para mais tarde.
Temo muito pôr em papel impresso a minha literatura. Essas ideias que me
perseguem de pintar e fazer a vida escrava com os processos modernos do romance,
e o grande amor que me inspira — pudera! — a gente negra, virá, eu prevejo, trazer-
me amargos dissabores, descomposturas, que não sei se poderei me pôr acima delas.
Enfim — “une grande vie est une pensée de la jeunesse réalisé par l’âge mür”, mas
até lá, meu Deus! que de amarguras! que de decepções! Ah! Se eu alcanço realizar
essa idéia, que glória também! Enorme, extraordinária e — quem sabe? —uma fama
europeia. Dirão que é o negrismo, que é um novo indianismo, e a proximidade
simplesmente aparente das coisas turbará todos os espíritos em meu desfavor; e eu,
pobre, sem fortes auxílios, com fracas amizades, como poderei viver perseguido,
amargurado, debicado?
Mas... e a glória e o imenso serviço que prestarei a minha gente e a parte da raça a
que pertenço. Tentarei e seguirei avante. “Alea jacta est”. Se eu conseguir ler esta
nota, daqui a vinte anos, satisfeito, terei orgulho de viver! Deus me ajude!226

O Germinal, de Zola, conta a história da vida e das condições precárias dos operários
franceses em uma mina de carvão na França. O enredo da obra gira entorno das lutas dos
trabalhadores por melhorias, o que ocasionou inconformidades e revoltas. A obra é composta
por uma história com ar de realidade, onde os personagens são descritos não de forma
idealizada e romântica, mas como seres humanos reais passíveis de erros e de falhas, tomando
consciência da sua situação social. Essa obra fez parte do ciclo Rougon-Macquart publicados

223
BARBOSA, Francisco de Assis. A vida de Lima Barreto, p 152.
224
SILVA, Eduardo Cesar Ferreira da. Obra de Émile Zola no Brasil: Textos e notas para um estudo de
recepção crítica. Dissertação (Mestrado) –Universidade Federal de Santa Cantarina, Centro de Comunicação e
Expressão. 1999.
225
Ibidem, p. 24 – 28.
226
BARRETO, Lima. Lima Barreto: obra reunida, op. cit, p. 498.
79

entre o ano de 1870 e 1893, com o total de 20 volumes. De acordo com Eduardo Cesar
Ferreira da Silva, foram esses trabalhos que trouxeram para o autor a fama e o dinheiro.227
Nelson Werneck Sodré nos diz que no Germinal, de Zola, volta-se para a classe operária do
mineiro. Como era de costume em suas criações, o autor leu autores socialistas, percorreu as
regiões das minas, conversou com trabalhadores e andou pelas aldeias onde moravam
operários, para assim produzir a obra.228

Sodré salienta que o naturalismo, o qual Zola é uma grande referência, surgiu no Brasil
em um momento de muitas mudanças, tanto políticas – com a república e a abolição –, como
mudanças no comportamento da população – destacando-se, aqui, a urbanização, o avanço da
burguesia, o crescimento ferroviário e a ampliação dos jornais. Ou seja, esse movimento
literário surge em um momento onde ocorriam grandes transformações políticas, filosóficas,
cientificas e sociais. Crítico do movimento, N. W. Sodré diz que a importância do naturalismo
pode ser conferida pelo fato de que a literatura mudou os seus processos, se adequando ao
momento, criando formas que pareciam mais apropriadas para operar e acompanhar as
consequências das mudanças da sociedade. Nesse sentido, não demorou para a literatura
buscar enquadrar o conjunto social com novos instrumentos capazes de dar conta dos novos
temas. “O naturalismo, por isso, foi a criação de uma época e sua universalização
correspondeu menos à universalização das transformações que se vinha operando, o que era
impossível, do que à universalização de seus efeitos”. 229
Caracterizando o papel de Zola,
Sodré alegou que foi a curiosidade universal que assinalou seu ofício.

“[...]curiosidade que se explicava pela necessidade de dar guarida a tudo aquilo que
vinha afetando, de forma tão profunda, a vida em sociedade. Curiosidade que
chegou aos limites da bisbilhotice, que se perdeu, por isso mesmo, em número
detalhes, desmandando-se em minúcias desprovidas de significação, perdendo-se em
pesquisas estéreis, despojadas de importância, para a vida como para a literatura.
Ver bem não era ver tudo, já naquele tempo.”230

Ou seja, de acordo com essa ideia, o levantamento extensivo feito pelo naturalismo fez
com que muitas das suas criações perdessem a substância literária. Por isso, o autor diz que a
leitura desses naturalistas, onde Zola é o representante, se tornou cansativa. Transportar para a
criação literária os recursos científicos, foi a armadilha que condenou o movimento, já que, os
recursos serviam de maneira ampla, mas o seu uso e abuso na interpretação dos sentimentos

227
SILVA, Eduardo Cesar Ferreira da. Obra de Émile Zola no Brasil. p. 30.
228
SODRÉ, Nelson Werneck. O Naturalismo no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965, p. 33.
229
Ibidem, p. 33, p. 202.
230
Ibidem, p. 203.
80

eram inadequados para representar a realidade. Porém, ele não anula a importância do
movimento, o naturalismo elucidou novos caminhos e concepções.

Alan Flor tendo o objetivo de construir um dialogo a partir do olhar dos próprios
romancistas acerca do naturalismo, elaborou um trabalho observando os pontos convergentes
e divergente dos próprios pertencentes a escola. 231 A autora diz que esse movimento estético-
literário foi colocado em um lugar de marginalização no campo da história da literatura
brasileira, sobretudo, devido ao olhar da crítica literária. Analisando os discursos de José
Veríssimo e Sílvio Romero, Flor diz que os autores defenderam que o naturalismo no Brasil
não foi um movimento acabado. O termo era mais usado para se estabelecer uma diferença
com o romantismo do que para delimitar seus preceitos. Veríssimo e Romero criticaram a fato
de o movimento estético-literário ter sido uma imitação do modelo francês. Romero ainda
salienta que o mérito da fundação da doutrina não decorreu dos aptos brasileiros, que criaram
uma imitação de maneira não habilidosa. Veríssimo aponta que a importação do movimento
sem nenhuma alteração ligada a legitimidade brasileira contribuiu para a desqualificação.
Outro problema apontado por esses dois autores e exposto por Flor, foi que os adeptos do
naturalismo brasileiro remeteram o movimento somente à figura de Émile Zola, deixando de
lado outros escritores que tornariam a doutrina mais promissora, ou seja, reduzindo a escola
ao trabalho de Zola. Outra crítica bem acentuada feita ao movimento naturalista brasileiro foi
sobre o seu caráter pornográfico, criando uma imagem pouco literária para o naturalismo.

Com uma visão diferente, Flor apresenta a concepção de Araripe Júnior. Segundo ele,
esse autor foi o primeiro a enxergar o movimento para além de uma imitação europeia. O
naturalismo brasileiro, de acordo com Araripe Júnior, ainda que importado da Europa, sofreu
modificações e adaptações da realidade social e política do Brasil, visto que, ao ser importado,
não permaneceu exatamente igual ao que era em seu lugar de origem. Nesse sentido, a
adaptação brasileira é uma qualidade, pois, de acordo com Araripe Junior, o modelo europeu
se ajustou à realidade brasileira.232 Os defensores do naturalismo legitimam os seus discursos
justificando que diferente da simples imitação da obra de Zola, o que sentem por esse escritor
é admiração. Afirmam que o movimento possibilitou a construção de obras para além da
receita literária dos romances românticos, abrindo as portas para o século XX. O naturalismo
seria então, conforme os seus defensores, o “´[...] resultado da evolução e a única forma pela

231
FLOR, Alan. “O Naturalismo no Brasil Sob Suspeição”. In: ABRALIC (Org.). Anais do XIV Congresso
Internacional Fluxos e correntes: trânsitos e traduções literárias. Belém, Pará: Abralic, 2015.
232
Ibidem.
81

qual a literatura contemporânea poderia atender às exigências dos leitores e dos críticos de seu
tempo.233

Analisando o modo como a literatura estava sendo pensada nesse período, o


cientificismo passou a compor a base do conhecimento dessa renovação literária, onde os
movimentos naturalistas, darwinistas, positivistas e evolucionistas influenciaram na
interpretação da realidade. O método naturalista de análise fez parte dessa visão e
compreensão de uma literatura mais comprometida com a transformação social. É circulando
por esse ambiente que Lima Barreto produz a sua escrita literária. Já apontamos o contato que
o autor teve com o positivismo durante o seu período na Politécnica. Ainda que tenha
produzido posteriormente uma crítica ao movimento, o literato era um leitor assíduo e
também foi influenciado pelo ambiente intelectual da época. Percebemos isso inclusive, pelas
próprias referências literárias que declarou em seus testemunhos.

Taine foi uma das referências para o autor, assim como o naturalista Eça de Queiroz,
por quem tinha grande admiração. Entretanto, apesar da crítica à objetividade do
conhecimento cientificista, Lima Barreto foi um homem do seu tempo e os princípios teóricos
com pressupostos naturalistas propagados no contexto o atingiram. N. W. Sodré no trabalho
referenciado, afirma que mesmo em épocas diferentes, as imposições do naturalismo não
deixaram de ocupar o lugar de importância no desenvolvimento literário. Suas heranças e
alguns dos seus elementos foram transferidos para literatura moderna.234 Essa afirmação nos
ajuda a justificar a proximidade de Lima Barreto com o movimento.

O autor de Clara dos Anjos, porém, ao recorrer ao naturalismo de Zola, injetou nele o
protagonismo dos seus ancestrais e, em simultâneo, fez desses corpos negros os sujeitos e os
atores principais na arquitetura da modernidade brasileira. Os preceitos do naturalismo, nos
escritos de Lima Barreto, foram enegrecido e, com isso, o autor introduziu no movimento
questões raciais e abordou as atrocidades de uma sociedade hierarquizada que Emile Zola não
comentou. O “pai do naturalismo” focou os seus escritos apenas na realidade do cotidiano dos
trabalhadores brancos franceses do século XIX e ignorou as violências cometidas aos negros.
Ainda que a Revolução Francesa tenha pregado a liberdade, cabe questionar: que liberdade
era essa? Que grau de pessoas ela atingiu? Dado que a consolidação do capitalismo
estruturante no contexto francês trouxe consigo novas formas de hierarquização da sociedade.

233
Ibidem, p.9.
234
SODRÉ, Nelson Werneck. O Naturalismo no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965. p. 213.
82

Pap Ndiaye, observou que desde o século XVIII as autoridades criaram leis que proibiam a
estadia de franceses negros na metrópole, como, também, proibiam o casamento inter-
racial.235 Nesse sentido, a prerrogativa da igualdade, um dos princípios estruturantes da
república, foi negada aos negros. Ao longo dos séculos XIX e XX, as autoridades francesas
instituíram leis implacáveis para fazer da França um país exclusivamente branco, como
discorre, em seus estudos, o autor Joseph Zobel, entretanto, esses acontecimentos não
aparecem na narrativa de Émile Zola, que abordou em seu Germinal as péssimas condições de
vida dos trabalhadores das minas de carvão no interior da França. 236

A partir dessa reflexão, podemos apontar as diferenças dos escritos de Émile Zola para
os escritos desenvolvidos por de Lima Barreto. Diferente do autor francês, o literato brasileiro
não silenciou atrocidades cometidas pelo Estado contra os negros e não brancos. O literato
trouxe para a sua ficção personagens periféricos e excluídos. Não temos a intenção de negar
as inovações literárias iniciadas com Zola, nem de negar a sua importância para a literatura,
como já foi mencionado aqui. Porém, ao interpretarmos os escritos de Lima Barreto e a sua
intenção de desenvolver uma espécie de Germinal Negro, não podemos deixar de evidenciar
que o autor pretendia destacar o protagonismo dos negros na construção da nação brasileira. O
literato introduziu a questão racial em suas obras e, sobretudo, exigiu o reconhecimento dos
negros enquanto seres humanos. Nesse sentido, podemos dizer que Clara dos Anjos faz parte
do Germinal Negro que Lima Barreto pretendeu escrever.

Na parte inicial da primeira edição do livro Clara dos Anjos existe uma sessão dedicada
as obras do autor. Nessa exibição, as produções de Lima Barreto estão divididas nas
categorias “romances”, “humorismo”, “contos”, “sátiras” e “crônicas”, o que totalizaram um
total de dez obras publicadas. O livro Clara dos Anjos aparece como referência a edição em
folhetins, feita pela Revista Sousa Cruz, ou seja, com o mesmo formato, publicado em
1923.237 Sobre isso, há uma importante curiosidade que aparece no Diário de Notícias do dia
28 de dezembro de 1948, que nos ajuda a pensar um pouco sobre a recepção do romance. Na
coluna intitulada “A propósito de Clara dos Anjos” escrita por Raimundo Magalhães Junior, o
autor contestou a omissão do editor do livro, acusando-o de não referenciar a cooperação de
duas importantes pessoas que tornaram a publicação desse romance possível. As pessoas

235
NDIAYE, Pap. La condition noire: essai sur une minorité française. Calmann-Lévy, 2008.
236
ZOBEL, De Joseph. La Rue Case – Negres. França: Presence Africaine, 2014.
237
BARRETO, LIMA. Clara dos Anjos. op. cit. p. 7.
83

seriam o próprio R. Magalhães Junior e o poeta Pretextato da Silveira. A nota foi um protesto
pela atitude sem cortesia do editor da edição de 1948.238

Segundo Magalhães Junior, a atitude de publicar os trabalhos de Lima Barreto foi


iniciada pela Livraria Zélio Valverde S.A. Foi essa editora quem deu início as organizações na
preparação dos novos volumes das obras do literato e a Editora Méritos deu continuação a
esse serviço. Sendo R. Magalhães Junior filho de um escritor próximo à Lima Barreto, as
referências e admiração pelo literato eram enormes. Inclusive, relatou ter contribuído
diretamente para o levantamento de alguns trabalhos de Lima Barreto na Biblioteca Nacional,
enquanto lá trabalhava. Foi durante essas buscas que percebeu que faltavam algumas partes da
obra Clara dos Anjos. Pensando sobre como resolveria isso, o autor tentou ir atrás de todos os
colaboradores assíduos da revista. Empreitada muito difícil, visto que, alguns já haviam
morrido e os que estavam vivos, não possuíam os exemplares para suprir as lacunas do
romance.

Até que, em uma conversa com um auxiliar da Livraria Freitas Bastos, a sugestão de
procurar por Pretextato da Silveira surgiu, já que o poeta também era um dos colaboradores
da revista. Em um primeiro momento, Silveira disse que não tinha mais a coleção da revista.
Depois, ao saber o que exatamente R. Magalhães Junior estava procurando, o poeta acusou
lembrar-se de haver guardado as páginas que continham o romance, pelo fato de a história ter
um personagem carteiro. Foi desse modo que o texto completo da narrativa foi encontrado.
Logo em seguida, R. Magalhães Junior entregou o material ao Sr. Valverde, que o deu para a
Editora Méritos S.A, de acordo com o seu relato. Porém, a referência a essas duas pessoas
importantíssimas na recuperação do romance foi ignorada pelo editor da primeira edição do
livro, a justificativa para tal atitude, feita pelo Sr. Valverde e que aparece nessa coluna, foi a
de que ele já havia conseguido uma cópia do romance com outra pessoa, o Elói Pontes, antes
mesmo de receber o material de Magalhães Junior.

Não temos como saber se de fato o editor omitiu propositalmente a atuação de R.


Magalhães Junior e Pretextato da Silveira na busca pelo romance. Porém, essa nota de
reclamação publicada no Diário de Notícias em 1948 pode ser entendida como uma das
evidências da recepção ou da importância que o livro teve naquele período, considerando que
Raimundo Magalhães Junior, que em 1956 faria parte da Academia Brasileira de Letras, usou

238
“A propósito de Clara dos Anjos”, Diário de Notícias, 28 de dezembro de 1948, p.2.
84

as páginas do jornal, o qual também era um dos fundadores, para publicar a sua reivindicação
pelo reconhecimento da sua ação em prol da busca pela obra publicada no mesmo ano.

Outra evidência com a qual podemos reforçar a recepção positiva do livro no contexto
em que foi publicado, foi fato de a obra Clara dos Anjos ter sido escolhida como o “livro do
mês” em novembro de 1948. O grupo “Livro do Mês” selecionava os livros de destaque do
mês e remetia-os para todos os seus associados. Os livros eram entregues nas casas dos
associados que desejassem fazer parte do clube.”239 A iniciativa de escolher um livro por mês
foi criada pelo clube para exaltar os notáveis escritores que aumentavam o brilho da cultura.
A intenção era desenvolver o gosto pelas belas letras e o amor pelos autores da literatura. 240
Na matéria intitulada “Reedição das obras-primas da nossa ficção” no jornal Letra e Artes:
Suplementos de A Manhã (RJ), de agosto de 1948, é ressaltada a importância dos clubes de
livros na vida do leitor moderno. Segundo a matéria, o êxito dessas organizações se dava pelo
fato de os leitores modernos serem exigentes, mas terem pressa, melhor dizendo: os novos
ledores querem ler um bom livro sem terem o trabalho de procurá-lo nas livrarias. Esses
clubes selecionavam os melhores livros e enviavam aos seus sócios, que tinham como
vantagem receberem, no conforto de suas casas, a obra do intelectual escolhido. No Brasil,
havia duas organizações desse tipo: o “Livro do Mês” e o “Círculo Literário”. A tarefa do
“Livro do Mês” era a de selecionar o melhor livro publicado mensalmente, tanto nacional,
quanto estrangeiro. 241
No O Jornal de dezembro de 1948, o artigo “Balanço Literário de
1948” também aborda a importância desses clubes em divulgar as letras nacionais e
estrangeiras.

Iniciado em São Paulo, com as edições populares do Clube do Livro, a que se


seguiria a Coleção Saraiva, reeditando, a preços módicos, obras de mérito firmado,
há muito esgotadas, essa experiencia comercial do livro brasileiro tomou novo
impulso com a fundação sucessiva do “Livro do Mês” e do “Circuito Literário”.
Cujo crédito devemos, acima de tudo, em primeiro lançamento digno do autor, a
primorosa edição do Triste fim de Policarpo Quaresma e a reedição em livro de
Clara dos Anjos, de Lima Barreto. Apesar de dedicado de preferências a traduções, o
“Livro do Mês” começou distribuindo EURIDICE, de José Lins do Rego, ao qual se
seguiram os seguintes: BARRO BLACO, do chamado Jack London brasileiro, José
Mauro de Vasconcelos, um vigoroso documento social e humano do trabalho das
salinas do Norte, em boa forma literária: PECADO NOS TROPICOS, de Cecílio J.
Carneiro, em que se mistura, em doses alternadas, um límpido lirismo e o realismo
brutal das histórias da Amazonas; e a recente e nunca antes louvada escolha de
CLARA DOS ANJOS, com o que se tornou possível o conhecimento dessa

239
“Livro do Mês”. Diário de Notícias, 12 de outubro de 1947, p. 4.
240
“A Expansão de Obras-primas Nacionais. Gazeta de Notícia, 13 de novembro de 1948, p. 3.
241
“Reedição das obras primas da nossa ficção”. Letras e Artes: Suplementos de A Manhã, 15 de agosto de 1948,
p. 12
85

admirável novela quase inédita do grande romancista carioca, desde que havia até
então aparecido apenas em certa revista de mesquinha tiragem.242

Clara dos Anjos foi o livro escolhido para o mês de novembro, pela seleção “Livro do
Mês”, o que confirma a relevância e a recepção dessa obra para os leitores do clube. Em 17 de
outubro de 1948, no jornal Diário de Notícia, na coluna “Movimento Literário” é publicada
uma nota informando a escolha. Conforme a notícia, o romance apareceu a mais de vinte anos
e nunca mais se falou sobre ele, se mantendo no esquecimento. Lúcia Miguel Pereira que teve
acesso aos originas, disse ser o livro indispensável para conhecer a personalidade de Lima
Barreto. 243 Raul Lima, escrevendo para essa mesma coluna do Diário de Notícia no dia 28 de
novembro de 1948, também exalta a escolha feita pelo “Livro do Mês”. Em suas palavras, diz
que a Editora Méritos é a responsável pela vitoriosa organização do livro de Lima Barreto,
um romance quase inédito. Além de Clara dos Anjos, em outubro deste mesmo ano outra obra
do literato foi escolhida para ser o livro do mês: O Triste fim de Policarpo Quaresma.

De volta a análise do livro da primeira edição, de acordo com seu editor, o manuscrito
dessa história representa o começo de um projeto que não teve fim, tendo sido ele carregado
durante uma vida inteira, de 1904 até 1922. Os temas que fazem parte de Clara dos Anjos vão
aparecer em muitos dos outros escritos de Lima Barreto, com forma e sentido mais amplo.
Ainda segundo ele, Clara dos Anjos representa muito possivelmente a primeira tentativa de
Lima Barreto nos domínios da ficção”244. O editor concluiu essa sessão dizendo que o texto
editado é o mesmo publicado pela Revista Souza Cruz, uma vez que, o acesso ao manuscrito
original não foi possível por estar o material extraviado no momento da edição.

O prefácio escolhido para essa edição é escrito por Lúcia Miguel Pereira, importante
historiadora, crítica literária e conhecedora da obra de Lima Barreto. Neste prefácio a autora
aponta para o fato dessa versão não ser exatamente igual a que o literato esboçou em seu
Diário Íntimo, em 1904. Apesar de os personagens serem os mesmos, as circunstâncias são
outras. Segundo ela, no primeiro roteiro criado por Lima Barreto a obra não terminaria como
o fim dessa versão. Clara, depois do abandono do seu sedutor, encontraria novos amantes e
outros problemas pelo caminho e, por fim, terminaria sua vida sustentando o seu amante
inválido, entretanto, Lima Barreto abandona esse romance, mas não despreza o tema, tendo o
assunto aparecido em outros dos seus escritos. Apesar de as mudanças, o enredo da história é
o mesmo: a jovem moça mulata que é seduzida e abandonada pelo seu abusador branco. A
242
“Balanço Literário de 1948”. O Jornal, 25 de dezembro de 1948, p. 8
243
“Movimento Literário”. Diário de Notícia, 17 de outubro de 1948, p. 3.
244
BARRETO, LIMA. Clara dos Anjos, op. cit. p 7.
86

personagem principal da história é, segundo a Miguel Pereira, de natureza amorfa, pastosa e,


ainda que a maioria dos personagens de Lima Barreto sejam homens, a história de Clara do
Anjos atraiu o literato “como um espécime típico das mocinhas de sua condição” 245.
Possivelmente, assim como dedica em sua epígrafe, as semelhanças com a história de sua mãe
teriam contribuído para a escolha do literato em abordar o destino “comum” das jovens
mestiças. A história não é um drama individual, e sim uma realidade “[...]de muitas gerações
de mulheres de seu meio e cor.”246 Em muitos momentos da narrativa, como é salientado pela
historiadora, o autor faz uso dos seus personagens como porta-voz das suas próprias dores e
reflexões. Lima Barreto, com essa obra, não lutava apenas pelos anseios de justiça daquela
gente do subúrbio, mas pela sua carne e pelo seu sangue.

Um último ponto importantíssimo que deve ser mencionando e analisado sobre essa
primeira edição é a escolha que os seus editores fizeram ao selecionar a capa do livro. A capa
da edição de 1948 contém a representação de uma favela carioca (FIGURA 1), ou seja, ainda
que a história de Clara dos Anjos se passe no subúrbio do Rio de Janeiro e o seu autor
demarque esse lugar de forma bem nítida, a edição de 1948 representa esse espaço de outra
forma. Nesse sentido, cabe pensarmos sobre o motivo dessa ação e a razão que levou aos
editores a fazerem essa escolha.

Figura 3 - Capa da Edição de Clara dos Anjos de 1948

BARRETO, Lima. Clara dos Anjos. Rio de Janeiro: Ed. Mérito, [1948]. 299 p.

245
Ibidem, p. 15.
246
Ibidem, p. 16.
87

O Rio de Janeiro, durante a primeira República, representou a principal cidade onde as


ideias de modernização e de civilização estiveram presentes. Toda essa mudança e
transformações atingiram tanto o pensamento da população, quanto a parte física da cidade.
Sobre essa discussão, temos o trabalho de Sidney Chalhoub , que ilumina a nossa análise e
serve de embasamento para pensarmos o imaginário que se construiu posteriormente sobre as
favelas. Em Cidade Febril, Chalhoub analisa a destruição de um dos cortiços mais famosos da
capital do Brasil: O Cabeça de Porco. O autor diz que esse é um marco inicial na “forma de
conceber a gestão das diferenças sociais na cidade”.247As justificativas para o ato tão brutal
são legitimadas pela prerrogativa de contribuição com a saúde, com a moralidade e com a
salvação pública; isto é, usavam do discurso “científico” e higienista para autorizar as
desigualdades sociais e a suspensão do direito à cidadania aos populares, que seriam os
representantes das “classes perigosas”, compostas pobres, em sua maioria, negros
descendentes de escravos. Como descrito por Sidney Chalhoub, a destruição do “Cabeça de
Porco” representou uma investida na aniquilação da memória de um importante cenário de
luta dos negros pela liberdade. Em síntese, com a reflexão feita por Chalhoub, concluímos que
a massa de populares, ― as chamadas “classes perigosas” ― foram entendidas pelo Estado
como as portadoras preferenciais dos vícios e da desordem. Essas pessoas estavam fora dos
debates políticos republicanos, a não ser quando a intenção era afastá-las, cada vez mais, do
centro “civilizado” do Rio de Janeiro ou do direto à cidadania. A opressão aos populares era
legitimada pela ação legal da polícia, trabalhando em favor da ordem republicana. A pobreza,
nesse sentido, era sinônimo de ociosidade e vícios, criando, assim, o malfeitor, que deveria ser
evitado em nome da civilidade e do progresso. Partindo dessa lógica, a política republicana
definiu a sua noção de “classes perigosas” ou simplesmente “classes pobres”, onde os negros
e não brancos eram os principais suspeitos.

O crescimento das favelas esteve intimamente relacionando ao processo de urbanização


e de modernização da cidade do Rio de Janeiro. De acordo com Lilian Fessler Vaz, essas
transformações no espaço urbano e nas residências da população pobre da cidade deram início
248
às estalagens, aos cortiços e às habitações coletivas de forma geral. Em seguida, se
desenvolveram as favelas, um espaço urbano que demarca a desigualdade social, a exclusão e

247
CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: cortiços e epidemias na corte imperial. São Paulo: Editora Companhia
das Letras, 2018, p. 19.
248
VAZ, Lilian Fessler. Dos cortiços às favelas e aos edifícios de apartamentos—a modernização da moradia no
Rio de Janeiro. Análise social, vol. XXIX, nº 127, p. 581-597, 1994.
88

o afastamento desse grupo de pessoas que viviam em condições precárias. Os altos preços
dos aluguéis e as diversas investidas municipais para evitar a presença dessas habitações
populares do núcleo moderno expulsaram esses moradores do centro da cidade. De acordo
com a autora, essa “classe de populares passou a viver dispensada pelos subúrbios, pelas casa-
de-cômodos do entrono imediato e pelas favelas, que passaram a fazer parte da imagem
urbana carioca num contraponto à modernização”.249 Nesse contexto, a autora nos diz que a
questão da habitação passou de uma construção para uma área, o que contribuiu para a
separação das classes sociais no espaço da cidade. Principalmente depois do decreto n° 391,
de 10 de fevereiro de 1903, criado por Pereira Passos, que regulava todas as construções,
criando exigências técnicas e arquitetônicas, ou seja, ainda que o subúrbio representasse uma
opção de moradia mais acessível ao trabalhador, principalmente depois da evolução do
transporte ferroviário que permitia a circulação mais rápida por lugares mais distantes, as
exigências criadas pelo prefeito dificultaram essas construções. Nesse sentido, a ocupação dos
morros próximos ao centro se tronou uma alternativa de moradia para os mais pobres, como
bem salientou Vaz. 250

251
Entretanto, apesar de Luiz de Aguiar Costa Pinto demostrar, em sua análise, que a
concentração de negros, entre os moradores das favelas do Rio de Janeiro no ano de 1949, era
bastante significativa: “ enquanto que, em cada 100 habitantes do Rio de Janeiro, 27 são de
cor – na população das favelas, em cada 100 habitante, 71 são de cor” 252, esse mesmo estudo
também demonstra os diversos lugares que os sujeitos negros ocupavam no Distrito Federal e
a heterogeneidade dos moradores das favelas, inclusive os variados tipos de ocupações e
trabalhos realizados por essas pessoas. É evidente que a expressiva massa de pessoas pobres
de cor em áreas deterioradas é uma significativa manifestação da segregação que o Estado
produziu, como também abordou o autor. Porém, a imagem construída sobre esses espaços
contribuiu para o olhar preconceituoso e estereotipado a respeito de seus moradores,
representados como malandros e marginais. Nesse sentido, como foi apontado por Licia
Valladares253, se construiu um pensamento específico sobre esses lugares entendidos como

249
Ibidem, p. 586.
250
Ibidem, p.587.
251
PINTO, Luiz de Aguiar Costa. O negro no Rio de Janeiro: relações de raças numa sociedade em
mudança. Brasiliana, 1953.
252
Ibidem, p.130.
253
VALLADARES, Licia. A gênese da favela carioca. A produção anterior às ciências sociais. Revista brasileira
de ciências sociais, v. 15, p. 05-34, 2000, p. 05-34
89

“um outro mundo”, onde os seus moradores eram largados a própria sorte e seriam, eles
mesmos, os responsáveis pelos males da cidade.

Pouco importa terem sido intelectuais das mais variadas tendências ideológicas e
políticas, com propósito distintos em suas visitas e subidas ao morro. O importante
era partilharem, todos, de um mesmo entendimento sobre o que eram e
representavam tais áreas e seus moradores no contexto da capital federal e da jovem
República, era estarem todos informados por um mesmo conjunto de concepções,
por um mesmo mundo de valores e ideias. A ponto de participarem da construção de
um arquétipo, de uma imagem padrão que se tornou consensual a respeito desse
“mundo diferente” que imergia na paisagem carioca pela contramão da ordem.254

Portanto, é partindo do imaginário que se criou sobre esses espaços – desordenados,


cheios de vícios e de imoralidade – que podemos entender as escolhas dos editores 1948. Um
literato negro, escrevendo sobre um reduto de negros, pobres e mulheres negras e mestiças,
desprezadas à própria sorte, só poderia estar localizado na periferia. E é esse o lugar onde a
literatura de Lima Barreto foi entendida: a história de uma família mestiça não poderia ser
compreendia fora dessas concepções, limitadas pelas barreiras da cidade elitizada e branca.
Por isso, por muito tempo, a compreensão da escrita do literato foi acusada de ser apenas uma
confissão biográfica, um testemunho triste, amargurado e revoltado sobre a sua própria
realidade, o que contribui para a manutenção do imaginário de uma literatura de periferia, sem
tratamento e erudição, visto que Lima Barreto é produto desse “mundo diferente”, onde a
intelectualidade é negada e marginalizada. Entretanto, diferente dessa concepção, o que
defendemos é que a narrativa feita pelo autor, ainda que partindo do aspecto nitidamente
confessional, expressa a luta que travou durante toda a sua vida por uma sociedade mais
democrática. O autor não suavizou as práticas brutais cometidas pelo Estado, muito pelo
contrário, fez uso desses personagens suburbanos reais, cheios de defeitos, fraquezas e
sobreviventes desse “refúgio dos infelizes” para produzir sua denúncia e o seu protesto contra
o racismo e os preconceitos sociais que desmoralizavam e estereotipavam esses moradores
suburbanos, fazendo, com isso, uma literatura com alto nível de consciência social e do que se
considera intelectualidade.

Seguindo os costumes de Lima Barreto, nessa edição foi acrescentada uma coleção de
contos que também estiveram presentes na primeira publicação de Triste Fim de Policarpo
Quaresma, no ano de 1915. Os contos foram: “Um Especialista”, “O filho da Gabriela”, “A
nova Califórnia”, “O homem que sabia javanês”, “Um e outro”, “Miss Edith e o seu tio” e
“Como o ‘homem’ chegou”. O conto “Um Especialista” é de 1904, o mesmo ano que Lima

254
Ibidem, 2000, p. 8.
90

Barreto começou a esboçar Clara dos Anjos. Além disso, essa narrativa é significativa para a
nossa reflexão e vai de encontro como o que o literato também se propôs com as diversas
versões do romance. A narrativa do conto se passa na cidade do Rio de Janeiro e relata as
experiências de dois amigos: O Comendador, português de cinquenta anos que saiu de Recife
e veio para a Capital, e Coronel Carvalho, também português, que veio para o Brasil ainda
criança e se tornou o Coronel da Guarda Nacional, homem possuidor de boa fortuna,
construída nos negócios da bolsa e nas especulações de propriedades.

Como era de costume entre os amigos, todas as tardes eles iam para o largo da Carioca
tomar café e licores e conversarem até que chegasse a hora dos teatros. Seus assuntos, em
geral, se tratavam de relações amorosas e de negócios. Os dois amigos eram assíduos
frequentadores da “[...] escusa casa de ren-dez-vous”. O Comendador, apesar de casado, não
deixava de ter a vida solta, assim como o seu amigo, o Coronel, que era viúvo e sem filhos.
Em uma dessas tardes de conversas, o Comendador contou ao amigo sobre a sua preferência
por mulheres de cor, o que fazia com que fosse em buscas dessas mulheres pelas noites, em
praças mal iluminadas e pelas ruas de baixa prostituição. A mulata, para ele, “[...] é a canela, é
cravo, é a pimenta; é, enfim, a especiaria de requeime acre e capitoso que nós, os portugueses,
desde Vasco da Gama, andamos a buscar, a procurar”255 Ou seja, fazendo uma alusão a
intensa busca pelas especiarias – produtos de grande valor comercial – e controle de suas rotas
pelo Império Português durante a Era das Navegações. Nesse sentido, a mulata representava o
produto exótico, valioso, quente e de origem disputada. Seu amigo, o Coronel,
diferentemente, preferia as estrangeiras, bailarinas, cantoras e meretrizes, esse era o seu fraco.

A prostituição feminina durante o século XIX, de acordo com Cristiana Schettini


Pereira, atenta para o fato da grande imigração de mulheres e trabalhadores europeus pelo
mundo. 256 Muitas dessas mulheres, de acordo com a concepção mais comum que se tinha na
época, saiam de seus países de origem e “[...] viajavam enganadas por ardilosos homens
articulados em verdadeiras associações criminosas, e seriam obrigadas a se prostituir em
terras distantes e desconhecidas.”257 Propondo uma reflexão para além dessa dimensão
mistificada de vítimas enganadas, Schettini Pereira nos diz que muitas dessas mulheres
europeias já exerciam a profissão antes de migrarem para outros lugares, porém, o importante
para o trabalho desenvolvido aqui é o fato da autora demostrar como essa atividade era

255
BARRETO, Lima. Clara dos Anjos. op. cit, p. 206.
256
SCHETTINI, Cristiana. Que tenhas teu corpo: uma história social da prostituição no Rio de Janeiro das
primeiras décadas republicanas. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2006.
257
Ibidem, p.95.
91

comum no Brasil, principalmente no Rio de Janeiro, onde, à época, chegava uma massiva leva
de europeus. 258

Segundo o projeto de branqueamento, a imigração foi vista como solução para o


problema racial do Brasil. Celia Maria Marinho de Azevedo aponta que a nacionalidade
brasileira que se desejava projetar precisava dar conta do grande problema da heterogeneidade
socio-racial que compunha do país. 259 Nesse sentido, o imigrante branco foi entendido como
a salvação da sociedade. Era através desse elemento racialmente superior, a partir da
miscigenação, que a nação superaria o atraso causado pelo negro e pelo indígena e alcançaria
a vitória final: uma população racialmente branca e superior. “Era por isso precisamente que
se fazia presente a necessidade da imigração europeia, com todo o seu poder de purificação
étnica” Por isso, a grande presença dos europeus no Brasil é atrelada às políticas que
fomentaram a imigração com a intenção de solucionar os problemas das relações de trabalho
depois do fim da escravidão – além de também estarem relacionadas ao ideal de
embranquecimento da população. 260 Entre essas pessoas que chegavam no Brasil, estavam as
cantoras e as bailarinas francesas e italianas que mexiam com os desejos sexuais do Coronel.

Seguindo o enredo do conto, depois de quinze dias sem ver o amigo, o Coronel resolveu
procurá-lo e encontrou o Comendador em sua loja, na rua dos Pescadores. Naquele mesmo
dia, saíram como de costume. Curioso para saber o motivo do sumiço imprevisto do amigo, o
Coronel não se conteve em perguntar qual era a razão de tão longa ausência. O Comendador,
cheio de alegria, diz que o motivo do sumiço era o fato de ter “achado” uma mulata deliciosa.
Um dia depois do último encontro que tiveram antes da sua ausência, o Comendador foi a
bordo de um paquete que chegava do Norte para promover relações comerciais. Entretanto, o
homem com quem foi se encontrar não apareceu, porém, em troca, encontrou a “esplêndida
mulata”, que também estava a bordo do mesmo paquete. Logo procurou saber quem era e
descobriu que a jovem chamava-se Alice, teria vindo para o Rio de Janeiro acompanhada de
um alferes do Exército, mas a companhia apenas fora o meio que encontrou para chegar à
cidade e “mercar” seus encantos por aqui. Foi maravilhado com a jovem que o Comendador
passou os últimos quinze dias, se apossando desse lindo primor, que nunca havia conhecido
igual, nem mesmo quando se envolveu há 27 anos com uma mulata de Pernambuco, assim a
descreve para o amigo:

258
Ibidem, p. 100.
259
DE AZEVEDO, Celia Maria Marinho. Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites--século
XIX. São Paulo: Annablume, 1987.
260
Ibidem p.72.
92

˗ É uma coisa extraordinária! Uma maravilha! Nunca vi mulata igual. Como esta,
filho, nem a que conheci em Pernambuco há 27 anos! Qual! Nem de longe! Calcula
que ela é alta, esguia, de bom corpo; cabelo negros corridos, bem corridos: olhos
pardos. É bem fornida de carnes, roliça; nariz não muito afilado, mas bom! E que
boca, Chico! Uma boca breve, pequena, com uns lábios roxos, bem quentes... Só
vendo mesmo! Só! Não se descreve.261

Nesse momento do conto, Lima Barreto aborda através de seus personagens a ideia de
sexualização e lascividade que constituiu o imaginário estereotipado sobre as mulatas. Mariza
Corrêa nos diz que seria necessário a construção de um inventário estilo Lévi-Strauss para dar
conta da quantidade de ervas e especiarias que a mulata foi comparada. 262 Esse sujeito
sexualizado e desejável esteve/está presente na literatura, no teatro e em muitos outros
universos. A autora nos diz que esse mesmo discurso que construiu essa imagem de desejo
sobre a mulher mulata, fora utilizado para desqualificá-las. Nesse sentido, se torna impossível
analisar as relações de gêneros separadamente das relações raciais, já que, como bem apontou
a autora, a mulata foi definida em contraste de proximidade e de afastamento com relação à
263
branca. O próprio Nina Rodrigues, em umas das suas análises médico-legais, produziu
uma classificação das formas de hímen que desqualificaria as mulheres mestiças: de acordo
com Mariza Corrêa, ainda que tanto as mulheres brancas, quanto as mestiças pudessem ter
diversas formas de hímen, a classificação feita com relação às não brancas apresentava
facilmente confusão sobre o que seria um hímen rompido, contribuindo, dessa forma, para a
desqualificação das queixas sobre abusos no corpo dessas pessoas.

Teófilo de Queiros Júnior salienta que o homem branco soube recorrer aos mecanismos
e às justificativas para lhe garantir relações extraconjugais sem ferir a ordem social vigente.
264
Nesse sentido, a amoralidade em que as mulheres de cor foram condicionadas, servindo de
estímulos sexuais, formava as bases dos argumentos para essas relações fora do casamento.
Somado a isso está o fato dessas mulheres também serem as responsáveis pela iniciação dos
jovens rapazes na vida sexual, já que a castidade e a honestidade das solteiras brancas não
poderiam ser destituídas. Cabiam às escravas negras e às mulatas proporcionarem tais
experiências. Nesse sentido, de acordo com Queiros Junior a mulata representou o meio do
caminho entre as brancas e as negras. Ou seja, a junção dos exóticos atrativos das negras

261
BARRETO, Lima. Clara dos Anjos. Rio de Janeiro: Ed. Mérito, 1948, p. 208.
262
CORRÊA, Mariza. “Sobre a invenção da mulata”. Cadernos Pagu, n. 6/7, p. 35-50, 1996.
263
Ibidem, p.44.
264
QUEIROZ JÚNIOR, Teófilo. Preconceito de Côr e a Mulata na Literatura Brasileira. São Paulo: Editora
Ática, 1975.
93

somados aos contornos estéticos das brancas. Queiros parafraseando Florestan Fernandes e
Roger Bastide nos diz:

Graças a seus encantos físicos, foi a mulata avaliada através de critérios opostos de
apreciação. Por reunir peculiaridade físicas das brancas e das negras, constitui-se ela
num tipo de beleza sui generis: a “de mulher branca, com o acréscimo dessa
pontinha de fogo, dessa lascívia atraente que lhe dá o sangue negro”.265

Entretanto, mesmo tendo a sua beleza exaltada e sendo desejada entres os homens
brancos, as mulheres mulatas não possuiriam nenhum mecanismo de defesa que lhes pudesse
proteger contra esses assédios, segundo contas o mesmo autor. Nesse caso, a exploração de
seus atrativos físicos como forma de ascensão e alternativa de fuga da condição que lhe deu
origem foi um dos caminhos encontrados por essas mulheres. É a Alice, do conto de Lima
Barreto, um exemplo de jovem mulata que veio para o Rio de Janeiro com a intenção de
encontrar melhores condições de vida e fez usos dos seus atrativos para alcançar os seus
objetivos. A história de Alice é igual a de tantas outras meninas e mulheres de mesma origem;
pessoas, estas, que serviam para as aventuras sexuais, porém, não para o matrimônio, é nesse
sentindo que o conto se desenvolve.

O Comendador combina de encontrar com o amigo e com o seu mais novo “achado”
para uma noite de diversões no cassino. A primeira parte do espetáculo se deu de modo frio,
contido em maneiras convencionais, todavia, a partir da segunda parte as coisas mudaram e o
espetáculo chegou em seu auge: “Da sala aos camarotes subia um estranho cheiro – um odor
azedo de orgia.”266 O Coronel passou boa parte da noite observando a mulata e os efeitos que
ela causava no restante das pessoas. Quando saíram do cassino, ficou um pouco para trás e
pôde ouvir as observações de alguns:

Um rapazola dissera:
- Que mulatão!
Um outro refletiu:
- Esses portugueses são os demônios para descobrir boas mulata. É faro.
Ao passarem os dois, alguém, a quem ele não viu, maliciosamente observou:
- Parecem pai e filha.267

O último comentário chocou o Coronel, de fato os dois tinham certos traços que se
assemelhavam, mas ele resolveu calar-se diante de tal observação. Ao chegarem no hotel,

265
Ibidem, p. 29.
266
BARRETO, Lima. Clara dos Anjos. op. cit., 1948, p. 201.
267
Ibidem, p. 211.
94

sentaram os três em uma mesa redonda na entrada e ali puseram-se a conversar. No primeiro
momento da conversa, a mulata declarou as suas preferências pelo Recife, não gostava do Rio
de Janeiro. Concordava que na capital tinha mais pessoas e mais dinheiro, mas o Recife
possuía as melhores comidas, os melhores bairros e era mais bonito. Com essa afirmação
concordou o Comendador, declarando para a mulata que viveu durante seis anos na cidade,
local onde começou a sua vida comercial. Ao questionar onde Alice viveu, o Comendador,
distraído, não percebeu que coincidentemente os dois viveram no mesmo lugar: na rua João
de Barro. A jovem continuou dizendo que se criou pelas bandas de Olinda, mas que depois da
morte de sua mãe, a quase oito anos, por ordem do juiz, foi viver na casa do Dr. Hildebrando.
Curioso, o Coronel perguntou para a jovem quantos anos tinha, já que a sua mãe havia
morrido há muito tempo. Alice tinha 26 anos, ficou órfã aos 18 anos, e, durante todo esse
tempo, viveu pelo mundo, de mão em mão, tendo uma vida de tormentos. Só encontrou pelo
caminho três homens que lhe deram alguma coisa, o resto, apenas queriam usar do seu corpo
e lhe maltratar, ofendendo-a e espancando-a. Bem que sua mãe a avisara: “toma cuidado,
minha filha, toma cuidado. Esses homens só querem os nossos corpos por segundo, depois
vão-se e nos deixam um filho nos quartos, quando não nos roubam como fez teu pai
comigo.”268

Novamente a curiosidade do Coronel falou mais alto e ele quis saber mais da história
de sua progenitora. Porém, a jovem não sabia exatamente como tal caso havia acontecido, só
sabia o que sua mãe lhe havia contado. Segundo ela, a mãe era honesta e vivia com os seus
pais na cidade do Cabo. Foi lá que ela conheceu um caixeiro português com quem veio viver
no Recife. Alice nasceu deles dois e logo depois do seu nascimento, seu pai voltou ao Cabo
para liquidar uma herança de sua mãe. Recebendo a herança, partiu para o Rio de Janeiro e
nunca mais souberam notícias. Foi nesse momento que a história chamou a atenção do
Comendador, quem questionou se a jovem saberia qual era o nome de seu pai. Alice responde
dizendo não se lembrar exatamente, mas pensava ser Mota ou talvez Costa. O Comendador, já
bastante nervoso, questionou se a jovem não se lembraria das feições desse homem e Alice,
mais uma vez, diz que não lembra de nada. Espantada com a atitude do Comendador, a jovem
perguntou qual era o motivo daquele interesse e em um ato sem pensar disse: “Quem sabe o
Sr. não é meu pai?”269 Esse comentário gerou uma grande tensão entre todos e o Coronel,
observando o nervosismo do amigo, tentou sair dessa situação perguntando se Aline nunca

268
Ibidem, p. 213.
269
Ibidem, p. 214.
95

mais soube de algo sobre o seu pai. Com a indagação do Coronel, a jovem lembrou-se que,
seis meses antes da morte da sua mãe, tinha ouviu falar que o seu pai estava no Rio de
Janeiro, implicado em um caso de falsificação de moedas. O Comendador que já estava em
estado de choque, ao ouvir a informação, pergunta para a jovem, que ainda não havia
percebido o que estava acontecendo, quando foi que ela havia recebido essa notícia. Alice
respondeu dizendo que teria sido por volta de fevereiro de 1893. Depois dessa confirmação, o
Comendador permaneceu por um tempo com olhos esbugalhados, tentando engolir todas as
sílabas que tinham sidos pronunciadas. O amigo e a jovem mulata, ambos sem entender o que
estava acontecendo, ficaram se entreolhando e esperando por uma explicação. Até que, com
supremo esforço e quase sem voz o Comendador diz: “- Meu Deus! É minha filha!”270

O surpreendente conto imprimido no final da edição de 1948 traz para a análise alguns
pontos da literatura feita por Lima Barreto que merecem ser destacados. O primeiro deles é
com relação à prostituição de mulheres, atividade presente na realidade do Rio de Janeiro
desde antes da República e que foi intensificada com a chegada dos imigrantes na Capital.
Essas mulheres, como bem apontou Schettini Pereira, faziam parte de uma rede de
sociabilidade que ultrapassavam o binômio vítima x cafetão. Incorporadas nos cenários de
diversões, entendidos, por muito tempo, como apenas masculino, a historiadora propõe
encontrar entre essas diversas mulheres muitas maneiras de manter e cultivar relações,
salientando a importância dessas redes para a manutenção da vida das prostitutas no centro da
cidade.

A mesma historiadora também nos lembra a visão preconceituosa de classe, de raça e


de gênero que separavam essas mulheres das outras, as consideradas honestas e puras, e as
hierarquias no próprio universo da prostituição. Essas mulheres pertenciam a um mundo
limitado onde sua conduta e sua moralidade eram desclassificadas. Ir contra essa ordem e
ultrapassar os limites impostos por essa sociedade era um problema que deveria ser evitado
em prol da moral e dos bons costumes. Mas a questão que Lima Barreto nos traz, nessa
narrativa, vai mais além: as relações de gênero e de raça não podem, nesse sentido, serem
entendidas de forma separada; Schettini Pereira novamente ilumina nossos pensamentos sobre
isso.

Ao abordar a conduta dos redatores do Rio nu, a autora possibilita uma associação
entre raça e nacionalidade, nas relações sexuais, de forma hierarquizada. Ao compararem as

270
Ibidem, p. 215.
96

especialidades sexuais das mulheres estrangeiras com as das mulatas brasileiras, os redatores
do jornal contribuem para o imaginário de que as mulatas possuem habilidades sexuais
“naturais”, enquanto a desenvoltura das francesas eram entendidas como
“profissionalismo”.271 Além disso, por serem especialistas com relação ao sexo, eram elas as
únicas capazes de satisfazer todos os desejos masculinos. “Era, assim, a identidade racial das
brasileiras – mulatas, baianas – que as tornavam especialistas da modalidade degradante, e por
isso, mesmo, a única capaz de satisfazer o desejo sexual do narrador do conto.”272, ou seja, as
diferenças raciais também estavam presentes no universo da prostituição, relacionados com os
critérios de classe e gênero, contribuindo para o imaginário sobre esses corpos mulatos que,
ao mesmo tempo que eram desejados, eram desqualificados.

Além da reflexão sobre o tratamento sujo e degradante dado às mulheres mulatas, o


conto possibilita outra interpretação: quando o Comendador descobre que o “achado” que
tanto lhe deu prazer durantes os últimos quinze dias se tratava de sua própria filha abandonada
há 27 anos, Lima Barreto coloca no meio dessa narrativa a discussão sobre a própria
moralidade que a sociedade, com bases patriarcais, defendia. De acordo com Sueann
Caulfield a honra sexual para os intelectuais e para as autoridades do começo do século era
algo fundamental para se alcançar a civilização. 273 Ainda que sua definição tenha provocado
inúmeras controvérsias, a honra sexual era a base da família e a base da nação. Esses
conjuntos de normas produziam e consolidavam relações hierarquizadas de gênero, de raça e
de classe e tiveram como objetivo “[...] zelar pela moral pública e pelos valores da família
vinculando-os explicitamente à honra nacional”274 Nessa perspectiva, a própria ordem
dominante, com estruturas paternalistas, que deveria defender a honestidade dessas mulheres
de cor, é o que legitima a violação dos seus corpos, ou seja, o próprio pai, que deveria ser o
defensor da sua honra, é quem contribui para degradá-la.

3.3. A CLARA EM SEU ÍNTIMO:

Em um registro sem data exata, deixado em seu Diário Íntimo – possivelmente,


escrito em dezembro de 1904 –, Lima Barreto esboça o que talvez seja o começo da sua
escrita de Clara dos Anjos. Apesar de não deixar referências, a história criada por ele faz uma
grande alusão história a da sua própria mãe, com o enredo do romance de 1922.

271
PEREIRA, Cristiana Schettini. "Que tenhas teu corpo”, op. cit. p. 290.
272
Ibidem, p.290.
273
CAULFIELD, Sueann. Em defesa da honra: moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro, 1918- 1940.
Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2000.
274
Ibidem, p.27.
97

Tito Brandão da Silva, o personagem principal desse conto era filho de Clara,
descendente direta de uma ex-escravizada que engravidou de um dos filhos do capitão das
milícias, o José Manuel Brandão. A família dos Brandão foi viver na corte depois da
Independência. Durante o Segundo Reinado, com a retirada de Pedro I, a família que
participava ativamente das agitações da cidade, se recolheu ao seu casarão na rua de São
Pedro, onde o Senhor Brandão morreu de desgosto. Os filhos mais novos, sob os cuidados da
irmã mais velha, dona Rosa, continuaram a viver no casarão da família; entre os Brandão, se
comentava o fato de Clara ser filha de César Brandão, o ultimogênito. Dona Engrácia, mãe de
Clara, era criada da casa e foi libertada pela família quando todos se mudaram para o Rio de
Janeiro. Ela possuía uma beleza precisa e o jovem senhor sempre demonstrou interesse nela,
o que, de acordo com o conto, era prática comum e “[...] estava nos costumes do tempo, quase
sem prostituição pública e de aventuras amorosas difíceis. Não só Clara, como outros
nascidos na casa, não possuíam o reconhecimento dos pais. Muito pelo contrário, os irmãos
Brandão tratavam todos com a indiferença comum para esses casos. Somente a irmã, Dona
Rosa, que possuía por esses sobrinhos inconfessáveis cuidados e carinhos”.275

Nesse primeiro momento do conto, Lima Barreto relata uma comum situação de
exploração violenta feita contra as mulheres escravizadas: a exploração sexual. Essa temática
vai estar presente em todas as narrativas de Clara dos Anjos. Abdias Nascimento aborda esse
tema: de acordo com ele, os escravizados eram vistos pelos seus senhores apenas como força
de trabalho e lucro, nesse sentido, esses sujeitos eram considerados inumanos e não mereciam
276
nenhum respeito, nem mesmo com relação ao possível desejo de construir família. Por
isso, Nascimento diz que a proporção de mulher para homem era muito menor e as poucas
mulheres que ali coexistiam eram impedidas de construir uma estrutura familiar estável 277, já
que, sendo seres rotulados somente para exploração, a mulher africana era vista como
propriedade dos senhores, inclusive, sendo vistas como propriedade sexual. Usando as
palavras do Manifesto das Mulheres Negras, Nascimento exemplifica esse fato.

As mulheres negras brasileiras receberam uma herança cruel: ser o objeto de prazer
dos colonizadores. O fruto deste covarde cruzamento de sangue é o aclamado e
proclamado como “ o único produto nacional que merece ser explorado: a mulata

275
BARRETO, Lima. Lima Barreto, op.cit. p. 472.
276
NASCIMENTO, Abdias. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. São Paulo:
Editora Perspectiva SA, 2016.
277
Ibidem, p.73.
98

brasileira''. Mas se a qualidade do “produto” é dita ser alta, o tratamento que ela
recebe é extremamente degradante, sujo e desrespeitoso.278

Lima Barreto exibe em seus escritos um altíssimo nível de consciência e crítica social.
Nas primeiras linhas que anuncia o que seria o romance Clara dos Anjos, o literato já
apresenta o tom do enredo que pretendia desenvolver com essa obra. A exploração sexual da
mulher negra é uma realidade social que vai contra a suposta interação saudável das relações
raciais defendidas por Gilberto Freyre, indo contra também ao mito da democracia racial.
Como bem apontou Nascimento, o mulato bastardo é fruto do violento estrupo da mulher
negra pelos brancos, não de uma relação harmoniosa entre as raças, dessa forma, Lima
Barreto vai abordar essa ideia de superioridade e abuso do homem branco com relação às
mulheres negras. Ou seja, ele vai apresentar em sua narrativa os conflitos existentes sobre a
perspectiva de raça e gênero, essa temática aparece com frequência nas narrativas de Lima
Barreto.

Em um artigo onde Keyle Sâmara Ferreira de Souza investiga a representação na


mulher negra na Literatura Brasileira a partir das narrativas de Esmeralda Ribeiro, Rachel de
Queiroz e Lima Barreto, a autora destaca a noção de pertencimento elaboradas por Luiz Silva
Cuti, quem embasa a sua análise. 279 De acordo com ela, a noção de pertencimento defende
que a construção e a consciência da realidade da mulher negra só podem ser feitas a partir do
universo feminino negro. Nesse caso, as perspectivas feitas por Rachel de Queiroz e Lima
Barreto só podem acontecer desde uma representação da identidade da mulher negra, já que, é
Rachel uma escritora branca e Lima Barreto um escritor negro. Nesse sentido, Clara dos
Anjos “[...] é uma representação feminina com uma construção masculina” 280, ou seja, é uma
representação do universo feminino negro a partir de um homem negro, onde o ponto em
comum é o preconceito racial. Porém, se representar é reconhecer e considerar o “outro”
como bem aponta a autora, Lima Barreto, através de Clara dos Anjos, reconhece e considera a
humanidade dessas mulheres negras subjugadas duplamente.

O conto continua e a ficção segue imitando a vida do próprio Lima Barreto. Assim
como a sua mãe, a personagem Clara recebe uma educação comum às moças de sua idade,
mas, diferente das jovens de “boa” família, não se casa com um político ou com um doutor.
Ela se casa com Miguel da Costa, filho de uma “cabrocha” com um português. O pai de Tito,

278
Ibidem, p. 74.
279
DE SOUZA, Keyle Sâmara Ferreira. “Duas Claras dos Anjos e uma Rosa: a identidade e a representação da
mulher negra na Literatura Brasileira”. Línguas & Letras, v. 17, n. 36, 2016
280
Ibidem, p.41.
99

Miguel, também é fruto de uma relação inter-racial amancebada entre uma mulata e um
homem branco. Aos 14 anos, depois do abandono do pai, teve que assumir as
responsabilidades e da casa e ir em busca de um ofício. Aos 25 anos, já possuía um certo
reconhecimento como litográfico e foi nessa época em que se casou com Clara. Tinham mais
três filhos, Tito era o mais moço e nasceu em um melhor período, financeiramente falando, da
realidade seus pais. Clara recebeu uma herança de César Brandão, que havia morrido, porém,
ela também não teve tempo de gozar desse dinheiro, pois morreu um ano depois. Durante todo
o conto, podemos encontrar ligações com a vida de Lima Barreto. Sua mãe também morreu
enquanto ele ainda era bem menino e o seu pai quem ficou responsável pela sua criação e a
dos seus irmãos. Outra semelhança está no fato do litográfico ter o sonho de ver o seu filho
formado, assim como o pai de Lima Barreto, entretanto, o pai de Tito morre antes disso se
realizar, fazendo com que ele tenha que assumir a responsabilidade da família.

Nesse conto Clara não é a personagem principal, ela é a progenitora de Tito.


Entretanto, Clara é o fruto de uma relação inter-racial de abuso sexual, cometida por um
homem branco para com uma mulher negra ex-escravizada. Diferentemente das outras
versões, Clara não é abandonada pelo seu companheiro, mas convive com ele até a sua
precoce morte. Em comparação a história de sua mãe, a personagem Clara, nesse conto,
possui grande proximidade com a mesma. A mãe de Lima Barreto também foi fruto de uma
relação inter-racial, e logo jovem, se casou com João Henriques de Lima Barreto. Lima
Barreto é provavelmente representado por Tito, um jovem mulato que depois da morte dos
seus pais, fica responsável pelo futuro dos seus irmãos.

As anotações de Lima Barreto em seu diário seguem, e o literato volta a esquematizar


como seria esse romance. Nesse planejamento, Clara dos Anjos era uma mulher mulata de 23
anos, que teria tido uma filha com o português Guedes, que parte para Europa ao enriquecer.
A jovem mais tarde se casa novamente com David Carvalho, depois de conhecê-lo na festa
dos Cardosos, na Penha. O novo companheiro de Clara não tinha o ofício certo, e no fim, “dá
cabo dos cinquenta contos de Clara”.281 Mais tarde, a jovem enviúva e amiga-se com José
Portilho, é nesse contexto, que sua filha Iracema foge com um cabo da polícia, mas acaba
abandonada, recorrendo à prostituição até morrer na Misericórdia. José Portilho que era
pedreiro, envelhece e não pode mais trabalhar. Nesse planteamento, Clara termina a sua vida
lavando e engomando para sustentar a sua família.

281
BARRETO, Lima. Lima Barreto: obra reunida, op. cit., p. 475.
100

Entretanto, é no final do seu diário, remetendo à primeira versão incompleta de 1904,


que Clara dos Anjos aparece de fato, de forma mais desenvolvida. Nessa versão, o literato
começa narrando de maneira saudosa a imagem da velha São Sebastião, que foi substituída
pelo “[...] aspecto transtornado dos bairros” que o bonde ajudou a criar, este veículo que tem
282
na ponta dos seus trilhos as diferenças da cidade. De um lado, as vendas, os botequins,
casebres. Do outro, travessias mal povoadas e esquecidas pelas autoridades “[...] que vive
anarquizadamente, fora de toda a espécie de legislação, a poucas centenas de metros de
outras, apertadas num cinto de postura.”283 O conto continua a descrever as diferenças físicas
da cidade do Rio de Janeiro, marcadas pelo projeto de modernização que a dividiu entre os
lugares esquecidos pelo Estado e os “apertados no cinto de postura”. O subúrbio do Rio de
Janeiro é representado na obra do literato com toda a sua irregularidade, com ruas imprecisas
e sem terrenos paralelos. As descrições do aspecto físico do subúrbio aparecem nas narrativas
de Lima Barreto como fruto de um projeto social que dividia e inferiorizava a população
pobre da cidade. Nesse sentido, podemos relacionar essa interpretação com a feita por Hebe
Mattos. De acordo com a historiadora, a “noção de cor” vai além da pigmentação da pele,
procurando definir lugares e classe social. 284 Nesse caso, sendo a população do subúrbio do
Rio de Janeiro majoritariamente negra, o cunho deste projeto segregacionista tem bases no
racismo de uma elite que dominava o poder e excluía os seus participantes a partir dos
critérios de raça e de classe.

É entre o Rio Comprido e o Catumbi que a família de Clara residia no ano de 1886.
No conto, essa família é composta por Manuel Antônio dos Anjos, sua mulher dona
Florência, a babá – uma ex-escravizada de cinquenta e tantos anos – e a única filha do casal:
Clara. Viviam bem, Manuel era contínuo na Secretaria de Agricultura e o pouco que ganhava
somado à sagaz economia de sua mulher, dava para satisfazer a todos. A vida era tranquila,
Manuel saia cedo para pegar o bonde e ir trabalhar; no fim do expediente, no caminho de
volta para casa, sempre parava para conversar, e, às quatro horas da tarde, subia para jantar e
descansar. Dona Florência também pouco saía, não era de festas, saia um domingo ou outro
para ir à missa. Manuel se esforçava muito para dar a melhor educação para Clara, por isso,
junto ao trabalho habitual, arrumou outros extras para assim custear os estudos da filha no
Externato de Nossa Senhora do Amparo. Porém, já muito cansado, não conseguiu mantê-la no

282
Ibidem, p. 615.
283
Ibidem, p. 616.
284
MATTOS, Hebe. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista. Rio de Janeiro:
Arquivo Nacional, 1995.
101

colégio. Mesmo assim, Clara foi capaz de adquirir alguma noção de piano, o que já era
suficiente para tocar as valsas da época.

Diferentemente dos seus pais, Clara era uma jovem de 16 anos que não se agradava
com a vida monótona. Sempre que podia, ia em busca de diversão, geralmente ia às festas que
seu padrinho oferecia. Lá, a jovem era sempre requisitada para mostrar as suas habilidades de
pianista. Seu padrinho era Carlos Alves da Silva, o primeiro oficial da Secretaria do Império,
e foi escolhido para assumir essa função, por seu pai, antes mesmo do seu nascimento. A
simpatia de Manuel dos Anjos com Carlos Alves da Silva não vinha da repartição, foi numa
festa de batismo, que o contínuo ajudou a servir, que a admiração pelos Alves da Silva
começou.

Depois da guerra do Paraguai, os sentimentos de progresso e engrandecimento


floresceram no Brasil. Atrelados a isso, surgiram as questões ligadas ao elemento servil do
país. Foi nesse contexto que “o generoso sentimento pelos escravos” refletiu-se na poesia
nacional e Carlos Alves da Silva, quem frequentou a escola de Direito do Recife, chegou à
capital impregnado dessas noções. 285 É nessa ocasião que, durante a festa em que Manuel dos
Anjos trabalha, ele pode ouvir Alves da Silva recitar Vozes d´África, de Castro Alves. Foi
durante essa apresentação que Manuel, emocionado com as palavras recitadas, sentiu a dor
gerada pela escravidão e mesmo que não tivesse sido escravo, “[...] se julgava preso à sorte
dos cativos por forte laços de sangue e raça.”286 Manuel ficou tocado com as palavras de
Carlos Alves da Silva e foi embora pela madrugada tentando recordar cada verso
pronunciado, imaginando ser o seu declamador um resplendor da santidade. Estaria ele,
“[...]armado com milhares daquelas poesias, derrubando senhores de fazenda com a mesma
facilidade que as balas do Bahia derrubavam as cristas de Humaitá.”287 Era como um santo
padroeiro cheio de benevolência.

De acordo com David Brookshaw a partir de 1870 as ideias abolicionistas começaram


a florescer entre a burguesia com uma grande inclinação para o republicanismo, que estava
em formação. Esta inclinação, com motivos políticos e econômicos, começou a ser refletida
na literatura abolicionista e os escritores passaram a retratar o negro. Ao voltarem as suas
atenções para os escravizados, os literários descreveram esses sujeitos com um misto de
piedade e desgosto, desumanizando as suas aparências, exaltando a sua natureza selvagem ou

285
BARRETO, Lima. Lima Barreto: obra reunida, op. cit., p. 619.
286
Ibidem, p. 620.
287
Ibidem, p. 622.
102

a passividade e fidelidade com o seu senhor. É nesse sentido que Brookshaw vai dizer que na
literatura abolicionista se construiu o estereótipo de Escravo Fiel versus Escravo Desprezível
e, depois da Lei do Ventre Livre, foi substituído pela primazia de Escravo Imoral versus
Escravo Demônio.288 Portanto, assim como salienta o autor, esse tipo de literatura possuía um
tom eminentemente racista, mesmo que disfarçados entre a benevolência do literato branco.
“A literatura abolicionista partiu da premissa que a escravidão era ruim para os donos de
escravos porque os colocava em contato com degenerados morais. Seu propósito era incutir
medo nas pessoas.”289 No fim, a abolição era o meio encontrado pelo senhor branco para se
livrar do “flagelo da escravidão.”290

Castro Alves é um dos representantes desse tipo de literatura abolicionista. Apesar de


ser um literato que quebra com o silêncio da causa negra, esse autor estava intimamente
envolvido no projeto de criar um perfil nacional para o Brasil em voga na época e o dito
sentimento nacionalista esteve presente em muito dos seus escritos. Portanto, de acordo com o
que abordou David Brookshaw, o autor também não ficou imune aos preconceitos contra os
negros, compactuando com a ideia que “[...] via os negros como a raça maldita, os
descendentes de Caim que tinham sido expulsos do Jardim do Paraíso para “as areias ardentes
da África”.”291 Essa visão estereotipada que considerava a África um lugar degenerado,
abandonado e sombrio aparece, inclusive, no poema Vozes d’África. Nesse sentido, mesmo
que o sentimento antiescravista e humanista estivessem presentes em suas obras, e que o autor
tenha projetado o negro, o pobre e o escravo nos seus escritos, ele também tratou o tema da
escravidão a partir do ponto de vista da classe à qual pertencia: a dominante.

Portanto, quando Lima Barreto traz para a sua narrativa a admiração de Manuel dos
Anjos pelos Carlos Alves da Silva após ouvi-lo declamar o poema de Castro Alves, a
interpretação que podemos fazer é que o literato estava se referenciando a esse tipo de
literatura benevolente que esconde, entre as suas linhas, o racismo e o preconceito com
relação aos negros. Podemos confirmar a nossa posição ao abordar a postura seguinte de
Carlos Alves da Silva, que, ao entrar em casa pela manhã, repreende severamente uma velha
escrava, porque àquela hora ainda não tinha preparado o café matinal. Lima Barreto, em um

288
BROOKSHAW, David. Raça e Cor na literatura brasileira. Trad. Marta Kirst. Porto Alegre: Mercado
Aberto, 1983, p. 29 – 32.
289
Ibidem, p. 32.
290
Ibidem, p. 34.
291
Ibidem, p. 37
103

tom irônico e sarcástico, questiona essa atitude através dos seus personagens: “Eram os restos
– quem sabe? – das inflamadas estâncias de Castro Alves”.292

O conto segue e Manuel decide que Alves da Silva seria o padrinho de sua filha. E
quando Clara finalmente nasce, o amanuense tenta, de todas as formas e com diversas
desculpas, se livrar do compromisso, mas, no fim, decidiu batizar a menina, quem teve como
madrinha a sua noiva. Depois desse ocorrido, a família de Alves da Silva passou a ter pela
família Dos Anjos benevolente proteção, recebendo-os sempre em sua casa, sentando-se
juntos na mesa, porém, sem deixar de demonstrar a distância que existia entre eles: “Longe de
se afetarem com esse tratamento, o contínuo e a esposa acolhiam-no com orgulho. Guardando
a convicção de sua real inferioridade, um tal tratamento era, para eles, como um prêmio
conferido à retidão de sua honesta vida de casal”.293

Em uma das comemorações pelo aniversário do seu padrinho, Clara foi convocada
para, como de costume, animar a festa com os seus dotes de pianista. Entre uma palestra e
outra com seus convidados pela sala, Alves da Silva percebe que a comadre o chama no
portão de forma muito assustada. A mãe e o pai de Clara já não iam mais às festas, mandavam
apenas a filha para cumprir a educação. Mas, naquela semana em especial, Manuel dos Anjos
não passava bem e Dona Florência foi buscar Clara, porque seu pai, já muito mal, perguntava
e clamava por ela. A saída de Clara da festa provocou uma tristeza enorme e o seu padrinho,
tomado pelo despeito, expressa seus sentimentos dizendo: “- É isso! Essa gentinha pilha-se
assim, assim, julga-se gente... Tem uns dengues, uns derriços...” 294 Ou seja, mascarados com
a suposta benevolência e cuidado que tinham com a família de Clara dos Anjos, o sentimento
de servidão e inferioridade com relação a eles afloraram.

A comemoração, apesar de não ter mais os talentos de Clara, continuou e os assuntos


sobre abolição e a república estavam nas palestras dos convidados. Essa é uma atitude de
Lima Barreto que não deixou de colocar nas falas dos seus personagens as suas opiniões e
críticas sobre os movimentos, principalmente, os referentes às teorias racistas que estavam em
voga no contexto. Como, por exemplo, no dia seguinte, quando Manuel precisou da visita do
médico Chico Gomensoro. No ponto do bonde que levaria o médico ao Catumbi, aconteceu o
encontro do médico com o doutor Alfredinho, filho do visconde de Meia Ponte. Já dentro do
bonde, os dois passageiros seguiram a viagem em uma longa conversa, até o transporte ter

292
BARRETO, Lima. Lima Barreto: obra reunida, op.cit., p. 623.
293
Ibidem, p.625.
294
Ibidem, p. 637.
104

uma parada repentina em razão de um caminhão, que estava descarregando na loja, estar
impedindo o carro de cumprir passagem. Durante esse imprevisto, o doutor Alfredinho,
impaciente, pôs-se a reclamar dos problemas da cidade. O médico sem entender muito o
motivo de tanto incômodo do amigo, lhe perguntou se essa reclamação era somente por conta
da pequena parada que o carro foi obrigado a fazer. Alfredinho prontamente responde dizendo
que não, o motivo era maior: a cidade era uma colônia, feia, suja e relaxada. O motivo de tal
precariedade, de acordo com o bacharel, era o negro, foi o negro que matou o Brasil, a raça
inferior, incapaz de ser civilizada. “Não são árias – doutor Gomensoro – , não são árias”, diz
Alfredinho. O médico sem entender, perguntou sobre o que a amigo estava falando e
Alfredinho então pôs a explicar-lhe a teoria já comprovada pela filologia, linguística,
arqueologia e a pré-história da raça civilizadora que seriam opostas às raças inferiores – estas
295
últimas influenciariam maleficamente a civilização. O médico não concordava com os
argumentos do amigo, para ele a civilização não é intrínseca à raça. Ao chegar no ponto de
destino, o advogado resolveu seguir o médico na visita ao Manuel.

Manuel morreu em uma quarta-feira de fevereiro, vítima de uma moléstia do coração.


Antes de morrer, como prevenção, se inscreveu em algumas sociedades de socorro. Foi com
essa ajuda que a família fez o seu enterro. Mesmo com a economia de dona Florência, mãe e
filha tiveram que ir em busca de sustento. As dificuldades chegaram e a fome também, dona
Florência via as relações antigas do seu marido se esquivando, acabou tendo que vender
algumas coisas de casa. O aluguel e as contas começaram a atrasar e, com frequência, elas se
viam em situação de ameaça de despejo devido as dívidas que possuíam. Foi nessa situação
que dona Florência resolveu procurar o Alves da Silva. Ao chegar em sua casa e lhe contar
toda a situação, recebeu do compadre uma total insignificância, quem propôs ajudar a mulher
foi o militar Boaventura e o médico Gomensoro.

Clara teve que ir trabalhar em um atelier para colaborar com as despesas da casa. Na
maioria das tardes, quando desembarcava do bonde, encontrava a babá e a mãe, que vinham
espera-la. Foi em uma de tarde de verão em que a sua mãe e a babá não foram, que o
adolescente foi ao encontro de Clara. A partir daí, os encontros foram se intensificando a
ponto de nem um dos dois saber qual deles havia tomado a inciativa de beijar o outro
primeiro. Mas o adolescente não tinha os mesmos sentimentos genuínos que Clara, e armou
uma emboscada para convencer a jovem de ir com ele a um chateau. Nesse dia, antes de

295
Ibidem, 643.
105

chegar ao lugar programado pelo adolescente, eles pararam em uma confeitaria e Clara,
assustada com a atitude do convite, questionou o que ele pretendia. Percebendo que a menina
estava “arisca”, o adolescente usou de toda a sua lábia para enganar ainda mais a jovem
mulata, dizendo que naquele dia completava anos e que resolveu lhe oferecer um
banquetezinho para lhe pedir em noivado, mas que, por hora, ninguém poderia saber da
novidade. Com essas palavras, Clara se acalmou e tomou alguns goles cerveja, encantada com
o pedido do adolescente.

Já um pouco alcoolizada e envolvida com as palavras do rapaz, o seguiu pelos becos


até que chegassem na tal casa escura. Atemorizada e ao mesmo tempo magnetizada pelas
carícias do rapaz, Clara começou a chorar de nervoso, ainda que assustada, não conseguia se
livrar do dos beijos e abraços. O adolescente, para tranquilizá-la, continuou prometendo que
honraria com a sua palavra, que se casaria, que não provocaria a sua infelicidade. Para que
esperar mais, se poderia provar o quanto o amava ali mesmo? Não tinha motivos para
adiamentos, casariam em breve. Amaciada com essas juras de amor, Clara ficou sem ação e
acabou cedendo aos pedidos do seu amado. Desde esse dia, os encontros eram sempre da
mesma forma, naquele quarto sujo e meio escuro. Até que, passados mais alguns dias, o
adolescente começou a tratar Clara diferente, os carinhos de antes já não eram os mesmos, as
palavras de amor foram substituídas por monossílabas sempre irritadas. Ele apenas se
satisfazia e ia embora rápido e aborrecido, obrigando a jovem a se vestir rapidamente e sair.

Dentro de dias, havia já nele um grande arrependimento, nascido do sentimento


confuso do temor das leis, da sociedade, da honra, dos preconceitos. Aquelas carícias,
aquela intimidade de rapariga não eram próprias, não competiam a ele, era uma
confiança. E como mesmo lhe fora tão forte o desejo dela que lhe chegara a prometer
casamento? Ele e ela, casados... Oh!Oh! E continha a risada. A risada que queria
explodir era contida pelo temor do código, do escândalo, da polícia. Mas daí não havia
senão perigo passageiro.296

Como era de se esperar, o adolescente abandonou Clara. Mas antes disso, ainda
haveria tempo para humilhar ainda mais a jovem, marcando, ele, um encontro, como de
costume. Ao chegar no local de sempre, diferentemente dos outros dias, ambos começam a
conversa e o adolescente lhe contou que precisaria ir para o Norte completar os preparatórios.
Clara, desesperada, cai em um choro de desespero e angústia. Mesmo com as justificativas
feitas por ele, Clara percebeu qual era a real situação: seria abandonada, desonrada. Porém,
ele continuou dizendo que voltaria, que não a abandonaria e Clara começou a cessar o choro e
acalmar-se um pouco. Foi quando, ao levantar para lavar o rosto alguém bateu na porta do

296
BARRETO, Lima. Lima Barreto: obra reunida, op. cit., p. 664.
106

quarto. O adolescente depois de verificar quem era, diz ter sido um engano, mas, logo em
seguida, pede para que a jovem lhe espere ali por um tempo. Ele justifica dizendo que precisa
entregar para alguém uma carta, a pedido de seu pai, e sai, deixando a porta entreaberta. A
jovem obedeceu, e, distraída, esqueceu de verificar a porta. De repente um outro rapaz adentra
o quarto em que Clara estava. Ao olhar bem para o seu rosto, ela o reconheceu, era amigo do
adolescente com quem Clara costumava se encontrar, já os tinham visto juntos pela cidade.
Nesse momento, a jovem entendeu o que estava acontecendo ali: era uma armadilha planejada
por quem acreditou ser o seu grande amor. Naquela situação, a jovem suplicava para que o
rapaz a deixasse ir embora, mas ele, de todas as formas, tentou agarrá-la e Clara, sentindo que
não conseguiria fugir, pôs-se a gritar por socorro. Graças aos seus pedidos desesperados,
algumas pessoas conseguem entrar no quarto, empurrando violentamente a porta. Clara e o
rapaz acabam na subdelegacia. Lá, a jovem, mais uma vez, sente na pele a dor do
preconceito, sendo humilhada. O pai do adolescente, ao ser avisado da situação do seu filho,
depois das denúncias põe-se a argumentar. Qual seria a pena para o que o filho tinha feito?
Quais eram as provas? A vítima era uma mulatinha! Os códigos não poderiam obrigar que
pessoas de situações diferentes, de cores e educação diferentes se casassem só porque se
encontravam. Isso não estaria certo, afinal, a vítima era uma mulatinha.

Sueann Caulfield, no trabalho já mencionado, pode nos ajudar a compreender um


pouco mais desse contexto e da crítica que Lima Barreto fez através dessa versão de Clara
dos Anjos. De acordo com Caulfield, mesmo que depois do fim da escravidão e das
justificativas de suposto clima de nacionalismo e celebração da herança racial,
principalmente, depois que o projeto de miscigenação foi entendido como a salvação da
nação, raça e moralidade estavam sempre de alguma forma relacionadas nas preocupações dos
intelectuais da República. Fazendo referências aos trabalhos de Roger Bastide e Luís Costa
Pinto, que formam parte de uma onda de estudos revisionistas que reinterpretam as relações
interraciais, a autora nos diz que essas relações entre raças diferentes eram “[...] uma
expressão da dominação dos homens de cor branca sobre as mulheres de cor preta” e que elas
aconteciam principalmente fora do casamento, já que, de acordo com Bastide, as mulheres de
297
cor foram reduzidas a nível de prostitutas e servas, de fácil acesso. Diferentemente das
mulheres brancas, as negras e as mulatas não eram para casar, essas só serviam para o
trabalho e para as relações sexuais. Elas faziam parte de um grupo que possuía fortes
inclinações para a imoralidade e desonra. Nesse sentido, como salienta a autora, esses

297
CAULFIELD, Sueann. Em defesa da honra, op.cit, p. 278.
107

pressupostos, que nos inícios dos anos 1930 ficaram conhecidos como aforismo, definiram os
lugares dessas mulheres diante da sociedade: “as brancas para casar, as mulatas para fornicar,
as negras para trabalhar.”298

Acrescente-se que, a julgar pelas evidências testemunhais e de modo coerente com a


atitude sempre lembrada de que, para o homem branco, as mulheres negras e pardas
são boas para transar, mas não para casar, conclui-se que esses homens
demonstrariam mais tendência a seduzir e mais relutância em casar com mulheres
negras que com branca. Isso provavelmente ajuda a entender o motivo pelo qual
suas relações com as primeiras iam dar nas delegacias mais frequentemente que com
as últimas. 299

Martha de Abreu Esteves produziu um rico trabalho que reflete sobre os conflitos em
torno dos comportamentos sexuais das mulheres no regime republicano. Essa política sexual
converteu “[...] as características físicas, psíquicas e sexuais dos indivíduos em insígnias de
classe social e instrumento de dominação. De acordo com a historiadora, os negros recém -
libertados eram vistos como depravados e com baixos padrões morais. Por isso, cabia ao
Estado centralizar e regularizar os caminhos para o progresso, surgindo a necessidade de uma
política sexual. Ao analisar diversos processos criminais de defloramento e estupro, a autora
sugere que os conceitos morais que eram aplicados pelos juristas e pelos médicos, nesses
processos, por muitas vezes, não consideravam a realidade das mulheres pobres que
precisavam ir para a rua trabalhar. Nesse sentido, essas mulheres tinham seus
comportamentos julgados com base nos conceitos morais que atingiam as mulheres de elite,
generalizados para todas as classes sociais, sem considerar as diferenças. Assim, as mulheres
de cor já eram naturalmente sedutoras e imorais. Foi dentro dessas concepções
preconceituosas que muitos desses jovens tiveram suas denúncias colocadas em dúvidas.

Na prática da Justiça, o direito à civilização não era para qualquer mulher.


Dependendo das posições dos policiais, delegados, advogados, promotores e juízes,
sujeitas à boa vontade de vizinhos e amigos, subordinadas às contingências da “cor”
e da estrutura familiar, sujeitas aos tipos de relação que possuíam com os acusados e
à própria “capacidade” de provar sua “honestidade”, as mulheres pobres percorriam
os trâmites jurídicos num jogo de “perdas e ganhos”, onde as moças de “cor” e
independentes possuíam pouco trunfo. 300

Martha Abreu demonstra, com a sua pesquisa, que muitas das moças estudadas por ela
driblaram os paramentos da moral higiênica, impostos pelo aparato jurídico e pela polícia da
época. Usando como referência o próprio romance Clara dos Anjos, de Lima Barreto, Abreu

298
Ibidem, p. 294.
299
Ibidem, p. 293.
300
ESTEVES, Martha de Abreu. Meninas perdidas: os populares e o cotidiano do amor no Rio de Janeiro da
Belle Époque. Rio de janeiro: Paz e Terra, p. 1890-1920, 1989, p. 114.
108

nos diz que, diferentemente de Clara, muitas outras mulheres pobres puderam construir
opções e criaram uma outra história da moralidade, logicamente, nos limites de uma
sociedade hierarquizada pela cor e classe. Porém, a historiadora também salienta que a
narrativa feita pelo literato esconde outros significados que vão além do universo da
moralidade feminina. Nesse sentido, vivendo em um mundo que marginalizava os negros e
mulatos, ainda que tivessem assimilado e interpretado as regras desse universo, seus esforços
não eram suficientes para fazer com que fossem reconhecidos e julgados de maneira justa por
essa sociedade. É refletindo sobre esses “outros significados” que o presente trabalho tem
pretendido se desenvolver. 301

3.4. A ÚLTIMA VERSÃO DE CLARA DOS ANJOS.

A versão do romance Clara dos Anjos publicada, em revista, em fevereiro de 1923, e


transformada em livro posteriormente, é introduzida com uma citação que pertence ao livro
História do Brasil, do autor João Ribeiro, a passagem é: “Alguns desposavam (as índias);
outros, quase todos, abusavam da inocência delas, como ainda hoje das mestiças, reduzindo-
as por iguais às concubinas e escravas.”302 Esse fragmento se encontra no livro que foi
publicado em 1900 e que deu ao autor João Ribeiro o reconhecimento como historiador.
Segundo Patrícia Santos Hansen foi a partir desse manual escolar que João Ribeiro passou a
ser reconhecido como intérprete do Brasil, comparado até mesmo à Capistrano de Abreu. 303
Além de poeta, jornalista, filósofo e historiador, João Ribeiro também fez parte do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro a partir de 1913. Antes disso, em 1887, o autor
ocupou a cadeira de professor de português no Colégio Pedro II, passando para a disciplina de
história universal depois de 1891, após as reformas curriculares de Benjamin Constant.304
Ainda segundo Hansen, fazer parte do quadro de professores do Colégio Pedro II, durante a
Primeira República, foi de grande importância para a trajetória do autor, já que os nomes dos
professores dessa instituição se destacam pela sua notoriedade. Além disso, o autor também
foi membro da Academia Brasileira de Letras, isto é, foi um intelectual consagrado e
reconhecido entre os estudiosos da elite do período.
É interessante, e merece destaque no presente projeto, que em História do Brasil João
Ribeiro exibe, em sua introdução, o que pretendia privilegiar neste manual. O autor teve a

301
Ibidem, p. 204.
302
BARRETO, Lima. Clara dos Anjos. op.cit, p. 26.
303
HANSEN, Patrícia Santos. “João Ribeiro, historiador”. Revista do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro, v. 173, p. 183-208, 2012
304
Ibidem.
109

intenção de “retornar à antiga tradição dos nossos cronistas e primeiros historiadores”, dando
305
foco ao estudo da terra e das gentes que a habitavam. Dessa forma, o seu objetivo era
produzir a história do Brasil de um ponto de vista interno. Patrícia Hansen sugere que essa
noção de “interno” se refere mais à noção de identidade do que a uma posição espacial e
geográfica. Em outras palavras, eram as ações dos agentes internos que interessavam o autor.
Esse manual propunha uma análise sobre a formação da identidade brasileira, que rompia com
a cronologia oficial de uma história externa, resumida em histórias políticas e administrativas.
O autor, que ficou conhecido como historiador após esse trabalho, interpretou e escreveu
sobre o Brasil se baseando em uma filosofia original, onde as “feições e fisionomias” internas,
próprias do Brasil seriam as responsáveis pela formação dessa identidade, ou seja, dando
destaque aos agentes e aos movimentos que foram pouco considerados pela escrita da história
estritamente política, considerando as particularidades da formação brasileira.
O trecho que introduz a publicação do romance Clara dos Anjos faz parte de um dos
capítulos do manual intitulado “As três raças. A sociedade”. A questão da definição da
identidade brasileira estava no seio das preocupações do contexto intelectual do qual João
Ribeiro fez parte. Definir um perfil do que seria a raça nacional era umas das urgências da
intelectualidade brasileira. Em “Feições e fisionomia”, Patrícia Hansen demonstra como o
manual expressou essa questão. Para o entendimento, a autora destaca três conceitos que
considerou de importância fundamental para compreender a intelectualidade do período. Um
deles é o conceito de desmoralização que, segundo ela, se tornou um eixo explicativo para os
fatores que teriam levado o Brasil para aquela condição de crise. Essa visão negativa e
pessimista que tinha, a respeito da sociedade brasileira, era um traço da personalidade de João
Ribeiro e foi isso o que gerou identificação, da parte do autor, para com os fundadores da
Academia Brasileira de Letras. É a partir dessa concepção de história do Brasil que o autor vai
construir a sua obra.
De acordo com as afirmações de João Ribeiro, o processo de desmoralização teve o
seu início com a colonização e com as suas causas relacionadas “[...] aos interesses
meramente econômicos e práticos dos portugueses no Brasil”.306A permanência e
continuidade desse processo necessitou de um meio e, para João Ribeiro, esse meio foi a
miscigenação, isto é, a fusão das raças, dos costumes e da cultura foram os fatores principais

305
Ibidem, p. 196.
306
HANSEN, Patrícia Santos. Feições e fisionomia: a História do Brasil de João Ribeiro. Rio de Janeiro:
Access, 2000, p. 98.
110

para a desmoralização do Brasil, degenerando o seu povo e impossibilitando a civilização aos


moldes europeus.
Roberto Candido da Silva buscou compreender os esforços do intelectual que viveu
no final do século XIX e início do XX em contribuir para a construção e a divulgação da
nacionalidade brasileira. 307 Essa construção tinha como objeto o resultado da mistura cultural
e étnica que aconteceu no Brasil. Embebecido pelo evolucionismo, pelo darwinismo e pelo
determinismo geográfico, Silva defende que Ribeiro tinha a raça e o meio ambiente como
questões centrais para as suas explicações. Não só as questões dele, como as da maioria da
intelectualidade do século XIX. Influenciado pelas principais correntes teóricas europeias da
época, a raça, para João Ribeiro, era um fator importante no processo civilizatório. Por essa
razão o historiador adotou e adaptou essas teorias: para escrever sobre a história do Brasil.
Ainda que partindo de ideias pessimistas, João Ribeiro defendeu que o futuro do Brasil seria o
advento do mestiço. O autor acreditava que a raça nacional já estava em formação desde o
século XVII e que a miscigenação poderia ser a explicação de vários fatos históricos, como,
por exemplo, a luta contra os holandeses. Roberto Candido da Silva sugere que, para João
Ribeiro, o espírito brasileiro presente na ação da raça mestiça, mesmo que destrutivo, foi
necessário para a busca da autonomia do país desde o início do século XVII. Nesse sentido,
ainda que partindo de ideias negativas, João Ribeiro reconheceu a importância da mestiçagem
na construção nacional, o que seria a sua grande sua contradição.308
Esse tipo de pensamento refletiu o racismo de uma ideologia que viu na mestiçagem a
salvação para a nação, resultando na total eliminação do sujeito negro. A solução para esse
problema, no entendimento de João Ribeiro e de outros intelectuais da época, estaria no realce
do perfil brasileiro através dos brancos, pela imigração europeia. Somente assim, o Brasil
poderia pôr em prática a missão civilizatória, utilizando a gramática, a filologia e a história
como ferramentas para esse processo. Por isso, a escolha das palavras do João Ribeiro, feita
por Lima Barreto, para iniciar Clara dos Anjos é entendida, aqui, com o início da denúncia
contra essa ideologia que o literato produziu com a narrativa. Ou seja, ao escolher um autor
que usou do ideário cientificista e do projeto de branqueamento da sociedade por meio da
mestiçagem como epígrafe desta versão, Lima Barreto prenuncia o que pretende fazer e
entrega sobre qual temática irá refletir. Nesse sentido, o trabalho desenvolvido por Kabengele

307
SILVA, Roberto Candido da. O Polígrafo Interessado: João Ribeiro e a construção da brasilidade. 2008.
Tese de Doutorado. Universidade de São Paulo. Tese (Doutorado). Universidade de São Paulo, Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas, 2008
308
Ibidem.
111

Munanga, com o propósito de rediscutir os fundamentos da ideologia e o conteúdo simbólico


e político da mestiçagem, pode iluminar nossa reflexão. 309
Munanga apontou que o processo de criação de uma identidade nacional brasileira,
visando o embranquecimento e recorrendo às teorias eugenistas, ainda que tenha fracassado,
renderam grandes impactos na consciência coletiva dos brasileiros, inferiorizando os negros e
mestiços diante da suposta superioridade da raça branca. Essa categorização humana teve em
suas bases muito mais um sentido sócio político do que biológico. Portanto, a mestiçagem
passou a ser vista como um meio para a salvação, como o caminho para solucionar o
problema da diversidade racial brasileira e a radicalização dos sujeitos se tornou o eixo
principal, onde a ideia de uma identidade brasileira começou a ser pensada. 310
A mestiçagem, como articulada no pensamento brasileiro entre o fim do século XIX
e meados dos séculos XX, seja na sua forma biológica (miscigenação), seja na sua
forma cultural (sincretismo cultural), desembocará numa sociedade uniracial e
unicultural. Uma tal sociedade seria construída segundo o modelo hegemônico racial
e cultural branco ao qual deveriam ser assimiladas todas as outras raças e suas
respectivas produções culturais. [...] Em nenhum momento se discutiu a
possibilidade de consolidação de uma sociedade plural em termos de futuro, já que o
Brasil nasceu historicamente plural.311

É através dessas ideias que entendemos Clara dos Anjos, como uma consequência e
uma crítica às ideologias que estava em voga no período, onde a imagem homogeneizada da
identidade brasileira foi pensada e projetada. Portanto, a interpretação defendida é que essa
obra produziu uma crítica ao racismo e ao projeto de mestiçagem que visou o branqueamento
da sociedade. Ainda que o sujeito mestiço, como Clara, tenha passado pelo processo de
assimilação e ressignificação com o elemento dominador – tanto pela investida dos brancos,
como dos próprios negros –, esse mestiço foi inferiorizado devido às marcas que carregava
em seu corpo e, para além dele, teve também a sua humanidade subjugada. Nesse sentido, os
dilemas enfrentados por Clara do Anjos, assim como os do seu próprio criador, podem ser
entendidos como consequências das trocas que foram iniciadas no seio do Atlântico, com o
navio negreiro e com o processo de colonização, feito sobre as bases estigmatizantes e racistas
da época. Desse modo, através da sua literatura, Lima Barreto demonstrou o compromisso
que travou durante toda a sua vida contra o racismo que inferiorizou os negros.312 Então,
vamos ao romance.

309
MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus identidade negra.
Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019.
310
Ibidem, p. 53.
311
Ibidem, p. 91.
312
BROOKSHAW, David. Raça e Cor na literatura brasileira. op. cit., p. 169.
112

Nessa versão, Clara dos Anjos é uma mulata que é filha de Joaquim dos Anjos, um
homem que, quando jovem, gostava de violão e de modinhas – por muito tempo ele acreditou
ser músico de certa ordem. Desgostoso com a música, embarcou em outros ramos. Foi
encaixotador, guia, servente, pajem e muitas outras coisas, até que, a convite de um
engenheiro inglês, que veio ao Brasil estudar, foi para o Rio de Janeiro e lá, já habituado à
cidade, decidiu não voltar para Diamantina. Já conhecido pela cidade, arrumou emprego no
escritório de um grande advogado, que não lhe pagava grandes coisas. Mas, o desejo de
Joaquim era ter um emprego público, o que acabou conseguindo após dois anos como
funcionário no escritório de advocacia. Virou carteiro e garantiu o direito à aposentadoria.
Joaquim dos Anjos casou- se com D. Engrácia e ambos foram viver em uma modesta
casa nos subúrbios da cidade. Dessa relação a única filha que sobreviveu foi Clara. A jovem
menina, lá pelos seus dezessete anos, gozava de recanto e carinho dos seus pais. Não podia
sair de casa sozinha, a não ser que fosse acompanhada por D. Margarida, uma viúva muito
séria e respeitosa, que morava na redondeza. Com essa senhora, Clara ia alguns domingos ao
cinema do Méier ou Engenho de Dentro, já que seus pais não gostavam de sair de casa e
tinham uma vida bastante sedentária.
Os únicos divertimentos de Joaquim dos Anjos eram as habituais partidas de solo que
se prestava a jogar com os seus companheiros: o Sr. Antônio da Silva Marramaque, padrinho
de Clara, e o Sr. Eduardo Lafões. Aos domingos, no fundo do quintal da casa de Joaquim, os
amigos se reuniam para jogar e tomar alguns goles de parati e café. Marramaque era o mais
político de todos, mas foi aposentado por conta do seu estado de semi-aleijado, pois já não
realizava nenhum ofício. Entretanto, quando mais jovem fez parte de uma modesta rede de
literatos e poetas, onde se discutia muito sobre literatura e política. Porém, depois da Revolta
da Armada, em 1893, a roda se desfez. Mesmo assim, quando falava dessa parte de sua vida,
se orgulhava muito em dizer que conheceu Paula Ney e Luiz Murat e que nunca deixou de
lado a sua mania de política. Havia, em sua alma, um desejo de pôr no papel as suas ideias e o
seu forte sentimento de justiça. Lafão era um operário, português de nascimento, que veio
para o Brasil ainda criança. Muito correto em sua conduta, pôde chegar a conquistar alguma
posição na repartição de água da cidade. Apesar de não possuir toda a ilustração de
Marramaque, Lafão também tinha as suas paixões pela política. Foi em uma dessas rodas de
jogos e conversas, banhados de parati e de café, que Lafão perguntou à Joaquim se poderia
trazer para os anos de Clara um mestre de violão e de modinha, o Cassi. O padrinho de Clara,
113

no mesmo momento, expressou a sua opinião sobre a postura do sujeito, dizendo que tipo
como o dele não deveria frequentar casas de família.
Cassi Jones de Azevedo era um rapaz de pouco menos de trinta anos, branco, também
morador do subúrbio da cidade e filho de Manoel Borges de Azevedo e Salustiana Baeta de
Azevedo. Esse jovem rapaz era responsável pelo encanto e pela sedução de inúmeras moças
pobres da redondeza. Mesmo com a sua pouca idade, já tinha mais de dez defloramentos em
sua conta, mas ele, contando sempre com o apoio de sua mãe, conseguia constantemente se
livrar das obrigações do casamento e de punições. Sua mãe, que possuía presunções de fidalga
e alta estirpe, não poderia aceitar ver o seu filho casado com uma preta criada, com uma
mulata pobre ou com uma moça branca lavadeira. Diferentemente de sua vaidosa mãe, o pai
de Cassi Jones não aceitava a postura do filho, tanto que proibiu que o mesmo frequentasse a
casa da família após inúmeros desgostos. Além de Cassi Jones, o casal tinha mais duas outras
filhas: Catarina e Irene. As duas jovens também sentiam grande desprezo pelo irmão, tanto
pela sua conduta, quanto pela sua ignorância e pelos seus modos de educação. Por conta das
ordens do pai, a mãe de Cassi abrigou escondido o filho no porão da casa. Lá, ele dividia
espaço com os galos-de-briga que criava. A sua incapacidade para o trabalho contribuiu para
que ele visse nessa prática um meio mais fácil de ganhar algum dinheiro.
Junto à Cassi se uniam outros rapazes da mesma índole, como o Ataliba do Timbó, um
mulato claro, quem foi obrigado a casar com uma jovem, em razão do seu defloramento. Não
tendo as mesmas influências que Cassi, ele viu-se obrigado a casar. Timbó tinha como
ocupação o cargo de agente de jogo de bicho. O outro companheiro de Cassi era Zezé Mateus,
um branco sem dentes, de fisionomia empastada, que topava qualquer ofício. Era o mais
inofensivo de todos e estava em estado de ruína humana. Franco Souza, esse, sim, era um
malandro. Intitulado advogado, enganava a algumas pessoas pela cidade. Apesar da postura,
vivia decentemente com a sua mulher e os seus filhos. O último era o Arnaldo, modinheiro de
um tipo mais nojento que Cassi. Vivia de furtos no trem e da venda desses itens roubados.
Apesar da proximidade, Cassi não tinha por esses rapazes nenhum tipo de sentimento de
amizade. Na verdade, não sentia sentimento algum nem mesmo pela sua família, até pela sua
mãe que sempre lhe defendeu, só a tratava com ternura quando estava em detenção. “O seu
fundo e os seus princípios explicavam de algum modo essa sua aridez moral e sentimental.” 313
Marramaque sabia a atmosfera de corrupção que rondavam as raparigas de cor, como a
sua afilhada, condenadas pela sociedade em sua condição moral e social. Mesmo honestas, já

313
BARRETO, Lima. Clara dos Anjos. op. cit, p. 55.
114

eram julgadas, imagine as que não resistiam as tentações? Por isso, aconselhou o seu
compadre a não permitir que Cassi fosse à festa, mas o carteiro decidiu experimentar, afinal, o
rapaz sabia com quem se metia. Clara, que ouvia a tudo, ficou curiosa e ansiosa com a notícia.
Quem seria esse Cassi? Ela, que sempre foi criada sobre muito zelo e mimos, não tinha noção
da sua real condição de mulher mulata diante da sociedade. Mas Clara sonhava através das
músicas, da poesia e do estado de espírito, que ansiava por conhecer e ouvir esse violeiro que
dá má fama ela não sabia.
Chegou o dia da festa e Clara ficou toda arrumadinha em um vestido de crepom e
rendas, com sapatos de verniz e meias, ansiosa com a chegada do violeiro. Quando Cassi
chegou, jogou um olhar guloso sobre os seios empinados da jovem e logo foi convidado a
cantar. Depois de um tempo de relutância e de insistência de Clara, ele então decide
demonstrar o seu lado de violeiro e escolheu a modinha “Na Roça” para a ocasião, e assim
começou:
Mostraram-me um dia
Na roça dançando
Mestiça formosa
De olhar azougado...
Sorria a mulata
Por quem o feitor
Diziam que andava
Perdido de amor.314

Clara sentia cada palavra com um prazer artístico, levando-a a um estado de amor e
satisfação, um êxtase místico que sentia por cada palavra e olhar que Cassi jogava sobre ela.
Marramaque, que via tudo acontecer, logo demonstrou sua antipatia pelo rapaz. Cassi
percebeu os olhares do padrinho de Clara e não demorou muito tempo para ir embora. A festa
seguiu. Ao seu final, Joaquim e a mulher, recolhidos na sala de jantar, começaram a comentar
sobre as atitudes de Cassi Jones. D. Engrácia, com uma atitude decisiva, diferentemente do
normal, diz não querer mais que o rapaz frequentasse a sua casa. Joaquim concordou com a
mulher e Clara, que ouvia tudo do seu quarto, começou a chorar em silêncio.
D. Engrácia, assim como a mãe de Lima Barreto, era filha de ex-escravizada com um
dos filhos do senhor da casa onde morava. A suspeita da paternidade era confirmada pela
forma que a menina foi tratada, recebendo boa instrução e educação. Mas o seu temperamento
pacato sempre foi o mesmo, não saia quase nunca e morria de medo que a filha errasse, se
perdesse. Mesmo com esses cuidados excessivos, não foi capaz de ensinar para a filha os reais
perigos que corria a sua honestidade de donzela, seja pela sua condição de mulher, seja pela

314
Ibidem, p. 77.
115

sua cor. Ao contrário, o excesso de zelo só gerava em Clara uma curiosidade alimentada em
sua pequena alma de mulher. Cheias de sonhos acrescidos pelo gosto de modinhas, Clara
sonhava com um amor sincero, um amor sem obstáculos, que nem mesmo a raça, classe ou
qualquer outra condição poderia vencê-lo. Por algum momento, até surgiu em sua mente a
dúvida se o fato dela ser mulata e ele branco traria algum impedimento para o romance. Mas,
logo concluiu que não, afinal era uma paixão sincera e ela precisava se libertar, precisava sair,
ir ao teatro e ao cinema. Não conhecia nada, nem mesmo na venda do Seu Nascimento ela
podia ir sozinha – e, à época, esse lugar não era considerado mal frequentado. A jovem vivia
sonhando e suspirando por amor, em seu pensamento não pairava nenhuma responsabilidade
ou consciência da sua existência. Não havia, em seu meio de convívio, representações que lhe
pudesse fazer compreender a sua individualidade social naquela sociedade. De resto, Cassi
não teria coragem de desonrar uma família honesta, ele não poderia ser culpado de tudo que
diziam, as moças que deveriam ser oferecidas demais. E Clara, em sua ingenuidade de jovem
menina apaixonada, concluiu que Cassi era digno do seu amor mais sincero.
Leonardo Flores era um dos que frequentavam o estabelecimento do Seu Nascimento.
Era um verdadeiro poeta que já havia tido algum reconhecimento pelo Brasil. Mas, devido ao
álcool e aos desgostos da vida, tornou- se um triste homem, amnésico. Apesar de já ter
publicado dez volumes, não ganhou dinheiro algum com isso e acabou vivendo da
aposentadoria do governo federal. Flores era reconhecido pela vizinhança, todos o tinham
como uma celebridade e lamentavam o destino que a sua vida havia tomado. Muitos trabalhos
abordam as semelhanças desse personagem com a vida do próprio autor. De acordo com Nilce
Camila de Carvalho e Ricardo Sorgon Pires, esse personagem é a representação de um
intelectual negro da época. 315 Os autores sustentam que o pós-abolição foi um período onde
poucos negros tiveram possibilidade de ascensão social vivendo às derivas do Estado. Quando
um desses sujeitos se destacava, logo era visto com preconceitos. 316 Do mesmo modo que o
autor, Leonardo Flores abriu mão de todas as honrarias da vida por causa dos seus propósitos
artísticos. Pobre e mulato, foi humilhado e ridicularizado diante de uma sociedade que o
rebaixou, mas, mesmo assim, cumpriu com o seu dever e executou a sua profissão, foi
poeta!317 Lima Barreto através desse personagem demonstra toda a dor e os danos que o
racismo pode causar. Um racismo que adoece a mente e alma, e mata o corpo.

315
DE CARVALHO, Nilce Camila; PIRES, Ricardo Sorgon. Reflexões acerca do intelectual negro em Clara
Dos Anjos: A proximidade entre Lima Barreto e seu personagem Leonardo Flores. Recorte, v. 11, n. 1, 2014.
316
Ibidem, p 3.
317
BARRETO, Lima. Clara dos Anjos. op. cit., p. 131.
116

A arte só ama a quem a ama inteiramente, só e unicamente; e eu precisava amá-la,


porque ele representava, não só a minha redenção, mas toda a dos meus irmãos, na
mesma dor. Louco? Haverá cabeça cujo maquinismo impunemente possa resistir a
tão inesperados embates, a tão fortes conflitos, as colisões com meio tão bruscas e
imprevistas? Haverá?318

A narrativa segue e o amor que Clara sentia pelo Cassi cresce cada dia mais, mesmo
que os seus pais e o seu padrinho não aceitassem tal coisa. Já Cassi estava em busca de mais
uma de suas vítimas e Clara era perfeita para esse papel. Ele precisava, porém, acabar com os
impedimentos para tal feito. Sabendo que não poderia ronda a sua casa, pois assim seria
reconhecido e denunciado, tinha que pensar bem em como agir. Afinal, nem sempre podia
contar com as benevolências dos delegados e juízes que julgavam errado, em seu íntimo, o
casamento entre pessoas diferentes. Por isso, foi atrás de um intermediário para facilitar o
contato com a jovem. O dentista Menezes foi quem o ajudou nesse contato. Cuidando dos
dentes da jovem, foi através dele que Clara e Cassi puderam trocar cartas de amor. Quando os
seus pais e padrinhos descobriram sobre as cartas de amor, ficaram chocados. Joaquim até
pensou que se ele realmente quisesse casar com a filha, não seria contra. Mas, Marramaque
logo lembrou o amigo que se essa fosse a intenção do rapaz, ele não escolheria Clara, que era
mulata e pobre. Clara, que ouvia tudo do seu quarto, pôs-se a chorar e a sentir raiva do seu
próprio padrinho. Com isso, decidiu escrever uma carta contando tudo que havia acontecido.
Cassi, ao receber a notícia pelas mãos do Menezes, planejou fria e cruelmente o assassinato de
Marramaque.
Clara, ao saber do crime cometido contra seu padrinho, logo pensou que o culpado
poderia ser Cassi. Mas, mesmo assim, aceitou conversar com o violeiro. Cassi, que já não
contava com a proteção de antes, decidiu dar fim ao serviço e ir embora, tinha que fugir do
Rio de Janeiro. Por isso, vendeu os seus galos-de-briga e decidiu depositar o dinheiro na
Caixa Econômica para poder pegar, assim, o que lhe fosse necessário. Para isso, foi até o
centro da cidade. Raramente ia ao centro, não gostava. No centro da cidade, em meio aquela
multidão, toda sua fama acabava, naquele lugar ele não era nada. “Na “cidade”, como se diz,
ele percebia toda a sua inferioridade de inteligência, de educação; a sua rusticidade.” 319 Diante
daquelas pessoas ele era apenas um medíocre suburbano.
Para não ser visto por algum conhecido que poderia estar pela redondeza, decidiu
atravessar a cidade pelos becos que dariam na rua da Misericórdia. Penetrando por essas ruas,
Cassi Jones foi abordado por uma das suas vítimas do passado, que após ser desonrada e

318
Ibidem, p. 131-132.
319
BARRETO, Lima. Clara dos Anjos. op. cit., p. 170
117

abandonada por ele, acabou entre as inúmeras mulheres que viviam ali em um estado de
degradação e miséria, niveladas pelo seu grau de rebaixamento. Ao reconhecê-lo, a rapariga
quis jogar sobre ele todo o seu rancor. Pior que ele, era a sua mãe, que ao saber da gravidez, a
pôs para fora de casa sem dó nem piedade, sem ao menos considerar o neto que estava em sua
barriga. Aos prantos, a pobre contou que o filho, fruto dessa relação, se encontrava na
detenção, pois havia se metido com ladrões. Cassi, com a ajuda dos guardas da ronda,
conseguiu se livrar da mulher e seguiu o seu caminho, decidindo voltar para casa e nunca
mais passar por ali. Entretanto, nem mesmo após saber que tinha um filho e que ele estava na
detenção, a notícia lhe causou qualquer tipo de pensamentos ou sentimentos com relação a
isto. Seu único questionamento foi: como uma negra como aquela poderia abordá-lo, assim,
no meio da rua? Se alguém tivesse visto, no outro dia a notícia já estaria no noticiário e nos
jornais do subúrbio.
O encontro com Clara aconteceu e os planos de Cassi seguiram como o esperado. Em
uma noite de chuva, a jovem deixou a janela aberta e o rapaz pôde entrar. Sem nenhuma
violência ou brutalidade, Cassi tomou Clara para si. Depois disso, abandonou a jovem, que
passou dias suspirando e não acreditando no que havia acontecido. Ele era gentil e lhe
prometeu casamento, nem mesmo a sua cor ou a sua pobreza impediu que o amor
acontecesse, mas o sentimento de Cassi eram outros. Logo os sintomas da gravidez
começaram a aparecer atestando que Clara estava irremediavelmente perdida. A jovem já não
sabia o que fazer.
[...] Agora, é que percebia bem quem eram o tal Cassi. O que os outros diziam dele
era a pura verdade. A inocência dela, a sua simplicidade de vida, a sua boa-fé, e o seu ardor
juvenil tinham-na completamente cegado. Era mesmo o que diziam… Por que a escolhera?
Porque era pobre e, além de pobre, mulata. Seu desgraçado padrinho tinha razão..., Fôra
Cassi que o matara.320

Diante dessa situação, Clara decidiu que pediria ajuda a D. Margarida, só essa senhora
forte e decidida poderia fazer algo por ela. Lhe pediria um adiantamento, com isso, abortaria.
Mas acabou confessando tudo para a velha senhora, que em seguida, contou para sua mãe. D.
Engrácia sabendo do ocorrido, pôs-se a chorar copiosamente, lamentando-se. D. Margarida
que era a mais decidida, resolveu que deveriam ir até a casa do rapaz conversar com a família.
Chegando lá, contaram todo o ocorrido para a mãe do rapaz, D. Salustiana, que como resposta
disse não poder fazer nada, tratando Clara com total desdém.
-Ora, vejam você só! É possível? É possível admitir-se que meu filho está casado
com esta…

320
Ibidem, p. 291.
118

-Casado com gente dessa laia… Qual!...Que diria meu avô, Lord Jones, que foi
cônsul da Inglaterra em Santa Catarina - que diria ele, se visse tal vergonha? Qual!
-Engraçado, essas sujeitas! Queixam-se de abusarem delas… É sempre a mesma
cantiga...Por acaso, meu filho as amarra, as amordaça, as ameaça com faca e
revólver? Não. A culpa é dela, só dela. 321

Clara saiu da casa dos pais de Cassi, junto à D. Margarida e sua mãe, completamente
desolada com a cena de humilhação que havia passado. Agora sabia sua real situação diante a
sociedade, foi preciso passar por tudo isso para saber que ela não era igual às outras moças.
A educação que recebera, de mimos e vigilâncias, era errôneas. Ela devia ter
aprendido de boca dos seus pais que a sua honestidade de moça e de mulher tinha
todos os inimigos, mas isto ao vivo, com exemplos, claramente… [...] Ora, uma
mulatinha, filha de um carteiro! O que era preciso, tanto a ela como às suas iguais
era educar o caráter, revestir-se de vontade, como possuía essa varonil D. Margarida,
para se defender de Cassis e semelhantes, e bater-se contra todos os que se
opusessem, por este ou aquele modo, contra a elevação dela, social e moralmente.
Nada a fazia inferior às outras, senão o conceito geral e a covardia com que elas o
admitiam.322

A jovem mulata após ter consciência de tudo, disse aos prantos, abraçada à mãe: “-
Nós não somos nada nesta vida”.323 É assim que a última versão dessa narrativa foi encerrada.
Como já foi dito, não sabemos se o romance teria outro fim caso o literato tivesse tido tempo
para continuar a escrevê-lo, mas sabemos que, mesmo em diferentes versões, Clara ao
descobrir a sua condição de mulata diante da sociedade, se torna capaz de entender as
consequências do racismo.
Vera Regina Teixeira diz que Lima Barreto foi um homem que, consciente da sua
condição social e da organização em que estava sujeito, usou o seu ofício de escritor como
arma de combate. 324 É através desse romance que o autor vai expor o infortúnio de uma pobre
mulata moradora do subúrbio do Rio de Janeiro, realizando uma biópsia da sociedade
325
suburbana carioca. Teixeira salienta que na versão de 1904, Clara é apresentada com
espírito forte e corajoso, passando por inúmeras dificuldades: foi seduzida, ficou gravida, foi
abandonada, casou, ficou viúva e, no fim, terminou sustentando seu último companheiro.
Nessa versão, Clara é uma heroína capaz de lidar com as dificuldades que a sua condição de
marginalizada lhe trazia. Na versão seguinte, Clara é uma jovem que, depois da morte de seu
pai, aceita um trabalho no Centro para ajudar no sustento de sua casa, nesse contexto ela é
seduzida e humilhada pelo adolescente galanteador. É apenas em 1919 com a reaparição da

321
BARRETO, LIMA. Clara dos Anjos. op.cit, p. 200.
322
Ibidem, p. 200.
323
Ibidem, p. 201
324
TEIXEIRA, Vera Regina. " ‘Clara dos Anjos’ de Lima Barreto: Biópsia de uma Sociedade”. Luso-Brazilian
Review, p. 41-50, 1980.
325
Ibidem, p.42.
119

obra que o autor, de forma mais polida, cria o que foi última versão em formato de conto.
Nesse texto, Clara é uma personagem mais inocente, que apesar de todos os cuidados da sua
mãe, acaba sofrendo a mesma fatalidade: sem nenhuma proteção social, é seduzida e
abandonada por um indivíduo cujo prestígio lhe é beneficial diante da justiça. “O conto de
Clara dos Anjos é, portanto, não só um simples relato sobre o destino de uma mulata pobre,
mas, também uma denúncia contra a injustiça social.” 326 É desse conto que surge o romance,
escrito depois da sua segunda internação do literato no hospício. Mesmo com a saúde já
abalada, Teixeira nos diz que o autor, em seus últimos anos, se agarrou à literatura, e entre
dezembro de 1921 e janeiro de 1922, escreveu totalmente a obra, fazendo uma reelaboração
da velha história que já lhe acompanhava por toda a vida. “Este Clara dos Anjos é a história
de várias tragédias que assolam homens e mulheres desgraçadas e para quais o ‘o subúrbio é o
refúgio dos infelizes’.”327
Portando, podemos concluir que, mesmo com diferentes Claras do Anjos – uma
primeira mais corajosa, que enfrentou a pobreza e as dificuldades como uma heroína; outra
menos valente, porém capaz de ir em busca do seu sustento e, por último, uma Clara mais
inocente, que mal saia de casa, cuidada com muitos mimos e zelo por uma família, que apesar
de pobre, pôde proporcionar a jovem certa instrução e educação –, ainda assim, o destino da
personagem não mudou. Ou seja, ainda que Clara mude de contexto, assimilado os ideais de
moralidade do grupo superior daquela sociedade, a jovem acaba sempre sendo julgada,
humilhada e rebaixada à inferioridade que a condição de mulata lhe trazia.
Leo Spitzer, tem, eu seu trabalho, objetivo de examinar, a partir de um estudo
comparado das experiências, a trajetória assimilacionista de indivíduos ao mundo dos
dominantes, procurando entender, assim, o modo como esses sujeitos se identificaram e se
orientaram ao longo do tempo. 328 Com a intenção de também compreender o “embaraço da
marginalização” – que é o momento em que o os indivíduos no processo de assimilação,
descobrem as barreiras que os impedem de participar dos privilégios do mundo dos
dominantes – o autor supracitado pode nos orientar na análise do caso envolto às tantas
histórias das Claras dos Anjos de Lima Barreto. 329

326
TEIXEIRA, Vera Regina. " Clara dos Anjos" de Lima Barreto: Biópsia de uma Sociedade. Luso-Brazilian
Review, p. 41-50, 1980, p.46.
327
Ibidem, p.47.
328
SPITZER, Leo. Vidas de entremeio: assimilação e marginalização na Áustria, no Brasil e na África
Ocidental, 1780-1945. Rio de Janeiro EDUERJ, 2001.
329
Ibidem, p.16.
120

Esses indivíduos estudados por ele – família Rebouças, afro-brasileira; os May, uma
família crioula de Serra Leoa a África Ocidental e a família austro-judaica Zweig-Brettauer –
no período pós-emancipação, fizeram parte de uma sociedade onde a ordem e os valores
culturais eram definidos desde um grupo poderoso economicamente: a burguesia. Nesse
sentido, o autor salienta que os caminhos de inserção completa dessas famílias foram
bloqueados pelas barreiras das diferenças, percebidas e manifestadas de diversas maneiras.

Elas pareciam menos portentosas quando se expressavam sobre forma de


preconceito – com sutileza, por meio de pilheiras ou de algum tipo de altivez social
que impedia a intimidade, ou com arrogância, por intermédio do insulto e das
agressões mesquinhas. Pareciam mais obstrutivas quando se expressavam sob a
forma de uma discriminação jurídica ou extrajudicial institucionalizada, que impedia
a participação em esfera da atividade social, econômica ou política. E atingiam seu
grau máximo de destrutividade quando assumiam a forma de perseguição franca,
tolerada pelo Estado.

No Brasil do século XIX e XX, segundo o autor, o processo assimilacionista


demarcava a trilha que o sujeito deveria cursar. A modificação nos traços culturais entendidos
como inferiores, fazia parte desse processo. Era necessário deixar para trás tudo o que fosse
inferior. Nesse sentido, o embranquecimento foi um dos meios encontrados para alcançar essa
completa assimilação. Pelos esforços conscientes ou inconscientes de transformar o negro em
branco pela miscigenação, alguns indivíduos tentaram passar dos mundos dos subordinados
para o dos dominantes, criando possibilidades de escapar da associação direta com a
inferioridade da escravidão. Porém, mesmo que esse processo tenha sido estimulado pelo
grupo dominante ou iniciado pelo próprio grupo subordinado, os arranjos estruturais da
sociedade, arraigados nas desigualdades, não foram alterados, ou seja, “o esforço
assimilacionista, como tal, sempre teve metas mais reformistas do que revolucionárias.” 330

De acordou com Spitzer, a cor da pele era um determinante crucial para a aceitação do
mundo dos dominantes. Nesse sentido, quanto mais clara fosse a pele, mais fácil seria a
integração desses sujeitos, e esse foi um dos critérios que pautaram a ideologia do
embranquecimento. A ideia de aproximação das características físicas com o branco, fariam
com que as raças inferiores fossem se apagando do Brasil, levando-o para uma cultura
superior, dando um fim positivo para a mestiçagem. Referenciando Thomas Skidmore, essa
noção se distanciava das ideias racistas fora do Brasil e tinham em seus pressupostos “a
crença no “inatismo das diferenças raciais” e a convicção da “degeneração do sangue

330
Ibidem, p. 50.
121

misturado”.” 331 Por isso, Spitzer salienta que a cor, somada ao víeis cultural, trazia maiores
oportunidades para os sujeitos que se aproximavam dos brancos, afastando-os da cor da
escravização. Ou seja, uma “saída de emergência dos mulatos”, que acontecida de forma
consciente ou inconsciente. 332

Ainda que as mulatas tenham, a partir dessa ideia, gozado (aparentemente) de certos
benefícios que as favoreciam devido à sua cor mais clara, somado isso às ideias eróticas que
pairavam sobre elas, vivendo em uma sociedade patriarcal que garantia de forma legitimada
ao homem branco fácil acesso aos seus corpos, elas nunca ocupariam o lugar no pedestal
destinados somente as brancas. Um exemplo disso é apresentado por Spitezer ao analisar a
situação das mulheres da família Rebouças comparada aos irmãos nascidos homens. O autor
nos diz que, mesmo que elas tenham adotado e internalizado alguns valores materiais e
culturais do grupo superior, tanto na aparência, quando na manifestação pública, e tenham
evitado qualquer associação com o grupo inferiorizado, essas mulheres tiveram menos
oportunidade de mobilidade social. Com o acesso à instrução formal rudimentar por conta do
preconceito sexual e da condição social da família, as filhas dos Rebouças, decerto, foram,
instruídas apenas nas artes domésticas, sempre dependendo do status social do homem que
deveriam servir para alcançar certa mobilidade, seja essa figura masculina o seu pai ou o seu
futuro marido. As mulheres de cor, nesse sentido, além de estarem subordinadas aos
preconceitos de gêneros, também eram reféns da discriminação racial e, ainda que usassem a
sua imagem sexualizada em seus movimentos em busca de sua “promoção” pessoal, como
sugere Leo Spitzer, ainda assim, foram duplamente inferiorizadas em sua condição de mulher
de cor.

Portanto, é a partir dessa explanação que podemos refletir sobre a interpretação que o
literato fez da condição das mulheres mulatas com a história de Clara dos Anjos. Clara foi
uma jovem que passou pelo embranquecimento, tanto da sua aparecia física, quanto o
embranquecimento cultural. Ela foi criada com bases nos valores da elite predominantemente
branca, seus pais aceitaram, internalizaram e interpretaram essas normas, promovendo uma
identificação da família, mesmo que inconscientemente, com as ideologias do grupo
dominante. Porém, isso não lhe garantiu total escape da ideia de subordinação e de
discriminação que a sua origem lhe trazia, e ela não pôde escapar dessa realidade em

331
SKIDMORE, Thomas E. Preto no branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro. Paz e Terra, 1976.
apud SPITZER, Leo. Vidas de entremeio. op. cit, p.123
332
Ibidem, p. 124.
122

nenhuma de suas versões. Apesar da sua assimilação e da sua adaptação social e moral, a
noção de inferioridade de sua raça sempre falou mais alto. Entretanto, como salientou Leo
Spitzer, essa adaptação da ideologia burguesa não acontecia de forma inalterável ou uniforme.
Ainda que o objetivo tenha sido o de assegurar a reprodução de valores da elite, a história não
se desenvolvia sem contradição. “Isso ilustra claramente a maleabilidade e o carácter
multifacetado dessa ideologia, assim como sua capacidade de acolher as contradições”,
contribuindo para uma diferenciação no processo de identificação com o grupo dominante. 333
Portanto, as famílias estudadas pelo autor em seu “[...] processo de assimilação numa
‘situação de marginalidade’ não se percebiam automaticamente como marginalizados – não se
viam, necessariamente, como aspirantes barrados, excluídos, rejeitados e inaceitáveis aos
privilégios e ao poder do grupo dominante.”334 As barreiras estruturais e psicológicas,
objetivas e subjetivas também se alteravam e variavam quanto a sua função excludente, o que
contribuía para a permeabilidade da camada subalterna de múltiplas formas e à percepção
sobre elas. Por isso, a interpretação e a reação desses indivíduos das camadas inferiorizadas,
em resposta a marginalização, também aconteciam de formas variadas, contribuído para o que
Spitzer chamou “embaraço da marginalização”. 335

Com essa perspectiva, podemos entender quando Clara, em um momento de reflexão,


duvida que a sua condição de inferioridade poderia ser um empecilho para o romance com
Cassi, concluindo, ela, que essa categoria de pensamento, naquela sociedade, já não era mais
um problema, já que vários casamentos entre pessoas diferentes eram possíveis. Passando por
um “embaraço da marginalização”, a estreita possibilidade de fazer parte do mundo
dominante faz com que Clara não questionasse sobre a sua própria identidade social e o lugar
incompleto destinado a ela, isto é, Clara não tinha consciência da sua própria posição social.
Quando ela se descobre em uma posição inferiorizada, após ser abandonada e humilhada pela
mãe de Cassi, percebe que, apesar da integração feita pela miscigenação na qual é exemplo, o
racismo continuou rejeitando-a, excluindo-a e racializando as diferenças de gênero que ali
existiam.

A teoria da mestiçagem durante o século final XIX contribuiu para o chamando


“embaraço da marginalização”. Ora ligada a sentidos positivos, ora ligados aos negativos, a
miscigenação esteve presente no pensamento da intelectualidade brasileira que tentou criar

333
SPITZER, Leo. Vidas de entremeio. op. cit., p .154.
334
Ibidem, p. 156.
335
Ibidem, p. 147 -158.
123

um perfil para o Brasil. Kabengele Munanga, no trabalho já referenciado, se propõe a


rediscutir os sentidos da mestiçagem no Brasil. De acordo com ele, vários intelectuais, desde a
primeira República, elaboraram propostas para enfrentar o que consideravam problema
nacional, com o objetivo de transformar a pluralidade das raças em uma coletividade de
cidadãos. Um dos destaques desses pensamentos foi Silva Romero, que viu na miscigenação a
solução para a dissolução da diversidade da sociedade brasileira, mesmo que o seu
pensamento apresente certa inconstância quanto ao tempo que isso levaria. Nesse sentido, a
mestiçagem resultaria na homogeneização e ao desaparecimento dos negros, a partir da
seleção natural. Ou seja, o mestiço era uma fase transitória para o embranquecimento.

Outro intelectual abordado por Munanga foi Raimundo Nina Rodrigues.


Diferentemente de Romero, que projetava uma unidade étnica a partir da mestiçagem,
Munanga nos diz que Nina Rodrigues propôs “[...] a institucionalização e a legalização da
heterogeneidade, através da criação de uma figura jurídica denominada responsabilidade
penal atenuada.”336, ou seja, sabendo que as desigualdades entre as raças era um fato, se
tornaria necessário formas de repressão e controle que pudessem dar conta desses níveis de
consciência, já que o negro e o mestiço não poderiam ser julgados da mesma forma que o
branco civilizado, pois as suas características naturais fazem os primeiros grupos citados
regredirem os seus comportamentos sociais. Portanto, Nina Rodrigues via a mestiçagem como
um atraso para o ideal civilizado.

A mestiçagem, nesse sentido, esteve no centro do repertório intelectual do final do


século XIX, onde Silva Romero e Nina Rodrigues são apenas dois exemplos. Na luta pela
construção de uma nacionalidade brasileira, esses estudiosos se inspiraram e reinterpretaram
as principais correntes teóricas raciais da época. Porém, como salientou Munanga, em todos
esses estudos, a ideia de raça superior e inferior foi aderida e o negro foi entendido com um
problema social que impedia a evolução da civilização do Brasil. Dessa maneira, o projeto de
mestiçagem, com o objetivo de reduzir o sangue dos inferiores e aumentar o coeficiente do
sangue superior em busca de um refinamento através do mestiço, fez com que, segundo o
autor, ocorresse uma desconstrução da identidade negra, já que o mestiço tendia a considerar-
se cada vez mais parte do mundo dos brancos, enfraquecendo o sentimento de solidariedade
com negros. 337

336
MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil, op. cit., p. 57.
337
Ibidem, p.81.
124

A elite “pensante” do País tinha clara consciência de que o processo de


miscigenação, ao anular a superioridade numérica do negro e ao alienar seus
descendentes mestiços graças à ideologia de branqueamento, ia evitar os prováveis
conflitos raciais conhecidos em outros países, de um lado e, por outro, garantir o
comando do País ao segmento branco, evitando a sua “hatinização”.

Dessa forma, a miscigenação, resultado direto do abuso das mulheres negras,


contribuiu com a separação entre negros e mestiços e com a suavização do racismo. Já que,
com bases nessas ideias, depois de um embranquecimento cultural e físico, o mulato teria um
fácil acesso à sociedade Brasileira, o que ficou conhecido, depois do trabalho de Carl Degler,
como “escape do mulato”. 338 De acordo com o autor, diferentemente dos Estados Unidos, no
Brasil as relações raciais eram muito menos formais: a ascensão e a integração dos mulatos,
derrubando as leis discriminatórias, era mais fáceis. O mulato, nesse sentido, era o caminho
que levaria ao mundo dos brancos. A partir dessa perspectiva, o mulato tendeu a se associar
com o branco e a negar a sua semelhança com os negros.

Eduardo de Oliveira e Oliveira em sua análise sobre o trabalho desenvolvido por Carl
N. Degler, nos diz que esse é um trabalho altamente controverso. Já que, a questão racial do
Brasil não pode ser vista como fruto de um entendimento entre os elementos da sociedade.
Como salienta Oliveira, Degler viu no papel atribuído aos mulatos o de aceitação e de
encorajamento ao branqueamento, a válvula de escape pela mistura racial. “ Assim o negro no
Brasil pode esperar que seus filhos sejam capazes de furar as barreiras que mantiveram para
trás, caso ele se case com gente mais clara.”339 As diferenças apontadas por Degler com
relação aos negros em comparação com o Estados Unidos, fez com que o autor defendesse
uma posição favorável para o caso brasileiro, onde o mulato e um tipo socialmente mais
aceito. Entretanto, Oliveira salienta que o fato de o Brasil não ter reconhecido a desigualdade
e racismo nas relações raciais, contribuiu para a limitação e imposição de barreiras aos dos
negros e mulatos. Assim, Oliveira esclarece que a tentativa de compreender o mulato como o
mediador de dois pólos sem conflitos é distorcer o real problema. Para o autor, a
miscigenação não pode ser entendida com tolerância, ela é resultado da exploração e
degradação da mulher negra. O mulato não é solução para o problema brasileiro, ele é “um
obstáculo epistemológico”340 .

338
DEGLER, Carl N. Neither black nor White: Slavery and race relations in Brazil and the United States. New
York: Mecmillan Company, 1971, 182.
339
OLIVEIRA, Eduardo de Oliveira e. “O mulato: um obstáculo epistemológico”. Argumento, jan. de 1974, p.
67.
340
Ibidem,p. 72.
125

Segundo Ivana Stolze Lima a mestiçagem fez parte da experiência histórica brasileira
provocando um silenciamento sobre as questões raciais, articulando um discurso de
hierarquias racializadas.341 Portanto, o mito da democracia racial criada por Gilberto Freyre
em 1933 contribuiu para suavização do próprio conflito racial. Como já abordado aqui, a
intelectualidade no final do século XIX se empenhou fortemente para analisar o perfil do
Brasil. De acordo com o que salientou Ivana Stolze Lima, o período do pós-abolição
reconstruiu “[...] a desigualdade em termos naturais, biológicos, orgânicos. Muitos dos
homens das letras e da política defendiam que a superioridade branca seria algo
cientificamente atestado.”342 Foi nesse campo de debate que a mestiçagem contribuiu para
diferentes formas e construções do racismo.

Para Florestan Fernandes a miscigenação não é indício de integração ou de igualdade,


ela não modificou a ordem racial imperante desde o período colonial. O essencial no
mecanismo que gerou a ideia de miscigenação, como salientou o autor, era a eficácia da
dominação que garantia a continuidade de uma ordem com bases escravistas. “A questão
consiste, literalmente, em obter a identificação desses indivíduos aos interesses e valores
sociais da “raça dominante”.”343 Dessa forma, a mobilidade social só seria possível a quem
aderisse aos códigos morais do grupo dominante. Porém, mesmo para esses sujeitos a
integração não acontecia em condição de igualdade, ou seja, a “miscigenação e mobilidade
social vertical operavam-se dentro dos limites e segundo conveniência daquela ordem social,
na qual eles preenchiam funções sociais relevantes para a diferenciação e a continuidade da
estratificação racial engendrada pela escravidão. 344

Lima Barreto, dialogando com as teorias da mestiçagem presentes no contexto da


primeira República, denuncia através da narrativa Clara dos Anjos os efeitos dessas ideias.
Ainda que Clara e sua família apresentam os valores compatíveis aos do grupo dominante,
isso não impediu que a jovem fosse seduzida por um homem branco que a viu como uma
presa fácil por conta da sua posição social e racial, sem nenhum amparo da justiça que
pudesse lhe proteger. Embora Cassi e Clara vivessem em espaços próximos dentro do
subúrbio e que tivessem condições econômicas parecidas, a partir de uma visão patriarcal de
superioridade de gênero e raça, o lugar destinado à Clara era duplamente inferiorizado. Desse
341
LIMA, Ivana S. " ‘Tijolo mal queimado’: mestiçagem e democracia racial". In: SAMPAIO, G., LIMA, I.,
BALABAN, M. Marcadores da diferença. op. cit.
342
Ibidem, p. 157.
343
FERNANDES, Florestan. O negro no mundo dos brancos. São Paulo: Global Editora e Distribuidora Ltda,
2015, p.27
344
Ibidem, p. 28.
126

modo, a mulata na obra de Lima Barreto pode ser entendida com uma representação da
discriminação racial, que vai além de um preconceito somente de classe. Clara é o objeto
sexual de desejo do homem branco, mas não poderia ultrapassar as barreiras desses limites.
Ela não ocupa o lugar sagrado destinado às mulheres brancas. A ela, foi determinada a
posição degradada e subjugada de abuso material e sexual.

Por fim, podemos interpelar essa narrativa com a ajuda que Frantz Fanon nos
oferece.345 Dedicando-se a entender os relacionamentos entre a mulher de cor e o europeu, o
autor propõe refletir até que medida a relação autêntica desses sujeitos permanecerá enquanto
o sentimento de inferioridade também estiver presente.346Para isso, analisar o romance
autobiográfico ``Je Suis Martiniquaise de Mayotte Capécia.347 Mayotte ama um homem
branco, porém, não exige nada dele além de um pouco de brancura. Essa seria a sua mágica
salvação. Mas, depois de passar por um episódio de discriminação ao ir com o seu
companheiro para uma noite em Didier, ela percebe que as pessoas daquele lugar não a
tolerava e o motivo era a sua cor. Nesse sentido, o que Fanon salienta é que as barreiras que
impedem que Mayotte faça parte desse circuito não são econômicas e sim raciais. Desse
modo, embranquecer o seu corpo e seus pensamentos eram um meio de encontrar alguma
aproximação com a brancura. Ser branco, nesse sentido, é ser digno e aceito.

Mayotte tende ao lactiforme. Pois, afinal de contas, é preciso embranquecer a raça;


todas as martinicanas o sabem, o dizem, o repetem. Embranquecer a raça, salvar a
raça, mas não no sentido que poderíamos supor: não para preservar “ a originalidade
da porção do mundo onde elas cresceram”, mas para assegurar sua brancura.348

À vista disso, era a cor e todos os seus significados que impediam que Mayotte fizesse
parte daquela sociedade. Sua mãe, durante sua infância, lhe ensinou o quanto a vida de uma
mulher de cor era difícil, era necessário embranquecer para tentar se salvar. Com essa
interpretação, podemos tentar entender as atitudes de Clara diante de Cassi na construção feita
por Lima Barreto. A jovem é a representação da mulata no Rio de Janeiro daquele contexto,
vivendo em lugar onde o embranquecimento era uma ideologia defendida. Era necessário
tentar encontrar meios que lhe fizessem ser reconhecida e assim, reparar a sua situação
inferiorizada. Ainda que para isso o escolhido fosse da pior espécie como Cassi, o que
importava era a sua brancura. A única saída para Clara e Mayotte é o mundo branco.

345
FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Bahia: Editora EDUFBA, 2008.
346
Ibidem, p. 54.
347
CAPÉCIA, Je suis Martiniquaise. Paris: Córrea, 1948.
348
FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. op.cit., p.56.
127

Mayotte ama um homem branco do qual aceita tudo. Ele é o seu senhor. Dele ela
não reclama nada, não exige nada, senão um pouco de brancura na vida. E quando,
perguntando-se se ele é bonito ou feio, responde: “Tudo o que sei é que tinha olhos
azuis, que tinha os cabelos loiros, a pele clara e que eu o amava”.349
Clara recebia aquelas cartas com uma emoção de receber mensagens divinas.
Entretanto, eram pessimamente escritas, a ponto de não serem, às vezes, entendidas,
tão caprichosas que era a ortografia delas. A filha do carteiro não vida nada disso;
esquecera-se até das más ausências que faziam do namorado. Para ela, ele era o
modelo do cavalheirismo e da lealdade. Estava sempre a sonhar com ele, com aquele
Cassi da viola.350

Porém, como Fanon nos diz, os brancos não se casam com mulheres negras, mas
correr esse risco era necessário “[...] porque precisam da brancura a qualquer preço.351 Clara e
Mayotte correram esse risco e no fim, o que restou foi a dor do abandono e da interiorização
pelos seus amantes brancos. É nesse momento que surge o sentimento de inferioridade
abordado por Fanon, é nesse instante que Clara e Lima Barreto, em particular, descobrem que
não é possível superar as barreiras impostas, não eram nada nessa vida. O processo que
ocorreu com as personagens que o autor analisa, também acontece com Clara. Mesmo que
Lima Barreto não tenha colocado, de forma objetiva, entre as falas de sua personagem a busca
consciente pelo embranquecimento, como aconteceu com as apresentadas por Fanon, Clara e
sua família também interiorizaram os valores do mundo dos brancos. O medo de D. Engrácia
talvez, por ter acompanhado a realidade ainda mais de perto por conta da sua vivência na casa
do senhor, possa ser justificado por essa perspectiva. Ela temia pelo sofrimento destinado à
Clara, pois conhecia as restrições que o mundo impunha a ela e a sua filha. Por isso, é
provável que o literato tenha construído essa personagem limitando-a ao ambiente de sua
casa. Dizendo que toda a instrução que havia recebido enquanto jovem foi esquecida, a única
coisa com o que se dedicava era as atividades domésticas. Uma vez que, D. Engrácia que
havia passado pelo mesmo processo, já compreendia que a sua condição de marginalizada não
poderia ser reparada. Ela foi excluída daquele mundo e nada do que fizesse mudaria essa
realidade, nem mesmo sua inteligência ou a porcentagem de sangue branco que corria em suas
veias. Por essa razão, preferia viver excluída.

As barreiras sociais que separavam os mundos dos brancos do mundo dos negros, não
foram completamente eliminadas em relação aos mestiços. A mestiçagem tendeu para
suavização do conflito racial, porém, como apontando aqui, a avalição do caráter intransigível
inferiorizado do elemento negro não era possível de ser superado. De modo que, mesmo que o

349
Ibidem, , p. 54
350
BARRETO, LIMA. Clara dos Anjos. op.cit.., p.149.
351
FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. op.cit.,p.58 – 59.
128

mulato alcançasse certa mobilidade social, infiltrando no mundo dos brancos, ele jamais
alcançaria todos os privilégios. Já que, não será capaz de se livrar completamente do elemento
que o inferioriza diante do branco. Portanto, ao propor a eliminação do negro por meio do
embranquecimento, recusando reconhecer realidade social e tentando incumbir as
desigualdades por meio de embaraços de tolerância racial, o que se manifesta é o racismo que
tem em sua base na ideológica de mestiçagem. Conforme enfatizou Roger Bastide e Florestan
Fernandes: Um racismo “[...] penetrado dos valores e das normas dos brancos.” 352

Sueli Carneiro nos diz que a miscigenação é fruto da violação sexual dos senhores
brancos contra as mulheres negras e indígenas, sendo a base das construções das hierarquias
de gênero e raça presentes na sociedade brasileira.353Nesse sentido, a socióloga destaca a
importância do entendimento das experiências históricas das mulheres negras, elas fazem
“[...] parte de um contingente de mulheres com identidade de objeto.” 354
Por isso, a
perspectiva que analisa a opressão de gênero separada da de raça e classe, não é capaz de
interpretar todas as opressões que as mulheres de cor enfrentaram/enfrentam. O racismo,
desse modo, é o determinante da hierarquização no próprio gênero. “O racismo estabelece a
inferioridade social dos segmentos negros da população em geral e das mulheres negras em
particular, operando ademais como fator de divisão na luta das mulheres pelos privilégios que
355
se instituem para as mulheres brancas. Por isso, para as mulheres de cor às desigualdades
de gêneros são somadas com as opressões do racismo, sendo duplamente julgadas.
Diferentemente da imagem “ [...]folclorizada e marginalizada, tratada como coisa primitiva,
coisa do diabo”356, a mulher branca é a musa, rainha do lar, a ótima mãe, dócil, angelical e
frágil. Portanto, concluímos que o literato Afonso Henriques de Lima Barreto ao dar para a
sua narrativa e para a personagem o nome que contradiz essa ideia, o objetivo era demonstrar
que dentro dessa sociedade racista Clara não seria clara, tampouco, dos anjos.

352
FERNANDES, Florestan; Brancos e negros em São Paulo. op. cit., p.229.
353
CARNEIRO, Sueli. Enegrecer o feminismo: a situação da mulher negra na América Latina a partir de uma
perspectiva de gênero. Racismos contemporâneos. Rio de Janeiro: Takano Editora, v. 49, p. 49-58, 2003.
354
Ibidem, p. 49.
355
Ibidem, p. 50.
356
Ibidem, Ibidem.
129

CONSIDERAÇÕES FINAIS:

Afonso Henriques de Lima Barreto, vivendo no Rio de Janeiro no imediato do fim


institucionalizado da escravidão, produziu um acervo literário de grande importância para a
compreensão das complexidades do pós-abolição. Em seus escritos, abordou as principais
questões políticas, sociais e culturais daquele contexto. Com uma literatura militante, o autor
examinou e criticou os significados dos discursos que reconhecia e defendia o lugar
marginalizado e inferiorizado aos negros e mulatos. A partir de uma noção de raça com algo
biologicamente estabelecido, o mundo foi dividido entre superiores e inferiores e os negros
foram vistos como o passado a ser superado e excluídos em prol de uma civilização
exclusivamente branca.

Lima Barreto, que também foi atingido pelo violento processo de desumanização dos
negros, iniciado desde a colonização, usou toda a sua lucidez para denunciar as derivas
políticas e ideológicas do Estado que negou a humanidade aos sujeitos negros. Portanto, a
sua literatura militante foi entendida aqui como arma de luta e de resistência em defesa de
uma democracia mais inclusiva. Os processos que transformara o negro em um “outro” e que
foram justificados analiticamente pela longa duração da sua vida em cativeiro, tiraram
qualquer possibilidade de cidadania desses sujeitos negros, considerados cidadãos de segunda
e terceira categoria.

A questão da definição da identidade brasileira estava no seio das preocupações do


contexto intelectual da primeira República, era necessário definir um perfil nacional. É a
partir dessa urgência que a mestiçagem vai surgir como uma importante ideologia para a
construção da nacionalidade. O projeto de branqueamento da sociedade por meio da
miscigenação, com objetivo de realçar o perfil brasileiro através dos brancos, pela imigração
europeia, negou o sujeito negro. Como abordado nessa pesquisa, a mestiçagem em seu sentido
político, simbólico e ideológico refletiu no racismo que tinha em suas justificativas a busca
pela civilização. Dessa maneira, esse projeto que pretendeu reduzir o sangue dos inferiores e
aumentar o coeficiente do sangue superior em defesa de um refinamento através do mestiço,
gerou o que abordamos como “embaraço da marginalização”. Uma vez que, o mestiço tendeu
a se associar como o branco e negar sua semelhança com os negros. Porém, como foi
salientado aqui, esse processo não garantiu a total integração ou a igualdade, a mestiçagem
não modificou a ordem racial e as barreiras os e os limites convenientes daquela ordem social
continuam imperando sobre os sujeitos não brancos.
130

O literato dialogando com essas teorias, manifestou através da narrativa de Clara dos
Anjos os efeitos dessas ideias. Clara dos Anjos é uma consequência e uma crítica a essas
ideologias. Em diferentes versões, o autor vai abordar a história da jovem mulata que é
seduzida e abandonada pelo seu amante branco, sendo marginalizada em sua condição de
mulher e de não branca. Ou seja, a reflexão que Lima Barreto propõe com essa obra é que o
sujeito mestiço, como Clara, ainda que tenha passado pelo processo de assimilação e
ressignificação com o elemento dominador, vai continuar sendo inferiorizado por conta da sua
origem. Desse modo, através dessa história, Lima Barreto vai demonstrar o compromisso que
travou durante toda a sua vida contra o racismo que negou a humanidade aos negros e
mulatos. Clara após ser humilhada e abandonada, começa a ter consciência da sua condição
de mulher mulata erotizada e duplamente marginalizada por conta de sua raça e gênero.
Vivendo em uma sociedade patriarcal que garantia de forma legitimada ao homem branco o
fácil acesso aos seus corpos, as mulheres de cor nunca ocupariam o lugar no pedestal
destinado às brancas. Para elas, o lugar determinado era o da servidão: material e sexual.
Interpelando essa perspectiva com a história do próprio Lima Barreto, podemos compreender
quando o autor relata os seus sentimentos diante de um ato de racismo:

Hoje, comigo, deu-se um caso que, por repetido, mereceu-me reparo. Ia eu pelo
corredor afora, daqui do Ministério, e um soldado dirigiu-se a mim, inquirindo-me
se era contínuo. Ora, sendo a terceira vez, a coisa feriu-me um tanto a vaidade, e foi
preciso tomar-me de muito sangue frio para que não desmentisse com azedume.
Eles, variada gente simples, insistem em tomar-me como tal, e nisso creio ver um
formal desmentido ao professor Broca ( de memória). Parece-me que esse homem
afirma que a educação embeleza, dá, enfim, outro as à fisionomia. Porque então essa
gente continua a me querer contínuo, porque?

Porque... o que é verdade na raça branca, não é extensivo ao resto; eu, mulato ou
negro, como queiram, estou condenado a ser sempre tomado por contínuo.
Entretanto, não me agasto, minha vida será sempre cheia desse desgosto e ele far-
me-á grande.

Era de perguntar se o Argolo, vestido assim como eu ando, não seria tomado por
contínuo; seria, mas quem o tomasse teria razão, mesmo porque ele é branco.

Quando me julgo – nada valho; quando me comparo, sou grande. Enorme consolo.
(grifo meu)357

Lima Barreto tinha consciência da sua realidade depreciada provocada pelo racismo,
ele sabia o quanto era rejeitado pelo mundo branco. Nem mesmo a sua erudição ou sua
intelectualidade poderia lhe salvar de ser estereotipado e rebaixado mentalmente, moralmente
e socialmente. Os privilégios dados a raça branca, não se estendia aos negros e mulatos. Por

357
BARRETO, Lima. Lima Barreto: obra reunida, op. cit., p.469.
131

isso, por muito tempo, a compreensão de sua escrita foi acusada de ser apenas uma confissão
biográfica, um testemunho triste e revoltado, contribuindo para o imaginário de uma literatura
de periferia. Pensando sobre isso, podemos entender quando em uma passagem no romance, o
literato nos diz que Cassi era um homem completamente ignorante e que as cartas escritas
para Clara eram quase ilegíveis. Mas, mesmo assim, a jovem as recebia como se fossem letras
divinas. Ou seja, não importava a sua qualidade real, ele já possuía pelo simples fato de ser
branco. Por tanto, compreendemos que a crítica que o literato se propôs nesse contexto foi
evidenciar que o trabalho feito por um branco era tido de muito mais valor do que o feito por
um negro ou mulato. Tanto é que, Leonardo Flores que foi poeta durante a vida inteira, não
alcançou nenhum prestígio social. A barreira que limitou Leonardo Flores e Lima Barreto, em
particular, foi racismo que negou suas competências intelectuais. Naquela sociedade, a sua
imagem era sempre de contínuo, feio e ignorante. Uma vez que, “ser branco é como ser rico,
como ser bonito, como ser inteligente”.358

Mas Lima Barreto não se calou, não aceitou o silenciamento imposto aos negros e
mulatos. O literato trouxe para sua ficção personagem periféricos e excluídos com a intenção
de desenvolver uma espécie de Germinal Negro, destacado o protagonismo desses sujeitos na
construção da nação brasileira. Lima Barreto introduziu a questão racial em suas obras e
exigiu o reconhecimento dos negros enquanto seres humanos. Por isso, defendemos aqui que
Clara dos Anjos fez parte do Germinal Negro que o autor pretendeu escrever. Por fim, ao
evidenciarmos o modo como o racismo atravessou sua escrita, podemos compreender quando
o autor diz que “é triste não ser branco”. 359 Não ser branco, nesse sentido, é não ter seus
direitos fundamentais garantidos na ordem social, é ser marginalizado, desumanizado, é ser
considerado “coisa”, é, como apontou Fanou, inexistir.360

358
FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. op. cit., p. 60.
359
BARRETO, Lima. Lima Barreto, op. cit., p.539.
360
FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. op. cit., p.125.
132

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ZOBEL, De Joseph. La Rue Case – Negres. França: Presence Africaine, 2014.

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