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Breve pré-história da Psicanálise

O percurso do pensamento humano, da Filosofia até à Psicanálise, pode ser balizado por seis atos
históricos:

1º ato, filosófico: Aristóteles (384-322 a.C.).

O mestre da Filosofia desenvolveu as leis do raciocínio humano, disciplinando-o com palavras, já que
não é possível o pensamento sem a linguagem. A palavra engravida o pensamento, para produzir sentido.
Para tanto, estabeleceu as leis do verdadeiro raciocínio, com os seguintes axiomas:

- O princípio da identidade: A é A; B é B;

- O princípio da não-contradição: A não é B;

- O princípio do terceiro excluído: toda proposição é falsa ou verdadeira. Não há uma terceira
possibilidade.

- Nossos sentidos não nos enganam, e tudo o que chega ao nosso intelecto provém dos nossos sentidos.
A partir daí, o mestre organizou regras para o verdadeiro raciocínio dedutivo, base para o conhecimento
científico, através do silogismo (com palavras), que consiste em uma premissa maior, universal, mais
uma premissa menor, particular, das quais se deduz uma conclusão irrefutável. Exemplo clássico: Todo
homem é mortal; ora, Pedro é homem; logo, Pedro é mortal. Todos estes termos devem ser unívocos e
tratar de matéria necessária. Curiosamente, todas essas sentenças conjugam o verbo na terceira pessoa.
Por isso, o ser humano foi definido como “animal racional”. Alguns filósofos, ditos sofistas,
contradisseram o mestre, propondo um raciocínio discordante, como por exemplo: Todo cão late; ora, a
Constelação é Cão; logo, a Constelação late. A desaprovação de Aristóteles a este tipo de raciocínio parte
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do princípio de que as palavras cão e Cão não são unívocas. Estes filósofos não foram reconhecidos como
tais.

2º ato, filosófico: René Descartes (1596-1650).

Somente dois milênios depois, é que o primeiro e maior filósofo, Aristóteles, foi contestado por
Descartes. Seu principal aforismo é a frase emblemática, o Cogito cartesiano: “Penso, logo existo”. Sua
importante contribuição é o fato de introduzir, como sujeito, a primeira pessoa do verbo, o eu consciente.
Ele reafirma nossa consciência de pensar e de existir, embora isto não passe de uma tautologia ou
redundância, porque usa palavras diferentes para dizer a mesma coisa, e o pronome “eu” é repetido
univocamente (eu penso, eu existo), no registro da consciência. É evidente que, se alguém pensa, (anda,
come, dorme) tem que existir. O conceito de existir já está implícito em qualquer atividade humana.

Mas há uma segunda contribuição de Descartes, chamada de “dúvida metódica”, que consiste em duvidar
de tudo, inclusive do seu próprio ‘cogito’. A dúvida decorre do fato de que nossos sentidos podem nos
enganar. ‘Penso que sou’, pode inverter-se em ‘sou o que penso’, e é nesta consciência, neste ego
imaginário, que habita nosso maior engano.

3º ato, psicanalítico: Sigmund Freud (1856-1939).

Aqui nasce a psicanálise. Uma atenção profunda à linguagem humana, especialmente à linguagem dos
sonhos, dos atos falhos e dos sintomas, nunca antes levados a sério, proporcionou a Freud a descoberta
de um outro eu, além do eu consciente, um eu não racional, caracterizado pela desrazão. Quando
sonhamos, à noite, com coisas que não aparecem na vida de vigília; quando fazemos um ato falho,
dizendo, de maneira comprometedora, aquilo que não tínhamos intenção de dizer; e quando
desenvolvemos um sintoma que nos incomoda e que não conseguimos explicar nem eliminar, é um outro
eu que faz tudo isso. Logo, temos dois eus. Boa parte de nosso ser, como pensar e agir, foge às regras do

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silogismo e da certeza, admitindo, inclusive, a contradição sofística que é patente nos sonhos, e mantendo
uma dúvida constante sobre o significado das várias formações de nosso inconsciente. Antes de Freud,
os humanos não podiam acessar diretamente seu inconsciente que, aliás, desconheciam, aproximando-se
dele só através da mitologia, literatura e artes, de maneira precária, ininteligível e impessoal. Portanto, a
Psicanálise é mais sofística do que silogística.

Jacques Lacan (1901-1981). Com a chegada de Lacan e com o recurso da Linguística, ficou ainda mais
clara a natureza do inconsciente, estruturado como linguagem, na qual o ser humano se subjetiva,
podendo reencontrar os elos perdidos de sua história, nas lacunas da cadeia significante, na falta do
significado, mas que veicula o discurso de seu desejo.

O cogito lacaniano e freudiano: Desejo, logo existo, é o oposto do cartesiano, podendo ser articulado
assim: “Penso conscientemente, onde (não sou sujeito do inconsciente)”; e “sou sujeito do inconsciente
(onde não penso conscientemente)”. Isso é a associação livre, que consiste em falar sem pensar, numa
relação transferencial, que favorece a abertura do inconsciente, no processo de análise.

4º ato, Lógica Paraconsistente: Newton da Costa (1929).

Nascido no Paraná e considerado o “maior pensador brasileiro”, Newton da Costa é filósofo, matemático
e engenheiro, foi professor da USP e Unicamp, lecionou na Europa, Estados Unidos, Argentina, México
e Peru. Foi discípulo de Descartes e, finalmente, encantou-se com a psicanálise de Freud e Lacan. Leu
Freud e se analisou por quatro anos.

Baseado na teoria psicanalítica, desenvolveu uma nova lógica, chamada de Paraconsistente (além da
consistente), trazendo importante e nova contribuição ao pensamento humano. Sem pretender anular a
lógica aristotélica, veio ampliá-la, ao incorporar o conceito de inconsciente. Levou em conta também a

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Física Quântica, que transformou a Física em ciência humana e não mais ciência exata. A Física Quântica
descobriu que a simples presença do observador, numa experiência, muda o comportamento dos átomos.

O estudo freudiano da Interpretação dos Sonhos, do conceito de denegação e da divisão do eu, trouxe
provas consistentes para sua teoria. Nos sonhos, todos temos uma experiência onde ocorrem dados
contraditórios que são verdadeiros no nosso psiquismo. Exemplos claros são os sonhos de morte de
pessoas queridas, em que amor e ódio estão juntos sem contradição. Em qualquer experiência amorosa,
amor e ódio se alternam. Ao mesmo tempo, habitam a consciência e o inconsciente.
Na denegação, uma frase negativa como: não fui eu quem quebrou o vidro da janela, está presente
também uma frase afirmativa: fui eu quem quebrou a o vidro, mas não quero ser castigado.

Esta lógica se caracteriza pelo fato de admitir a contradição em nosso inconsciente. A Psicanálise
abeberou-se de alguns rios da Filosofia, mas construiu seu próprio oceano, profundo, volumoso,
desconhecido de nossa consciência.

5º ato, Projeto para uma Psicologia Científica: Freud (1895).

Este é um texto misterioso que marcou o ponto de mutação na Psicanálise. Dez anos antes, Freud viveu
uma experiência crucial em Paris, onde, hospedado no Hôtel du Brésil, frequentou, durante seis meses,
o curso de hipnose ministrado por Charcot, para o tratamento da histeria. Desde sua formação básica em
neurologia, sua prática clínica lhe causava muitas dúvidas, porque os sintomas histéricos eram muito
parecidos com os sintomas neurológicos. Estes não tinham cura, aqueles, sim. E agora? ,

Imbuído do cientificismo médico, Freud escreve o Projeto que esclareceria tudo. Considerado um texto
pré-psicanalítico, o primeiro grande trabalho de Freud, seria o lançamento oficial da nova ciência, a
Psicanálise. Foi gigantesco o esforço para alicerçar a psicanálise na biologia. Freud já era famoso pelos

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estudos e pesquisas sobre o sistema nervoso, os neurônios e suas sinapses. Tentou então identificar os
neurônios que fossem responsáveis pela consciência, pelo inconsciente, pela quantidade e qualidade dos
estímulos, da dor, da experiência de satisfação, dos afetos, do desejo, os processos primário e secundário,
a cognição, memória, juízo, realidade, o sono, os sonhos, a regressão e a psicopatologia da histeria e as
defesas patológicas. Um verdadeiro tratado.

Aí aconteceu o inesperado. Depois de tanto esforço, o ponto de mutação, o canto de cisne. Freud caiu em
si, viu que não era nada daquilo, e não publicou o livro, que ficou desaparecido até o ano de 1950, mais
de uma década após sua morte. O livro é pouco lido, exceto pelos pesquisadores que ali encontram os
indícios de praticamente toda a teoria psicanalítica. E por que Freud não publicou? Porque sacou, a
tempo, que o inconsciente não é fundado na biologia. Mas o esforço foi mais que louvável.

6º ato, uma contradição no Projeto. O caso Emma: Freud

Contrastando com o conjunto do Projeto, Freud publica ali, estranhamente, um caso clínico, dos
mais enigmáticos e confusos, em função das circunstâncias de sua publicação.

Trata-se de um antigo imbróglio entre os analistas, difícil de desembrulhar. Vários fatores se


conjugam para criar dúvidas sobre esta paciente histérica. Freud é o responsável pelo mal-
entendido. O caso Emma Eckstein foi a única paciente nomeada pelo nome próprio e não por
pseudônimo (1865-1924), assim relatado no Projeto (1895), (Freud, 1977, Vol. I, pág.464):

“Emma acha-se dominada atualmente pela compulsão de não poder entrar nas lojas sozinha. Como
motivo para isso, [ela citou] uma lembrança da época em que tinha doze anos (pouco antes da puberdade).
Ela entrou em uma loja para comprar algo, viu dois vendedores (um dos quais ainda consegue lembrar)
rindo juntos, e saiu correndo, tomada de uma espécie de susto. Em relação a isso, terminou recordando
que os dois estavam rindo das roupas dela e que havia sentido atração sexual por um deles. {...}

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Prosseguindo nas investigações, revelou-se uma segunda lembrança de que ela nega que se tenha dado
conta no momento da Cena I. Quanto a isso, não há maneira de refutar. Aos oito anos de idade, foi duas
vezes comprar doces numa confeitaria, sendo que, logo na primeira, o proprietário agarrou-lhe as partes
genitais por cima da roupa. Apesar disso, voltou lá de novo e agora se recrimina por essa segunda vez,
como se com isso tivesse querido provocar o atentado. E com efeito, a sua ‘torturante má consciência’
pode ser atribuída a essa experiência.
Agora compreendemos a Cena I (vendedores), combinando-a com a Cena II (proprietário da
confeitaria). Basta estabelecer um vínculo associativo entre ambas. A própria Emma indica que ele é
fornecido pelo riso”.

Estas poucas informações dadas por Freud visaram a estabelecer que, em todo sintoma, temos
dois tempos, ou seja, uma Cena II, relato manifesto e consciente no divã, e uma Cena I, uma
lembrança anterior, latente e recalcada, decorrente de associações livres com a Cena II, no mesmo
divã. Cena e Outra Cena: consciente e Inconsciente. Parece esquisito, mas a Cena II aparece, na
análise, antes da Cena I. A associação livre provoca o retorno do (antigo) recalcado, num efeito
só posterior.
Curiosamente, na nota de rodapé nº 2, da pág. 464, está dito que “[Esse caso não foi mencionado
por Freud em nenhuma outra obra”]. Incluído no Projeto, o caso Emma também não foi
publicado. Assim, muitas edições anteriores das Obras de Freud ficaram, portanto, sem este texto.

No ano de 1895, nos Estudos sobre a Histeria, (Breuer e Freud, 1974, Vol. II, pág. 63), estão
comentados vários casos clínicos: Anna O. pág. 63, Emmy von N. pág. 91, Lucy R. pág. 153,
Katharina, pág. 173, Elisabeth von R. pág. 184, Mathilde (em nota de rodapé, pág. 212), Rosália,
pág. 218, e Cecília, pág. 113 e 225. O nome de Emma foi omitido por Freud aí. Mas aparece a
outra paciente, Emmy von N., que sempre foi confundida com Emma.

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O nome de Emma Eckstein finalmente aparece no Dicionário de Psicanálise (Roudinesco, 1998,
pág. 163), com informações curiosas tiradas das cartas de Freud-Fliess, num relato clínico
diferente daquele descrito por Freud no Projeto.

O nome de Emmy von N. (Fany Moser) também está listado no mesmo dicionário (pág. 178).
Consta que Freud comenta que ela tinha fobia com certos animais. Aplicou-lhe várias técnicas,
como massagens, banhos, hipnose e catarse. Em 1889, ela surpreende Freud ao pedir que ele se
afastasse dela: não fale comigo, não toque em mim. Com a retirada do olhar e a proposta de falar,
Emmy von N. teria inventado a cura pela palavra, como técnica da psicanálise, associação livre.

Aos 23 anos, Emmy casou-se com um homem muito rico que lhe deixou grande herança. Ela foi
suspeita de ter envenenado o marido. Suas duas filhas, segundo Elisabeth Roudinesco (Dicionário
de Psicanálise, pág. 524), foram marcadas pelos significantes da neurose materna: uma se
especializou em zoologia, a outra se rebelou contra os valores da classe dominante, tornando-se
militante comunista e também se interessando pelos animais.

O golpe final para confirmar a existência destas duas pacientes de Freud, e dirimir as dúvidas, só
ocorreu recentemente, sete anos atrás, em 2016, com a publicação da nova biografia de Freud
(Roudinesco, 2016, págs. 502 e 504), quando ela apresentou a lista dos pacientes de Freud, na
nova abertura dos arquivos do Mestre.

Geraldino Alves Ferreira Netto


Psicanalista – Campinas, 4 de abril de 2023

Obs. As citações de textos e páginas referem-se às Obras Completas de Freud, Ed. Imago.

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