Você está na página 1de 10

1

Políticas educacionais e formação do indivíduo

Para Theodor W. Adorno, a finalidade da educação pode ser remetida, em última


instância, à “[...] produção de uma consciência verdadeira” (2003, p. 141). Isto implica
detectar tanto aquilo que a sociedade produz com demasiada eficácia – a extrema
adaptação dos indivíduos e a alienação social – quanto apontar aquilo que lhe falta. Nesse
caso, a função da educação deveria ser a de contribuir, na medida em que os indivíduos
se apropriam da cultura, para a construção de uma sociedade livre da barbárie, portanto,
uma educação de caráter emancipatório e democrático. Isto não significa negar os
processos adaptativos, tampouco a transmissão de conteúdos no âmbito educacional, uma
vez que alguma adaptação à sociedade é necessária para o processo de constituição do
indivíduo, e determinados valores e atitudes são inevitavelmente transmitidos aos alunos
no processo de ensino e aprendizagem. Entretanto, dada a tendência geral para o
conformismo em nossa sociedade, Adorno sugere que a educação, seja pela família, seja
pela escola, teria “[...] muito mais a tarefa de fortalecer a resistência do que de fortalecer
a adaptação” (2003a, p.144).

A questão mais urgente que se impõe à educação é a de desbarbarização dos


indivíduos. A síntese do pensamento do autor sobre a educação se apresenta na sentença:
“A exigência de que Auschwitz não se repita é a primeira de todas para a educação. De
tal modo que ela precede quaisquer outras que creio não ser possível nem necessário
justificá-la” (ADORNO, 2003b, p. 118). Esta é uma afirmação de suma importância, de
modo que todos os outros objetivos educacionais deveriam voltar-se para esta questão,
no sentido de dar à educação alguma importância no processo de formação dos indivíduos
e evitar a regressão à barbárie e o horror a que está condicionada. Entendo, desse modo,
que a educação é parte do processo geral de formação, mas é necessário trazê-la ao seu
lugar de importância, sem, no entanto, confundi-la com o processo mais amplo de
apropriação subjetiva da cultura.

No texto “teoria de la seudocultura”, Adorno (1972) atenta para o conceito de


pseudoformação como forma dominante da consciência na sociedade atual, e aponta a
regressão da ideia de formação para a pseudoformação de trabalhadores adaptados
segundo as determinações mercado, tendendo ao isolamento social e à pobreza de
experiências. Também sabe-se que o desenvolvimento da história da educação no Brasil
2

é marcado por políticas de manutenção da desigualdade social, e mesmo a psicologia,


conforme apontam os estudos de Patto (1984), contribuiu para a manutenção dessa
desigualdade no campo da ciência, ao justificá-la teoricamente por meio de teorias
racistas, da psicologia diferencial e de toda forma de psicologia que esquece o social e o
histórico como elementos formadores do indivíduo. Soma-se a este contexto um processo,
que também não é novo, de abertura do sistema educativo ao capital privado, de
interferência de agências internacionais e da difamação da educação pública. O mercado
das empresas educacionais contribuiu para o enfraquecimento da conquista social do
direito à educação pública e gratuita, e reforçou o ensino privado como alternativa de
educação de qualidade.

Tudo isso não é novo. Todavia, hoje assiste-se ao recrudescimento acelerado das
piores mazelas da educação brasileira. Mesmo com a clareza dos “tempos de exceção” e
com as manifestações que eclodem na América Latina, observa-se, concomitantemente,
a prevalência do discurso de legitimação do desmantelamento de políticas públicas e
direitos sociais como reformas necessárias para ajuste do Estado; de criminalização das
lideranças políticas e dos movimentos sociais como promotores da discórdia em tempos
de crise; de escamoteamento das evidências da luta de classes pelo discurso da
meritocracia como caminho de construção de uma sociedade melhor. Dessa forma, no
atual momento, é imprescindível a construção de um movimento de crítica radical que
nos permita, de um lado, revelar a produção da barbárie em nossa sociedade e, de outro,
promover, por meio da crítica e da criação, o movimento de construção concreta de uma
visão de ser humano e de mundo centrada na emancipação (LANE, 2007).

Em meio a uma série de retrocessos de direitos sociais e de políticas públicas na


área de educação (dentre outras, como a cultura e o trabalho) é preciso refletir acerca da
prática para uma psicologia emancipatória em meio a tendências tão nefastas. Assim, a
seguir encontram-se algumas considerações a partir da análise de documentos referentes
às principais medidas tomadas nos últimos anos referentes à educação básica e superior.

Educação superior

Desde 2000, o investimento público no setor privado do ensino superior se


intensificou em vez de desacelerar. Entre 1997 e 2007, a criação de instituições públicas
aumentou 18%, ao passo que no setor privado, esse crescimento mais que dobrou
(KALMUS, 2010). A partir de 2007 presenciou-se um declínio, “[...] mas que se deve à
3

prática de fusão ou compra de estabelecimentos menores por grandes empresas


educacionais (inclusive de capital estrangeiro) do que a um real encolhimento da rede
privada” (KALMUS, 2010, p. 38). Além dessa situação não contribuir para a
democratização da educação superior no Brasil, é frequente os índices de desempenho
das universidades brasileiras anualmente publicados mostrarem que as universidades
públicas detêm qualidade superior às privadas. Isso mostra que a autonomia da
universidade para pensar os rumos de suas pesquisas, extensões e de seu ensino garante
um retorno social maior e mais efetivo se comparado aos incentivos públicos repassados
ao setor educacional privado.

A universidade pública – a contar pela sua qualidade e pelos seus efeitos regionais
e em âmbito nacional, e pelo que pode proporcionar diretamente para o desenvolvimento
da sociedade brasileira – custa pouco aos cofres públicos. Todavia, o atual governo parece
estar a procura de maneiras de se desvencilhar de quaisquer obrigações no que se refere
à garantia de investimentos nessa área. Nesse sentido, um projeto do atual governo,
denominado "Future-se", promete juntar uma série de ataques à Universidade Pública.
Trata-se da privatização das Universidades e Institutos Técnicos Federais e do fim do
tripé que tem sido a base do ensino superior público: ensino, pesquisa e extensão, que se
pretende substituir por uma ideia vaga de empreendedorismo. O projeto é em sua maior
parte obscuro e desconexo, e expressões como “gestão de riscos corporativos”,
“empreendedorismo”, “metas de desempenho”, “indicadores”, “rendimentos”, “retorno”,
“valor”, “preço de mercado”, “lucro”, “modelos de negócios”, apresentadas sem a menor
preocupação conceitual, ilustram a intenção privatista e o viés economicista e
mercadológico da proposta do atual governo. Em detrimento disso, não há menção de
termos como “conhecimento”, “sociedade”, “educação”, “ensino”, “extensão”, “ciência”
e “cultura”. Com isso se aprofunda de maneira acelerada a tendência à pseudoformação
também em nível superior, com a desconsideração e desinvestimento em ciências
humanas, que certamente não teriam como responder à lógica do "modelo de negócios".

O projeto Future-se foi formulado pelo atual MEC sem nenhum diálogo com a
comunidade acadêmica e com a sociedade. Pode-se listar alguns pontos graves da referida
proposta: o Future-se ignora o plano nacional de educação, não considerando a relação
da universidade pública com a sociedade e com outras áreas da educação, como a
formação de professores, por exemplo; nele, o Estado se retira como agente financiador
e deixa a cargo de obscuros interesses do mercado o montante para o funcionamento de
4

todas as esferas da universidade; com o mercado à frente do financiamento da


universidade destrói-se a autonomia da gestão universitária, prevista na Constituição
Federal, já que o projeto implica na subordinação da Universidade aos interesses privados
e não às demandas sociais brasileiras; se aprovado, haverá a priorização das pesquisas
aplicadas em detrimento das pesquisas básicas, ocasionando a dependência do país à
produção de conhecimento feita no exterior. Cabe ressaltar que o alinhamento e o
comprometimento da pesquisa com interesses exclusivamente privatistas e
mercadológicos representam o ataque ao conhecimento crítico produzido nas
Universidades públicas brasileiras, que se debruça sobre as desigualdades e as injustiças
sociais, as violências contra a população negra, quilombola, indígena, do campo, as
mulheres, as crianças, os jovens, as pessoas LGBTQI, e as destruições socioambientais
em curso no país.

Outros ataques podem ser observados por meio do corte de verbas já em


andamento em universidades e institutos federais, talvez uma estratégia do governo para
forçar as universidades a aderirem ao Future-se. Uma maneira que o atual MEC encontrou
para combater o temido “marxismo cultural” – chamado por Adorno (1991), à sua época,
de “Bolchevismo cultural”, e institucionalizado durante o nazismo – é a realização de
intervenções na escolha de reitores nas universidades, ferindo a autonomia universitária,
ou nomeando diretamente interventores, como tem ocorrido em algumas universidades
federais.

Também são graves os cortes financeiros e as sucessivas ameaças de


desmantelamento das agências de fomento à pesquisa e à pós-graduação, como o
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e a
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Se o montante
que o governo propiciava a essas áreas por meio dessas agências já era insuficiente, dada
a sua enorme abrangência, atualmente os cortes de verbas resultam em sérios riscos para
a continuidade da pesquisa e da pós-graduação, áreas essenciais para o desenvolvimento
da educação no país.

Educação básica

A síntese de uma concepção crítica de educação aponta para a necessidade de


exposição de elementos geralmente encontrado nas instituições educacionais e que
deveriam ser objeto de reflexão daqueles que nelas atuam. Embora não haja tempo
5

suficiente para debater com profundidade todos esses elementos, é possível destacar: 1)
a consideração dos aspectos técnicos da educação como fins em si mesmos. 2) a extrema
adaptação a que submetemos os alunos; 3) uma situação de dependência das figuras de
autoridade que favorece a heteronomia em lugar da autonomia; 4) a hierarquização nas
relações escolares; 5) a valorização da competição em detrimento da cooperação; 6) a
naturalização e fetichização do “dom” ou do “talento”; e 7) a supressão de discussões
essenciais à formação dos indivíduos, como as de gênero, etnia, classe e diversidade.

No âmbito da educação básica, a nova Base Nacional Comum Curricular (BNCC)


junto à contrarreforma do ensino médio, e o Programa Nacional das Escolas Cívico-
Militares para o ensino fundamental e médio compreendem os ataques mais severos, em
um curto espaço de tempo, a uma proposta de educação emancipatória e à formação
crítica dos indivíduos em nossa sociedade. Em ambos os casos, as principais
preocupações se localizam na potencialização de uma educação essencialmente técnica;
distante de questões relativas aos Direitos Humanos e da valorização das diferenças;
aproximação da educação pública com o setor privado; e ausência da psicologia nas
escolas, tanto como conteúdo de aprendizagem, quanto na presença obrigatória do
psicólogo escolar nas instituições.

A lei n. 13.415, de 16 de fevereiro de 2017 (BRASIL, 2017a), que altera as


diretrizes e bases da educação nacional, foi alvo de críticas e gerou diversos protestos
durante o governo de Michel Temer, especialmente no que diz respeito ao ensino médio.
Sua versão final apresenta uma divisão do ensino entre o conteúdo da BNCC e os
chamados itinerários formativos, flexibilizados em áreas distintas e optativas. Por
itinerários formativos entende-se o “Conjunto de situações e atividades educativas que os
estudantes podem escolher conforme seu interesse, para aprofundar e ampliar
aprendizagens em uma ou mais Áreas de Conhecimento e/ou na Formação Técnica e
Profissional, com carga horária total mínima de 1.200 horas” (BRASIL, 2017b). Nestes,
os alunos escolhem entre as seguintes áreas: “I - linguagens e suas tecnologias; II -
matemática e suas tecnologias; III - ciências da natureza e suas tecnologias; IV - ciências
humanas e sociais aplicadas; V - formação técnica e profissional” (BRASIL, 2017a). A
obrigatoriedade do ensino de arte, educação física, sociologia e filosofia não constavam
no texto original da medida provisória, mas foram inseridas no texto final como atribuição
da BNCC, separadas pelos itinerários formativos. Ademais, a concepção de ciências
humanas e sociais aplicadas compreende uma cisão em eixos estruturantes que articulam
6

a investigação científica e processos de intervenção sociocultural com o


empreendedorismo. A BNCC compreende essa área para o ensino médio como necessária
para capacitar os alunos para “[...] dialogarem com o Outro e com novas tecnologias”
(BRASIL, 2018, p. 562), tendo em vista a resolução de problemas. Um olhar atento para
a BNCC revela que temas relativos aos Direitos Humanos, democracia e racismo são
mencionados timidamente; a violência contra as mulheres e homossexuais aparece uma
única vez no conteúdo de História para o nono ano; as questões de gênero foram
completamente abolidas; e a sexualidade é abordada única e exclusivamente quando
relacionada a questões reprodutivas e de cuidados com a higiene. Em suma, a magnitude
do problema da escassez de temas relacionados às ciências humanas e sociais nesses
documentos só é superada por seu caráter essencialmente tecnicista e pragmático.

Entendo que discutir temas como preconceito, competitividade, direitos humanos,


racismo, gênero e diversidade em instituições como a escola e universidades, torna-se
uma questão urgente para a educação, uma vez que tornar consciente aquilo que é
inconsciente contribuiria para o processo de desbarbarização, ou ao menos para a
produção de algum esclarecimento. Na educação escolar, discussões sobre esse tema
poderiam contribuir de forma significativa para a redução da violência contra as mulheres,
da LGBTfobia, do preconceito, da discriminação e exclusão dos indivíduos.

A aprovação de tal documento em um contexto histórico de intensificação de


políticas conservadoras parecia colocar as instituições educacionais em uma posição de
centralidade, o que se confirmou em 2019. O atual governo tornou-se inimigo declarado
da educação e da cultura, criando propostas em todos os níveis para eliminar qualquer
tentativa de formação crítica em suas instituições. Em relação à educação básica, a
iniciativa mais perturbadora é o Decreto n. 10.004, de 5 de setembro de 2019, uma
parceria entre o Ministério da Educação e o Ministério da Defesa chamado Programa
Nacional das Escolas Cívico-Militares (Pecim)i. Seu principal objetivo é promover a
“melhoria na qualidade” das escolas que aderirem voluntariamente ao programa. O que
se entende por “melhoria” e por “qualidade” nessas escolas não se apresenta de forma
clara no decreto, repleto de imprecisões e concepções vagas, mas que se tornam mais
evidentes quando comparadas ao modelo em que serão espelhadas: “[...] baseado nas
práticas pedagógicas e nos padrões de ensino dos colégios militares do Comando
Exército, das polícias militares e dos corpos de bombeiros militares” (BRASIL, 2019).
7

A proposta, em termos gerais, seria, a princípio, “resolver” o problema de escolas


consideradas com maior vulnerabilidade social com a imposição das normas e regras
militares. Proporcionar sensação de pertencimento, estimular a integração, reduzir índices
de violência, evasão, repetência e abandono escolar são os principais objetivos do
programa, somado à produção de valores como a meritocracia, respeito à autoridade e
patriotismo. Na prática, já é possível perceber o funcionamento dessa lógica nas escolas
militarizadas, especialmente nas regiões Norte e Centro-Oeste do país. O estabelecimento
de uma hierarquia rígida, normas de conduta, de vestimenta, adaptação exagerada às
novas regras parece contribuir para o aumento do desempenho e rendimento nessas
escolas, mas não se considera o processo de exclusão causado pela expulsão e
redirecionamento dos alunos que não se adequam a este modelo para escolas não-
militarizadas, o que entra em contradição direta com o objetivo de redução da evasão. Se
há um processo de exclusão, o aparente sucesso no Índice de Desenvolvimento da
Educação Básica (Ideb) das escolas militarizadas depende da existência de escolas não-
militarizadas que acolham os alunos com pouco rendimento e não se ajustaram às normas.

Tanto na reforma do ensino médio e na estruturação da BNCC, quanto no Pecim,


há grandes oportunidades de benefícios para o setor privado. A compra de produtos de
empresas de software, de sistemas apostilados de ensino, parcerias e convênios com
entidades privadas e apoio financeiro de fontes privadas são algumas das sugestões
propostas pelo atual governo para a melhoria da qualidade do ensino. Os elementos
analisados nesses documentos inequivocamente sustentam um projeto de neutralização
de qualquer possibilidade de produção de consciência na educação básica, a partir da
conversão da educação em mera adaptação.

Breve relato sobre o caso de Roraima

Roraima conta, atualmente, com 18 escolas estaduais militarizadas em 7


municípios, e atende cerca de 20 mil alunos, o que corresponde a 25% do alunado do
Estado. O Estado segue, pareado com Goiás, como o que mais avançou nas políticas de
militarização da educação pública. As escolas têm como principal gestor algum militar
da reserva, mas mantém o corpo docente e de administração pedagógica entre civis. Elas
seguem o modelo das escolas militares, que se gabam de ter ótimos rendimentos no que
tange os conhecimentos básicos dos sistemas de avaliação.
8

Os alunos devem comparecer todos os dias na escola, com uma farda que custa
aproximadamente R$ 500,00. Ao mesmo tempo que o custo da farda já estabelece um
primeiro recorte de classe no público que frequentará a escola, há um projeto que visa
investir cerca de 10 milhões da verba destinada a educação pública, para a
disponibilização gratuita, tanto da farda diária, quanto das de gala e de formatura para os
alunos. As meninas devem prender os cabelos e não podem usar maquiagem ou pintar as
unhas. Os meninos devem usar um corte de cabelo militar, e não podem usar qualquer
tipo de tintura.

Os alunos recebem patentes, os mais aplicados comandam o batalhão escolar.


Cada turma possui um chefe e um subchefe para coordenar e ajudar a fiscalizar os
próprios colegas. Alguns recebem o “Alamar”, peça de uniforme militar formada por
cordões entrelaçados, uma condecoração pelo rendimento nas disciplinas e pelo
comportamento. Ao adentrarem os portões do quartel-escola, os alunos ficam sob o sol
em posição de sentido por quase uma hora. Alguns professores relatam que alunos que
não estão bem-alimentados desmaiam e não conseguem cumprir com os exercícios. Este
é um segundo recorte que a escola realiza. Os alunos que não se adaptam às normas ou
ao rendimento escolar mínimo realizam a limpeza da escola e, caso não corrijam os
comportamentos indesejados e melhorem as notas, são “convidados a se retirarem da
escola”, e direcionados a uma escola não-militarizada. Neste terceiro recorte, a escola
separa os melhores e mais adaptados. Há relatos de alunos que sofrem violência
psicológica, maus tratos e constrangimento pelos militares. Esses relatos costumam ser
abafados pela instituição escolar, que não se manifesta publicamente a respeito dessas
denúncias.

A respeito da rígida hierarquia estabelecida nas escolas militarizadas: no texto


“Tabus acerca do magistério”, Adorno atenta para a existência de uma dupla hierarquia
observável nas escolas: “[...] a hierarquia oficial, conforme o intelecto, o desempenho, as
notas, e a hierarquia não-oficial, em que a força física, o "ser homem" e todo um conjunto
de aptidões prático-físicas não honradas pela hierarquia oficial desempenham um papel.
O nazismo explorou esta dupla hierarquia inclusive fora da escola, na medida em que
incitou a segunda contra a primeira, tal como incitaria o partido contra o Estado na
macropolítica” (ADORNO, 2003c, p. 111). Na escola militarizada há uma fusão entre as
hierarquias, e elas facilitam, em muito, a dinâmica sadomasoquista, no sentido de
submissão ao superior e, no mínimo, um sentimento de superioridade em relação aos que
9

estão abaixo. Se há solidariedade entre os alunos com patentes mais baixas, estes ainda
são considerados superiores aos que foram expulsos.

No contexto apresentado, cabe ressaltar dois pontos que parecem ser centrais para
a psicologia. Primeiro, lembrar que existe uma luta histórica para a reinserção da
psicologia como disciplina nos currículos escolares, e que agora se encontra ainda mais
ameaçada, haja vista o tratamento dado nos últimos anos a outras disciplinas da área de
humanidades. Sua presença no currículo, especialmente uma psicologia voltada para a
questões da relação entre indivíduo e sociedade, e para a promoção da cidadania e dos
Direitos Humanos, representaria avanços que não apenas não são considerados, mas
também repudiados nas propostas do atual governo. Em segundo lugar, considerar o veto
integral do atual presidente da república ao PL 3688/2000, que dispõe sobre a
obrigatoriedade dos serviços de psicologia e serviço social na educação básica, alegando
inconstitucionalidade e contrariedade ao interesse público, pois a proposta cria despesas
e não indica os impactos orçamentários. Lembramos que no programa das escolas cívico-
militares, está previsto nos artigos 21 e 25 que o MEC prestará apoio financeiro para a
esfera estadual e municipal, para a inserção de oficiais e praças da polícia militar para
atuarem nas escolas. Em outras palavras, para o atual governo, psicólogos e assistentes
sociais não representam qualquer possibilidade de melhoria para o sistema educacional,
e para isso não há verba, mas na polícia militar e no exército pode-se investir, e dessa
forma suprir o que falta para o completo ajustamento dos jovens.

Referências

ADORNO, T. W. teoria de la seudocultura. In: ADORNO, T. W. Filosofia y supersticion.


Madrid: Alianza/Taurus, 1972.
ADORNO, T. W. Educação – para quê. In: ADORNO, T. W. Educação e emancipação.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2003a.
ADORNO, T. W. Educação após Auschwitz. In: ADORNO, T. W. Educação e
emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2003b.
ADORNO, T. W. Tabus acerca do magistério. In: ADORNO, T. W. Educação e
emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2003c.
BRASIL. Lei 13.415, de 16 de fevereiro de 2017. Conversão da Medida Provisória nº
746, de 2016. 2017a. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-
2018/2017/Lei/L13415.htm Acesso em: 23 out. 2019.
10

BRASIL. Ministério da Educação. Referenciais curriculares para elaboração de


itinerários formativos. 2017b. Disponível em:
http://novoensinomedio.mec.gov.br/resources/downloads/pdf/DCEIF.pdf Acesso em: 23
out. 2019.
BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Curricular Comum. 2018. Disponível
em:
http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_versaofinal_site.
pdf Acesso em: 23 out. 2019
BRASIL. Decreto nº 10.004, de 5 de setembro de 2019. Diário Oficial da União. 2019a.
Disponível em:
http://escolacivicomilitar.mec.gov.br/images/pdf/legislacao/decreto_n10004_de_5_de_s
etembro_de_2019_dou_pecim.pdf Acesso em: 23 out. 2019.
LANE, S. T. M.; CODO, W. Psicologia social: O homem em movimento. São Paulo:
Brasiliense, 2007.
KALMUS, J. Ilusão, resignação e resistência: marcas da inclusão marginal de
estudantes das classes subalternas na rede de ensino superior privada. Tese de doutorado.
São Paulo: Universidade de São Paulo, 2010.
PATTO, M. H. S. Psicologia e ideologia: uma introdução critica à psicologia escolar.
São Paulo: T.A. Queiroz, 1984.

i Disponível em: http://escolacivicomilitar.mec.gov.br/

Você também pode gostar