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Inconsciente

O conceito de inconsciente está completando um século de


existência. Não é uma idade excessivamente avançada
para um conceito; na história do saber ocidental podemos
apontar alguns que contam sua idade em milênios. Mas
isso também não quer dizer que os conceitos não se trans-
formem, não envelheçam e não morram; muitos desapa-
receram quase no próprio ato de sua criação, outros enve-
lhecem rapidamente, e alguns conseguem sobreviver aos
séculos. Nessa perspectiva, cem anos não é muito tempo,
mas também não é pouco: mostram que o conceito sobre-
viveu e que essa sobrevivência está indissoluvelmente li-
gada à sobrevivência da teoria à qual ele pertence, em que
pese as transformações sofridas por ele, conceito, ou por
ela, teoria. Já foi dito1 que os verdadeiros conceitos trazem
a assinatura do seu autor; e creio que poucos são aqueles
que portam uma assinatura tão nítida quanto o inconscien-
te de Freud. A assinatura não é, porém, uma garantia de
imutabilidade do conceito. Exatamente por não serem pu-
ras abstrações formais produzidas artificialmente, por res-
ponderem a problemas reais, os conceitos estão sujeitos a
transformações e mutações, a renovações, que caracteri-
zam a história do saber.
Houve uma sensível mudança no conceito de incons-
ciente, tal como foi historicamente introduzido por Freud
em 1900, e o modo como ele é pensado hoje, após as

1 Deleuze, G. e Guattari, F., O que é a filosofia?, Rio de Janeiro, Editora


34, 1992, p. 16.

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contribuições da lingüística, da lógica e da etnologia, so-


bretudo a partir da leitura feita da obra de Freud por
Jacques Lacan. Isso não significa, porém, um abandono do
conceito freudiano de inconsciente em favor de uma con-
cepção lacaniana, até mesmo porque não estamos certos
de se tratar de uma “nova” concepção do inconsciente.
Certamente, os conceitos lacanianos não eliminam os con-
ceitos freudianos, e não sei, até mesmo, se poderíamos
afirmar que Lacan “ultrapassa” Freud, no sentido de uma
Aufhebung hegeliana.
Sem dúvida, o conceito de inconsciente sofre uma trans-
formação com o tempo, mas essa transformação já se veri-
fica na própria obra de Freud. Desde seu aparecimento no
capítulo VII da Traumdeutung até os textos finais da chama-
da segunda tópica, a modificação é visível. Se nos textos
iniciais Freud está preocupado em definir o sentido tópico
do inconsciente, nos textos posteriores a 1915 ele está mais
preocupado com a relação entre o inconsciente e as pulsões.
Mas mesmo num texto como O eu e o isso, de 1923, onde o
das Es (o Isso) é privilegiado, Freud mantém a idéia do
inconsciente como um lugar psíquico diferenciado e iden-
tificado com o recalcado. É nesta medida que podemos
dizer que a segunda tópica freudiana não substitui a pri-
meira, e que os conceitos de Isso, Eu e Supereu não reco-
brem os conceitos de Inconsciente, Consciente e Pré-cons-
ciente. O Isso é inconsciente, mas não é o inconsciente.

A HIPÓTESE DO INCONSCIENTE

O que o inconsciente não é.

O artigo Das Unbewusste começa com uma justificativa do


conceito de inconsciente. A preocupação de Freud é assi-

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nalar as diferenças entre o inconsciente tal como é conce-


bido por ele e o inconsciente tal como era pensado pela
filosofia e pela psicologia, e uma das formas de se marcar
a diferença é apontando o que o inconsciente freudiano
não é. Ele não é uma franja ou margem da consciência,
também não é o profundo da consciência, assim como não
é o lugar do caótico e do misterioso. E Freud, com plena
razão, estava preocupado em assinalar essas diferenças e
em afirmar a irredutibilidade do seu conceito às noções
até então dominantes.
A concepção de psiquismo dominante até Freud era a
de uma subjetividade identificada com a consciência e
dominada pela razão; quando muito admitia-se que a
consciência pudesse conter uma franja ou margem incons-
ciente, ou ainda que, em alguns casos, se pudesse falar de
ocorrências psíquicas que permaneciam abaixo do umbral
da consciência. O termo “inconsciente” era empregado de
forma puramente adjetiva para designar aquilo que não
era consciente, mas nunca para designar um sistema psí-
quico autônomo e regido por leis próprias.
Mesmo depois de Freud ter elaborado seu conceito, o
inconsciente psicanalítico ainda era identificado com o caó-
tico, o misterioso, o inefável, o lugar da vontade em estado
bruto e impermeável a qualquer inteligibilidade, visão ro-
mântica do inconsciente que nada tem a ver com o conceito
freudiano. Qualquer dúvida quanto ao inadequado dessa
concepção pode ser eliminada pela simples leitura do capí-
tulo VII de A interpretação do sonho, onde Freud declara
enfaticamente que nada há de arbitrário nos acontecimen-
tos psíquicos, sejam eles conscientes ou inconscientes. O
inconsciente pensa, diz ele, e o próprio fato dos pensamen-
tos oníricos latentes serem submetidos a deformações por
exigência da censura atesta seu caráter lógico e sua inteli-
gibilidade possível para a consciência. Se os conteúdos
latentes dos sonhos fossem caóticos e ininteligíveis, não
haveria motivo para serem distorcidos pela defesa.

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Mas é em relação à psicologia da consciência que o


inconsciente psicanalítico marca sua diferença mais radi-
cal. A psicologia, embora identificasse o psíquico com a
consciência, admitia graus de consciência e até mesmo
estados de consciência inconscientes. É o caso, por exem-
plo, das “pequenas percepções”, de Leibniz, da “franja da
consciência”, de William James, das “representações in-
conscientes”, de Herbart. Mas o que Freud afirma repeti-
das vezes é que o inconsciente não é uma gradação da
consciência, seja no sentido do mais profundo, seja no
sentido do mais afastado do centro. Daí a impropriedade
do termo “psicologia profunda” ou “psicologia das pro-
fundezas” para designar substantivamente a psicanálise.
Freud não nos fala de uma consciência que não se mostra,
mas de outra coisa inteiramente distinta; fala-nos de um
sistema psíquico, o Ics (Ubw), que se contrapõe a outro
sistema psíquico, o Pcs/Cs (Vbw/Bw), que é em parte in-
consciente (unbewusst) mas que não é o inconsciente (das
Unbewusste).
O inconsciente não é, tampouco, uma entidade empí-
rica que se manteve oculta até o momento em que Freud
veio a descobri-lo. Algo como um órgão ou como uma
região do cérebro até então inacessível à observação cien-
tífica. Freud não descobriu o inconsciente da mesma forma
como um investigador descobre uma região interna do
corpo que tivesse se mantido ao abrigo da mais minuciosa
investigação já empreendida. O próprio termo “descober-
ta”, para designar o procedimento freudiano em relação
ao inconsciente, tem que ser empregado com reservas.
Freud não descobriu o inconsciente da mesma forma como
um astrônomo descobre um novo planeta. No caso do
astrônomo, podemos dizer que o planeta já se encontrava
lá antes de ser descoberto, como que à espera de seu des-
cobridor; no caso do inconsciente, é no mínimo discutível
que ele já estivesse lá à espera de Freud ou de quem quer
que fosse. Além do mais, o planeta se oferece à observação

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direta do astrônomo, ou pelo menos se não é observado


mas inferido através de cálculos astronômicos, é observá-
vel, ou seja, a partir do momento em que o astrônomo
disponha de instrumentos de observação mais poderosos
poderá comprovar empiricamente sua descoberta. Ora, a
verificação direta do inconsciente jamais será feita, sua
impossibilidade empírica não se deve à falta de instrumen-
tos, mas a sua própria natureza. Uma fenomenologia do
inconsciente é uma tarefa impossível. Ele poderá, quando
muito, ser inferido a partir de seus efeitos na consciência
ou, melhor ainda, a partir de seus efeitos no discurso ma-
nifesto, mas jamais ser objeto de observação direta. O ter-
mo “descobrir” poderia estar sendo empregado aqui com
o sentido de “desvelar”, “tirar o véu”, “deixar à vista algo
que estava oculto”, mas que uma vez desvelado ou desco-
berto, mostrar-se-ia total ou parcialmente ao observador.
Nesse sentido, o inconsciente não foi “descoberto” por
Freud. A partir da psicanálise, o inconsciente não se tornou
mais visível ou simplesmente visível. Sua invisibilidade
permanece a mesma.
Melhor seria, então, dizer que Freud “inventou” o in-
consciente? Ou, mais radicalmente ainda, que Freud
“criou” o inconsciente da mesma forma que um ficcionista
cria seus personagens? O inconsciente é uma pura ficção
freudiana? Um conceito operatório? Uma forma abstrata?
Estas perguntas nos remetem a uma questão que é uma
pedra no sapato dos comentadores de Freud: a do realismo
do inconsciente, ou, se preferirmos, a do estatuto ontoló-
gico do inconsciente.

O estatuto ontológico do inconsciente.

Durante um seminário na cidade de Cali, na Colômbia,


dado por Juan-David Nasio, um dos participantes fez-lhe
a seguinte pergunta a propósito do inconsciente:

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