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Quem sabe faz a hora

QUEM SABE
FAZ A HORA
Reportagens e perfis
sobre decisões que mudam vidas

Edilaine Felix e Marcos Zibordi (org.)

Editora Casa Flutuante


São Paulo, 2022
Copyright © 2022 by Organizadores - Todos os direitos reservados.

UNIVERSIDADE CRUZEIRO DO SUL


Reitora - Profa. Dra. Amelia Maria Jarmendia Soares
Pró-Reitor de Graduação - Prof. Dr. Fernando Dutra 
Pró-reitora de Pós-graduação e Pesquisa - Profa. Dra. Tania Cristina Pithon-Curi
Diretor Acadêmico de Educação a Distância - Prof. Dr. Carlos Fernando de Araujo Jr
Coordenador do Curso de Jornalismo - Prof. Me. Antonio Lucio Rodrigues de Assiz

Professores-orientadores
Profa. Ma. Edilaine Heleodoro Felix e Prof. Dr. Marcos Antonio Zibordi

Conselho Editorial Casa Flutuante


Edvaldo Pereira Lima, doutor em Ciências da Comunicação / USP
Carlos Jorge Barros Monteiro, doutor em Processos Comunicacionais / UMESP
Marcia Furtado Avanza, doutora em Ciências da Comunicação / USP
Márcia Neme Buzalaf, doutora em História / Unesp
Marcos Antonio Zibordi, doutor em Ciências da Comunicação / USP
Maurício Liesen, doutor em Ciências da Comunicação / USP
Maurício Pedro da Silva, pós-doutorado em Literatura Brasileira / USP
Muriel Emídio Pessoa do Amaral, doutor em comunicação / Unesp-Bauru
Rosângela Paulino de Oliveira, doutora em Ciências Sociais / PUC-SP
Vinicius Guedes Pereira de Souza, doutor em Comunicação / UNIP

Ilustrações (capa e abertura dos capítulos) Diagramação capa e miolo


João Vitor de Oliveira dos Santos - @artedealguem Israel Dias de Oliveira - @Israel.Dideoli

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Henrique Ribeiro Soares - Bibliotecário - CRB-8/9314

Quem sabe faz a hora [livro eletrônico]: reportagens e perfis sobre decisões que mudam vidas
/ (org.) Edilaine Felix e Marcos Zibordi ; (ilustrações) João Vitor de Oliveira dos Santos. -- São
Paulo : Editora Casa Flutuante, 2022.
PDF
Vários autores.
Bibliografia.
ISBN 978-65-88595-36-7

1. Artigos jornalísticos - Coletâneas 2. Jornalismo e literatura 3. Jornalismo - Edição 4.


Jornalismo - Estudo e ensino 5. Livro-reportagem 6. Reportagens - Coletâneas 7. Repórteres
e reportagens I. Felix, Edilaine. II. Zibordi, Marcos. III. Santos, João Vitor de Oliveira dos.

22-136963 CDD-070.442

ÍNDICE PARA CATÁLOGO SISTEMÁTICO:


1. Artigos jornalísticos : Coletâneas 070.442

Proibida a reprodução por quaisquer meios (eletrônicos, fotográficos, xerográficos, mecânicos, gravação,
estocagem em banco de dados e outros) sem autorização explícita dos autores e autoras, exceto em citações
breves com indicação da fonte.

[2022]
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Editora Casa Flutuante


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Fone: (11) 2936-1706 / 95497-4044 | www.editoraflutuante.com.br
Aos que foram e aos que sobreviveram
à pandemia de covid-19
Sumário

Apresentação
A expressão de um jornalismo necessário.................9
Antonio Lucio Rodrigues de Assiz

Uber acima de todos................................................12


Guilherme Sevilha, Maylla Rondini, Lucas Sampaio,
Fernanda Maion, Mayara Carreiro, Alex de Amurim

Quando você se coloca no lugar do outro,


tudo dá certo..........................................................26
Yasmin Frazão, Rosane Mendes, Marcos Souza,
Talita Bernardo, Jhenifer Moscoso, Lucas Rodrigues

Quem ocupa não quer ser invadido...........................36


Isabelly Vitorino, Thays Ferreira, Millena Garcia,
Caio Ítalo, Juliana Catalão

O corre da comunicação de quebrada........................44


Emanuele Braga, Flávia Santos, Gustavo Oliveira,
Liliane Paim, Naíta Isabelle, Nabor Salvagnini
Transtorno de ansiedade e depressão:
a vida acelerada e em câmera lenta.........................54
Lucas Amancio do Nascimento, Luana Costa, Luana Iasmim,
Nicolas Pegorare, Matheus Santos, Milena Alves

Uma angústia que não se encerra após o


fechamento da porta...............................................66
Bruna Duarte, Caíque Jesus, Chrystian Gabriel,
Guilherme Panhan, Guynever Maropo,
Natasha Macedo, Rafael Afonso

O show de amanhã .................................................88


Allex Alves, Andreza Vieira, Gabriel Ferreira, Ivy Bianchi,
João Vitor Oliveira, Lucas Andrade, Vinicius Borges

No camarim, minutos antes do concurso...................98


Bianca Costa de Souza, Vitória Alves,
Rebeca Carvalho Rodrigues, Júlia Chidiak Amazonas,
Matheus Cruz, Hayla Marques

Os 100 metros invisíveis de Fernando Botasso..........110


Felipe Franco, Gabriel Henrique, Vitor Xavier,
Geovana Souza da Silva

Jornalismo sem literatura.......................................119


Marcos Zibordi
Apresentação

A expressão de um jornalismo
necessário

A
lente do jornalismo tem mesmo algo de fantásti-
co. Em tempos difíceis, estão lá artesãos da espe-
rança decifrando os problemas sociais e apontan-
do caminhos, possibilidades, uma luz para a sociedade se
guiar. Ao navegar pelas histórias contadas por futuros jor-
nalistas, encontramos personagens que nos inspiram e dão
força para acreditar que dias melhores virão.
Este livro-reportagem reúne histórias apoiadas em in-
vestigação cuidadosa, sensíveis e narradas com técnicas do
jornalismo autoral que nos fazem percorrê-las com a curio-
sidade e a satisfação de compartilhar o drama e a luta dos
personagens. Ficamos mais íntimos, conscientes e cúmpli-
ces deste mundo que precisa de todos para ficar melhor.

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As histórias narradas nestas páginas estão contadas
também em 9 documentários, cada um relacionado ao capí-
tulo do livro e igualmente representam uma produção que
certamente ganhará as telas de canais educativos e serviços
de streaming, devido aos excelentes filmes apresentados.
Toda esta produção é o resultado do Projeto Interdisci-
plinar do 6o semestre do curso de Jornalismo da Universida-
de Cruzeiro do Sul, fruto da formação qualificada proposta
pelo curso e acolhida pelos discentes e pelos docentes de
toda a graduação, especialmente o prof. Dr. Marcos Anto-
nio Zibordi, que propôs a ampliação da realização do do-
cumentário para a produção de narrativas textuais, e pela
profa. Ma. Edilaine Heleodoro Felix, que, juntamente com
Zibordi, assumiu a orientação para que esta obra magnífica
pudesse existir.
Parabenizo a todos os envolvidos neste projeto, princi-
palmente os autores, futuros grandes jornalistas!

Prof. Me. Antonio Lucio Rodrigues de Assiz


Coordenador do Curso de Jornalismo
Universidade Cruzeiro do Sul
Dezembro de 2022

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Uber acima de todos

Guilherme Sevilha, Maylla Rondini, Lucas Sampaio,


Fernanda Maion, Mayara Carreiro, Alex de Amurim
D
ia 02 de outubro de 2022. As eleições decidirão os
próximos quatro anos da política nos estados e no
Brasil. Só entende a situação quem está na rua. Vo-
tei, mas depois tive que trabalhar. Sou motorista de aplicativo.
É domingo, oito horas da manhã. O Brasil virou zona...
eleitoral. Hoje, provavelmente, é o dia mais importante des-
de a redemocratização do país, em 1984. Há a insegurança
de uma ameaça golpista e o medo de regredir à miséria. O
resultado pode decidir se a democracia voltará a ser a mes-
ma. Milhões de panfletos invadem as calçadas, da periferia
mais esquecida à região mais movimentada do centro. Não
é possível ver a cor do asfalto, apenas uma inundação de fo-
tos e números de diversos candidatos, mas, pelo menos por

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QUEM SABE FAZ A HORA

alguns minutos, o único número que importa para os meus


passageiros é o da placa do meu carro.
O Sol hoje brilha pouco. A incerteza e o medo tomam
conta das esquinas. A esperança é uma das sementes que
tentam florescer entre os vãos da calçada. Entro no carro.
O rádio está ligado em uma emissora de notícias. Costumo
reservar os finais de semana a ouvir apenas bons sambas.
Ouvir de passageiros elogios à trilha sonora faz meu dia
mais feliz. Mas as eleições são o único assunto possível hoje,
mesmo que não agrade muitos dos que embarcam.
— É difícil de escolher — afirma meu primeiro passa-
geiro, em tom desanimado. Levo-o da Liberdade até sua
zona eleitoral, um colégio estadual no bairro da Aclimação,
que é próximo.
As ruas estão cheias. Onde se olha existe opinião, mas
nem sempre no banco de trás, onde muitas vezes existe ape-
nas silêncio e desconforto. Talvez essa seja a parte mais difícil
do trabalho. Nunca se sabe quem está no banco de trás. Há
apenas o primeiro nome, sem nenhuma foto de perfil, e a lo-
calização de embarque do passageiro é aproximada. São as
únicas referências que recebo para decidir se aceito ou não a
corrida. A insegurança domina aqueles que não estão acos-
tumados com o caos de dias cheios. Eu ainda estou me acos-
tumando. Segurança não é o forte dos aplicativos de corrida.
O silêncio me permite recordar o relato de outra passageira:

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UBER ACIMA DE TODOS

— Confesso que sempre que entro em um carro de apli-


cativo, tento sondar o território para saber se o motorista
é tão comunicativo quanto eu e, é claro, se não apresenta
nenhum risco considerável durante a viagem.
Falando assim, pode parecer generalização, mas quem
nunca correu para abrir as janelas do carro ou ficou atenta
com qualquer cheiro diferente, de um produto químico, que
possa fazer você desmaiar instantaneamente? Pelo menos, se
você é mulher, tenho certeza de que passou por esses insights.
Nesse dia, tudo correu como de costume, mas um deta-
lhe me chamou a atenção. Jucelino, o motorista com avalia-
ção de 4.8, cabelo sem um fio despenteado e perfume forte,
que chegou a me dar enjoos por conta da gravidez, parecia
ser dez vezes mais comunicativo que qualquer outro, daque-
les que falam pelos cotovelos, sabe?
Contradição, ou será que o mesmo medo que cerca as
mulheres no banco do passageiro existe entre aquelas ao
volante? Como boa comunicadora, tenho a intuição de que
Jucelino passou por algum preparo de oratória, curiosidade
que logo cessou, em poucos minutos de conversa. O moto-
rista parceiro da Uber agora se ressignifica no meu concei-
to, e vira o típico e até um pouco persuasivo Pastor Jucelino.
A animação dele também tem um motivo, até que muito
plausível, eu diria. As eleições de 2022. Logo no início da
conversa, ele diz:

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QUEM SABE FAZ A HORA

— Nossa, só falam de política nesse rádio, não é minha


filha? Espero que essa eleição acabe logo.
Respondo, sem pensar muito:
— Sim, eu também espero que acabe nesse primeiro turno.
— Então você é petista? Só os petistas acreditam que
Lula vai vencer no primeiro turno.
É, eu caí feito uma patinha. Tento desconversar, afinal,
sempre existe aquela pontinha de medo de sair na rua e ser
esfaqueada por apoiar algum candidato, como o caso ocor-
rido em Cascavel, no Paraná. Só na reta final das eleições,
pelo menos quatro casos de homicídios foram registrados
por motivos políticos. Só os registrados. Dei a entender que
talvez Ciro fosse uma boa opção, mas que, no primeiro tur-
no, apenas Lula teria chance. Jucelino continua:
— Sabe, eu sou pastor. E apesar de toda a religiosida-
de que envolve o nome de Bolsonaro, jamais votaria nele
novamente. Trabalho na Uber há muito tempo, e além da
situação do país, as histórias que ouço dentro desse carro
me fazem duvidar não só do presidente atual, mas também
de seus eleitores.
Apenas concordo e espero que continue o relato que
classifica como um dos mais surpreendentes.
— Ontem mesmo, peguei uma corrida que ia do me-
trô Tucuruvi até o Jaçanã. Uma moça entrou no carro tre-
mendo e chorando muito. Eu, preocupado, parei para tentar

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UBER ACIMA DE TODOS

acalmá-la. Achei que tivesse sido assaltada. Foi quando ela


me contou que tinha acabado de descer do carro de outro
motorista. Após iniciar a corrida, ele perguntou qual seria
o seu voto. Lula, respondeu ela. O motorista, perplexo e se
mordendo de raiva, fez a moça descer do carro e disse que
não transportava vagabundas. Tudo por conta de preferên-
cia política. As pessoas estão doentes a ponto de não conse-
guir separar o pessoal do profissional.
Nesse momento estamos quase chegando ao destino. Só
nesse ponto, me sinto confortável o suficiente para expor
meu posicionamento político e demostrar espanto. Mas, ao
chegar em casa, agradeci a Exu, e senti o mesmo alívio que
sinto todas as sextas-feiras, após chegar da faculdade. O alí-
vio de continuar do lado de cá. De quem colhe e conta his-
tórias por aí. E não daqueles, ou especificamente daquelas,
que viraram notícia, após pedir uma corrida de aplicativo,
na tentativa de chegar em casa em segurança.
Mas meu dia de trabalho na eleição presidencial de
primeiro turno em 2022 estava só começando. Agora, o
silêncio do homem é tanto que preciso me esforçar para
lembrar que estou com um passageiro. A viagem é curta.
Não há o que falar. Se não fossem os radialistas relatan-
do que algum candidato está votando naquele momento,
um silêncio gritante tomaria conta do carro. Outra viagem
toca. Um casal de idosos embarca e desata a falar. A raiva

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QUEM SABE FAZ A HORA

do homem é latente. Sua indignação é com a desorganiza-


ção do local de votação.
— É um absurdo o que aconteceu hoje aqui. Não deve-
riam ter colocado tratamento diferente para idosos — diz o
homem inquieto atrás de mim, apesar de ser idoso.
Durante o deslocamento, o casal solicita que o rádio
permaneça ligado. Os relatos dos eleitores da emissora se
embaralham com o do homem de aspecto raivoso. Destaca
os 23 minutos de espera para votar e problemas com o apa-
relho de leitura da biometria. Mesmo estando na fila pre-
ferencial, o casal teve que enfrentar um ambiente contur-
bado, com longas filas e dificuldade de localização da zona
eleitoral. Sua insatisfação aparentemente não terminará ao
fim da corrida. Não haverá silêncio em seu apartamento
na Liberdade.
Dez horas da manhã. O Sol parece perder a timidez.
As nuvens se dissipam e o clima se torna mais agradável.
É dever do motorista tornar a viagem tranquila. Um casal
embarca. Beatriz e seu companheiro se dirigem ao edifício
Planalto, na Bela Vista.
— Estão ansiosos para exercer sua democracia hoje?
— Sim — respondem em uníssono, mas de forma tímida.
— Eu não votava desde 2006. Sou de outro estado, en-
tão era mais cômodo justificar. Tive que fazer a biometria
então fui obrigado a votar — completa o homem.

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UBER ACIMA DE TODOS

Hoje o clima é de “festa da democracia”. O tempo co-


meça a melhorar, mas não para o casal, estão preocupados.
— É um clima violento, sabe? Você fica até com medo de
declarar em quem você vai votar. Semana passada, aconte-
ceu uma coisa. Nós pegamos um Uber bolsonarista. Ele está
crente que o Bolsonaro vai ganhar no primeiro turno. Um
cara civilizado, educado, mas nesse sentido tem uma igno-
rância. E a pior parte é você não saber como vai ser o clima
pós-eleição — afirma o homem.
— Eu acho que os bolsonaristas vão dar uma surtada,
assim como foi nas eleições do Biden com o Trump — com-
pleta Beatriz.
Nas últimas eleições estadunidenses, em 2019, houve
conflito. Após a apuração de votos que confirmou a vitória do
democrata Joe Biden, a direita trumpista não aceitou o resul-
tado. Organizações se juntaram no que foi conhecido como
a “Invasão do Capitólio”. Milhares de eleitores de extrema-
-direita invadiram a sede do Poder Legislativo americano e
entraram em choque com a polícia. Mais de 90 apoiadores de
Donald Trump foram presos e outros quatro morreram. Uma
apoiadora fanática do ex-presidente foi baleada. Outros três
tiveram emergências médicas. Um policial que trabalhava na
segurança do prédio foi espancado e faleceu.
No Brasil, o período de campanha também tem uma sé-
rie de episódios de violência. Foram ao menos quatro mortes

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QUEM SABE FAZ A HORA

registradas de apoiadores de candidatos durante discussões


por divergências políticas em todo o país. Mas, assim como a
eleitoral, as corridas na rua têm que continuar.
Pouco tempo depois, Beatriz desce. Duas paradas eram
previstas no trajeto. O homem permanece e, se sentindo à
vontade, continua o diálogo.
— Eu não sei o que aconteceu para a gente eleger um
cara como Bolsonaro.
— Realmente não dá pra entender.
— Se você me dissesse que irá votar no Bolsonaro, ok.
Eu respeito, apesar de não concordar. Mas se você me dis-
ser que criança de periferia tem que morrer só porque rou-
bou uma bala, por exemplo, aí eu já vou preferir me afastar.
Realmente, não entendo como o Bolsonaro ainda pode ter
eleitores. Ele é um sujeito que já demonstrou de formas ini-
magináveis que não é um bom líder. Que não é boa coisa,
mas ainda insistem em votar nele.
São dez e meia da manhã. A corrida é finalizada e o
passageiro, deixado em uma universidade, onde iria votar.
Continuo a rodar.
O aplicativo está ativo. O fluxo de chamadas nunca foi
tão alto desde que comecei a trabalhar como motorista, há
quatro anos. A rotina é pesada para todos. Outra corrida
toca. Vou em busca da passageira Ana. Será que o destino é
outra zona eleitoral? Sempre que o passageiro não está me

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UBER ACIMA DE TODOS

esperando no local indicado, mando mensagem informan-


do da minha chegada. Mas, neste caso, não obtive respos-
ta. São coisas do ofício. Passa o tempo de espera estipulado
pela plataforma, três minutos. Como aguardei o embarque
e a passageira não apareceu, aceito a cobrança de taxa de
espera e vou embora.
Ao meio-dia resolvo parar para almoçar. Estou próximo
do McDonald’s das avenidas Brasil com Rebouças. Me frus-
tro, o restaurante está lotado. Dou a volta no quarteirão e
resolvo ir ao Jerônimo, restaurante concorrente. Está vazio.
Ao que parece, o povo optou pela opção popular. Após um
breve descanso, volto para o carro.
Quero retomar as corridas logo, pois as “tarifas dinâmi-
cas”, com preço diferenciado, estão altíssimas. Neste dia, as
poucas conversas que fluem rolam em torno das eleições, se-
jam eles em meu carro ou fora dele, em locais movimentados.
Uma hora da tarde. A primeira viagem após o almoço
me encarrega de levar Marina e sua amiga, duas estreantes
nas eleições. Dariam seus primeiros votos na faculdade em
que estudam, na região de Higienópolis. São estudantes de
jornalismo, também atentas aos acontecimentos recentes.
Diz uma delas:
— Depois desse último debate, a gente concluiu que
as eleições no Brasil são uma piada. Candidato padre que
não é padre. Descobri que uma das minhas colegas mais

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QUEM SABE FAZ A HORA

próximas é bolsonarista. Como começamos na faculda-


de esse ano, demorou para criarmos intimidade a ponto
de falar de política. Quando falei que votaria no Lula,
ela disse que não acreditava que uma pessoa ‘inteligen-
te como eu’ poderia votar ‘nesse sujeito’. Me impressiona
que ela tem um posicionamento muito ativista em causas
parecidas com as minhas. Mas ela não tem nenhum co-
nhecimento do que aconteceu na Lava Jato, por exemplo.
Só fica dizendo ‘o PT roubou, o PT roubou’.
A corrida demora. A região da faculdade em que as garo-
tas votarão está bastante congestionada. E as chamadas não
cessam. Mal elas descem e a porta sequer fecha, pois duas
novas passageiras, amigas, vestidas com camisas em referên-
cia a um candidato, entram no carro. Assim como em outras
viagens ao longo do dia, seria um percurso entre zonas elei-
torais, com várias viagens envolvendo mais de um passageiro.
São três horas da tarde. A quantidade de corridas soli-
citadas segue elevada, fora do comum. Fico feliz e surpreso.
Priscila embarca na Rua Bernarda Luiz, no Alto de Pi-
nheiros, em destino da Rua dos Franceses, Bela Vista. Está a
caminho do trabalho. Não irá votar.
— Vou justificar. Essa eleição virou uma palhaçada tão
grande. Um pior que o outro. Um padre que não é padre.
Um ladrão que roubou todo mundo e fala que vai ajudar
todo mundo. O cara que quer soltar a arma na rua para um

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UBER ACIMA DE TODOS

matar o outro. Uma que diz que ia fazer muita coisa e não
fez nem por ela. Apenas o Ciro que foi educado e que não
alfinetou ninguém. O restante era um alfinetando o outro
com motivos que não tinham nada a ver. Vou pagar os R$
3,50 da taxa por não ter votado e vou trabalhar que eu ga-
nho mais.
Muita gente tem o posicionamento político da passagei-
ras. Ao final do dia, junto com o resultado mais esperado,
saberemos que as pessoas que não votaram chegaram a cer-
ca de 32 milhões de eleitores, representando 20,79% do total
apto a votar. A média se manteve no exterior, onde foram
registrados cerca de 330 mil ausentes, uma taxa de 20,91%.
Por hora, dentro do carro, pelas ruas de São Paulo, o
clima está cada vez mais tenso. Está me aproximando do ho-
rário final da votação. As ruas começam esvaziar. Neste dia
tão importante, o “DataUber” me mostrou algo que nunca
havia presenciado com tanta intensidade. O vai e vem de
pessoas na rua, o entra e sai de passageiros no carro, as con-
versas e os silêncios. Os medos, anseios, angústias. De votar,
de mudar, de permanecer. A tensão aumenta conforme o
horário da apuração se aproximava.
Cinco horas da tarde. A população está ansiosa por no-
tícias, já que neste ano a famosa “Boca de Urna”, pesquisa
de previsão do resultado realizada no dia da eleição, não foi
realizada. É a primeira vez desde 1989 que não acontecem.

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QUEM SABE FAZ A HORA

A justificativa é a da unificação dos horários de início e fim


da votação, agilizando o processo de apuração em todo o
solo brasileiro, permitindo que possa começar ao mesmo
tempo, evitando que os resultados em uma região possam
influenciar a votação em outra.
Ainda não é a Copa do Mundo, mas a sociedade se com-
porta como se fosse a final contra a Alemanha, em 2002.
Só que hoje não teremos um rapaz com o corte de cabelo
esquisito, ao estilo Cascão das histórias em quadrinhos, ou
o goleiro “São Marcos”, para realizar uma defesa que rece-
besse a atenção de todos, trazendo alegria.
As redes sociais fervem, cidadãos demonstram suas opi-
niões através de fotos, textos e vídeos. Há também aque-
les que extrapolam e não respeitam a opinião do próximo.
Quem for eleito não irá governar para uma pessoa só, e sim
para mais de 212 milhões de cidadãos.
Sete horas da noite. Continuo a rodar, o movimento não
está como no início do dia. Realizo poucas viagens, consigo
até contar a quantidade. O assunto político exauriu as ener-
gias das pessoas de tal forma que meus passageiros não ex-
pressam mais nenhuma vontade de comentar o resultado da
eleição presidencial, desde o momento em que ficou claro
que a disputa não se resolveria no primeiro turno. Haveria
segundo, e quem sabe até terceiro, conforme brincou um
comentarista político, temendo que o atual presidente, ou

24
UBER ACIMA DE TODOS

seus seguidores, ou ambos, caso perdessem, não aceitassem


o resultado. Decido ir para casa.
Nove horas da noite. Estou exausto e quero relaxar; po-
rém, tenho afazeres domésticos. Foram 38 viagens neste dia,
muito acima do habitual. Mesmo com essa quantidade de
corridas, estranhamente, pouco ouvi sobre as eleições. Não
ter uma opinião é um privilégio ou insanidade? Tudo que
ouço hoje é silêncio e um sussurro tímido de esperança.
Deixo a televisão ligada para distrair um pouco a mente.
As porcentagens finais foram divulgadas e o cargo presiden-
cial ainda não foi preenchido, havendo dúvida na socieda-
de. Sei que irei viver um deja-vú daqui quatro semanas.
O embate tão aguardado não terminou. Com as urnas
apuradas, o ex-presidente Lula teve um total de 48,45% dos
votos, ou 57.259.504 de eleitores. O candidato à reeleição,
Jair Bolsonaro, obteve 51.072.345 de votos, totalizando
43,2%. A decisão se arrastou para o 2⁰ turno, que acontece
no dia 30 de outubro.
Resta apenas esperar que o Sol vai raiar novamente.

25
Quando você se coloca no lugar
do outro, tudo dá certo

Yasmin Frazão, Rosane Mendes, Marcos Souza, Talita


Bernardo, Jhenifer Moscoso, Lucas Rodrigues
C
arros buzinando, motos correndo sem parar, di-
nheiro sendo gasto por todo lado, calor humano,
trabalho, correria.
Até que o mundo parou.
15 dias isolados, que se tornaram dois anos caminhando
com muita dificuldade e horror provocado pelas terríveis
mortes causadas pelo coronavírus. Uma pandemia tomou
conta do mundo.
Economia em retrocesso e a fome, que sempre se mos-
trou como uma sombra, cresceu. A pobreza, por sua vez, se
personificou trazendo terríveis consequências.
Mais pessoas passaram a não ter comida e a necessidade
extrema se instalou em suas casas. As ONGs e instituições
de caridade foram como um bálsamo.

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QUEM SABE FAZ A HORA

Um exemplo é dona Zuzu, apelido de Zuleide Alves de


Macedo, 67 anos, fundadora da ONG Fazendo Bem Para
Todos. Com aparência simples, é carregada de experiências
de vida, de solidariedade e de uma enorme vontade de aju-
dar a quem precisa.
A ONG é localizada na garagem de dona Zuzu. Foi fun-
dada em 2006 em um bairro simples e tranquilo de Osasco,
na Região Metropolitana de São Paulo. A instituição nasceu
com o intuito de ajudar animais abandonados na região, mas,
com o passar do tempo, dona Zuzu percebeu que, além dos
animais, pessoas de bairros carentes necessitavam de ajuda.
Ao descer na estação de trem que leva até sua casa, é
possível sentir a agitação e a correria do local cheio de co-
mércios e consumidores alucinados.
Quando nos aproximamos da casa-ONG, a agitação é
substituída pela tranquilidade do bairro Jardim das Flores,
com casas bem construídas, portões que pretendem garan-
tir proteção e alguns carros em garagens.
Franzina, com muitas marcas da idade e sorriso cati-
vante, Zuzu tem uma disposição invejável para fazer o bem.
Mesmo sendo do grupo de risco para a pandemia, pela ida-
de, a mulher não conseguia ver famílias passando fome e
permanecer sem ajudar.
— A necessidade era tão grande naquele local, que eu
não olhei com medo de pegar a doença, mesmo com as

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“QUANDO VOCÊ SE COLOCA NO LUGAR DO OUTRO, TUDO DÁ CERTO”

pessoas dizendo ‘cuidado, vai pegar esse corona’. Quando


a gente olhava aquelas crianças lá no orfanato que eu faço
trabalho, sentia pesar.
A fome e a pobreza são portas muitas visitadas nos no-
ticiários, mas durante a pandemia essas portas foram escan-
caradas e vimos pessoas lutando por ossos para se alimentar.
— Nunca digo não, não posso. Falo ‘olha, você espera
um pouco, vou ver’. Aí, quando Deus prepara, Deus proverá
naquela situação. Porque eu tenho famílias não trabalhan-
do, com nove crianças pequenas. Aí, como que eu vou dizer
não pra uma mulher dessa? É uma situação difícil.
Ela faz das tripas coração, pensando em ajudar e fazen-
do da necessidade do outro a sua própria em busca de uma
provisão, atrás de arroz, sabonete e feijão para a casa de
muitas pessoas.
— Em 2020, nós vimos uma grande mobilização nas
doações de grandes empresas para o enfretamento da fome
e da pandemia, dinheiro doado para construção de hospi-
tais e investimento nas pesquisas para as vacinas.
A declaração é de Marcia Woods, diretora da Associação
Brasileira de Captadores de Recursos. Segundo pesquisa de
2020 do Instituto para o Desenvolvimento do Investimento
Social (IDIS), a solidariedade do brasileiro aumentou du-
rante esse tempo tão difícil. A dor das perdas e a fome dos
necessitados mexeu com o coração não só das pessoas, mas

29
QUEM SABE FAZ A HORA

muitas empresas se solidarizaram no combate à doença e


contra a fome que assolou o Brasil e o mundo.
A pesquisa do IDIS mostrou também que os brasileiros
mudaram sua percepção sobre as doações. Em 2015, no pe-
núltimo levantamento realizado, 84% dos entrevistados não
se sentiam à vontade para falar sobre as ajudas que presta-
vam a pessoas próximas ou instituições. Na edição seguinte,
69% não achavam importante falar sobre o mesmo assunto.
Esse número caiu 15% e nos mostra que a maioria das pes-
soas acredita que falar sobre doações promove o costume,
inspira pessoas e incentiva o ciclo de solidariedade.
Esse movimento de divulgação salvou milhares de pes-
soas, que talvez não morreriam pela covid, mas pela falta
de comida na mesa. A pesquisa analisou também as causas
que mais moveram as doações e as principais eram a fome
e o combate à pandemia — em 2015, as motivações eram as
crianças e a educação.
Entre as pessoas que se mobilizaram durante a pande-
mia, está dona Zuzu.
— Como foi para a ONG arrecadar recursos?
— Muita gente se comoveu de trazer muitas doações, veio
daqui de Osasco, do doutor Mauro, que é um juiz. Veio muito
dos advogados aqui da OAB, veio de assistente social. De to-
dos os lugares veio essa ajuda, dos católicos, nós não fazemos
distinção de religião. Vem de onde vem pra ajudar, entende?

30
“QUANDO VOCÊ SE COLOCA NO LUGAR DO OUTRO, TUDO DÁ CERTO”

— As pessoas vêm até a ONG para receber a ajuda ou


você leva até eles?
— Elas me liga, fia, me acharam eu no Facebook. O povo
me acha em todo canto aí, eles me ligam, me chama. Eu
aprendi uma coisa: quando você pode dizer sim, diga sim.
Quando você pode dizer não, diga não. Porque ficar men-
tindo, enganando as pessoas, é muito ruim.
Quando nos dirigimos à casa de dona Zuzu, tínhamos
a expectativa de encontrar uma grande instituição e fomos
surpreendidas pela garagem recém lavada e roupas estendi-
das em cabides pelas paredes. Uma placa de lona amarela,
com letras em azul, nos apresentou a sede da ONG. Dona
Zuzu nos recebeu muito bem, mas pareceu ficar intimidada
com os equipamentos em nossas mãos.
Percebemos que ela se preparou para nos receber, pois
a garagem não é só usada para a ONG, também abriga os
carros da família. O espaço é irregular: a parte da frente tem
o teto baixo, e a de trás, altura maior. Dona Zuzu fez questão
de deixar o lugar livre. Ela nos disse que pediu para os filhos
colocarem os carros do lado de fora durante a gravação. Os
filhos, assim como a fundadora da ONG, foram muito sim-
páticos e pareciam orgulhosos pela mãe estar ganhando um
lugar de destaque para falar sobre a grande obra da sua vida.
Ela estava com uma vestimenta um pouco fora do clima
da ocasião, quente, mas parecia confortável com calça,

31
QUEM SABE FAZ A HORA

casaco, cachecol e uma touca bonita. O look com cores


bem sóbrias combina muito bem com dona Zuzu. Contudo,
independente da roupa, em momento nenhum ela estava
confortável sendo centro das atenções, pois está acostumada
aos bastidores, cuidando dos esquecidos da sociedade.
Vemos algumas cadeiras no canto da parede, uma cadeira
de banho, algumas roupas separadas para bazar e uns rolos
de caixas de leite abertas e costuradas umas às outras. Mais
tarde, dona Zuzu nos contou que são tapetes feitos para os
moradores de rua, para se esquentarem e tampar os buracos
dos barracos, garantindo que o frio não os incomode.
Durante a entrevista, conseguimos perceber o nervosis-
mo e a vontade de dona Zuzu de se mostrar preparada para
as perguntas que viriam. Por um infortúnio ou sorte, a bate-
ria da câmera acaba e é nesse momento que a idosa domina
o ambiente, o lugar de seu maior orgulho.
Ela nos mostra as doações para os moradores de rua e
nos conta sobre o processo de produção de cada tapete. Al-
gumas amigas costuram as caixas de leite com uma máquina
de costura específica e distribuem.
Nos mostra ainda, cheia de entusiasmo, a área de ser-
viço da casa. Ao desbravar o local, vemos um armário no
canto do corredor com alguns brinquedos, mais roupas se-
paradas para os bazares. O lugar está lotado, mas dona Zuzu
o conhece como a palma da mão.

32
“QUANDO VOCÊ SE COLOCA NO LUGAR DO OUTRO, TUDO DÁ CERTO”

Bichos de pelúcia estão espalhados, secando e esperando


para serem distribuídos no Dia das Crianças. Enquanto ela
nos mostra as doações, é possível ver como está mais relaxa-
da. Para muitos aquela bagunça seria motivo de desespero,
mas para dona Zuzu é um símbolo de esperança e solidarie-
dade por saber que, no fim do dia das doações, pessoas que
nunca teriam oportunidade receberão presentes e serão su-
pridas em pelo menos algumas de suas necessidades básicas.
— A senhora tem ajuda de voluntários na ONG?
— Na verdade, você viu que eu não tenho voluntários,
não é porque as pessoas são mal. A situação, ultimamente,
as pessoas não... umas ficou a palavra... é, muitas pessoas
estão com depressão né, muitas. E muitas também não que-
rem, não querem ajudar, então duas situações.
Voluntários são aqueles que de coração investem seu
tempo livre, sem remuneração, e compartilham bondade
com a comunidade. Existe uma troca enorme nesse traba-
lho, nasce o conhecimento em novas habilidades, dignifica
o ser humano, traz visibilidade a quem é tão abandonado e
louva os princípios básicos da vida.
Já são várias as causas nas quais se pode ingressar, como
projetos em comunidades periféricas, indígenas, quilombo-
las, em causas ambientais, nas construções de moradias, em
sopões da madrugada, orfanatos, na saúde, na cultura, no
cuidado dos animais, entre outras.

33
QUEM SABE FAZ A HORA

— O que é mais gratificante em fazer esse trabalho?


— Eu aprendi, oh meninas! Que quando uma coisa as-
sim, que quando você se coloca no lugar do outro, tudo dá
certo. Quando eu me coloco no lugar daquela mulher que
tá ali naqueles barracos, naquela situação, passando fome e
frio... Tem pessoas que passa dias sem puder lavar o cabelo
dos seus filhos, porque não tem sabonete, não tem sham-
poo. É amanhecer o dia e não ter um chá pra dar pro seus
filhos. Então eu me coloco no lugar do outro e peço sim.
Peço a todos ajuda, às minhas correntes do bem, eu mando
bilhetinho, aí todo mundo me ajuda.

34
Quem ocupa não quer ser
invadido

Isabelly Vitorino, Thays Ferreira, Millena Garcia,


Caio Ítalo, Juliana Catalão
C
entro de São Paulo, rua Humaitá. Empurramos
o portão entreaberto e perguntamos pelo orga-
nizador do espaço. Um corredor escuro parece
não ter fim indica várias portas em suas laterais. O am-
biente está silencioso, as paredes manchadas, marcadas
por histórias de quem se cura ou se despede da vida, dos
amores e dos vícios. Ao entrar mais fundo, o espaço que
antes era lugar de enfermos ganha características de um
lar e abriga sonhos.
— Quem quer falar com meu marido? — pergunta Ma-
ria, esposa do Gilberto, liderança na Ocupação Humaitá.
Nesse primeiro contato, não conseguimos falar com ele, a
esposa pediu para que voltássemos em outro momento.

37
QUEM SABE FAZ A HORA

Dia 1 de outubro de 2022, horas antes da eleição mais


importante para a democracia brasileira. Há campanhas
com bandeiras e adesivos por todas as ruas, uma chuva forte
deixa o céu cinza, ouvem-se gritos das janelas dos prédios,
crianças pedindo ajuda pelo centro da cidade, outras dei-
tadas em posição fetal tentando se proteger do frio. Para
essas pessoas, direito de fala e democracia são apenas uto-
pias. Finalmente conseguimos encontrar Gil, como prefere
ser chamado o organizador da ocupação.
Ele não se apresenta, e começa explicando o seguinte:
— Como a gente estava em outra ocupação, houve uma
reintegração de posse. A gente tinha pouco tempo para re-
colocar todo aquele pessoal no local. Tem bastante crianças
aqui, tem muita criança…
Nos convida para entrar. Gil puxa uma cadeira e abre
espaço para que a gente sente. Ao lado da placa que indica
a recepção dos antigos pacientes, pois o local era um hospi-
tal, cadeiras vazias organizadas uma ao lado das outras, fe-
chadas em círculo, proporcionam uma visão 360 graus. No
fundo, notamos rabiscos na parede com nomes de meninas,
desenhos de borboletas e jogo da velha. Gil desabafa:
— Quando ocupamos aqui, a polícia veio. Fizeram o
protocolo dentro da lei. Foi feito boletim de ocorrência.
Sem apoio dos movimentos da luta pela moradia, sem par-
cerias ou qualquer outro tipo de ajuda.

38
QUEM OCUPA NÃO QUER SER INVADIDO

A realidade que Gil aponta não é somente enfrentada


por ele e seus companheiros, a história se repete em vários
pontos da cidade de São Paulo. Apesar de ser conhecida
como a cidade das oportunidades, o que observamos ao an-
dar pelas ruas é um cenário totalmente diferente. Levanta-
mento do Observatório de Remoções de 2020 informa que
existem, ao menos, 206 ocupações espalhadas pela cidade,
53 delas no centro. Isso dá um total de 3.300 famílias ocu-
pando esses espaços para ter o que chamar de lar.
— A água aqui, por enquanto está daquele jeito, não
vou nem falar — diz Gil, tímido, querendo não prolongar
o assunto.
O corredor que faz eco marca a passagem de uma crian-
ça que, quase como um vulto, coloca a mochila rosa nas
costas. Não foi possível ver o rosto, muito menos ouvir pas-
sos. Era uma das muitas crianças que Gil citou no começo
da conversa, provavelmente indo para escola. Ele continua:
— A luz também já vieram cortar. Quando eles vêm, a
gente explica: ‘ó, tem bastante criança, por favor, não corta’.
Até agora não cortaram, né? Os filhos de Deus que tá vindo,
não tá cortando.
Entrar na ocupação é dar de cara com a coletividade e a
necessidade de estar junto para se fortalecer.
— Aqui a gente se ajuda, faz almoço junto, tá junto no
dia a dia.

39
QUEM SABE FAZ A HORA

Mesmo com pouco, a preocupação em ajudar o próximo


é o que move sua luta.
— Tenho também um projeto, a gente serve um almo-
ço de sábado, quando a gente pode. A gente vinha de uma
outra ocupação e umas pessoas ficam sabendo através de
outras que falam e nos procuram, perguntando se tem mo-
radia, quando tem a gente coloca. Eu já resgatei pessoas da
praça, com criança, dormindo no relento.
O problema da falta de políticas públicas voltadas para
moradia regular no Brasil não afeta apenas os brasileiros.
A presença de imigrantes se multiplica nas ocupações. Gil
conta que a Humaitá é um espaço que acolhe essas pessoas,
mesmo com todas as dificuldades de comunicação.
— Os imigrantes são maioria aqui.
O movimento de moradia tem como lema a frase
“Quem não luta está morto”. A luta pela sobrevivência é
um encontro de muitas histórias viscerais e subversivas.
Essas movimentações coletivas são formas de resistência
contra o estado que define o que é dignidade para os po-
bres, com leis egoístas que negam o direito de existir para
parte da população.
Guarda-chuva abre, a chuva ameaça lá fora. Nosso
tempo havia terminado. Combinamos de voltar para co-
nhecermos quem são essas crianças que ocupam as salas
do antigo hospital. 

40
QUEM OCUPA NÃO QUER SER INVADIDO

Gil confirma, dizendo que a gente pode voltar. Alguns


dias se passam, o telefone toca, o encontro é desmarcado e
marcado para outro dia. E esse outro dia nunca acontece.
Por todas as ocupações que passamos, a gente via um
vulto de criança, uma briga boba entre elas, uma risada
aleatória, quase como um suspiro. Na maioria das vezes, nos
deparamos com adultos organizando o espaço e cuidando
das famílias envolvidas, sendo quase como uma barreira, na
defensiva, prontos para responder o que vier à tona, sempre
preparados para a guerra.
Existe um espaço de tempo e percepção, entre os olhares
dos adultos e das crianças. Elas não se sentem assim, com a
necessidade de estarem  prontas para se defender. Em uma
outra visita, na Ocupação Nove de julho, conhecemos Karine,
de 6 anos. Com o seu olhar doce e sorriso inocente andava
pelo quintal de bicicleta, nos viu com uma câmera e falou:
— Tia, tira uma foto minha.
Karine morou por um tempo na Ocupação do antigo
Hotel Cambridge, voltou para a Nove de Julho, e agora, com
a regularização do Cambridge, Karine e sua família volta-
ram para lá. Neste momento, ela estava na Nove de Julho
visitando a tia.
— Eu não gosto desses desenhos na parede, e nem des-
sas cores — disse ela ao esbanjar sua sinceridade. — Mas
gostava de morar aqui, tem bastante espaço. 

41
QUEM SABE FAZ A HORA

Há uma lacuna, uma bolha sensorial, entre quem está


dentro e quem está fora das ocupações, um espaço e várias
percepções. As histórias nunca vão se repetir, a percepção
de cada morador é a bagagem de conhecimento popular, que
nenhum conhecimento científico é capaz de experienciar.
Sobre isso, conversamos com a Amanda Melo, Assisten-
te Social, que trabalhou po sete anos com crianças no Cen-
tro de Referência de Assistência Social (CRAS), de Ribeirão
Preto. Ela nos deu algumas explicações sobre as dificulda-
des em falar com as crianças nesses lugares.
— São famílias que difíceis de acessar porque trabalham,
às vezes não estão em casa. As crianças estão matriculadas
nas escolas. Por serem deixadas à marginalidade, quando es-
sas famílias são procuradas, não entendem o objetivo. Se fe-
cham, por medo. Do julgamento, da exposição, da vergonha.
Esses espaços ocupados são manifestações políticas, as
pessoas entendem bem como o Estado as trata e o peso da
sua luta. Os olhos curiosos cercam os muros das ocupações,
as crianças são discriminadas pela sociedade justamente pela
sua condição de moradia. Perdem a inocência cedo e tem
seus sonhos roubados. Sentem quando recebem um olhar de
desprezo e isso transforma sua forma de interação social.
Quando invadem para ocupar o espaço abandonado, fi-
cam 48 horas sem sair para nada. Ali é construído o verdadei-
ro laço de resistência pela sobrevivência, com mulheres que

42
QUEM OCUPA NÃO QUER SER INVADIDO

querem apenas serem donas de casa, crianças que sonham


com um quintal para brincar e pais de família que desejam o
mínimo segurança e conforto após um dia de trabalho.
Lembrados de outra frase de Gil, liderança da ocupa-
ção Humaitá:
— Aqui você dorme, mas pensando no dia de amanhã.
Essas pessoas que aqui estão, se a polícia chegar, vão pra
onde? Vão ficar na rua.

43
O corre da comunicação de
quebrada

Emanuele Braga, Flávia Santos, Gustavo Oliveira, Liliane


Paim, Naíta Isabelle, Nabor Salvagnini
O
corre significa a rotina pesada de quem mora nas
periferias. É a forma como a gente, da favela, se-
gue a vida. Em outras palavras: o ganha pão. Do
motorista do carro do ovo à costureira do bairro, o corre é
constante. São pessoas que precisam todos os dias se sub-
meter a empregos que nem sempre as fazem felizes, mas que
encontram nesses locais a única forma de conseguir sobre-
viver e manter suas famílias.
Essa correria é o que mantém, ao menos de pé. Cerca de
17,1 milhões de pessoas residentes nas favelas brasileiras,
segundo a pesquisa do Instituto Locomotiva, em parceria
com o Data Favela e a Central Única das Favelas (CUFA).
O número equivale a um quarto da população do estado da
Bahia e representa cerca de 8% da população brasileira.

45
QUEM SABE FAZ A HORA

Essa multidão acorda cedo e vai à luta, é o corre. Muitos


trabalham lá mesmo, nas quebradas; outros têm que atra-
vessar a cidade, se espremendo e se equilibrando em ônibus
e metrôs. Alguns não têm tempo ou dinheiro para tomar se-
quer um café, mas às oito da matina, estão batendo o cartão.
Uma ferramenta que aproxima a galera da favela à do asfalto
é o que eles curtem na internet.
Apesar das vantagens, não são todos que têm acesso
às redes sociais. Vale lembrar que no Brasil, 4,8 milhões
de crianças e adolescentes, de 9 a 17 anos, não têm acesso
à rede virtual a partir de suas casas, como ficou escan-
carado durante a pandemia, quando, entre inúmeras di-
ficuldades, a educação online bateu na barreira da falta
de acesso à internet. Os dados de exclusão digital foram
divulgados em 2020 pelo Fundo das Nações Unidas para
a Infância (Unicef ).
Apesar das dificuldades, a oportunidade de ganhar a
vida na mídia foi o caminho encontrado por Gustavo Ar-
ruda, apresentador do podcast Comunicação de Quebra-
da (CDQ). Formado em Rádio, TV e Internet, ele conta
que a comunicação e o audiovisual “mudaram cem por
cento” sua vida enquanto jovem periférico. Gusta, como
é chamado, um jovem branco, tem 22 anos e vive com os
pais em uma casa no bairro de São Mateus, extremo Leste
da capital.

46
O CORRE DA COMUNICAÇÃO DE QUEBRADA

Ele se formou na Faculdade Paulista de Comunicação


depois de conseguir uma bolsa no Programa Universidade
Para Todos (Prouni), e decidiu começar o podcast falando
do que vive e sente no dia a dia da periferia. Gusta grava
os episódios em seu quarto, com seu computador, um fone
de ouvido e um microfone para captar a voz. No cenário,
encontramos livros, quadros com inspirações do podcaster,
como o rapper Mano Brown, e um troféu com a logo do
Comunicação de Quebrada.

Contrariando as estatísticas

Enviei uma mensagem para Gusta no WhatsApp pedin-


do para que me contasse como o Comunicação de Quebra-
da nasceu e como transformou sua vida enquanto jovem
periférico. Segundo ele, ainda na faculdade, sentia falta de
ouvir falar sobre comunicação periférica.
— O podcast nasceu em 2018, quando eu tive vontade
de fazer uma parada pra falar sobre comunicação da perife-
ria. Na universidade, eu sentia falta da galera falando sobre
comunicação periférica e pensei ‘mano, eu acho que a gente
tem que contar as nossas histórias’.
Continuamos a conversa. Gusta comenta a realidade e
suas percepções do corre na quebrada. Via áudio, ele dis-
se que o pessoal que vive da comunicação “tá quebrando

47
QUEM SABE FAZ A HORA

as estatísticas”, por trabalhar sem equipamentos e com os


desafios diários de um jovem periférico em São Paulo, mas
também destacou que isso é um incentivo para continuar.
— A gente que vive da comunicação, tá quebrando as
estatísticas, porque é muito difícil você ser um jovem peri-
férico e ter espaço.
Gusta relata que o Comunicação de Quebrada não é sua
única fonte de renda e que, por isso, ainda precisa conciliar
um segundo emprego, vendendo acessórios personalizados
do CDQ, como camisetas e adesivos, para garantir que o
trabalho continuará sendo produzido com a qualidade que
precisa e merece ter. Além disso, Gusta trabalha em uma
empresa de comunicação, de onde tira sua principal fonte
de renda para manter seus projetos e a vida pessoal.
— O Comunicação de Quebrada é um projeto que eu
tenho como base, um filho. Hoje temos as camisas, estamos
fazendo as camisas da Copa, então, quando a galera compra,
ouve os nossos episódios… é isso que me move.
Gusta destaca ainda que um dos motivos para o seu po-
dcast acontecer é que ele acredita na periferia. Ele destaca
o desejo de contar as próprias histórias, assim como a dos
demais “manos e minas” da região onde mora, mas com as
suas próprias perspectivas. Segundo Gusta, a quebrada vai
além dos problemas encontrados nas ruas e mostrados nos
noticiários.

48
O CORRE DA COMUNICAÇÃO DE QUEBRADA

— A comunicação de quebrada nada mais é do que as


nossas narrativas por nós mesmos. Quando a gente liga a
televisão, na maioria das vezes, o que a gente vê é a galera
falando sobre violência. A gente sabe que isso existe, mas
tem muito mais do que isso. A gente consegue ver o que as
grandes mídias de massa não veem. É mudança de perspec-
tiva de vida. É pessoas que moram na quebrada e registram
sua quebrada.
Partindo disso, Gusta reforça a ideia de que tem uma
produção independente, sem patrocínios e que busca fazer
do seu projeto uma porta de entrada de outros jovens peri-
féricos na comunicação, mesmo sem ter como remunerar os
voluntários, por falta de parcerias.
— O comunicação de quebrada é nóis por nóis. Hoje, in-
felizmente, a gente ainda não tem parceiros grandes, como
empresas, mas a gente ainda tá tentando. A gente tá fazendo
o corre por nós, toda a equipe é formada por pessoas pe-
riféricas. A gente tenta oportunizar o máximo de pessoas
periféricas pra elas terem contato com a comunicação. Infe-
lizmente ainda não conseguimos remunerar essas pessoas,
mas aos poucos vai dando certo.
Sendo uma produção independente, o trabalho é fei-
to com o equipamento que a equipe tem disponível. Ele
conta que quando decidiu começar o projeto, usava o seu
próprio celular.

49
QUEM SABE FAZ A HORA

— Depois consegui alguns equipamentos com outros


trampos, comecei a comprar e desenvolver a produção. Por
mais que, às vezes, seja muito desgastante, você concilia o
seu trampo com esse projeto. Muitas vezes, você não tem
dinheiro pra isso, precisa tirar do seu bolso pra fazer uma
camisa, pra comprar mais equipamentos.

“Eu não posso errar”

— Eu não tenho nem como explicar como a comuni-


cação e o audiovisual mudou a minha vida. Eu não tinha
nenhum exemplo de pessoas ao meu redor que trampavam
com isso. Tinha um amigo que o namorado dele fazia co-
municação, ele fazia rádio e TV. Eu busquei no Google ‘dá
pra ganhar dinheiro com Rádio e TV?’. Aí, tava mostrando
que dava e eu falei ‘mano, é isso, não posso errar. Se eu for
fazer uma faculdade, tenho que fazer uma que eu consiga
ganhar dinheiro’.
O projeto consome a maior parte dos dias de Gusta. São
feitos lançamentos semanais de episódios do podcast. O
processo começa na elaboração do tema, passa pela busca
por convidados, até chegar nas etapas de gravação e edição.
— A gente faz um episódio por semana e faz conteú-
do no Instagram pelo menos três vezes na semana, mas eu
não vivo disso, então, preciso trampar com outras coisas.

50
O CORRE DA COMUNICAÇÃO DE QUEBRADA

Ao mesmo tempo que eu tô trampando, eu tô de madrugada


editando vídeo e episódio do Comunicação de Quebrada.
De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de
Domicílio Contínua (Pnad) em parceria com o IBGE,
5,2% das pessoas trabalham formalmente, em média. No
bairro da Barra Funda, região central, é de 59,2%. Mas na
Cidade Tiradentes, extremo leste da capital, apresentou
o pior número entre todos os distritos da capital: apenas
0,2% dos trabalhadores que moram no bairro possuem
emprego de carteira assinada. A pesquisa foi divulgada
em outubro de 2019.

Comunicação dentro e fora da quebrada

Assim como muitos jovens periféricos dessa geração,


Gusta destaca que foi o primeiro da família a conseguir ter
um diploma universitário e hoje, graças à Comunicação de
Quebrada, consegue ajudar sua mãe e, segundo ele, vive um
sonho na periferia.
— Hoje eu trampo com comunicação, com audio-
visual, como freelancer, tenho o meu projeto e também
trampo em uma empresa na área. A minha mãe também
tá fazendo um curso de cuidadora de idoso e eu, por con-
ta de trampar na comunicação, consigo pagar a passagem
dela, alimentação, tá ligado? Tô vivendo os meus sonhos,

51
QUEM SABE FAZ A HORA

fazendo os meus projetos, ganhando os meu dinheirinhos,


conseguindo investir em equipamento pra desenrolar no-
vos trampos.
A Comunicação de Quebrada tem ganhado força nos
últimos anos. Outros projetos comunicacionais da que-
brada que vão na mesma linha são Desenrola e Não me
Enrola, Agência Mural e Periferia em Movimento. Eles
têm impulsionado a produção de conteúdo informativo e
de entretenimento feito por pessoas periféricas, pensados
para seus iguais. A pesquisa Mapa do Jornalismo Periféri-
co, feita em 2019 pelo Fórum de Comunicação e Territó-
rios de São Paulo, encontrou 97 movimentos de jornalis-
mo de quebrada na capital.

Sonhando o amanhã

Chegando ao final da conversa, Gusta, emocionado,


acrescenta que, por mais que já esteja fazendo todo esse cor-
re acontecer, ainda almeja realizar muitos projetos, como,
por exemplo, a criação de um coletivo da quebrada, que
possa proporcionar aos jovens a possibilidade de trabalhar
com comunicação de forma acessível, orgânica e que fizesse
os crias da favela se sentirem representados.
— A gente tá começando a se ver como uma empresa,
pra futuramente a gente conseguir fazer isso que te falei,

52
O CORRE DA COMUNICAÇÃO DE QUEBRADA

sabe? Tipo um coletivo zika da quebrada, uma produtora, tá


ligado? E desenrolar isso, então, tipo, vou correr atrás e não
vou parar até eu conseguir.
Segundo o podcaster, por mais que seja difícil estar na
correria, gravando, entrevistando, produzindo e seguindo
em frente, é o fato de ver essa comunicação chegando às
pessoas, representando jovens e famílias. É o que o motiva
a continuar, se manter de pé e não desistir desse trabalho.
— Quando a galera compra, comenta no Instagram,
ouve nosso episódio... A gente começou no Instagram do
zero, e hoje a gente tem 830 seguidores, pra muitas pessoas
pode ser pouco, mas é isso que move, mano. Move ver as
pessoas se identificando, entendendo de fato o que é a co-
municação. Pra mim, não tem coisa melhor.

53
Transtorno de ansiedade e
depressão: a vida acelerada e
em câmera lenta

Lucas Amancio do Nascimento, Luana Costa, Luana


Iasmim, Nicolas Pegorare, Matheus Santos, Milena Alves
E
ra o primeiro dia de retorno às aulas e uma an-
gústia sem fim atingia Camila 22 anos por vol-
ta do fim do ensino médio ela sentia dores no
peito e via manchas se espalhando pelo corpo estudar
com essas sensações a faziam sentir-se péssima ela sem-
pre pedia para os professores adiantarem as atividades e
provas para que pudesse terminar antes do final do ano
já que ela não suportava mais tanta angústia causada
pela ansiedade.
Um dos sintomas mais comuns da ansiedade é a acele-
ração. O coração e a mente trabalham de modo apressado e
quase não há espaço para a pausa, para a respiração. Tudo
precisa ser concluído com pressa, o quanto antes.

55
QUEM SABE FAZ A HORA

Diante de uma situação ameaçadora, o corpo se prepara


ficando em estado de atenção para reagir e/ou para se de-
fender. Esse é um mecanismo involuntário produzido pelo
sistema nervoso autônomo, que, como o próprio nome diz,
de maneira autônoma controla a respiração, os batimentos
cardíacos, a digestão, a produção de líquidos corporais, en-
tre outras funcionalidades.
Quando surgem sintomas físicos de ansiedade, o siste-
ma nervoso provoca aceleração do coração, da fala, da res-
piração, a mão suando. E a pessoa não consegue os contro-
lar de imediato.
Se nos primórdios da vida humana na terra as situa-
ções ameaçadoras poderiam ser encontros com predado-
res, catástrofes naturais e até mesmo a busca por abrigo
e alimento, nos tempos atuais, situações comuns do co-
tidiano, como fazer uma apresentação, ir a um encontro
amoroso, o primeiro dia de trabalho, entre outros, podem
causar momentos de ansiedade. O problema está quando
se perde o controle e tarefas simples do dia a dia se tor-
nam ameaçadoras.
Segundo Freud, o ego, que se relaciona com as intera-
ções mentais de uma pessoa, é a sede real da ansiedade, ou
seja, a mente reage a ela através de experiências já vividas.
“A ansiedade, na verdade, é o sinal de que algo não vai bem
por dentro”, diz a psicóloga Leide Teixeira.

56
TRANSTORNO DE ANSIEDADE E DEPRESSÃO: A VIDA ACELERADA E EM CÂMERA LENTA

Ao encontrar com Camila, de aparência tímida e olhos


expressivos, é que se percebe o efeito da ansiedade em sua
vida. Se ela não tivesse se tratado, talvez hoje seria refém de
situações como falar com outras pessoas. Aparentemente, se
sente à vontade em nos receber em seu apartamento. De for-
ma simples, sem maquiagem, seus cabelos castanhos claros
e molhados contrastam com o verde do seu olhar.
Camila se senta no sofá de pernas cruzadas e damos iní-
cio à entrevista. No decorrer da conversa, percebemos que,
ao falar dos sintomas, ela joga seus cabelos lisos para trás,
como quando chegamos à pergunta sobre qual é o momento
de procurar ajuda:
— É muito difícil percebermos que temos ansiedade, até
você chegar ali, realmente no diagnóstico, você passa por
muitas coisas. Então, desde o primeiro sintoma que você
tem, é a hora de procurar ajuda… principalmente vindo de
médicos especialistas, são eles quem podem ajudar a gente.
A transição entre o ensino médio e início de um novo
ciclo de vida a faculdade trouxe alguns sintomas estranhos
como aceleração de tudo e falta de ar e parecia até que seu
coração além de acelerar ia parar de bater.
— Eu falava com as minhas amigas sobre a ansiedade e
comecei a perceber que não era só eu que sofria com isso,
elas também, mas não ligavam de falar para as pessoas.
Camila acreditava que eram problemas de saúde física.

57
QUEM SABE FAZ A HORA

— Mas, quando fui ao hospital, fiz todos os tipos de exa-


mes sangue, holter 24 horas e até ultrassom do coração, mas
não foi nada mais sério; porém, acabei descobrindo que era
psicológico, algo totalmente emocional.
Então em 2017 veio o diagnóstico do psiquiatra ansiedade.
A psicóloga Leide Teixeira afirma que a ansiedade é uma
experiência desagradável, tanto no aspecto físico, quanto
psíquico. “Todos nós nascemos com ansiedade, de menor a
maior grau”. Isso quer dizer que há algo dentro de nós que
nos motiva a ter desejos, como objetivos pessoais e profis-
sionais. Mas essa “ânsia” dentro da pessoa, associada a pro-
blemas do dia a dia e experiências traumáticas, pode acar-
retar sintomas como sudorese e, até mesmo, dor de barriga.
“Isso é ansiedade, que é diferente da crise de ansiedade”.
Camila cita que começou a ter crises de pânico após o
ataque à escola de Suzano e no mesmo dia a caminho do
trabalho na estação do metrô Paulista ela ouve um barulho
semelhante a tiro causado por uma cadeira de rodas que
empacou na esteira rolante de repente viu pessoas correndo
desesperadas não conseguiu nem entrar no trem a caminho
da faculdade sua mente a havia bloqueado então pediu para
um amigo ir buscá-la.
Além de atrapalhar em atividades simples, os proble-
mas mentais influenciaram, inclusive, em momentos de
lazer e entretenimento.

58
TRANSTORNO DE ANSIEDADE E DEPRESSÃO: A VIDA ACELERADA E EM CÂMERA LENTA

— Estive tentando assistir um filme chamado Milagre


da Cela Sete, mas não consegui porque tem picos de gritos e
me senti muito sufocada, parece que eu estou no filme.
Camila tinha sentimentos dobrados conforme cada cena:
— Eu sinto tudo demais se eu assisto filmes tristes, eu
fico triste, se é muito violento eu sinto muita violência.
A jovem confessa o que mais ajuda é a medicação “eu
tomo fluoxetina” explica Camila mas que mesmo assim não
a deixa cem por cento bem e o que a faz realmente ficar
melhor são as pessoas que a confortam as quais ela se re-
fere como “portos seguros” como seu marido e familiares
atualmente ela trabalha em casa ela relata que a convivência
com seu cônjuge e o trabalho em home office tem a ajudado
muito em controlar e “conviver com a ansiedade”.
A convivência acontece no dia a dia, no conforto do lar,
que fica próximo ao bairro do Tatuapé, em São Paulo, capital.
Ao acordar, Camila toma seu café da manhã na companhia
indispensável do marido, de quem ela faz questão de lembrar:
— Ele sempre me ajudou muito a lidar com a ansiedade,
me sinto segura com ele por perto.
A publicitária trabalha de casa, assim como Léo, seu
companheiro. Ao revelar que após o casamento as crises
têm sido bem menos recorrentes, Camila confessa que não
faz terapia todos os dias, apenas uma vez por mês. Ela sente
que as vezes acaba ficando “sem assunto”. Mas está longe

59
QUEM SABE FAZ A HORA

de não precisar das sessões, inclusive destaca que, se tirar o


remédio, ainda não consegue ficar bem. Ela faz uso da me-
dicação conforme determinação do psiquiatra, um por dia,
geralmente à noite, antes de dormir.
Mas, dependendo da situação, se caso algo tenha dado “gati-
lhos”, como ela mesma lembra de um episódio durante a pande-
mia, quando viu muitas notícias de mortes por conta da doença,
depois de dois dias acordou com crises de ansiedade, passando
mal e sem saber o motivo. Conversando com o terapeuta, veio
a entender: o cérebro de uma pessoa ansiosa pode guardar uma
informação ruim e desencadear crises, independente do tempo
que passou, geralmente um, dois ou três dias depois.

Talita, em câmera lenta

Natal de 2019. Talita, 26. Confraterniza. Com a família.


Ela não contou nenhum detalhe. De como estava sua apa-
rência. Naquele dia. Ela esperava um, um feliz Natal. Cheio
de amor. E paz. Mas o inesperado acontece. Ela sofre. Sofre
um. Um abuso por parte de um amigo da família.
— Ele estava muito bêbado e eu me senti muito culpada
por causa disso.
Foi quando tudo começou. Entre as principais caracte-
rísticas da depressão está a sensação de que as coisas não
vão para frente, tudo parece em pausa, não se completa ou

60
TRANSTORNO DE ANSIEDADE E DEPRESSÃO: A VIDA ACELERADA E EM CÂMERA LENTA

se repete. Falta vontade para realizar atividades de rotina,


que davam prazer. O cansaço toma conta. E se torna cons-
tante. Dentre tantas outras formas de aliviar a angústia, a
pessoa acometida da depressão se prende em seu quarto.
E não quer ver mais a luz do sol. A energia é reduzida e a
vontade de viver vai se acabando.
Então a solidão se torna a única amiga, de forma que
qualquer contato físico se torna impossível. Nada mais tem
graça. A sensibilidade fica aflorada. A mente está corroída
por tantos pensamentos ruins. Os convites dos prazeres são
totalmente recusados.
As pressões sofridas diante de uma rotina exaustiva fi-
cam insuportáveis. É comum o cérebro começar a dar indí-
cios de cansaço. De estresse. E mau humor. Logo, a mente
pode estar à beira de um colapso.

Talita nos recebe na sala de aula da faculdade Unicsul


Liberdade. Ela está impecável, como sempre. Seus cabelos
bem ao estilo black power demonstram empoderamento e
beleza. Suas vestes realçam muito estilo e segurança. Mes-
mo com possíveis dores internas, ela se sente confortável e
até bem-humorada em nos relatar momentos tão difíceis.
— Em 2018, eu fazia cursinho. E tinha. Tinha toda essa
pressão! Pressão para entrar na faculdade. E… junto, com
isso, um acúmulo de frustrações. Frustrações. Porque foi no
mesmo período. Em que eu terminei um relacionamento.

61
QUEM SABE FAZ A HORA

A depressão pode atingir pessoas de todas as idades


e tem origem tanto por desequilíbrio químico no cérebro
quanto por fatores externos, como traumas vividos ao longo
da vida. Para as mulheres, a situação pode ser um pouco
pior. Uma pesquisa realizada pela Universidade de Cam-
bridge indica que as mulheres têm duas vezes mais chances
de sofrer de ansiedade em comparação aos homens.
O medo de sofrer algum tipo de violência está relacionado
à maior tendência de pessoas do sexo feminino desencadea-
rem algum transtorno de ansiedade e/ou depressão. Pergun-
tamos para Talita quando ela se deu conta que não aguentava
mais e ela respondeu que era a maneira que percebia o peso.
Peso de suas palavras ao lembrar de seu sofrimento.
Contrastando de forma inegável com a escuridão. De seu
olhar. Lembrou que foi. Foi durante a pandemia. Pois se
sentia sufocada. Ainda não havia contado para ninguém.
Sobre o ocorrido. A maior das frustrações foi contar. Para
sua mãe. E ser desacreditada.
Segundo relatório de 2021 da Organização Mundial da
Saúde (OMS), uma em cada três mulheres sofreram violên-
cia física ou sexual ao longo da vida. Em números exatos,
são 736 milhões de mulheres no mundo inteiro.
— Eu já estava em um estágio muito avançado. Já não
conseguia fazer nem a higiene pessoal, sabe? Então ficava o
dia inteiro deitada. Não conseguia fazer nada.

62
TRANSTORNO DE ANSIEDADE E DEPRESSÃO: A VIDA ACELERADA E EM CÂMERA LENTA

Afinal, o que é depressão senão o instinto fulminante


de vergonha? O sentimento profundo de que mais nada faz
real sentido…
Novembro de 2020, diagnosticada com ansiedade e de-
pressão, iniciou seu tratamento terapêutico.
— A terapia me salvou, porque eu estava quase. Quase
me matando.
Talita diz que não foi necessário o uso de medicação e
que uma vez na semana tem consulta com o psicólogo. Atual-
mente, leva uma vida corrida, trabalhando de segunda a sex-
ta, das seis da manhã até cinco da tarde, como funcionária
registrada numa empresa. E, nas folgas, aos fins de semana e
no período da noite, trabalha por conta, como cabeleireira.
A jovem que mora com a mãe e a irmã não teve o mes-
mo tipo de apoio das duas. Enquanto sua irmã a compreen-
de e a apoia, sua mãe acredita que o problema da filha é
espiritual e que frequentar a igreja a ajudaria mais do que o
tratamento psicológico.
Independente desses pontos de vista, o fato é que cada
vez mais pessoas vem falando abertamente sobre seus trans-
tornos e suas terapias, assim como Talita.
— Eu sei o que me dá gatilhos.
Desta forma, desmistifica um assunto que sempre foi
encoberto por uma nuvem de preconceito. Segundo a psi-
cóloga Leide Teixeira, é preciso conhecer a si mesmo para

63
QUEM SABE FAZ A HORA

poder entender o que te faz mal e, a partir desse ponto, bus-


car uma solução.
No mesmo dia da entrevista, 14 de setembro de 2022,
uma péssima notícia: amigo de Talita, de apenas 27 anos,
comete suicídio. No dia seguinte, seria seu aniversário. Dias
antes, 31 de agosto, tinha sido campeão de Judô da Copa
Ney Lourinho, em Macapá. Há três anos, o atleta mudou-se
para Manaus e, antes da mudança, estava passando por de-
pressão. Tinha começado a se mutilar.
Talita cita que não percebia nenhum índice de piora do
amigo, com base em postagens nas redes sociais, nas quais ele
estava sempre alegre. Seu suicídio a deixou em total estado de
choque. Ela não estava acreditando no que acabara de aconte-
cer. Uma pessoa que aparenta estar bem, nem sempre está. Por
isso a depressão é tida como silenciosa. Ninguém sabe o que
uma pessoa está passando, até que alguém entre no íntimo de
seu cotidiano e conheça suas reais dores. Suas reais angústias.
E caso alguém pense que este é um problema atual, des-
de muito antes da Idade Média havia casos de pessoas com
transtornos mentais. Naquela época, os que apresentavam
esses problemas, eram tidos como a escória da sociedade.
Muitas famílias sofriam preconceitos quando algum mem-
bro apresentava sinais de melancolia ou histeria. Em diver-
sas culturas, foram encontradas maneiras de tentar com-
preender e tratar essas doenças.

64
TRANSTORNO DE ANSIEDADE E DEPRESSÃO: A VIDA ACELERADA E EM CÂMERA LENTA

Na Grécia antiga, acreditava-se que era punição dos


deuses. Apenas o Egito tentou encontrar formas de acal-
mar aqueles que eram acometidos por esses males, através
de terapias, dança, música e arte. Acreditavam que podiam
aliviar o espírito.
Atualmente, os estudos a respeito desses transtornos
evoluíram e, cada vez mais, pessoas começaram a com-
preender o quais problemas tinham e procurar ajuda. Se-
gundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), aproxima-
damente 129 milhões de pessoas sofrem de depressão ou
ansiedade no mundo.

65
Uma angústia que não se
encerra após o fechamento
da porta

Bruna Duarte, Caíque Jesus, Chrystian Gabriel,


Guilherme Panhan, Guynever Maropo,
Natasha Macedo, Rafael Afonso
E
ra domingo, mas não um domingo como os outros.
A tensão pairava no ar no dia 2 de outubro de 2022.
Um país se dividia em dois polos. Logo cedo, as ruas
estavam movimentadas com pessoas indo exercer seu papel
de cidadão, votando. No chão, santinhos se juntavam aos
montes. Conforme as horas iam se arrastando, a tensão ia
aumentando, chegava a hora do resultado de um mês de tra-
balho duro e ininterrupto.
Kelly Ramos, uma mulher preta e periférica, no auge
dos seus 37 anos, tomava seu banho e se preparava para sair.
Às 18 horas começaria a apuração das urnas do país inteiro.
Enquanto se trocava, seu telefone vibrava com mensagens
de parceiros de campanha comentando a apuração e infor-
mando como estava o avanço para o resultado.

67
QUEM SABE FAZ A HORA

— Votei cedo e passei o resto do dia esperançosa. As


pesquisas tinham deixado uma expectativa de vitória no
primeiro turno para presidente. Estava ansiosa para saber o
resultado de tudo. Lembro que o celular vibrava e eu dizia
aos meus amigos ‘calma! Apenas dezesseis por cento das ur-
nas foram apuradas. Eles começaram pelo Sul’.
No caminho para o comitê, onde ia acompanhar a apu-
ração com participantes da campanha, Kelly foi invadida
com preocupações e questionamentos que se atropelavam,
como se lutassem por sua atenção. Teria valido a pena o
trabalho de tantos meses? O resultado da eleição seria o es-
perado? As pesquisas de intenção de voto teriam acertado?
Voltaria a se sentir bem em seu próprio país?
No comitê, foi recebida com diversas facetas de assombro
dos colegas. O resultado não foi o esperado. A ansiedade e
angústia de uma melhoria para o país só teria um resultado
um mês depois, no dia 30 de outubro, quando os dois polos
opostos voltariam a se enfrentar no segundo turno da eleição.
Kelly repassa em sua mente todo o processo da campa-
nha. Atuou na linha de frente de seu amigo e candidato a
deputado federal Douglas Belchior, do Partido dos Traba-
lhadores (PT), organizando as agendas de visitas e comícios
nas cidades próximas à capital paulista.
Com um sorriso refreado no rosto, aquele que sai com
os lábios pressionados, Kelly conta que se sentiu orgulhosa

68
UMA ANGÚSTIA QUE NÃO SE ENCERRA APÓS O FECHAMENTO DA PORTA

de si mesma por ter participado ativamente das ações so-


ciais promovidas em sua comunidade durante a campanha.
Ela brinca: quando tiver filhos, vai contar a eles que, em
uma época tão importante e decisiva para o país, não ficou
apenas sentada. Foi atrás dos ideais em que acredita e ten-
tou fazer a diferença.
— Foi uma campanha que tocou a vida de muita gente.
Não foi só questão política. Costumo falar que, para nós,
mulheres pretas de periferia, existir é um ato político e re-
sistir também é um ato político.
Enquanto contava à reportagem sobre os sentimentos
que a invadiram no dia da eleição, ela relembra, com uma
voz embargada e em tom de desabafo, o dia em que chegou
em sua casa e desabou, chorando. Isso porque o resultado
do primeiro turno das eleições passou um recado muito
triste para as mulheres que, como ela, buscam representati-
vidade e representação.
— Mexeu comigo porque senti como se eu não fosse
bem-vinda no meu próprio país. Pela forma que eu sou, pela
minha cor, pelo jeito que eu nasci. Isso também foi um dos
gatilhos que pegou para mim naquela semana.
Porém, a crise de burnout não começou no dia do resul-
tado do primeiro turno da eleição, em 02 de outubro, mas
bem antes…

69
QUEM SABE FAZ A HORA

O ponto de partida

Kelly Ramos é formada em Técnica de Fotografia e Co-


municação Visual. Hoje trabalha em seu próprio estúdio
como fotógrafa e como confeiteira da marca de bolos ca-
seiros que herdou de sua mãe. Há um ano, foi diagnosti-
cada com a síndrome de burnout, um distúrbio emocional
caracterizado pela exaustão extrema e o esgotamento físi-
co e mental causados pelo ambiente de trabalho. Na época,
ela trabalhava na tesouraria de uma empresa varejista lo-
calizada a quatro horas de distância de sua casa.
Os problemas no trabalho começaram ainda antes,
em 2013, quando Kelly foi contratada para trabalhar em
uma loja de vestuário durante as festas de final de ano,
em um shopping da cidade onde reside, Suzano, na Re-
gião Metropolitana de São Paulo. Ela conta que percebeu
que era comum ouvir, em conversas entre os funcioná-
rios, que se você se esforçasse bastante e conseguisse se
destacar, poderia subir de cargo e ir trabalhar no escritó-
rio da empresa.
Assim Kelly iniciou sua missão para crescer na pirâmi-
de hierárquica. Relembra que essa promessa de promoção
gerava competição entre os vendedores, que brigavam en-
tre si pelo posto de funcionário mais produtivo. Ela mes-
ma não media esforços para chamar atenção dos super-

70
UMA ANGÚSTIA QUE NÃO SE ENCERRA APÓS O FECHAMENTO DA PORTA

visores, tentando sempre dar o melhor e ficar acima da


média. Chegou a trabalhar de domingo a domingo, e até
abrir e fechar a loja.
Seu esforço surtiu efeito e, antes do esperado, foi promo-
vida a fiscal de loja, quando foi transferida para o shopping
do bairro do Tatuapé, na capital paulista. Em um cargo de
responsabilidade, viu a demanda de trabalho crescer, mas
decidiu continuar, pois precisava de dinheiro para custear
os estudos. Seu supervisor notou que ela não conseguia dar
a devida atenção à faculdade (estudava Gestão de Pessoas) e
a indicou para trabalhar na área financeira.
Foi quando ela viu sua vida melhorar: passou a receber
três vezes mais, não precisava mais trabalhar aos finais de se-
mana e feriados, não tinha que cumprir metas. O único pro-
blema era a distância. Para chegar no escritório localizado
em Alphaville, gastava até 4 horas do seu dia em transporte
público. Com o decorrer dos anos, Kelly passou a se identifi-
car como uma pessoa workaholic, expressão em inglês usada
para descrever pessoas viciadas em trabalho. Sempre muito
proativa, acelerada, diz que achava normal trabalhar o tempo
todo, estava apenas adiantando uma obrigação com a qual
teria que lidar depois. Até que tudo mudou.
Logo no início da pandemia, migrou para a modalidade
home-office. E foi nesse período que viu sua saúde mental
se esgotar.

71
QUEM SABE FAZ A HORA

— Era uma empresa multinacional e só tem um escritório


por país, então a gente cuidava de… acho que na época que
eu saí estávamos em 320 lojas no Brasil, tipo assim, a única
pessoa que fazia tal função, para esse monte de gente, era eu!
Não tinha outra pessoa, então, assim, era muita responsabili-
dade. É uma responsabilidade gigante lidar com o financeiro
de uma multinacional tão grande. E vamos supor: na minha
parte, era só eu que cuidava; na parte da fulana, era só ela; é
complicado. E a nossa equipe era só eu e mais duas pessoas.
Antes de ser diagnosticada com burnout, chegou a tra-
balhar mais de 14 horas por dia. Sempre buscava executar
o trabalho com perfeição. Focada cada vez mais em suas
tarefas, não via o tempo passar, virava a noite trabalhando,
se preciso. Enquanto isso, a pressão também aumentava e a
exaustão tomava conta.
— Eu ficava o tempo todo pensando nas coisas que
precisava fazer. Às vezes, ligava o computador à noite pra
adiantar alguma coisa. Entrava mais cedo e saia mais tar-
de, era muito trabalho. Tinha dia que trabalhava 10, 12, 14
horas. E sempre com essa cabeça de querer entregar tudo
melhor. Não tinha como. Não tinha braço suficiente para
aquilo, sabe? Mas sempre acreditei que se desse conta de
tudo, que se fizesse tudo na minha vida, tudo estaria sob
o meu controle. Então pensava que se desse conta, não ia
precisar que alguém fizesse alguma coisa pra mim. Não que

72
UMA ANGÚSTIA QUE NÃO SE ENCERRA APÓS O FECHAMENTO DA PORTA

eu tenha problema em pedir, não é isso, mas pensava ‘poxa,


eu tenho saúde, tenho como resolver.’
Kelly é solteira e analisa que isto, somado ao fato de mo-
rar sozinha, talvez tenham contribuído para a rotina sem
limites entre vida pessoal e profissional.
— Acredito que um parceiro de verdade talvez não me
deixaria trabalhar tanto. Porque se estou em casa e resolvo
que vou trabalhar até cinco horas da manhã, ninguém está
vendo... Então, ninguém vai saber se eu optar ‘ah, eu não
vou nem jantar, vou seguir trabalhando aqui, comer um sal-
gadinho’. Agora, se você tem alguém que se importa com
você, né? Acho que, quando você tem um companheiro de
verdade faz toda a diferença, sim.
Com a rotina sem limites, começou a se sentir cada vez
mais ansiosa e cansada. Na época, achava que era normal se
sentir assim, só precisava de um descanso. As pessoas que
trabalhavam com ela também pareciam não notar seu com-
portamento anormal. Ela comenta que percebia que alguns
colegas a viam como um modelo a ser seguido, “as pessoas
já estavam se espelhando em mim”. Enquanto isso, seu cor-
po dava indícios da exaustão física e mental excessivas.
— Eu tive infecção de urina, pedra no rim, carência de
vitamina D… tudo por causa de estresse no meu trabalho,
ou seja, o burnout já vinha dando sinais há muito tempo e
eu não percebia.

73
QUEM SABE FAZ A HORA

Muitas vezes a Síndrome de Burnout não é identificada


corretamente por apresentar sintomas parecidos com de-
pressão e ansiedade. Ao contrário dessa, doenças psiquiá-
tricas crônicas, o burnout é um transtorno resultante do
estresse crônico originado no ambiente de trabalho. O Mi-
nistério da Saúde afirma que a síndrome de burnout “pode
resultar em estado de depressão profunda”, ou seja, é possí-
vel desenvolver outras doenças a partir do burnout.
Existem diversos sintomas associados, mas os três prin-
cipais são exaustão, ceticismo e ineficácia. Outro sintoma
é “presenteísmo”, quando a pessoa vai trabalhar, mas fica
mentalmente ausente, com pensamentos distantes. O bur-
nout afeta homens e mulheres. A palavra “burn out”, em
inglês, significa “queimar por completo”. Trata-se de uma
referência ao que ocorre com a saúde psicológica do pacien-
te conforme a doença se agrava: ele é tomado pelo estresse,
até se esgotar.
O termo foi adotado pelo psicanalista alemão Herbert
Freudenberger (1926-1999) em 1974 e a caracterização
como doença ocorreu em 2019 pela Organização Mundial
da Saúde (OMS) como um “fenômeno ocupacional”. Mas
somente em janeiro de 2022 passou foi incluído na Clas-
sificação Internacional de Doenças (CID-11). De acordo
com pesquisa da Associação Nacional de Medicina do Tra-
balho (Anamt), somente no Brasil a Síndrome de Burnout

74
UMA ANGÚSTIA QUE NÃO SE ENCERRA APÓS O FECHAMENTO DA PORTA

atinge 30% dos trabalhadores. Segundo pesquisa do Grupo


Adecco, empresa suíça de recursos humanos presente em
60 países, 38% das 15 mil pessoas entrevistadas ao redor do
mundo dizem ter sofrido da Síndrome de Burnout ao longo
de 2021. Kelly está entre elas.
Assim como indicam os sintomas definidos cientifica-
mente, havia dias em que ela terminava o trabalho sentindo
que não havia produzido nada, perdia a concentração, es-
quecia o que estava fazendo, começava uma coisa sem ter-
minar a outra. Com o tempo, o simples ato de fechar seu
notebook depois de um dia de trabalho tinha se tornado, em
suas palavras, “um momento de libertação”, o qual ela fazia
de tudo para prolongar.
Kelly, que sempre foi uma pessoa noturna, conta que
passou a dormir cada vez mais tarde e, consequentemen-
te, acordar mais atrasada, pois “era como seu eu quisesse
estender meu tempo longe daquela rotina, pra não precisar
acordar e começar tudo de novo”. Ao acordar, seu primeiro
pensamento era o de que não queria ir trabalhar. Sentia seu
corpo pesado, pensava na possibilidade de inventar alguma
desculpa para faltar.
— Mas aí eu pensava ‘ah, se eu não fizer hoje, amanhã
vai ser muito pior’. E algo que acontecia também, é que eu
passei a não me sentir mais feliz com as folgas de banco de
horas, porque lá eles não pagavam hora extra. Só que aí tudo

75
QUEM SABE FAZ A HORA

bem, você tá de folga hoje, só que quando era amanhã tava


tudo acumulado com o dia anterior, então para mim não era
mais vantagem.
Sua mudança de humor e comportamento a faziam se
sentir culpada. Culpada por acordar atrasada, culpada por
não sentir mais vontade de trabalhar.
— Eu me sentia culpada por estar cansada! Você per-
cebe que está dando tudo de si e ainda não é o suficiente,
você se acha incompetente, incapaz e preguiçoso, o que não
é verdade. É como se o básico fosse aqui — ela gesticula com
a mão em um ponto baixo, para ilustrar.
— E a gente colocasse uma régua aqui em cima. Inalcan-
çável, não vai alcançar. E aí você fica meio que em busca da
perfeição, né? A perfeição que não vai chegar e de repente
você está num ponto de esgotamento mental em que quer
abrir mão de tudo, você não quer mais nada.
Ela lembra que sua chefe notou a mudança de comporta-
mento. Mesmo assim, as tarefas não diminuíram. Enquanto
isso, as frentes cobranças chegam de todos os lados.
— E como eu trabalhava junto com a diretoria, às ve-
zes algum deles mandava uma solicitação, que só eu tinha
acesso, por questão de segurança mesmo, né? E aí o chefe
resolvia que ele ia liberar um pagamento às sete horas da
noite e eu tinha dez minutos para fazer funcionar, tinha que
correr pra fazer todos os processos, porque era um mon-

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UMA ANGÚSTIA QUE NÃO SE ENCERRA APÓS O FECHAMENTO DA PORTA

te de protocolos, às vezes precisava ligar lá pro diretor do


banco. Sendo que quase sempre era um pagamento que ele
podia liberar às oito da manhã do outro dia. Então, assim,
era uma coisa muito estressante.
Ela relata vividamente o dia em que descobriu que ti-
nha burnout. Era agosto de 2021. Quase no final de seu ex-
pediente, recebe uma ligação de sua chefe que a informa so-
bre uma reunião agendada para a tarde do dia seguinte. No
mesmo instante Kelly sente seu corpo congelar, sua mente
dispara, uma voz em seus ouvidos diz “vão te demitir”, ela
tem certeza disso. Uma ideia defensiva passa por sua cabe-
ça: “vou pedir pra me mandarem embora primeiro”. Sente
que ser demitida apenas serviria como um atestado de sua
incompetência. Tenta manter a voz estável, concorda, antes
de informar que tem uma consulta com sua psicóloga na
manhã do dia seguinte. Sua chefe deixa transparecer que
não gostou muito da ideia, o que a faz se sentir ainda mais
culpada, mas não pode cancelar, mais do que nunca precisa
do atendimento. Quando desliga o telefone percebe que está
sofrendo uma crise de ansiedade, seu corpo inteiro treme,
sua respiração está acelerada. Tenta controlar o surto, mas
sem sucesso; passa a noite em claro com a total convicção de
que será desligada da empresa. Chega atrasada na consulta,
ainda desesperada. Sua terapeuta tenta entender sua aflição
e a ajuda a se acalmar; por fim, com muito cuidado conta

77
QUEM SABE FAZ A HORA

que já suspeitava de seu quadro, sua situação no momento


somente confirma seu diagnóstico: Kelly sofre de burnout.
No mesmo dia, agenda uma consulta com a psiquiatra que
auxiliaria sua psicóloga em seu tratamento.
— Para mim foi superdifícil ser diagnosticada. Eu nunca
tinha ouvido falar em burnout, não sabia o que que era. E aí,
conforme eu fui ler, eu falei ‘gente? meu Deus!, eu sou assim’.
Ao sair da sala, checou seu celular, viu que havia várias
notificações de ligações perdidas e mensagens não lidas.
Precisavam dela. Correu pra casa, pois estava sem seu no-
tebook. Na temida reunião, descobriu que seus medos e in-
seguranças eram infundados: ao invés de demissão, recebeu
uma proposta de promoção.
Ela sabia que o cargo significaria aumento de obriga-
ções. Não precisava disso, havia acabado de descobrir que
sofria de uma síndrome causada por exaustão. Mesmo as-
sim, sentiu alívio por saber que estava errada. Sua chefe per-
cebe a inquietação e a deixa pensar mais sobre a proposta,
mas Kelly já sabia a resposta.
No dia seguinte, conta que pediu ao seu melhor amigo
para acompanhá-la na consulta com a psiquiatra, que lhe
deu atestado para afastamento de 14 dias.
— Eu fiquei assustada, parada olhando pra ela, e ela fa-
lou ‘ó, o foco é você, eles se viram, até porque, pelo que você
está me falando do comportamento deles, todos também

78
UMA ANGÚSTIA QUE NÃO SE ENCERRA APÓS O FECHAMENTO DA PORTA

devem estar doentes, agora vamos cuidar de você.’


Depois disso, Kelly informou a empresa sobre seu afas-
tamento e da decisão de não aceitar a promoção.
— Ficar afastada esses quatorze dias fez toda a diferença
para mim. Pude respirar em paz. Continuei com a ideia de
sair de lá. Então, o tratamento com a psiquiatra, com a psicó-
loga, junto com a medicação, fez toda a diferença para mim,
sabe? E aí consegui enxergar tudo o que eu estava passando.
Decorridos os dias de afastamento, agendou uma reu-
nião para pedir o desligamento da empresa. Sua chefe não
ficou surpresa, entendeu a situação, disse que iria fazer o
máximo para ajudar. Um mês depois, em setembro de 2021,
Kelly foi demitida com todos os seus direitos. Quando per-
guntado como ela vê a participação da empresa em seu
adoecimento, ela tenta justificar.
— Era uma empresa que se preocupava muito com a
questão humana e tal, só que na época da pandemia, quan-
do se instalou o home office, muita empresa passou a delegar
uma demanda de trabalho muito alta para as pessoas, como
se não tivesse vendo aquilo.
Hoje, Kelly diz ser consciente de que só decidiram des-
pedi-la porque sua médica escreveu um relatório endere-
çado à empresa, contanto tudo pelo o que estava passando.
Dessa forma, eles estavam apenas se prevenindo de um pro-
cesso trabalhista.

79
QUEM SABE FAZ A HORA

Uma vez que se viu livre da rotina administrativa des-


gastante, decidiu que iria trabalhar como autônoma, teria
mais controle sobre como lidar com as tarefas. Ela conta
que sempre ajudou sua mãe no preparo de bolos para venda
e resolveu fazer disso seu ganha pão.
— Eu criei uma marca para ela que é a Sabor de Quê.
Só que minha mãe estava no processo de se aposentar.
Então eu falei ‘tudo bem. Você quer se aposentar, não tem
problema. Se quiser, eu assumo a marca e faço as coisas
do meu jeito.’ E foi assim: eu vi que tinha um nicho bem
legal em feiras e eventos, que são mais pontuais. Eu não
quero abrir um comércio, porque sei que eu vou querer
ficar na empresa acompanhando cada processo e eu não
quero viver isso, sabe? Quero poder tirar um sábado e ir
para praia.
Hoje, ela divide o começo da semana para se dedicar a
seu estúdio de fotos e, na outra metade, se dedica ao prepa-
ro de bolos para vender em eventos. Mesmo atuando em
duas áreas, ela se sente mais tranquila e menos exausta do
que quando trabalhava com carteira assinada.
— Hoje em dia eu ganho menos do que quando traba-
lhava no mundo corporativo, mas, por outro lado, eu ganhei
muito mais.
Apesar do alívio, a nova vida culminou na pior crise de
Kelly, que não ocorreu em 2 de outubro, apesar de ter sido

80
UMA ANGÚSTIA QUE NÃO SE ENCERRA APÓS O FECHAMENTO DA PORTA

um dia muito difícil. O pior realmente aconteceria quatro


dias depois.

Dia 06 de outubro de 2022

Kelly sente como se sua mente estivesse contaminada,


seu corpo vibra com a frequência negativa à sua volta. Ela
tenta respirar, mas o ar não vem. Vários gatilhos são acio-
nados, sensações que ela nunca havia sentido. Era como se
Kelly não pertencesse a ela mesma.
Aflita, ela sente o corpo coçar, nada mais faz sentido, ela se
sente incapaz e inquieta. Sua mente fervilha, os pensamentos
a engolem. Questionamentos novamente sobre o resultado da
eleição invadem sua mente. O excesso de informações, apreen-
são e angústias dos trabalhos que precisa executar vêm à tona.
— O adiantamento das feiras prejudicaria meus negócios?
Lembra dos acontecimentos dos meses anteriores.
Toda ajuda na campanha não foi recompensada? Por
que aqueles gatilhos dessa semana vieram todos de uma
vez? Como tudo isso saiu do seu controle? Como uma per-
feccionista lida com a frustração de não ter o controle das
situações? Por que se sente desconfortável em seu próprio
corpo? Como tirar essa angústia que a permeia?
Enquanto conta como se sentia no dia da crise, ela deta-
lha gesticulando com as mãos, enfatizando constantemente

81
QUEM SABE FAZ A HORA

uma angústia dentro de seu peito, que sobe pela garganta.


Durante a conversa com a reportagem, Kelly esfrega muito
o tórax, como se falar sobre o assunto a deixasse em ago-
nia. Sua voz fica trêmula, começando a fraquejar ao recor-
dar dos momentos sórdidos do fatídico dia. Com um nó na
garganta, conta.
— Me colocar naquele lugar de novo, dói. Se tivesse que
mexer novamente onde dói, eu não conseguiria. Só de pen-
sar nisso, me sinto aflita.
Enquanto relata, a confeiteira gesticula com as mãos os
seus pensamentos. Um deles se destaca. Kelly demonstra
que a aflição poderia, muito bem, ser retirada com as mãos.
— Parecia que eu não cabia dentro de mim. Não fa-
zia parte de mim mesma. Sentia um aperto (se referindo à
região do tórax), algo apertando aqui no corpo. A aflição
apertava a cada instante. Mas fingia que não escutava.
Como reação aos pensamentos intrusivos, reage na de-
fensiva. Decide trabalhar mais, uma tática que usa para ten-
tar afastar as preocupações. Sente que, se mantendo sempre
ocupada, sua mente se mantém distraída.
O timer do forno indicava que a massa do bolo estava
pronta. Para ela, isso significava que a produção poderia se
estender a noite toda.
Decide fazer outra massa de bolo.
Kelly conta que, naquele momento, um excesso de pen-

82
UMA ANGÚSTIA QUE NÃO SE ENCERRA APÓS O FECHAMENTO DA PORTA

samentos invadiu sua mente. Se destacavam aqueles que a


faziam querer trabalhar em meio à crise, que sentia chegar.
— Eu só pensava em trabalhar. Fui no automático. Pen-
sando assim, o gatilho explodiu. Lembro que estava com a
toquinha que uso na cozinha, tirei e comecei a coçar o ca-
belo. Eu o havia lavado naquela manhã. Pensava apenas que
precisava focar no trabalho. Apenas assim conseguiria frear
os pensamentos de insuficiência que viam. Também pensa-
va que era preciso distrair minha mente. Apenas quando eu
comecei a me distrair, conseguia organizar a minha mente
que estava uma bagunça. Foram incontáveis minutos angus-
tiantes.
— Lutei contra mim mesma e consegui decidir em ir
tomar um banho e parar.
Corre para o chuveiro na esperança de que, assim como
a água, toda aquela angústia escorra pelo ralo.
— Vou lavar meu cabelo. Não importava se já o havia
lavado de manhã. Sentia ele coçar. Me incomodando. Vou
lavar, tomar banho e deixar a água cair. O contato com a
natureza me acalma.
Mesmo que o banho seja um refúgio, a confeiteira conta
que precisou se concentrar para fazer a água cair e, com ela,
os pensamentos esvaírem da mente.
— Tento me policiar para na hora do banho me acalmar. Já
aconteceu de no banho os pensamentos invadirem. Ficar pen-

83
QUEM SABE FAZ A HORA

sando na vida enquanto toma banho não me ajuda na crise.


Após seu segundo banho, ela consegue respirar. Depois
que se tranquilizou, Kelly refletiu sobre os acontecimentos.
Decidiu que reservaria o outro dia para descansar e cuidar
de si mesma.
— Tirei o dia para fazer vários nadas e me reconectar.
Porque, antes, eu também não respeitava esse meu limite.
Apenas pensava que tudo tinha que ser resolvido naquele
instante, independentemente de estar esgotada ou não.

Convivendo com o burnout

Kelly faz acompanhamento psicológico e psiquiátrico


há mais de um ano. Ela avalia que a crise do dia 06 de ou-
tubro de 2022 poderia ter sido mais exaustiva. Hoje tem
conhecimento e sabe técnicas que a ajudam a se acalmar
nesse momento.
— Para quem sofre o problema é real e está acontecendo.
O tratamento não impede que as crises aconteçam. Ajuda
a conter. Sempre vou estar em tratamento para o burnout.
Hoje sei de mecanismos que me ajudam a lidar com a crise
quando vem. Tomo cuidado para não deixar maior do que
é. Observo o que posso fazer e o que está ao meu alcance.
A confeiteira e fotógrafa tem uma rotina atípica. Natu-
ralmente noturna e dona do seu negócio, diz que a cobrança

84
UMA ANGÚSTIA QUE NÃO SE ENCERRA APÓS O FECHAMENTO DA PORTA

que faz de si mesma é maior do que quando tinha chefe.


— Às vezes, a nossa própria cobrança acaba sendo pior
do que a de um chefe. Sempre que sinto que vou surtar, paro
algumas horas. Se precisar, recomeço em outro dia. Coloco
uma música e faço os meus afazeres. Sei gestar o meu tem-
po. Viro a noite trabalhando e não me cobro por acordar
tarde, sei que dei o meu melhor.
Na gestão da confeitaria, o serviço é pontual, aconte-
cendo apenas em feiras gastronômicas da região em pe-
ríodos mensais. No tumultuado mês de outubro, houve o
adiamento de algumas feiras que de participaria. No dia
da crise, preparava bolos que preparava para o fim de se-
mana. Na ocasião, as vendas não foram boas. Quando isso
acontece, fica um pouco desmotivada e busca se empenhar
mais no trabalho.
— Trabalho pontual na feira sempre tem uma boa saída.
O cliente conhece o produto e vai atrás. É vantajoso porque
não me gera custo de aluguel e nem pedido fixos. Assim, con-
sigo me dedicar à fotografia. Faço ensaio feminino, de casal
e datas temáticas. Não aceito fazer fotografia de casamento.
Ela acrescenta.
— Tem cliente que é muito crítico. Se eu pego esse tipo
de trabalho de casamento me sinto exausta e fico tentando
buscar o perfeccionismo no meu trabalho. Hoje, sei que isso
não me faz bem. Evito, para não gerar gatilho.

85
QUEM SABE FAZ A HORA

Com o trabalho autônomo, o fator financeiro depende


da própria pessoa. A fotógrafa diz que, mesmo morando no
mesmo quintal que os pais, ela tenta não depender deles.
Neste ano, fez uma cirurgia e precisou de repouso. Não po-
dendo trabalhar, necessitou da ajuda financeira dos pais.
— Foi um caos. Porque trabalho autônomo. Faço a mi-
nha própria renda. Quando tive que depender deles por um
período, não me senti bem. Tento não deixar nada para eles
resolverem. Somente em situações extremas, peço ajuda.
A sua rotina é baseada nos aprendizados da terapia. Faz
uma lista com as prioridades que precisa resolver no dia.
Após o término, risca os afazeres da lista. Com o tempo,
aprendeu fórmulas que funcionam no dia a dia, para se
manter sem crise.
— Tudo está organizando. Mesmo quando algo foge do
meu controle, está tudo certo, consigo me organizar e não
me cobrar. Mas tudo isso porque aprendi a lidar com o meu
próprio negócio.
Por último, a reportagem perguntou a Kelly de que for-
ma ela acredita que, expondo o seu convívio com o burnout,
pode ajudar outras pessoas. Ela abre um sorriso, demons-
trando felicidade ao saber que outras pessoas vão se identi-
ficar com a sua história.
— Vai dar a chance de outra pessoa falar ‘eu também’,
porque é isso. Todos podem se identificar com o que eu pas-

86
UMA ANGÚSTIA QUE NÃO SE ENCERRA APÓS O FECHAMENTO DA PORTA

sei e pensar se a atitude no serviço está sendo saudável. O


burnout precisa ser um assunto mais abordado. Precisa dar
o primeiro passo para que outras pessoas também deem. Os
caminhos precisam ser abertos, né?

87
O show de amanhã

Allex Alves, Andreza Vieira, Gabriel Ferreira, Ivy Bianchi,


João Vitor Oliveira, Lucas Andrade, Vinicius Borges
E
ra possível escutar a música na esquina da movimen-
tada Avenida Jaguaribe com a Rua Martim Francis-
co, na região da Santa Cecília, capital paulista. O
som prenunciava a noite que estava por vir em uma das re-
giões mais desiguais da cidade de São Paulo. O agito da noite
do local se mistura facilmente com a pobreza da cidade.
O samba vinha de um pequeno imóvel de dois andares
onde, na fachada, estão pintadas flores coloridas. Uma pe-
quena porta estava aberta convidando as pessoas a subirem
pela estreita escada que leva ao segundo andar. Ao final das
escadas, um espaço de 60 metros quadrados, de poucas di-
visórias, se abre formando uma espécie de salão.

89
QUEM SABE FAZ A HORA

É neste local que Ayó Tupinambá, ou Tupi, como gosta


de ser chamada, aguardando sentada a sua vez de ensaiar.
O Espaço Coletivo é um lugar que abre suas portas para os
mais diversos tipos de trabalhos artísticos. Tupi percebe que
chegamos, se levanta, cumprimenta e fala:
— Tem uma pessoa cantando, depois mais uma, aí é a
minha vez.
Como Tupi se define?
— Sou uma travesti, preta, gorda, periférica, da cidade
de São Paulo e artista independente.
Ela sempre teve contato com a música, mas o sonho de
ser cantora é recente:
— Eu acho que sempre cantei, sempre tive um contato
com a música. Meu principal contato vem do convívio com
a Igreja Evangélica.
Sua primeira música foi lançada há um ano, mas a von-
tade de fazer arte sempre esteve com ela. Tupi completa:
— Dois mil e vinte e dois é o ano de virada da minha
carreira, é o ano de colher frutos do meu trabalho, de correr
atrás das coisas.
Mesmo com tanto investimento em sua carreira neste
ano, como, por exemplo, produzir músicas e se colocar em
novos espaços artísticos, Tupi revela que tem uma jornada
tripla em sua rotina:

90
O SHOW DE AMANHÃ

— Como artista independente, eu preciso trabalhar para


poder pagar minha arte.
Desdobrando-se entre seu trabalho de estagiária em
uma agência de publicidade e cantora, Tupi afirma:
— Hoje a música já é uma renda complementar muitas
vezes maior que meu trabalho fixo. Dois mil e vinte dois é
o ano de oportunidades, mas eu acho que eu me coloquei
também nesse lugar de fazer as coisas acontecerem.
E volta a se sentar. Fica ali, apenas acompanhando com
os olhos e ouvidos aquelas oito mulheres, em sua maioria
negras, se preparando para o show que aconteceria no dia
seguinte. Tupi aguarda pacientemente sua vez. Ela é cantora
solo e também faz backing vocal para grandes artistas. Sabe
bem como é esperar sua vez para cantar.
O trabalho como cantora auxiliar é mais uma das ativi-
dades em que Tupi diz que se meteu em 2022 para poder dar
a guinada em sua carreira. Não é nada fácil, exige muita téc-
nica e ensaios. A voz de fundo, como também é chamada,
muitas vezes passa despercebida. Talvez só o mais atento fã,
ou especialista, compreenda a real importância dela.
Por estarem sempre no fundo do palco, atrás dos gran-
des vocalistas, muitos nem notam backings vocals. E até
mesmo a origem deles passa despercebida nas fontes da
internet e entre especialistas. Nas universidades, o canto
erudito domina as grades curriculares, enquanto os backing

91
QUEM SABE FAZ A HORA

vocals teriam uma origem popular. Na Internet é onde se


encontra algumas referências, mas são poucas, conflituosas
e carecem de fontes confiáveis.
A pesquisa nos diz que os backing vocals teriam origem
em um ritmo musical que surgiu no final dos anos 40, o
doo-wop. Esse ritmo ficou popular entre membros da co-
munidade negra dos Estados Unidos e consistia em uma so-
noridade através da qual as pessoas imitavam instrumentos
musicais. Tornou-se popular principalmente em corais de
Igrejas. Logo algumas bandas incorporaram este ritmo e a
influência dos corais para criarem uma espécie de segundo
plano de voz, que acompanhava o vocal principal. Assim,
surgiam backing vocals, uma forma de voz que não é prota-
gonista, não se torna o foco principal da atenção dos ouvin-
tes, porém tem a importantíssima função de tornar a música
mais harmoniosa.
Seu principal trabalho como backing vocal é para Linn
da Quebrada, uma das grandes estrelas da música brasileira
atualmente. Ela nos conta que conheceu Linn por outra ar-
tista, Ana Flor, e recorda:
— A Linn já estava acompanhando meu trabalho há um
tempo. E nosso trabalho se estabeleceu mesmo com o lança-
mento da minha música autoral chamada Ancestravas. Ela
fez um comentário na postagem da música.
O primeiro show das duas ocorreu em agosto deste ano.

92
O SHOW DE AMANHÃ

— Eu não esperava receber o convite para trabalhar


como backing vocal dela, mesmo a gente já tendo esse con-
tato por causa da Ana Flor. Foi uma surpresa muito grande
a chegada desse convite.
Ela conta um pouquinho da sua relação com Linn:
— O contato com ela é muito generoso, muito bondoso.
Ela é uma pessoa muito simples, gente como a gente.
O trabalho das duas deu match, elas se ajudam mui-
to. Tupi diz que é um privilégio incrível estar ao lado de
Linn, mesmo que esse lado, na verdade, seja atrás, no
fundo do palco.
— Tem sido um privilégio trabalhar com a Linn, eu te-
nho aprendido muito com ela. Para uma virginiana com eu,
trabalhar com uma canceriana ajuda muito. Tem momentos
que ela me tira um pouco do chão e tem horas que trago ela
para o chão.
Tupi ainda confessa que não estava no seu plano de car-
reira ser voz de apoio, mas, por ser artista independente, as
pessoas vão chamando para fazer trabalhos que nem sem-
pre são shows. Ela afirma ainda que deu sorte em conseguir
oportunidades desse tipo e que hoje tem gente “que me co-
nhece com a backing da Linn”.
Este ensaio que acompanhamos é mais uma dessas
oportunidades de trabalho que apareceram em sua curta
carreira. Ela está lá se preparando por causa de um convite

93
QUEM SABE FAZ A HORA

de Carol Nascimento, para participar da roda de samba no


Centro Cultural Tendal da Lapa. Carol é cantora, instru-
mentista, compositora, arte-educadora e é do samba. Elas
se conheceram através de um amigo em comum, Gê de
Lima, quando fizeram um show no Centro Cultural São
Paulo. Ao lado de Tupi, a cantora Sarah Brandão também
foi chamada para participar.
As artistas estão dispostas em um círculo um tanto quan-
to torto, rodeadas de caixas de som e cada uma com o seu
instrumento musical. Violão, flauta, pandeiro, entre outros,
dão o tom do ensaio. Tudo precisa estar perfeito para o show.
Carol é quem dita o ritmo do ensaio e conversa com
todas as mulheres sobre os arranjos e as notas a serem toca-
das. Ela comenta sobre o melhor ritmo da música, em qual
nota devem tocar e comentam sobre as letras que cantam.
Quando a música começa, é perceptível como todas se
conversam pelo olhar. Sabem o ritmo em que devem estar,
percebem se alguma erra e compreendem que, em determi-
nado momento, cabe uma brincadeira com o som da flauta
para deixar tudo ainda mais harmonioso.
Logo o microfone passa para Sahra, que começa a soltar
a voz. Tupi, que acompanhava tudo em silêncio, apenas com
o olhar, começa gradualmente a cantarolar, acompanhando
a voz principal. Alguém percebe que ela deixou de apenas
acompanhar com os olhos e com as batidinhas de pé, que

94
O SHOW DE AMANHÃ

queria soltar a voz. Um microfone chega às suas mãos, que


acompanha, como uma segunda voz, o ensaio de Sahra.
A música de Sahra cessa, seria a vez de Tupi ensaiar. Se-
ria, senão fosse pelo intervalo de 15 minutos que facilmente
se estendeu por mais de meia hora. Tupi é a única que fica
sentada, olhando para o celular, aguardando todas voltarem
à roda. Em meio a tanta conversa, algumas cervejas e cigar-
ros, ela permaneceu praticamente o tempo todo em silêncio.
A roda finalmente volta e é a sua vez. A potência da voz é
sentida. Quem passa pela rua certamente ouve Sorriso Ne-
gro, a música eternizada na voz de Dona Ivone Lara, ecoar
na quente noite paulistana. A segunda música ensaiada é
Canto para Sobreviver, música autoral de Tupi. A canção é
tocada duas vezes para deixar tudo preciso.
E, ao final da repetição, entre conversas paralelas e sor-
risos, Tupi solta a frase:
— É que eu cheguei agora no samba.
Ela explica que realmente é nova no estilo. Há um ano, apro-
ximadamente, o cantor Gê de Lima, que é do samba, convidou
Tupi para uma roda musical. A apresentação fez parte de um
projeto de inclusão para levar pessoas LGBTs ao ritmo. Com
isso, engatou na batucada: a artista pega suas músicas, faz o ar-
ranjo para samba e canta nos espaços nos quais lhe dão oportu-
nidades. Tupi se sente à vontade no estilo, ainda mais em roda
de mulheres, mas este não é exatamente seu ritmo preferido.

95
QUEM SABE FAZ A HORA

E qual seria? Ela diz que é MPB e suas músicas refle-


tem aquilo o que ela é. Não tem como não ligar sua iden-
tidade com suas músicas. Basta observar a letra de Canto
para Sobreviver:

Eu canto pra sobreviver


Meu canto que me dá o ar
E enquanto eu respirar
Farei meu canto
Não canto só pra celebrar
Tem canto que me faz doer
E eu grito até disfarçar

Acompanhamos um show que ela fez, não este do ensaio,


no qual ela foi a artista principal. O show, realizado durante
a Semana Mário de Andrade, na Praça das Artes, centro da
cidade de São Paulo, é realizado para um público de menos
de cem pessoas, em sua maioria LGBTs, público menor do
que o esperado pela organização do evento, já que o local é
amplo. A apresentação tem músicas do seu álbum Canto pra
Sobreviver, que está para ser lançado. Também cantou mú-
sicas de outros artistas, como Tempestade, da compositora
Clarissa Souza. Além das músicas, o discurso político tem
forte presença. Sua música é MPB. Mas também é política. É
anti-racista. É anti-homofobia. É anti-transfobia.

96
O SHOW DE AMANHÃ

Talvez o momento mais marcante da apresentação é


quando ela diz:
— Quem diria que um dia uma travesti teria uma sogra?
Sua sogra está praticamente grudada na grade que sepa-
ra o público do palco. Ao lado dela, sua namorade, Sun, que
chega a interromper o início de uma música ao levantar um
cartaz escrito “Fiquei cabrera por você”.
Tupi percebe, fez a banda parar de tocar, abre um sorriso,
agradece a homenagem, respira fundo e recomeça. O público
pediu bis, ela não preparou nada. Mas artista que é artista sem-
pre tem uma carta na manga. E finaliza com uma versão da
música Não Deixe o Samba Morrer, que ficou eternizada na voz
de Alcione. Na versão de Ayo Tupinambá e Gê de Lima, é dito:

Não deixe as travas morrer


Não deixe as travas apanhar
Travesti também é gente
Você que precisa mudar

No longo percurso que uma cantora tem em busca do


sucesso, se adaptar e se entregar às novidades é necessário. E
quem é backing vocal e artista independente sabe muito bem
de como ser eclético e ter conhecimento dos mais diversos
estilos faz a diferença.
Ainda mais quando você não é a artista principal do
show de amanhã.

97
No camarim, minutos antes do
concurso

Bianca Costa de Souza, Vitória Alves,


Rebeca Carvalho Rodrigues, Júlia Chidiak Amazonas,
Matheus Cruz, Hayla Marques
A
intolerância e o preconceito estão atrelados à hu-
manidade. Embora a pauta a respeito da inclusão
de pessoas LGBTQIAP+ esteja sendo cada vez
mais discutida, a discriminação ainda é notória e, na maior
parte das vezes, acaba custando a vida desses indivíduos.
Desde pequenos, somos obrigados a lidar com as expec-
tativas da sociedade e os anseios construídos por décadas
em relação a padrões arcaicos que expressam o que homens
e mulheres podem ou não fazer. Lutar e se opor a esses mol-
des, muitas vezes, é a única forma de sobreviver.
Essa batalha começa, em sua maioria, em casa. Se sen-
tir acolhido ajuda no próprio reconhecimento e fortalece
ainda mais os laços entre os familiares. Entretanto, não são

99
QUEM SABE FAZ A HORA

todas as pessoas LGBTQIAP+ que desfrutam desse privi-


légio, como Nathy, Diego e Lucas. Para eles, não foi dife-
rente do que acontece com grande parte das pessoas dessa
comunidade, que decidem seguir uma vida sem mentiras.
Os três fazem parte de um universo de pessoas trans e drag
queens, uma realidade que, aos nossos olhos, é repleta de
luxo e glamour. Porém, conquistar destaque nesse meio é
muito difícil.
A rivalidade, a aceitação, as competições, os desafios
financeiros para aparecer sob o glamour dos holofotes sur-
gem ainda na infância, enquanto dividem o tempo entre
brincadeiras e mudanças ainda sem explicação.
É manhã de domingo, por volta das 10 horas, sob os
raios solares que provocam um calor de 30 graus. Mais um
dia comum no inverno anormal brasileiro. A rua vazia se
parece exatamente com qualquer outra das zonas periféri-
cas de São Paulo, pacata para o horário e com calçadas des-
niveladas. Estamos em Ferraz de Vasconcelos.
Caminhando, nos deparamos com uma casa de portão
cinza e muros rosa que, se não fosse conhecida o suficiente,
ninguém saberia que ali funciona um salão de beleza. Bate-
mos no portão e fomos recebidos por aquela com quem tan-
to falamos por telefone. Entramos para o salão e, ansiosos
pelo que está por vir, sentamos e começamos a conversa em
uma sala cercada por prêmios e itens de beleza. A educa-

100
NO CAMARIM, MINUTOS ANTES DO CONCURSO

dora, maquiadora e ativista Nathy Kasper detalha de forma


descontraída e comovente as etapas da sua vida como uma
mulher trans.
Resistente desde a infância, a cabeleireira olha para os
lados, numa tentativa de buscar na memória tudo aqui-
lo que já foi uma questão complicada em sua vida. Nathy
escolheu começar por sua experiência na escola, segundo
ambiente onde teve que se impor para não sofrer. A ativista
conta como foi privilegiada por nunca se deixar afetar com
as importunações dos colegas.
— Quando percebia alguns atos eu já, opa! Parou por aí!
Se for para bater, a gente vai bater; se for para xingar, a gente
vai xingar. Mas você me respeita! Eu não te dou essa liberdade.

Transição

Entre as etapas do processo de transformação, o primei-


ro passo a ser dado é a própria aceitação. Embora seja um
momento delicado, para Nathy a ocasião quase passou des-
percebida. De forma até nostálgica, a cabeleireira esfrega os
dedos, provocando um ruído quase imperceptível. Parece
uma forma de relembrar o passado.
— Fui mudando gradativamente, não tive aquela cons-
trução. Com doze anos, eu virei uma menina. Tinha o cabe-
lo comprido, estava me harmonizando, estava com seio, já

101
QUEM SABE FAZ A HORA

estava com a mudança. Então, familiares não conseguiram


pegar a minha fase de menino e sim a fase de menina.
Apesar de detalhar uma transição tranquila, com os
olhos cerrados de quem busca lembranças, o conflito con-
sigo mesma foi inevitável. Perceber que existia uma atração
por pessoas do mesmo sexo foi um choque e a indecisão a
dominava cada vez mais. Isso, aos 11 anos de idade.
Mas a ativista não se deixou abalar e é possível notar um
brilho surgindo no olhar e um sorriso disfarçado no can-
to da boca ao mencionar as novas formas de harmonização
que estão disponíveis gratuitamente e que facilitam a mu-
dança, como no SUS.
A identificação com o sexo oposto e o eventual desejo
de uma pessoa em assumir uma nova identidade de gênero
começa geralmente na primeira infância, entre os quatro e
seis anos de idade, segundo o psicólogo clínico e psicanalis-
ta Rafael Cossi, autor do livro Corpo em Obra, lançado em
2011 após análise de seis biografias de transexuais.
Nathy Kasper, está sentada em uma cadeira de cabelei-
reira profissional, o que para muitos pode até parecer algo
irrelevante, mas é perceptível a sensação de vitória e po-
der de conquista que o objeto traz a ela. A mulher cruza as
pernas e entrelaça os dedos, numa tentativa de se ajustar e
voltar a falar do passado. Nathy diz que nunca precisou de
quase ninguém para a sua aceitação.

102
NO CAMARIM, MINUTOS ANTES DO CONCURSO

— Eu precisava da minha mãe, que me colocou no mun-


do, ela me deu à luz, me trouxe a vida. Então eu precisava
dela. Como ela me apoiou, os demais seriam só demais.
Essas e outras declarações, ela dá com os olhos cheios
de convicção.

O glamour dos palcos

É sexta-feira à noite, uma chuva incômoda cai na calça-


da, mas não chega a ser um problema, já que estamos cober-
tos pela marquise de um teatro onde, em minutos, ocorrerá
o 3º Concurso de Miss Drag Queen de Caieiras, na Região
Metropolitana de São Paulo. Antes do espetáculo, nos dire-
cionamos para atrás do palco, passamos a glamurosa cortina
vermelha que, por enquanto, esconde o cenário do próximo
espetáculo drag queen.
Em consequência do tempo abafado, as coxias do tea-
tro estão mais quentes do que nunca, mas precisamos en-
frentá-las para chegar até o pequeno camarim, escondido,
com paredes que se parecem as de um escritório, apático
e nada luxuoso, onde as estrelas da noite se aprontam. É
sentado em uma cadeira de plástico preta, que facilmente
poderia ser usada como composição do cenário de um bar
ou de uma reunião na praia, que Diego Verona está rodea-
do por drags com vestidos dignos de gala e maquiagens

103
QUEM SABE FAZ A HORA

hollywoodianas. Ele mantém o foco enquanto relembra


sua trajetória até ali.
Verona, a drag interpretada por ele, nesta noite escolheu
usar uma maquiagem com um fundo rosa bem aceso, tra-
ços pretos ondulados, perfeitamente simétricos e próximos
à raiz dos cílios, que a deixa com um olhar fatal e meigo ao
mesmo tempo. Com as pernas cruzadas e balançando sem
parar, Diego nos dá o recado de que está um tanto quan-
to nervoso. Não conseguimos identificar se é pela câmera
de um celular apontada para seu rosto, ou se é porque está
prestes a participar do concurso.
A drag, que ainda segue sem o seu cabelo espetacular,
pois Diego decidiu que só o colocará quando faltar segun-
dos para a apresentação, respira fundo e começa a contar
sobre como a sua desmotivação para performar e se aceitar
nem sempre veio da família.
Com a voz embargada e estranhamente calma, como a
de um narrador emocionado, ele revisita seu passado.
— Teve uma vez, mas eu não pensava em me montar na
época, um ex-companheiro meu disse ‘nossa, está horrível,
você nunca vai conseguir se maquiar’. No dia que eu venci o
concurso, eu olhei para ele, ele estava na plateia e falei ‘um
dia, uma pessoa que eu amei disse que eu nunca conseguiria
me maquiar e que eu nunca seria uma drag. E hoje eu estou
aqui, vencendo o meu primeiro concurso’.

104
NO CAMARIM, MINUTOS ANTES DO CONCURSO

As lembranças são acompanhadas do gesticular das


mãos, que não param.

Camarim da vida

“Artista que se veste, de maneira estereotipada, confor-


me o gênero masculino ou feminino, para fins artísticos ou
de entretenimento. A sua personagem não tem relação com
sua identidade de gênero ou orientação sexual”. Esta é a de-
finição de transformista ou drag queen de Jaqueline Gomes
da Silva, no livro Orientações sobre Identidade de Gênero:
Conceitos e Termos.
O movimento drag queen virou um meio para a ascensão
do público LGBTQIAP+. Porém, por trás de todo o glamour,
roupas exuberantes e a performance de personagens, existem
problemas que precisam ser mostrados, como a dificuldade
em trazer visibilidade ao mundo drag, preconceitos e a vio-
lência sofrida por essas e esses artistas, como Lucas.
Ele também está sentado em uma cadeira típica de plás-
tico, só que, desta vez, ao contrário da cadeira da persona-
gem anterior, o assento é branco. Lucas está em um processo
de criação de sua drag queen, Ashley. Isolado em seu can-
to no apertado e barulhento camarim, ele tem à sua frente
uma bancada forrada de maquiagens das mais diversifica-
das marcas e a luz de uma luminária.

105
QUEM SABE FAZ A HORA

Destro, ele segura o pincel com o cabo preto na mão direita


e faz, repetidamente, o ato de passar o produto no rosto e voltar
para a embalagem buscando mais, enquanto segura fixamente
um espelho do tamanho de um celular, na mão esquerda. Nes-
ta noite, decidiu que Ashley usará uma sombra colorida e um
blush bem rosa, da cor dos vestidos encantadores da Barbie.
Durante a construção da Ashley, ele se maquia e canta
em voz baixa a música que irá apresentar em seu show.
— I wanna who you are, turu tu tu...
Contarola ao mesmo tempo em que faz a sonoplastia
com a boca.
A princípio, Lucas se passa por uma pessoa comum e
bem tímida. Contudo, logo somos surpreendidos pela de-
claração que ele faz em alto e bom tom, nos avisando que
Ashley é sua antagonista.
— A Ashley é muito oposta do que eu sou, porque ela é
o meu alter ego. Uma coisa que é muito divertida: se você
olhar para mim e olhar para minha drag, são extremamente
opostas. Muito opostas, de verdade! É verdade! Nem parece
a mesma pessoa.
Ao seu lado, Verona concorda com a afirmação da cole-
ga. Aproveitando a interrupção, Verona, ainda meio Diego,
personagem do encontro anterior, e que não estava total-
mente montada, explica que a sua drag surgiu em um mo-
mento melancólico da vida.

106
NO CAMARIM, MINUTOS ANTES DO CONCURSO

— Eu tinha tentado contra a minha vida, eu estava em um


momento muito sombrio, então ela trouxe um pouco de cor.
A lembrança parece feliz e, apesar das circunstâncias e
do relato triste, Diego se mostra nostálgico e se alegra ao
lembrar do surgimento de seu personagem durante a segun-
da edição da Parada Gay, em 2016. Ele relembra como foi
encorajado pelos amigos e se maquiou, mesmo nunca tendo
coragem antes para sair como Verona
— Eu falei: já que está na chuva, vamos nos molhar.
A declaração nos lembra da primeira personagem que
encontramos, no salão de beleza. Enquanto se balançava de
um lado para o outro na cadeira, Nathy relembrava como se
montar e performar, também remetendo a outra realidade.
A cabeleireira contava que tinha sido miss, mas antes de vi-
brar, revelou que agora só aparece nos palcos caso haja um
lado social e de reivindicação, quando quer mostrar algo a
mais para a sociedade.
Depois desses encontros, chegamos à conclusão de
que todas elas são personagens que, de forma libertado-
ra, expõem todo o sofrimento e o preconceito enfrenta-
dos. Para cada uma, a personalidade interpretada tem um
significado e um peso diferente, que elas carregam com
muito orgulho.
Nathy Kasper, com sua história inspiradora, batalha
com unhas e perucas para que aqueles que são oprimidos

107
QUEM SABE FAZ A HORA

possam ter voz e, de forma brilhante, encoraja a todos que


travam uma batalha no universo LGBTQIAP+.
Diego, longe dos palcos, é gerente de supermercado e
escolheu viver Verona, que também é o seu sobrenome de
batismo, por paixão. Para ele, Verona é forte como o soar
das letras e apaixonada, como a cidade italiana do mesmo
nome, palco da icônica obra de William Shakespeare, Ro-
meu e Julieta.
Lucas escolheu viver a Drag Ashley Beauty para ex-
por seu alter ego e, nos palcos, trazer alegria e amor que
nem sempre recebeu. O nome Ashley foi escolhido por sua
mãe, peça fundamental para o funcionamento de sua vida.
Já Beauty é uma homenagem a sua “mãe drag” que atendia
pelo nome de Lauren Beauty.
As histórias que, diversas vezes, se uniram pelo precon-
ceito e as dores sofridas, hoje são ligadas pelo glamour e os
holofotes do palco em que se passa a maior das dramatur-
gias, nunca escrita e sem controle: a vida.

108
Os 100 metros invisíveis de
Fernando Botasso

Felipe Franco, Gabriel Henrique, Vitor Xavier,


Geovana Souza da Silva
F
oi em 1990, lá na antiga pista Célio de Barros, do
Maracanã, no Rio de Janeiro, que Fernando Bo-
tasso bateu o recorde dos 100 metros rasos pelo
troféu Brasil. “Foi 10,8 segundos”, ressalta. O recorde ba-
tido por ele perdurou por quase 30 anos e, depois dele,
foi batido recentemente, em 2018, pelo atleta e ex-BBB
Paulo André.
O esporte é conhecido pelos seus significativos benefí-
cios à saúde, tanto mental quanto física, e até mesmo pela
prevenção de doenças, mas também é um grande caminho
para mudança social.
Morador de Santo André, Botasso teve seu primeiro
contato com o atletismo aos 12 anos. Veloz desde pequeno,

111
QUEM SABE FAZ A HORA

o futuro atleta conseguiu com essa idade ganhar sua primei-


ra competição nos jogos escolares da cidade. “Eu sempre
gostei desde criança, né? Corria muito e a brincadeira pre-
ferida era apostar corrida, então corria muito bem.”
O resultado impressionou olheiros do SESI, que o cha-
maram a praticar na equipe da instituição. Mas a entrada no
esporte só se concretizou aos 16 anos, quando seu professor
de Educação Física insistiu que o garoto deveria treinar e o
levou para um teste no mesmo SESI. Dois meses depois, Bo-
tasso estava disputando o campeonato paulista, brasileiro e
sul-americano. “Foi muito rápido isso. Adolescente, come-
cei a ter a minha remuneração e viver do esporte.”
O ex-atleta recebia uma bolsa de auxílio, que não passa-
va dos R$ 200,00. Embora fosse um valor baixo, Fernando
afirma que não foi o motivo principal para encerrar a car-
reira, sua família lhe deu todo o suporte.
Hoje em dia, jovens atletas de 14 a 17 anos recebem em
torno de R$ 624,00 mensais pelo programa Bolsa Atleta,
em São Paulo. Destes, são exigidos tanto frequência quanto
rendimento escolar, além de terem obtido resultados sig-
nificativos em competições oficiais do estado. Quanto aos
maiores, de 18 a 21 anos, o valor chega a R$ 1.248,00.
Através de dados de 2017 publicados pelo IBGE, con-
tam-se 1.026 instalações esportivas em todo o país, dentre
quadras, campos de futebol e ginásios. E seus frequentado-

112
OS 100 METROS INVISÍVEIS DE FERNANDO BOTASSO

res variam entre os que utilizam o esporte como um meio de


lazer e os de âmbito profissional.
Botasso foi corredor por cerca de 13 anos. Conta que
o esporte o permitiu conhecer diversas culturas e ter con-
tato com grandes atletas do Brasil e do mundo. Viajou
para países da América do Sul, América do Norte, Ocea-
nia, Europa e Ásia. Conheceu figuras marcantes do atle-
tismo, como o medalhista olímpico Joaquim Cruz, por
duas vezes campeão panamericano; João do Pulo, ex-re-
cordista mundial do salto triplo; e Robson Caetano, com
quem dividiu o recorde dos 100 metros, até perder o pos-
to para Paulo André.
Botasso é são paulino e parece orgulhoso ao dizer que
conheceu o próprio Ademar Ferreira da Silva. Importante,
diz o torcedor, porque no escudo do time do São Paulo há
duas estrelas amarelas em homenagem aos recordes batidos
por Ademar.
“Atletas que tive o prazer de conhecer, pelo menos no
contato, na época foram o Carl Lewis e Ben Johnson. Então
isso acaba marcando. Você participa de competições junto
com esses atletas, isso é bacana.”
Fernando fez sua última competição em 1998, na Cor-
rida Regional de Cubatão, com quase 30 anos. O ex-com-
petidor relata que não era possível estender uma carreira
por muitos anos por conta de questões físicas. O esporte

113
QUEM SABE FAZ A HORA

exige um nível muito alto de competitividade. “Cada es-


porte, você tem uma longevidade. O atletismo, a prova
de velocidade, você tem uma vida útil curta, porque você
precisa de massa muscular, explosão, então a velocidade é
uma prova que você não consegue estender tanto.”
Sua transição de carreira por conta da idade foi mar-
cada por dificuldades. Quando saiu do atletismo, perdeu
acesso à bolsa, sua fonte de renda. Tinha começado gra-
duação de Educação Física e, em seguida, de Publicidade,
mas não conseguiu concluir os cursos. Chegou a traba-
lhar com vendas e outras atividades, como ecoturismo,
com o irmão. “Não fui muito bem orientado. Eu tive um
déficit muito grande saindo de onde eu estava para onde
eu iria.”
É fácil imaginar que essa situação de Botasso aconteça
com muitos outros. Nas Olimpíadas de Tóquio, em 202,
dentre os 309 atletas brasileiros presentes na competição,
131 não possuíam patrocínio, 41 fizeram vaquinhas para
arrecadação de dinheiro, 36 realizaram permutas e ou-
tros 33 ainda tinham como necessidade a conciliação do
esporte com outros empregos, como, por exemplo, moto-
rista de aplicativo.
Semelhante à situação dos atletas de Tóquio, que so-
frem sem patrocínio, temos a história do triatleta paraen-
se Claudinei Souza, que não pode comparecer ao Mundial

114
OS 100 METROS INVISÍVEIS DE FERNANDO BOTASSO

de Triathlon de Longa Distância deste ano em Samorim,


Eslováquia, por não poder custear a viagem.
Quando pergunto sobre a valorização do esporte
atualmente e os patrocínios em sua época, Botasso diz
que “em termos de rentabilidade, incentivo e visibilida-
de, hoje você tem um aporte financeiro nos esportes em
geral muito maior graças a ‘ene’ questões. Sejam questões
governamentais, a própria Olimpíada aqui no Brasil, ou
a Copa do Mundo. Então, isso fomentou o desenvolvi-
mento do esporte e patrocínios chegando”. Mas se, hoje,
ele percebe que o incentivo é maior, se compararmos aos
dados das Olimpíadas citados acima, fica bastante claro
que atletas brasileiros ainda não tem o suficiente.
Além dessas dificuldades, o Brasil apresentou o melhor
desempenho em Olimpíadas, com 21 medalhas conquista-
das, apesar do desafio diante da falta de fomento ao esporte
e da pandemia de Covid-19, que afetou não só os treinos das
equipes, como a saúde mental.
Botasso diz que cada geração faz seu papel em abrir
mais portas para as anteriores. Na medida do possível, cada
qual vai conquistado, galgando para que novas gerações te-
nham uma qualidade de vida no esporte, desenvolvimento
profissional e econômico melhor do que no passado.
“Enquanto você é atleta e não tem a rentabilidade, a vi-
sibilidade, o reconhecimento, é frustrante mesmo. Passando

115
QUEM SABE FAZ A HORA

o tempo, você encara isso de uma outra forma, visando um


contexto social, cultural, esportivo do país, você compreende”.
Hoje, Botasso trabalha dentro do estádio do Morumbi,
na Passaporte FC. Não diretamente com futebol, mas com
turismo dentro do São Paulo Futebol Clube. Fernando tam-
bém afirma que existe uma frustração por não ser reconhe-
cido, ou ter a visibilidade que um jogador de futebol teria:
“Então, certamente, se você pareia o esporte profissional,
principalmente futebol, há uma disparidade muito grande.
É coisa brutal, ainda hoje acontece isso”.
No Brasil, os dados levantados pela Fundação Getúlio
Vargas apontam números mais precisos quanto o assunto é
o futebol: há em torno de trinta milhões de praticantes, com
800 clubes profissionais e 13 mil amadores; mas, em relação
às outras categorias, quase não se possui levantamento, o
que evidencia um deserto informativo.
É certo que o futebol é o esporte mais popular do país.
Porém, principalmente em ano de Copa do Mundo, quando
o enfoque está todo nele, é válido ressaltar a competência
de nossos atletas de outras modalidades. Hoje, com pa-
trocínios, internet e redes sociais, os demais esportes vem
ganhando mais espaço. Isso é muito importante para que
feitos como o de Fernando Botasso não pareçam invisíveis.
O morador de Santo André não corre mais. Disse es-
tar desligado do esporte e só lembrou que correu quando

116
OS 100 METROS INVISÍVEIS DE FERNANDO BOTASSO

alguém pergunta. “Tenho até amigos que continuam no es-


porte, como treinadores ou na arbitragem do atletismo, mas
eu, realmente, não tenho contato algum. Está bem distante
da minha vida.”

117
Jornalismo sem literatura

Marcos Zibordi

Q
uando alunas e alunos me perguntam se suas
reportagens devem ser feitas “como jornalismo
literário”, respondo sem pestanejar: “se fizer jor-
nalismo, está ótimo”. A resposta não é só irônica, expressa
uma posição teórica e pedagógica, que não exclui abordar
relações entre jornalismo e literatura.
Nenhuma das reportagens desta coletânea, resultado do
trabalho de um semestre, foi orientada no sentido de ser,
prioritariamente, literária. E não só porque as definições de
literatura e de jornalismo são complexas e sem consenso,
mas, sobretudo, porque o repertório teórico e prático da re-
portagem é suficiente para que sejam produzidas. Leiam,
por exemplo, Cremilda Medina (2001, 2003, 2010, 2016,

119
2022), que não é uma teórica do jornalismo literário, e,
como diria um ex-presidente, a verdade os libertará.
A unanimidade conceitual relativa ao chamado “jornalis-
mo literário” — um dos nomes entre dezenas de outros para a
mesma receita — prejudica imensamente o ensino de jornalis-
mo, sem falar no quanto reduz a teoria à reiteração de um pen-
samento colonizado a partir das ideias do profeta Tom Wolfe.
Existe uma patota feliz, plenamente realizada em sua
crença teórica acrítica, pretensas autoridades no assunto,
repetindo há meio século meia dúzia de bobagens expelidas
por Tom Wolfe no livrinho que, no Brasil, está publicado
com o nome de Radical Chique e o Novo Jornalismo (2005).
Seguindo seu guru, esses teóricos escrevem artigos, li-
vros, participam de congressos, aprovam seus pares em
concursos públicos, formam associações nacionais e inter-
nacionais, mas são incapazes de levantar qualquer questio-
namento relevante, destruindo completamente a ideia de
que a universidade é o lugar do pensamento crítico.
Para tais cientistas, “jornalismo literário” é uma religião,
e suas bíblias, os livros de Tom Wolfe, Edvaldo Pereira Lima
(2009), entre outras e outros (BELO, 2006; BORGES, 2013;
MARTINEZ, 2016; PENA, 2021) cuja lista tomaria muitas
páginas desta introdução.
Uma pergunta útil; aliás, duas; ou melhor, três: o que
é literatura? O que é jornalismo? Qual ou quais correntes

120
teóricas embasam as definições daquilo que seria jornalísti-
co-literário? Dou um doce para quem responder. E se hou-
ver resposta, ela não está na tradição teórica absolutamente
servil, típica de um país de analfabetos cujos doutores são
uma casta assentada em confortáveis bancos acadêmicos.
Para não parecer que escrevo somente com a bílis, vão
aí alguns resultados parciais de pesquisa de pós-doutorado
sendo realizada na sacrossanta Universidade de São Paulo
(USP). Com base em cerca de 30 livros-reportagem mais
citados pela teoria binacional, estadunidense e brasileira,
estamos constando que os quatro pressupostos teóricos de
Tom Wolfe para o “novo jornalismo” simplesmente não es-
tão presentes nas obras das quais ele e seus fiéis seguidores
juram ter tirados aqueles mesmos conceitos...
O teórico e jornalista norte-americano afirmou que
quatro aspectos constituiriam a jornalismo literário. Um
deles é a presença de diálogos, que o repórter captaria em
campo e transcreveria, o mais completamente possível, em
reportagens e livros. Mas esses diálogos raramente apare-
cem. O que lemos são frases isoladas entre aspas, igualzinho
ao procedimento do jornalismo diário, de lide e pirâmide
investida, do qual, em tese, as narrativas jornalístico-literá-
rias se diferenciariam.
Um exemplo? Em Os Sertões (2006), a segunda obra
mais citada pela tradição teórica binacional em nosso

121
levantamento ainda parcial, existem somente dois diálogos
longos, mesmo assim intercalados com observações do
narrador (p. 131-132; 355-356). Além deles, contamos
duas trocas curtas de conversas, com três e quatro orações
(p.112; 293) e outras nove falas isoladas (p. 195, 196, 199,
203, 204, 211, 310).
Ainda segundo Tom Wolfe e seus acólitos, as produções do
novo jornalismo manejariam o narrador de forma inovadora,
ou seja, um personagem conduziria a história. Seria o “ponto
de vista da terceira pessoa”, o que daria ao leitor “a sensação de
estar dentro da cabeça do personagem” (2005, p.54).
Se isso realmente acontecesse, seria inovador. Porém,
praticamente não encontramos tal mudança de perspectiva.
Predomina o narrador em terceira pessoa, homólogo ao au-
tor e falando por ele, criando uma ilusão de distanciamento
que pretende representar a verdade, mas no máximo a en-
cena. Narradores em primeira pessoa são raros e aparecem
em curtas passagens.
Sobre isso, alguém sempre vai lembrar de Os Exércitos
da Noite, de Norman Mailer. Lançado em 1968, é tido como
exemplo de deslocamento do narrador, conforme previsto
pela teoria do novo jornalismo, pois um personagem conduz
a história da marcha à sede do Pentágono, contra a Guerra do
Vietnã. Mas o deslocamento é menos radical do que parece
porque o autor é a própria terceira pessoa, ou seja, Mailer

122
narra a si mesmo, tornando a narrativa um exercício egocên-
trico: não cede a palavra, nem o ponto de vista.
Outro aspecto definidor do novo jornalismo privile-
giaria detalhes significativos de objetos, vestimentas, si-
tuações e personagens. Tal recurso “sempre foi o menos
entendido”, afirma Tom Wolfe, para quem “o registro des-
ses detalhes não é mero bordado em prosa. Ele se coloca
junto ao centro de poder do realismo, assim como qual-
quer outro recurso da literatura” (2005, p.55). Há pelo
menos três equívocos nessa generalização: um histórico,
outro teórico e o terceiro, empírico.
No tratado de teoria literária Do Sublime, provavelmen-
te escrito no primeiro século cristão, o autor afirma que
“encontraríamos necessariamente uma causa do sublime na
escolha indefectível das partes mais essenciais” (2005, p.81).
Ou seja, a percepção e o registro de detalhes significativos
— que Wolfe também chama de “simbólicos” — é uma qua-
lidade literária milenar e atributo que não se circunscreve
à literatura: trata-se de uma propriedade textual valorizada
no contexto da economia da escrita, considerando que os
excessos são sempre condenáveis, ou, segundo a referência
que estamos citando, os “inchaços são ruins no corpo e no
estilo” (2005, p.73). Escrever bem implica em seleção de as-
pectos significativos, na literatura ou fora dela, antes e de-
pois do Realismo.

123
Quanto ao equívoco teórico, não há consenso de que as
produções realistas possam ser caracterizadas pela descri-
ção de aspectos simbólicos, que seriam seu “centro de po-
der”, conforme afirma Wolfe. Ao comentar Madame Bovary,
obra pioneira do Realismo, Charles Baudelaire é veemente:
a “descrição minuciosa” é uma definição rasa:

Como nossos ouvidos ficaram extenuados nestes últimos tem-


pos por tagarelices acadêmicas pueris, como ouvimos falar de
um certo procedimento literário denominado realismo – in-
júria abjeta lançada a face de todos os analistas, termo vago e
elástico que significa, para o vulgo, não um novo método de
criação, mas uma descrição minuciosa dos acessórios. (Baude-
laire, 1992, p.48-49).


Do ponto de vista empírico, a presença de detalhes sig-
nificativos encontra um obstáculo significativo em obras
nas quais o repórter não presenciou fatos, não visitou lo-
cais ou não encontrou seus personagens. Em casos assim, a
narrativa investe em reconstituir o passado, prescindindo
de pormenores simbólicos, que, sim, contribuiriam para a
caracterização, mas não impedem que nenhuma história
seja contada.
A narração cena a cena é o quarto conceito-chave da
tradição teórica iniciada por Tom Wolfe. As histórias deve-
riam ser conduzidas concatenando cenas, evitando a “mera
narrativa histórica”, que Wolfe nomeia, mas não define. Ele

124
provavelmente está se referindo a trechos nos quais o narra-
dor recupera fatos, contextualiza situações, fazendo a narra-
tiva progredir, sem fixar cenas.
Ao desconsiderar os problemas na reconstituição de fa-
tos e ações, a começar pelos oriundos da não-presenciali-
dade, receitamos procedimentos, impomos a regra de que
sequências de cenas deveriam ser captadas ao vivo, aceitan-
do, por consequência, noção restritiva de construção de his-
tórias, como se sempre devessem ser escritas fixando uma
cena após a outra.
Wolfe propõe que o repórter seja imersivo, mas descon-
sidera que nem sempre a captação de informações é feita
diante ou durante a ocorrência dos fatos. Em livros-repor-
tagem, em geral ocorre depois. As propostas dependem,
invariavelmente, da presença em campo para registrar fa-
las, cenas e escolher personagens, mas o novo jornalismo é
apresentado como uma questão formal, relativa à maneira
de estruturar as histórias. Por isso, não problematiza que o
autor de uma reportagem ou livro-reportagem não só pre-
sencia fatos e ações, não só entrevista pessoas, muitas vezes
procedimentos impossíveis pela natureza da pauta, mas vas-
culha arquivos, investiga documentos, pesquisa em fontes
científicas, jornalísticas, entre outras.
Também há impedimentos de ordem prática para se
presenciar e reconstituir cenas, quando, por exemplo,

125
a jornalistas são proibidos determinados acessos ou
simplesmente quando é impossível acompanhar ao vivo,
como as dificuldades narradas por Caco Barcellos para
flagrar a ocorrência de crimes ou acompanhar o trabalho da
polícia no livro-reportagem Rota 66 (2002, p.197).

Mas se contrapomos os pressupostos dessa tradição


teórica deslumbrada, no que acreditamos? Como fizemos
esta coletânea de reportagens com estudantes terceira-
nistas sem enveredar cegamente por meandros literários?
Com o referencial teórico e prático da reportagem, cuja
baliza são as ideias de Cremilda Medina, entre outras refe-
rências, que — atenção! — não excluem as relações com a
literatura, mas as complexificam.
Investimos em um laboratório de narrativas que busca
na realidade os subsídios formais; conteúdos que, por sua
vez, informam a forma — esta sempre vindo depois da cap-
tação, nunca antes, pois a questão formal não é a principal
preocupação do jornalismo.
Porém, não desconsideramos a forma. Ocorre que ela não
é definida nem prévia, nem abstratamente. Um exemplo: na
reportagem sobre ansiedade e depressão, levamos autoras e
autores a perceberem que, nos casos de ansiedade, a vida se
acelera, enquanto, na depressão, as coisas parecem não acon-
tecer, o cotidiano estaciona e se repete. Então, e somente a

126
partir desse fato, é que o texto praticou uma ousadia estilís-
tica no primeiro parágrafo, eliminando a pontuação para dar
a sensação — real, e não imaginária ou gratuitamente esteti-
zante — de que a ansiedade é sinônimo de rapidez.
Nesse e em outros casos desta coletânea, o investimento
estético tem base na realidade. Não é sua extrapolação, mas
uma tentativa, apoiada estilisticamente, de dizer melhor,
com mais precisão, aquilo que realmente acontece. Não há
fórmula mágica para isso, mas uma observação-experiência
do repórter que vai a campo e, munido de sensibilidade, é
capaz de perceber aquilo que o “gesto da arte” (MEDINA,
2003) pode promover na hora da escrita.
E em sala de aula? Durante o semestre, a estratégia pe-
dagógica se baseia em uma tríade: exposição teórica, inclu-
sive sobre jornalismo literário, pois não abrimos mão dos
conceitos, somente não nos perdemos, nem nos fixamos
exclusivamente na abstração; leitura e discussão de repor-
tagens que ilustram os pontos de vista teóricos, momento
delicado que exige concentração e dedicação da turma, à
qual agradecemos por terem aceitado a proposta; e produ-
ção prática, transformando a disciplina em um, como disse-
mos, laboratório de narrativas.
Como as aulas em outras paragens costumam se resumir a
teorizações e, quando muito, leitura e discussão de algum texto
jornalístico, explico o que entendemos por prática jornalística.

127
Ela envolve todas as fases do processo, da pauta à publicação do
livro. No primeiro momento, os alunos discutem propostas de
abordagem; em seguida, escrevem sobre quem, quando, onde,
como, entre outras justificativas à reportagem que pretendem
produzir. Escrita, a pauta volta a ser discutida. Então eles vão
à luta, quer dizer, a campo. Nenhuma reportagem desta co-
letânea foi feita sem o contato com a realidade de situações e
personagens, às vezes mais de uma vez, quando foi necessário.
Então começa um processo de escrita, discussão e rees-
crita, que ocupa várias aulas. São encontros imensamen-
te produtivos, durante os quais podemos abordar tantas
questões, de estatísticas a estilísticas, que seria impossível
listar todas aqui. Algumas envolvem a construção de per-
sonagens, do aspecto físico ao psicológico, passando pelos
trejeitos; provocamos a sensibilidade em relação àquilo que
aspirantes a repórter não estão vendo; discutimos a melhor
maneira de escrever, do vocabulário à divisão de frases e
parágrafos; assim como apontamos a necessidade de mais
informações, tanto aquelas a serem extraídas da realidade,
quanto de banco de dados eletrônicos. Enfim, as questões
que surgem são infinitas, daí chamarmos de laboratório de
narrativas jornalísticas, porque estamos experimentando,
testando, voltando atrás, obtendo resultados mais ou me-
nos satisfatórios. Aliás, o objetivo principal não é a beleza,
mas a qualidade da informação, apesar do ganho, digamos,

128
artístico — contudo, reitero, literatura não vem primeiro; é
resultado do mergulho na realidade, que, sim, é estetizante,
mas, no jornalismo, nunca a priori, como na ficção, mesmo
a realista, que pode — e não é raro — prescindir do contato
com a realidade palpável.
Após inúmeras discussões, chega o momento em que
estudantes participam de aulas sobre alguns processos edi-
toriais, especificamente edição de livros. Há aula sobre li-
vro-reportagem, depois visitamos sites de editoras especia-
lizadas, mostramos obras, fazemos orçamentos e propomos
a produção da coletânea. Surgem surpresas como a enorme
adesão da turma para o rateio dos custos, além de participa-
ções muito bem-vindas de alunos-artistas que se propõem a
ilustrar as reportagens, como aconteceu desta vez.
Todo esse processo foi realizado em conjunto com dois
professores, em outras duas disciplinas. Uma, capitanea-
da pela professora Edilaine Felix, participa diretamente da
produção textual; outra, liderada por Antônio Assiz, produz
documentários em vídeo, para que estudantes possam per-
ceber as diferenças de abordagem, produção e edição com
imagens em movimento, desenvolvendo a mesma pauta da
coletânea escrita.
Trabalheira, mas os resultados compensam. É como
disse um ex-técnico de futebol, inclusive de time diferente
do meu, mas que devo citar: ao responder pergunta sobre

129
os resultados alcançados por sua equipe, negando qual-
quer sorte ou arte, cravou: “aqui é trabalho, meu filho”.

Referências

BARCELLOS, Caco. Rota 66. São Paulo: Globo, 2002.

BAUDELAIRE, Charles. “Madame Bovary”. In: Reflexões


sobre meus contemporâneos. São Paulo: EDUC/Imaginá-
rio, 1992.

BELO, Eduardo. Livro-reportagem. São Paulo: Contex-


to, 2006.

BORGES, Rogério. Jornalismo literário – análise do dis-


curso. Florianópolis: Insular, 2013.

BULHÕES, Marcelo. Jornalismo e literatura em conver-


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CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo: Ubu Editora,


Edições Sesc São Paulo, 2016.

LIMA, Edvaldo Pereira. Páginas ampliadas: o livro-repor-


tagem como ampliação do jornalismo e da literatura. Ba-
rueri: Manole, 2009.

MAILER, Norman. Os exércitos da noite (os degraus do


pentágono). Rio de Janeiro: Record, 1968.

130
MARTINEZ, Monica. Jornalismo literário – tradição e
inovação. Florianópolis: Insular, 2016.

MEDINA, Cremilda. Entrevista: o diálogo possível. São


Paulo: Ática, 2001.

MEDINA, Cremilda. A arte de tecer o presente: narrativa e


cotidiano. São Paulo: Summus, 2003.

MEDINA, Cremilda. “O criador da assinatura coletiva”. In:


Liberdade de expressão, direito à informação nas socie-
dades latino-americanas. São Paulo: Fundação Memorial
da América Latina, 2010.

MEDINA, Cremilda. Ato presencial: mistério e transfor-


mação. São Paulo: Casa da Serra, 2016.

MEDINA, Cremilda. Nas trilhas do saber plural: três dé-


cadas de interrogantes. São Paulo: ECA-USP, 2022.

PENA, Felipe. Jornalismo literário. São Paulo: Contexto, 2021.

WOLFE, Tom. Radical chique e o novo jornalismo. São


Paulo: Companhia das Letras, 2005.

131
EDILAINE FELIX é jornalista formada pela Universidade de
Mogi das Cruzes (1999), especialista em Gestão da Comunicação
e mestre em Ciências da Comunicação pela ECA/USP. Doutoran-
da no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação
da ECA/USP. No jornalismo, atuou como repórter em revistas,
sites e jornal impresso. Pesquisadora do grupo Jornalismo, Direito
e Liberdade (JDL). É docente no curso de Jornalismo na Universi-
dade Cruzeiro do Sul (Unicsul).

MARCOS ZIBORDI é jornalista formado pela Universidade Esta-


dual Paulista (Unesp), mestre em Estudos Literários pela Univer-
sidade Federal do Paraná (UFPR) e doutor em Ciências da Comu-
nicação pela Universidade de São Paulo (USP), onde desenvolve
pesquisa de pós-doutorado sobre livro-reportagem. Atuou em
jornais, revistas, internet e televisão. Editor e repórter da Agência
de Notícias das Favelas (ANF). É docente no curso de Jornalismo
na Universidade Cruzeiro do Sul (Unicsul).
Título Quem sabe faz a hora
Reportagens e perfis sobre decisões que
mudam vidas

Formato Original 14x21cm (PDF 144ppi)


Tipografia títulos 1 FIDALGA
Tipografia títulos 2 American Typewriter ITC Pro
Tipografia textos Minion Pro
Diagramação Israel Dias de Oliveira

F
Editora Casa Flutuante
Rua Manuel Ramos Paiva, 429 - São Paulo - SP
Fone: (11) 2936-1706 / 95497-4044
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