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DIMENSÕES

LÚDICO-
SAGRADAS
E RESISTÊNCIAS
DAS CONGADAS
EM LAMBARI (MG)

[ ARTIGO ]

Aline Guerra da Costa


Universidade Federal de Lavras
Cláudia Maria Ribeiro
Universidade Federal de Lavras
Fábio Pinto Gonçalves dos Reis
Universidade Federal de Lavras
Aline Guerra da Costa Dimensões lúdico-sagradas e resistências das congadas em Lambari (MG)
Cláudia Maria Ribeiro 9
Fábio Pinto Gonçalves dos Reis

[ R ES U MO AB STR AC T RESUME N ]

A Congada é uma tradicional festa popular brasileira criada por pessoas negras escraviza-
das como uma reedição dos cortejos reais africanos. Essa manifestação cultural modificou
seus significados originais diante das necessidades de representação e de reatamento dos
laços identitários de uma população sequestrada da sua terra natal e lançada ao trabalho
compulsório. Diante disso, este artigo propõe problematizar as experiências (de resistência)
dos(as) praticantes da Congada e a constituição dos seus processos identitários acionados
a partir da participação na festa no município de Lambari (MG). Para tanto, utilizou-se o
material empírico produzido por meio de entrevistas semiestruturadas com os(as) con-
gadeiros(as), ao passo que esses relatos foram interpretados a partir do aporte teórico
pós-estruturalista. Ao final, conclui-se que as disputas travadas entre os(as) congadei-
ros(as) e o poder público acabaram por fortalecer os laços de resistência e as identidades
da comunidade negra envolvida.
Palavras-chave: Congada. Identidade Negra. Política das Diferenças. Relações de Poder. Pós-
abolição.

Congada is a traditional Brazilian popular festival created by black slaves to resemble


African royal processions. This cultural manifestation changed its original meanings due
to the needs for representation and the resumption of the identity ties of a population
kidnapped in their land and launched into compulsory work. Thus, this article proposes
a discussion (of resistance) of the Congada participants and the constitution of their
identity processes triggered based on the involvement in the party in the municipality
of Lambari, state of Minas Gerais. For this purpose, this article based its analysis in the
empirical material composed of semi-structured interviews with Congada players
(“congadeiros”) and it examine these reports based on the poststructuralist theoretical
contribution. Finally, this study concludes that the disputes between the “congadeiros”
and the public power ended up strengthening the bonds of resistance and the identities
of the black community involved.
Keywords: Congada. Black Identity. Differences Policy. Power Relations. Post-abolition.

Congada es una fiesta popular tradicional brasileña creada por negros/as esclavizados/as
como una reedición de procesiones reales africanas. Esa manifestación cultural cambió su
significado original debido a las necesidades de representación y la reanudación de los lazos
identitarios de una población secuestrada de sus tierras y lanzada al trabajo obligatorio.
Ante esto, este artículo propone problematizar las experiencias (de resistencia) de los/las
practicantes de Congada y la constitución de sus procesos identitarios provocados por la
participación en la fiesta en el municipio de Lambari (estado de Minas Gerais, Brasil). Para
esto, se utilizó el material empírico de entrevistas semiestructuradas con los/las congadeiros/
as, y para el análisis de esos informes se aplicó la contribución teórica posestructuralista.
Se concluye que las disputas entre los/as congadeiros/as y el poder público terminaron
fortaleciendo los lazos de resistencia y las identidades de la comunidad negra involucrada.
Palabras clave: Congada. Identidad Negra. Política de Diferencias. Relaciones de Poder.
Postabolición.

DOI: https://doi.org/10.11606/extraprensa2021.173824

Extraprensa, São Paulo, v. 14, n. 1, p. 8 – 26, jul./dez. 2020 [ EXTRAPRENSA ]


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“Tempo de nos aquilombar”1 de esfericidades existenciais, marcadas pela


dança e pelo tambor” (Ibidem, p. 121).

Que tempo é esse que Conceição Outras manifestações lúdico-sa-


Evaristo (2019) escreve em seu poema gradas, para além do futebol e do samba,
dizendo que a liberdade é uma luta cons- podem ser problematizadas. Referimo-
tante? Essa luta requer uma “reconexão nos, em especial, à produção de saberes
com nossa ancestralidade para atuar no no complexo universo das Congadas. Seus
presente”, como escreveu o militante do instrumentos (violas, reco-recos, tambores,
movimento negro Joselicio Junior, em chocalhos, acordeons), as roupas, os gestos,
texto veiculado pela Revista Fórum (2019). os estandartes, os cantos e os(as) dançantes3
O verbo aquilombar significa “fazer qui- fazem da Congada uma festa que tem o
lombo”2. Ou seja, ter ousadia, ser perspi- caráter de mobilização. Para navegar por
caz diante das dificuldades e lutar pela aspectos da Congada, problematizaremos o
integração social, econômica e cultural do material empírico composto por entrevis-
povo negro. tas semiestruturadas advindas da disser-
tação de mestrado intitulada “Pedagogias
Ao mergulharmos nos significados da Congada no contexto de produção das
de aquilombar-se, especialmente para identidades, diferenças, territórios e saberes
refletirmos sobre a dinâmica sócio-racial em Lambari/MG” (COSTA, 2020). O aporte
do(a) negro(a) brasileiro(a), buscamos em teórico utilizado em nossas análises é pós-
Celso Prudente (2018) o artigo intitulado -estruturalista, com foco nas reflexões de
“Futebol e samba na estrutura estética Michel Foucault (1979) sobre poder e resis-
brasileira: a esfericidade da cosmovisão tências, e nas conclusões de Stuart Hall
africana versus a linearidade acumulativa (2014) e Tomaz Tadeu da Silva (2014; 2017)
do pensamento ocidental”. Nele, o autor em relação às identidades e diferenças.
apresenta “o futebol e o samba como dois
componentes estruturantes da possível
estética brasileira” (PRUDENTE, 2018,
p. 119), abordando as relações de poder e a
contribuição histórica negra “pulverizada Congada: contribuição
no plexo da apropriação cultural, que tem histórica à cultura negra
sido uma espécie de pilar do eurocentrismo”
(Ibidem, p. 120). Prudente salienta também
“a demanda mítica do processo de rituali- A Congada é uma tradicional festa
dade, que se configura em linhas dinâmicas popular que acontece em diversas regiões
do país, sobretudo no Sudeste e no Centro-
Oeste brasileiros. Está disseminada em
1 Referência ao poema de Conceição Evaristo publi-
cado no jornal O Globo em 31 dez. 2019 (EVARISTO,
2019, p. 9).
2 AQUILOMBAR-SE. In: Dicionário online de por- 3 Como são conhecidos os participantes dos ternos
tuguês. Disponível em: https://bityli.com/XipRy. de Congada, sejam aqueles que tocam instrumentos,
Acesso em: 15 fev. 2020. sejam os que cantam e dançam.

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quase todo o território de Minas Gerais e, guardarem suas economias com o objetivo
dependendo da localidade, ocorre em dife- de comprar a própria liberdade.
rentes épocas do ano, de maio a dezembro.
Criada por pessoas negras escravizadas no Há um grande número de irmanda-
Brasil como uma reedição dos cortejos de des negras em Minas Gerais que prestam
reis e rainhas africanos, a Congada modi- sua devoção à Nossa Senhora do Rosário,
ficou seus significados originais diante das enquanto outras são devotas de santos
necessidades de representação, reatamento como São Benedito, Santa Efigênia e Nossa
de laços identitários e sociais de uma popu- Senhora das Mercês. No início do século
lação sequestrada de sua terra natal e lan- XIX, com o propósito de pagar promessas
çada ao trabalho compulsório. Conforme por graças recebidas, para demonstrar
bem questiona o historiador Luiz Antônio sua fé e até mesmo visando conquistar
Simas (2016), se a diáspora africana foi uma novos(as) associados(as), os(as) componen-
experiência de morte, as manifestações tes das irmandades formavam cortejos e
culturais criadas por essa população encar- saíam às ruas com o estandarte de seu
cerada são experiências de reinvenção. Se santo de devoção à frente, acompanha-
a travessia do Atlântico tirou muitas vidas dos de músicas e danças embaladas pela
e esgarçou laços de sociabilidade forjados vibração dos sagrados tambores africanos
em África, as culturas criadas no Brasil (DELFINO, 2017). Com o tempo, essa prática
proporcionaram para muitas e muitos a tornou-se tradição.
possibilidade de se recriar nas resistências4.

As irmandades católicas feitas por


e para pessoas negras, em grande medida
encharcaram-se de possibilidades para que Lambari (MG)5: uma enxurrada
novos laços sociais fossem produzidos e de possibilidades
que redes de solidariedade se fortaleces-
sem. Escravizados(as) e libertos(as) podiam
realizar ritos católicos – desde batismos e Em nossa imersão no campo de
casamentos até cortejos fúnebres –, que pesquisa, descobrimos que na cidade de
lhes eram vetados nas irmandades “bran- Lambari a festa da Congada acontece
cas” (DELFINO, 2017). Segundo a autora, as durante três dias próximos ao 13 de maio.
irmandades também auxiliavam aqueles(as) A data é uma referência à abolição da escra-
doentes e mais velhos(as) que se encontra- vidão, ocorrida em 1888. Há dois rituais que
vam em situação de maior vulnerabilidade antecedem a festa: a Exaltação à Santa Cruz,
social. Além disso, representavam a possi- que ocorre no dia 3 de maio, e a Subida do
bilidade para muitos(as) escravizados(as) de Mastro, que acontece no dia 10 do mesmo
mês. Em Lambari, quatro mastros são
levantados com suas bandeiras em louvor

4 Afirmação do historiador Luiz Antônio Simas


em entrevista concedida ao canal no YouTube Casa
Comum, publicada em 11 de julho de 2016. Disponível 5 Cidade situada no sul de Minas Gerais, com 20 mil
em: https://bityli.com/l7VaI. Acesso em: 9 jan. 2020. habitantes.

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a São Benedito, Santa Efigênia e Nossa Moçambique Santo Antônio de Categeró).


Senhora do Rosário. Na madrugada de 12 Três desses ternos são comandados por
para 13 de maio, um terno – nome dado aos mulheres: o Estrela Cadente, o Astro Rei
grupos participantes – vai até o Cruzeiro e o Flor de Maio. Este último é conhecido
da cidade para a Alvorada, simbolizando na cidade como o “terno das mulheres”,
o anúncio da libertação dos escravizados. que, comandado por Carmelina, abriga
mulheres em todas as frentes de atuação no
A festa é predominantemente (mas grupo, inclusive no posto de capitã de guia.
não exclusivamente, conforme veremos Mediante essa composição, pouco comum
adiante) católica e integra o calendário reli- em um terno de Congada, os homens só têm
gioso da cidade. Nesse contexto, pudemos permissão para participar na percussão dos
identificar que a Igreja agregadora dos ter- tambores localizados ao fundo.
nos era a de São Benedito, sendo que os gru-
pos envolvidos não reverenciavam somente A quantidade de pessoas que partici-
esse santo, mas também Santa Efigênia, pam da festa é variada, uma vez que a cada
Nossa Senhora do Rosário, Nossa Senhora ano entram e saem participantes. Em suma,
Aparecida e Santo Antônio de Categeró. os ternos têm de 10 a 80 pessoas e todos
estão localizados nos bairros mais simples
Constatamos ainda que, em Lambari, do município, a saber: Vila Brasil, Vila Nova
existem hoje oito ternos de Congada (Estrela e Campinho.
Cadente, Rainha das Águas, Flor de Maio,
Treze de Maio, São Benedito, Astro Rei, Impossível falar em reconhecimento
Nossa Senhora do Rosário e Garça Branca) e e identidade sem citar Ângela Rodrigues7,
um de Moçambique6 (Companhia Folclórica congadeira e capitã do terno Estrela
Cadente. A entrevista com ela foi uma
das que realizamos primeiramente, e sua
6 Assim como a Congada, o Moçambique também é reação diante da nossa explicação sobre a
um grupo festivo de dançantes que louva santos cató-
garantia do anonimato (de que seu nome
licos, mas há algumas diferenças primordiais entre
eles. No Moçambique, há um predomínio de instru- não seria revelado) nos causou espanto e
mentos de percussão (surdos e caixas) e é comum que encantamento8. Ela entoou em alto e bom
os dançantes utilizem guizos ou gungas (tipo de cho- som: “De jeito nenhum! Faço questão de que
calho) amarrados aos tornozelos que marcam o ritmo
(em Lambari, o grupo não utiliza tais guizos). Os dan-
meu nome esteja no trabalho! Quero que meus
çantes fazem coreografias bem marcadas e utilizam netos e bisnetos leiam sua pesquisa e saibam
bengalas que, de forma sincronizada, batem umas
nas outras. Segundo Anderson do Carmo, capitão do
Moçambique de Lambari, o canto Moçambiqueiro “é
bem mais chorado, como se fosse uma lamentação”. Ao 7 Revelaremos apenas o nome de Ângela e os
estabelecer a diferença entre Congada e Moçambique, daqueles que aceitaram expor sua identidade. Os que
Lívia Monteiro afirma que “as músicas entoadas e can- optaram pelo anonimato serão citados a partir de
tadas pela Congada são leves como o soar da sanfona nomes fictícios. Em homenagem à Congada, utiliza-
[…]. No Moçambique, como são apenas instrumentos mos nomes de santos católicos negros ou protetores
de percussão, a perfeição rítmica entre caixa, guizo, dos negros.
bengalas, passos e vozes faz um efeito vibrante que 8 O projeto foi aprovado em 26/10/2018 sem
ecoa por toda a cidade e transmite os sons das memó- pendências éticas, de acordo com a Resolução
rias da escravidão e da liberdade celebrados no tempo 466/2012 CNS, sob o número de inscrição CAAE
presente” (MONTEIRO, 2016, p. 61). 97931718.6.0000.5148.

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que foi a avó deles que falou tudo o que vou citar representações pejorativas que infe-
lhe dizer”9. O que responder diante da vee- riorizavam tal prática lúdico-sagrada.
mência e convicção de Ângela? Apenas
concordar e dar prosseguimento à riquís- […] Bando de à toa que não tem nada pra
sima entrevista. fazer, que sai com o tanto de caixa pra
bater na rua […] um tanto de gente deso-
A reação dela nos dá pistas sobre o cupada que não tem o que fazer, que fica
quanto a cultura congadeira de Lambari foi ali batendo, que eles não sabem nem o quê
reiteradamente posta de lado e como a his- que a gente tá cantando, não sabe de nada.
tória a relegou ao segundo plano, ou mesmo (Rosário)
ao completo silenciamento. Quando a histó-
ria desse município mineiro é abordada em […] Com desprezo, né… não generalizando,
eventos comemorativos, escolas ou expo- mas Lambari vê a nossa Congada como
sições, o discurso restringe-se quase que bagunça, né, como barulho que não deixa
exclusivamente aos feitos dos “pioneiros”, eles dormir, né. Eles falam que mês de maio
ou seja, dos deputados, prefeitos, engenhei- é a época do… pão com… pão com cebola,
ros, professores, comerciantes e advogados que o nosso batido, o batido do Congo pra
locais. Isso pode ser constatado no relato eles é pão com cebola […]. (Ângela)
da congadeira Elaine Rodrigues: “A gente
sempre vivia às margens […] da sociedade Identificar a Congada como “pão com
tradicional da cidade”. Assim sendo, tor- cebola” significa dizer que essa prática “é
na-se inevitável questionar: e a versão da coisa de pobre” e, por isso, algo inferior, sem
história dos(as) pedreiros(as), das donas de valor. Essa forma distorcida de interpretar a
casa, das(os) cozinheiras(os), das(os) empre- festa influencia potencialmente a constitui-
gadas(os) domésticas(os), dos(as) agriculto- ção da identidade das pessoas praticantes.
res(as) e das(os) congadeiras(os)? Nessa direção, Munanga (2003) sustenta
que a formação da identidade, em diferentes
Em nossa perspectiva, ficou evidente contextos e culturas, funda-se sempre na
nos diversos depoimentos coletados que diversidade (presente em conceitos como
a visão das(os) congadeiras(os) é a de que raça, classe, gênero, sexo e etnia) e na opo-
os(as) habitantes da cidade não valorizam sição entre “nós” e “eles”. Para o autor, esta-
sua cultura nem sua festa. Dentre as várias belecemos o que somos a partir do que não
narrativas analisadas, emergiram palavras somos, representado na figura do outro, do
como “desprezo”, “preconceito”, “vergonha”, “eles”. Entretanto, a formação da identidade
“deboche”, “discriminação”, “falta de respeito” não se concretiza apenas de características e
e “descaso”. Perguntados sobre como as(os) habilidades autoatribuídas, ou seja, nós a ela-
não congadeiras(os) percebiam a festa, as(os) boramos e reelaboramos também a partir do
entrevistadas(os) foram quase unânimes ao reconhecimento do outro. “O não reconhe-
cimento ou o reconhecimento inadequado
da identidade do outro pode causar um
9 Sempre que transcrevermos relatos dos(das) prejuízo ou uma deformação ao aprisionar
depoentes da pesquisa, colocaremos em itálico para
diferenciá-los dos trechos da bibliografia sobre a
alguém num modo de ser falso e reduzido”
temática. (MUNANGA, 2003, p. 5).

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O aspecto relacional da identidade é (aliás, muito importante na percepção acerca


igualmente salientado por Silva (2017), ao da Congada) como resultado da identidade,
afirmar que, na teoria social contempo- pois isso se dá pela tendência de tomarmos
rânea, a identidade não é um constructo aquilo que somos como a norma, a partir
cultural fixo, definitivo; ao contrário, faz da qual avaliamos e descrevemos o que não
parte de um processo relacional – que é his- somos. Para Silva (2014), a diferença não
tórico, discursivo e social. “O que é (a identi- é consequência da identidade, nem resul-
dade) depende do que não é (a diferença), e tado de seu processo de produção. Ambas
vice-versa” (SILVA, 2017, p. 101), sendo que se autodeterminam mutuamente, em um
também não há construção de identidade ato sem fim de criação linguística, ou seja,
sem representação. Na formação de iden- atos produzidos por nós e, por isso mesmo,
tidades, criamos formas visuais e textuais encharcados das relações de poder, disputas,
que descrevem os diferentes grupos cul- crenças e visões de mundo que carregamos.
turais e suas características (SILVA, 2000,
p. 96). Assim, os “textos” apreendidos nos Constatamos nos discursos das(os)
cantos/pontos10 das Congadas, as marcas entrevistadas(os) pares binários (identi-
deixadas, os relatos dos(as) depoentes nos dade/diferença) de forma muito evidente:
vídeos e fotografias produzidos – tanto com “nós, congadeiros(as); eles/elas, da cidade”;
relação à sua autorrepresentação quanto Campinho (onde é celebrada a festa) /
às representações produzidas pelos(as) não Centro, pobres/ricos, negros/brancos, com
praticantes – passam a ser significantes, isto estudo/sem estudo. Pode-se notar, nesse
é, sugerem como se produziram e se pro- caso, que a diferença não é o produto cultu-
duzem pluralmente as identidades dos(as) ral em si, mas o próprio processo básico de
integrantes das Congadas. funcionamento da língua e de instituições
sociais e culturais como a identidade.
Nessa esteira de discussão, é bastante
comum pensarmos o conceito de diferença Engana-se quem pensa, por exem-
plo, que basta estabelecer esses pares
identidade/diferença e tudo está definido.
10 Explicitamos os dois modos de caracterizar as Trata-se de um processo linguístico e simbó-
músicas cantadas pelos participantes dos ternos, pois lico e, como tal, é instável e indeterminado.
os(as) depoentes fizeram considerações importantes
no sentido de defender qual o modo correto de se
Em função dos interesses e das disputas dos
referir a elas, dependendo se o entrevistado era cató- sujeitos envolvidos, ele pode ser constan-
lico (canto) ou umbandista (ponto). Tais considerações temente modificado. Não é um processo
demonstram que as autorrepresentações a respeito da
imparcial – é, por excelência, um lugar de
Congada e das(os) congadeiras(os) são algo em disputa
mesmo no interior do próprio movimento. Envolvem disputa por espaço e direito à existência.
crenças e modos de ver e de se apropriar de uma cul-
tura popular, construída histórica e socialmente. Por
Conforme Silva (2014), no processo
isso, não há como se pensar em uma essência fixa ou
em uma história longínqua a ser resgatada. Trata-se de afirmação da identidade/diferença entre
de cultura e, como tal, em constante movimento e os(as) congadeiros(as) e as(os) não prati-
transformação. Sem fazer qualquer juízo de valor ou cantes, coexistem atos de incluir e excluir.
escolha por uma ou outra perspectiva, consideramos
importante, portanto, registrar os dois modos de se
Ao tratarmos das identidades e diferenças
referir às músicas. no contexto da cidade de Lambari, ficou

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estabelecido quem seriam “nós” e quem ensinados a acreditar que a branquitude12


seriam “eles”. São divisões e classificações é o padrão que tem o direito de existir, é o
que estabelecem (nunca de modo definitivo, melhor modelo (estético, epistemológico, eco-
mas sempre impositivamente) quem deve nômico, afetivo, religioso etc.) a ser seguido.
ter acesso a certos espaços, a bens sociais e Nesse sentido, a branquitude não é uma das
culturais específicos. Dividir o mundo social identidades existentes no país, mas a iden-
entre “nós” e “eles” significa classificar e tidade a ser tomada como referência. Todas
hierarquizar. Ao classificar, hierarquizamos as demais identidades ou são esquecidas ou
e atribuímos valores aos grupos por nós são manipuladas e diluídas a ponto de serem
classificados (SILVA, 2014). descaracterizadas/exterminadas (HALL,
2014). Com a Congada não foi diferente,
Uma das coisas mais cruéis e cor- uma vez que houve – e ainda há – reiteradas
riqueiras que vivenciamos em termos de tentativas de dificultar a continuidade da
identidade e diferença é a fixação de um festa, mas, na mesma medida, localizamos
dos lados desses binarismos como norma. estratégias de resistência e de luta.
A normalização é o processo pelo qual uma
das identidades é arbitrariamente definida Apesar de a fixação da identidade
como a referência para se avaliar e deter- branca como norma ser um instrumento
minar o que é “certo”, “valoroso”, “desejado”, poderoso, a branquitude não atua de modo
“natural” (SILVA, 2014). O que há de sutil infalível e, mesmo com a crueldade da colo-
e, por isso mesmo, extremamente eficiente nialidade que nos foi imposta, ela sempre
nessa fixação é que a identidade “normal” sofreu fortes abalos em sua estrutura. Assim
nem é vista como uma identidade, mas como há o movimento de essencializar a
simplesmente como a identidade. “A força identidade negra, ligando-a ao que é infe-
homogeneizadora da identidade normal é rior e negativo, há também o movimento
diretamente proporcional a sua invisibili- contrário de subverter essa fixação e de
dade” (SILVA, 2014, p. 83). construir algo novo. De acordo com Bhabha
(1996), é comum nesses embates surgirem os
No caso do Brasil, vivemos um con- hibridismos e sincretismos que subvertem a
texto histórico de fixação da identidade identidade normalizada e criam um “terceiro
branca e cristã como a norma a ser inter- espaço”, que introduz uma diferença, sendo
nalizada, desejada, alcançada. De diversas essa a possibilidade de seu questionamento.
maneiras, desde as mais sutis e cruéis ten-
tativas de apagamento da cultura negra, “Os hibridismos colocam em xeque os
passando pelo seu uso como commodity11, processos que tendem a conceber as identida-
até o sistemático extermínio material da des como fundamentalmente separadas, ao
população negra pobre das periferias, somos

12 Branquitude é uma construção sócio-histórica


produzida com base na ideia falaciosa da superiori-
11 Mais à frente, faremos uma reflexão a respeito do dade racial branca, o que permite que sujeitos consi-
conceito de comodificação da cultura, desenvolvido derados brancos adquiriram e perpetuem privilégios,
pela ativista social e teórica feminista estadunidense simbólicos e materiais, em relação aos não brancos
bell hooks. (BENTO, 2014; SCHUCMAN, 2012).

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confundir a suposta pureza de grupos sociais disputa pelas identidades religiosas entre
que se reúnem sob determinadas identida- os(as) participantes. A palavra “macumba”,
des étnicas, raciais ou nacionais” (BHABHA, por exemplo, foi o disparador de múltiplas
1996, p. 36-37). No caso da Congada, ela já representações a respeito das origens e ver-
nasce híbrida ao misturar elementos de cul- tentes dessa manifestação lúdico-sagrada.
turas historicamente relegadas a um plano Encontramos aqueles(as) que avaliaram o
subalternizado – em especial, as africanas termo “macumba” como sinônimo de mal-
– com elementos da cultura hegemônica dade, no sentido de fazer mal aos outros:
branca e cristã. Ao inserir a música, a dança
e os tambores no culto aos santos católicos, […] Tem gente que leva a Congada para o
as(os) congadeiras(os) modificaram a ortodo- lado que é “macumba”, tem um lado que a
xia dos ritos da Igreja Católica e criaram uma pessoa fala que a… é… o lado de espiritismo,
nova identidade. “A identidade que se forma é de num sei o quê, mas dentro da Congada
por meio do hibridismo não é mais integral- é feito oração, oração que é pedido pra Deus
mente nenhuma das identidades originais, abençoar as famílias. (Francisca)
embora guarde traços delas” (SILVA, 2014,
p. 87). Ou, ainda, nas palavras de Benedito, […] O pessoal fala “Congada é macumba”,
capitão de Congada: “O congado, pra mim, ele e não é nada disso, não tem nada disso […]
acaba sendo uma religião à parte, né, porque Assim, que o povo, que a gente vai na rua
nós temos dentro do congado os princípios pra fazer maldade pros outros, o povo
da umbanda dos escravos, e temos os prin- pensa isso, só que nunca teve nada disso,
cípios da Igreja Católica, do catolicismo, né”. nunca assim dentro da Congada, não é a
essência isso. (Victor)
Se, por um lado, afirmar identidades
é um instrumento político importante para Em contrapartida, houve praticantes
ocupar posições sociais, por outro, perceber que reconheceram na umbanda ou no espi-
o caráter móvel, incompleto e mutável do ritismo a origem da Congada, em função dos
processo de identificação e diferença é impor- vínculos da festa com pessoas escravizadas
tante para perceber as brechas do poder e no passado:
das identidades hegemônicas que se colocam
como norma. No entanto, não se trata de […] Foram os que iniciaram mesmo, né, que
um mecanismo fácil de acessar e manejar. o candomblé… da umbanda, né, então assim
Reconhecer a mutabilidade das identidades praticamente foram eles que iniciaram a
significa abdicar de seu porto seguro, de sua nossa cultura, né, então o catolicismo que
zona de conforto, da fixação da identidade acabou é… tomando posse disso, né […]
que lhe é conhecida, e abrir espaço para (Elaine)
outras. É se abrir para a mudança e a possi-
bilidade de extinção. Ou de fortalecimento. […] Pra falar a verdade, o congo vem do
espiritismo mesmo, dos, dos, dos, como é
Com a finalidade de evidenciar que fala? Dos escravos, então, queira ou
isso, questionamos aos(às) depoentes se a não queira, tem que acreditar porque veio
Congada era uma festa exclusivamente dessa é… lado assim, é… dos antigos […]
católica ou não, a fim de desvelar a intensa (Conceição)

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Ouvimos também pessoas que inte- e diferença, os mecanismos de fixação e


gram a Congada e se declaram umbandistas subversão das identidades não são estan-
ou espíritas, considerando essas religiões ques nem etapas facilmente discerníveis.
como partes constituintes da festa: Ao comentar sobre a importância de
Foucault para a compreensão dos processos
[…] Por que a gente conhece congado, sabe de subjetivação e identidade, Stuart Hall
mexer com congado? […] É trazido do pen- considera que há uma questão em aberto:
samento do espiritismo, sempre vai ter três,
quatro, dez, às vezes até mais num grupo, A questão que fica é se nós também pre-
só que é trazido, vindo do espiritismo. cisamos, por assim dizer, diminuir o fosso
(Anderson) entre dois domínios, isto é, se precisamos
de uma teoria que descreva quais são os
[…] Eu sou médium de umbanda, então da mecanismos pelos quais os indivíduos
umbanda tem muita ligação com o congado, considerados como sujeitos se identificam
porque são os tambores africanos, né. […] É (ou não se identificam) com as “posições”
igual eu falei pra você, eu passei a seguir o para as quais são convocados; que des-
espiritismo, aprendi muita coisa dentro dele, creva de que forma eles moldam, estilizam,
aprendo muita coisa com as entidades que é produzem e “exercem” essas posições; que
os pais véio e os preto véio… […] porque eu explique por que eles não o fazem comple-
aprendi dentro de um terreiro de umbanda tamente, de uma só vez e por todo o tempo,
as coisas sobre o Congado […] (Benedito) e por que alguns nunca o fazem, ou estão
em um processo constante, agonístico, de
A partir dos depoimentos, podemos luta com as regras normativas ou regula-
perceber quão variadas são as representa- tivas com as quais se confrontam e pelas
ções a respeito da Congada. A representação quais regulam a si mesmos – fazendo-lhes
é a marca visível, exterior da identidade e da resistência, negociando-as ou acomodan-
diferença, pois é por meio dela que esses con- do-as (HALL, 2014, p. 126).
ceitos passam a existir. Tal qual a linguagem,
a representação é instável, indeterminada, Cabe lembrar ainda que o processo
mutável e intimamente ligada às relações de de identificação não é um movimento ape-
poder, e “quem tem o poder de representar, nas autoatribuído, pois depende também
tem o poder de definir e determinar a identi- das representações produzidas pelo outro.
dade” (SILVA, 2014, p. 91). Dada a horizonta- Portanto, é compreensível que muitos(as)
lidade existente entre os ternos e seus(suas) praticantes busquem negar as relações da
participantes e o próprio caráter popular da Congada com as religiões afro-brasileiras;
festa, não há uma definição homogênea do assim como é inegável reconhecer a cora-
que é a Congada, uma vez que narrativas gem daqueles(as) que, a despeito de tudo
produzidas pelos(as) congadeiras(os) são isso, mantêm-se firmes em suas crenças
representações que caracterizam e disputam e resistem.
a constituição de suas identidades.
Não ser reconhecido socialmente
Importante atentar que, no interior é uma forma eficaz de colocar um grupo
do processo de constituição de identidade na invisibilidade. Talvez essa seja uma

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estratégia utilizada pelas pessoas “da cidade” desses motivos convenceu as(os) congadei-
que objetivam subalternizar a festa e suas ras(os). O poder público local, nesse sentido,
diferentes formas de manifestação. Contudo, estava determinado em transferir a festa do
pudemos perceber também que esses veto- Campinho para o interior de um campo de
res de força e poder também se revelam no futebol, conhecido como Campo do Águas
interior da própria prática lúdico-sagrada, (que fora o local de treinamento do antigo
sobretudo quando os(as) congadeiros(as) time da cidade, o clube Águas Virtuosas). Os
abordam a temática da religião. Na sessão representantes do poder local foram muito
seguinte, vamos aprofundar essa análise incisivos, conforme relatos dos(as) depoen-
para compreender como outras estratégias tes, afirmando que as(os) congadeiras(os)
de dominação são elaboradas por parte da seriam penalmente responsabilizadas(os)
população da cidade, e de que maneira os(as) se algo acontecesse durante a festa. Outra
praticantes se reinventam e resistem. Para estratégia adotada por autoridades munici-
exemplificar melhor, traremos à tona uma pais foi a chantagem, visto que, se a mudança
situação ocorrida no ano de 2016. de espaço não ocorresse, a verba destinada à
Congada não seria liberada no ano seguinte.

A revolta foi grande: de um lado,


alguns queriam resistir aos apelos da muni-
Relações de poder: “É a mesma cipalidade; de outro, parte do grupo queria
coisa se você tirar o Sambódromo ceder diante das ameaças. Entremeados por
e botar em outro lugar, cê esse jogo de forças, alguns ternos acabaram
tentar o carnaval no Maracanã” aceitando a mudança e se apresentando no
(Antônio de Oliveira – Madô) Campo do Águas em maio de 2016.

Em meio a esses acontecimentos, no


Ao lermos e interpretarmos o material dia da festa os ternos estavam perdidos,
empírico produzido durante as entrevis- como se não soubessem bem o que fazer,
tas, constatamos que, no ano de 2016, as para onde ir. Enquanto se apresentavam,
lideranças da Congada de Lambari foram simultaneamente o locutor que “animava”
surpreendidas pelo comunicado da prefei- a festa falava ao microfone, anunciando
tura municipal de que a festa não poderia as duplas sertanejas que se apresentariam
ser mais realizada no Campinho, bairro naquela noite, sem qualquer respeito ao
onde os ternos tradicionalmente faziam ritual. O prefeito se posicionou no local onde
seus cortejos. Várias justificativas foram estavam o Rei e a Rainha Congos, criando
apresentadas, a saber: o fato de as ruas late- uma situação constrangedora, pois prati-
rais serem muito estreitas, haveria dificul- camente obrigava as(os) congadeiras(os) a
dade no escoamento do público em caso de cumprimentá-lo, já que faz parte da tradição
emergência; a existência de um posto de saudar os reis. Ao se posicionar em um local
gasolina próximo, por efeito os bombeiros mais elevado, o prefeito tinha de ser cum-
não autorizariam a realização do evento; primentado pelos participantes do evento,
a realização em local aberto, na rua, o que e as(os) congadeiras(os), dessa forma, foram
dificultaria o policiamento – mas nenhum submetidos a saudá-lo como autoridade

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máxima do evento. Um espetáculo estranho a última, conforme alerta uma depoente:


de ser apreciado, uma espécie de reedição “[basta] um vacilo, leva, alguém pode falar,
insólita da cerimônia do beija-mão13. pode levar de volta, né?”. De acordo com
outra depoente, alguns anos antes o poder
[…] Colocar a gente num local fechado local teve a intenção de transferir a festa
não condiz com o nosso movimento, né, para o antigo Clube dos Cavalos, situado a
não condiz com o movimento de liberta- oito quilômetros do centro, na zona rural,
ção da escravatura, de repente colocar a um local sem estrutura e sem nenhuma
gente enjaulou a gente, e toda a população relação com a tradição histórica da Congada
reclamando que eles não conseguiam sentir em Lambari.
nem a vibração do tambor […] Nós mesmos
que estávamos lá com os tambores na mão É preciso denunciar essas reiteradas
e com os nossos cantos…a gente tava mais tentativas de velar, marginalizar e silenciar
triste do que tudo. (Elaine) as práticas sociais atribuídas às comunidades
negras e pobres, a fim de que os processos
[…] É tipo assim, cê já experimentou comida de resistência se fortaleçam e os jogos de
sem alho e sem sal? […] A gente chegou… poder sejam descortinados. Essas tentati-
aí viu os ternos parados lá, entendeu, e eu vas de controle estão no exercício das rela-
sentia assim como se fosse…curral… é tipo ções sociais de poder, não apenas daquelas
um cercado, um curral […] (Anderson) emanadas pelo Estado. O poder não deve
ser entendido como algo que se possui com
[…] Horrível, horrível… Congado não é pra o objetivo de submeter pessoas e grupos
lugar fechado, Congada é na rua, Congada verticalmente ao interesse das classes domi-
é pro povo, né […] Todo terno de Congado nantes, haja vista que o consideramos como:
que foi lá embaixo tava murcho, tava sem “[…] uma ação sobre outras ações, todas elas
brilho, tava sem aquela força, aquela ener- pulverizadas, distribuídas, capilarizadas,
gia, aquela irradiação boa que a gente sente. manifestações de uma vontade de potência
(Benedito) cujo objetivo é estruturar o campo das ações
alheias” (VEIGA-NETO, s.d., p. 18).
Vale ressaltar que a tentativa de tirar
a Congada das ruas da cidade em 2016 não Utilizando, portanto, as perspectivas
foi a primeira e, possivelmente, não será pós-estruturalistas sobre o poder, é impor-
tante notar que, segundo Foucault, onde há
poder, há possibilidade de resistência. Para
Judith Revel (2005), o conceito de resistên-
13 O beija-mão é uma tradição de reverência a per-
sonalidades importantes, praticada em várias cultu- cia em Foucault se difere de transgressão
ras há muitos séculos. No Brasil, foi uma cerimônia quando o sujeito consegue, proposital ou
instituída pelo rei português D. João VI após a vinda
fortuitamente, escapar dos dispositivos de
da corte para o país, em 1808. O rei se sentava em seu
trono e então se formava uma fila enorme de pessoas identificação, classificação e normaliza-
que vinham – estupefatas com a presença da figura ção do discurso. A partir da necessidade
real – beijar-lhe a mão, para prestar reverência e obe- de colocar o problema da transgressão em
diência. Era o momento em que a população aprovei-
tava para fazer pedidos e reclamações a respeito de
um plano coletivo e de modo mais geral
suas necessidades mais prementes. (abrangendo também as práticas não

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discursivas), é que o autor desenvolveu o não vêm somente de uma instituição (a


conceito de resistência: prefeitura, a polícia ou os bombeiros) como
representação de um poder centralizado,
[…] a resistência se dá, necessariamente, exterior às ações e à influência das pessoas.
onde há poder, porque ela é insepará- Essas ações penetram as relações sociais de
vel das relações de poder; assim, tanto a forma capilarizada e se ramificam pela via
resistência funda as relações de poder, dos discursos, das “piadas”, dos olhares, dos
quanto ela é, às vezes, o resultado dessas risos, das expressões faciais, ou seja, por meio
relações; na medida em que as relações de daquilo que também não é dito. Do mesmo
poder estão em todo lugar, a resistência é a modo, a resistência se constitui como parte
possibilidade de criar espaços de lutas e de desse processo e se fortalece ao criar novos
agenciar possibilidades de transformação campos de disputa pelo reconhecimento e
em toda parte (REVEL, 2005, p. 74). pela ocupação dos espaços sociais.

Algumas características do conceito A título de explicitar os processos


de resistência são importantes de com- de resistência envolvendo a Congada de
preendermos: ela não é anterior ao poder, Lambari em 2016, deixamos registrado que
é sua contemporânea. Não há anterioridade as(os) congadeiras(os) se organizaram para
lógica ou cronológica entre os dois, de modo composição de um abaixo-assinado e, bra-
que o par poder/resistência não opera sob a vamente, conseguiram retomar o espaço
mesma lógica do par liberdade/dominação. sagrado do Campinho:
Nessa direção, Revel (2005) aponta que a
resistência tem as mesmas característi- […] O espaço do Campinho é um espaço
cas do poder, sendo tão inventiva e móvel sagrado, então assim, quando a gente desce,
quanto ele, consolidando-se e disseminan- tá descendo o morro pra entrar no Campinho
do-se na teia das relações – vem de baixo a energia é muito forte, a gente sente uma
e nela se distribui estrategicamente. Por vibração muito forte, a gente não sabe expli-
outras palavras, a resistência não é exte- car e… É uma emoção assim que todos falam
rior ao poder, mas nasce com ele, abrindo a mesma coisa, a gente tem uma energia
espaço para a criação de novas estratégias, assim, coisa de ancestralidade, né, a gente
assim como o movimento contrário ocorre sente a presença muito forte, a presença
frequentemente. Poder e resistência, por- espiritual muito forte, muito […] que fica
tanto, constituem uma espécie de limite centralizada naquele espaço ali. (Elaine)
permanente, onde há “atração recíproca,
encadeamento indefinido e inversão perpé- Mais potente até que o próprio retorno
tua” (FOUCAULT apud REVEL, 2005, p. 76). ao Campinho em si, foi o que a situação

As repetidas investidas para controlar,


reprimir e modificar o “corpo”14 congadeiro corpo negro é controlado, mutilado, modificado (as
recorrentes tentativas de afinar o nariz ou alisar o
cabelo, por exemplo) com o intuito de enquadrá-lo ao
ideal da branquitude. Aproximamos essa noção do
14 Utilizamos aqui “corpo” congadeiro como uma refe- corpo individual ao organismo social formado pelos
rência ao que acontece no plano individual, quando o congadeiros e congadeiras da cidade de Lambari.

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extrema da expulsão daquele espaço pro- […] têm muitas pessoas da Congada não
porcionou a parte das(os) congadeiras(os) sabem a força que têm, entendeu? Então,
envolvidas(os). Ou seja, o fato dos(as) prati- quando demonstra a força que tem, aí aquilo
cantes terem sidos coagidos(as) a saírem do cria força, se recua, aí os maiores vêm e
Campinho acabou incitando uma reflexão te faz ficar bem pequenininho, que foi o
crítica coletiva sobre a importância do local caso que aconteceu de colocar lá. Na hora
para a festa, com destaque à percepção da que viu que não deu, que não num tinha
indissociabilidade entre a Congada e seu cabimento, e o pessoal da Congada viu que
espaço tradicional de celebração. Mais do não ia mais e chegou ao ponto de falar que,
que isso, despertou em muitas(os) a força se fosse lá embaixo ninguém ia, então foi o
coletiva do grupo, no sentido de intervir que aconteceu, aí que retornou, porque aí
e exercer influência nas decisões concer- eles sabem a força que a Congada tem. […]
nentes à apropriação e ao uso dos espaços A festa é nossa, então quem resolve quem
públicos da cidade. tem que resolver as situações da nossa festa
é o próprio congadeiro. (Rosário)
[…] Num tinha nem como eu não confrontar,
bater de frente por todos, né, e até pra gente Os referidos excertos, apesar de lon-
mostrar pras pessoas que estão também na gos, trazem a lume o movimento legítimo de
Congada, que eles têm que lutar pelo obje- reinvindicação desse grupo cultural especí-
tivos deles, porque, se a gente aceitar a ser fico para ter a sua manifestação lúdico-sa-
manipulado, a gente nunca vai conseguir grada reconhecida e representada na esfera
mudar, né, então essa questão da manipu- da cidade. Em segunda instância, os trechos
lação é uma coisa perigosa e a gente tem das entrevistas destacam a composição cole-
que trabalhar com essa veia identidade, a tiva como um importante instrumento de
gente saber por que tá ali, pra gente saber o luta política frente às investidas do poder
porquê que a gente tá brigando. Senão fica público na tentativa de instituir um terri-
aquela coisa: “Joga aqui”, ah, não! Aí joga tório outro à Congada. Por fim, fornecem
onde eles querem sem nem nos perguntar, diretrizes sobre a importância da tradição e
saber se a gente tá feliz, se a gente tá gos- o reconhecimento dessa prática como patri-
tando do que foi feito, né, isso não teve mônio cultural que necessita ser legitimado.
nenhum cuidado, simplesmente colocaram,
né, jogaram a gente lá e não tava preocu- A questão da tradição é acionada
pado com as pessoas, tava preocupados discursivamente por vários(as) congadei-
com o que o movimento traria de retorno… ros(as) entrevistados(as) como argumento
(Elaine) fundamental para o reconhecimento da
Congada como patrimônio cultural, bem
[…] Eles têm que botar uma coisa na cabeça: como para legitimar a realização da festa no
a Congada é festa popular, é do povo, enten- território em questão. Tia Ia, devido à idade
deu? A parte do administrativa da cidade avançada (108 anos), não acompanhou de
tem que ficar com a parte administrativa perto a questão do Campo do Águas, mas
– é montar uma tenda, um palco que seja, nos confirmou que a festa sempre ocorreu
o restante entrega à comunidade, tendeu? naquele local: “Toda vida era ali”. Nessa
(Anderson) busca incessante pelo reconhecimento, o

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grupo vem empreendendo uma luta cole- observamos nos dias atuais. Com maestria,
tiva para tornar o Campinho parte do patri- a autora demonstra que, durante o século
mônio cultural de Lambari. XV, quando dos primeiros contatos entre
portugueses e africanos da região central,
[…] Fiz o abaixo-assinado, tivemos quase tanto o rei português quanto o soba con-
duas mil assinaturas que a gente conseguiu golês tinham a prática de sempre se faze-
coletar pra levar no poder público, pra gente rem acompanhar de grande cortejo – com
retomar o nosso espaço de origem. Então música, dança e encenação – quando se des-
hoje a gente retomou com força total, a locavam entre cidades ou países. O costume
gente tá no nosso espaço agora, e a gente de fazer esses ricos cortejos também ocorria
nunca mais vai sair, né, então tô, numa ten- em situações nas quais embaixadores iam
tativa, num processo pra tentar tombar representar o rei em terras distantes. Era
como patrimônio imaterial lá o espaço, né. uma forma de demonstrar o poder real.
(Elaine)
Nesse sentido, além das justificati-
[…] O congado é ali, e a raiz dele é ali […] Eles vas locais referentes ao caso específico de
vivem querendo dar o lugar pro congado, o Lambari, a historiografia (MARTINS, 1997;
congado ele já tem o lugar dele aqui, quando MELLO E SOUZA, 2002; MONTEIRO, 2016;
ele é enraizado num lugar é naquele lugar, SILVA, 2016; SOUZA, 2018) sobre o tema
cê entendeu? (Benedito) atesta que a origem da Congada está ligada
à tradição dos cortejos reais. Pensar em
[…] Congada não é uma manifestação limitar a festa a um local fechado, portanto,
fechada, Congada se movimenta, então é submeter seus significados a uma lógica
não tem como se limitar, botar, coloca oito totalmente extemporânea, alimentada por
ternos de Congada no mesmo lugar e ficar interesses mercadológicos e embebida de
parado e dança um pouquinho, apresenta preconceito, discriminação e racismo.
e um apresenta outra, Congada não é isso,
Congada evolui, anda, ela anda, anda pelos
bairros, anda pela cidade, anda pelas ruas…
é assim, faz as visitas tudo, então o foco da
gente é aqui. (Rosário) Alinhavando experiências
congadeiras de resistência
Com relação a esse último depoi-
mento, da congadeira Rosário, cabe res-
saltar que a liderança da festa lembra Obviamente que o movimento de
muito apropriadamente que a tradição da resistência ora problematizado no con-
Congada é a mesma do cortejo. Sobre o texto da Congada em Lambari (MG) não é
assunto, Marina de Mello e Souza (2002) homogêneo, tampouco definitivo. Foi tecido
reconstitui de que forma os cortejos e as por meio de avanços, retrocessos e ressig-
embaixadas já existiam em África antes nificações. As experiências congadeiras
mesmo da vinda forçada de africanos escra- de resistência foram parte dos processos
vizados às Américas. Tinham, entretanto, de identificação e produção das diferen-
significados bem distintos daqueles que ças pelos indivíduos que integram a trama

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da cidade. Na medida em que o sujeito se nossa história seja vista e reconhecida, mas
nomeia como parte de um grupo, anuncia por que desejamos isso? Quais são os grupos
sua representatividade e seu pertencimento interessados nisso?
no que concerne a determinada prática cul-
tural, constituindo sua identidade, a ponto Analisando o contexto cultural esta-
de disputar a apropriação de espaços públi- dunidense na contemporaneidade, bell
cos com o poder local. hooks15 (2019) pondera que hoje há muito
interesse, por parte da branquitude, nas
Apesar de considerarmos marcan- manifestações culturais de grupos etni-
tes os acontecimentos ocorridos em 2016, camente “diferentes”. Ocorre que esse
por expressar a força do grupo, conside- “interesse” é meramente recreativo e atua
ramos primordial salientar que a resistên- apenas como um “tempero” na cultura
cia dos(as) congadeiros(as) de Lambari se branca homogeneizada. A autora salienta
manifesta cotidianamente nos momentos que, enquanto esse interesse não trouxer
em que os tambores rufam, as saias rodam consigo o compromisso de questionar de
e as vozes harmonicamente ecoam juntas fato as relações de poder que produziram
pelas ruas do Campinho. Sem isso, perma- as diferenças entre esses grupos, ele ape-
neceriam escondidas a vida e a trajetória nas reforçará o status quo. Essa percepção
de um povo, em sua maioria negro e pobre, “turística” da diferença que apenas con-
que, por diversos fatores, pouco opina e some as diversas manifestações culturais
participa politicamente das decisões de seu “exóticas” constitui aquilo que hooks con-
bairro, sua cidade e seu país. ceitua como “comodificação” da cultura,
ou seja, tornar a cultura apenas mais uma
Diante do racismo diário que busca entre várias mercadorias (commodities) a
invisibilizar a população negra, existir é serem consumidas.
a resistência primordial. A Congada de
Lambari possibilitou que os(as) pratican- A crise de identidade contemporânea no
tes seguissem outros caminhos, pensassem Ocidente, especialmente a vivida pelos
outros pensares e vivessem outros viveres jovens brancos, é amenizada quando o
diante do preconceito que tenta esquar- “primitivo” é recuperado pelo foco na
tejar a alma desses sujeitos, seus corpos e diversidade e no pluralismo que insinuam
seus movimentos. Portanto, ao vestirem que o Outro pode fornecer alternativas
suas roupas coloridas e entoarem sua his- que deem sentido à vida […] Enquanto
tória, dizem a todos: “Estamos aqui! E não isso, grupos marginalizados, considerados
vamos sair!” Outros, que têm sido ignorados, tratados
como invisíveis, podem ser seduzidos pela
Seria ótimo simplesmente finalizar
este texto com um grito verdadeiro e neces-
sário. Mas cabe lembrarmos que, devido aos
processos de globalização, nunca é demais 15 Grafaremos o nome da teórica feminista con-
problematizarmos nossos discursos e pen- forme seu desejo, explicitado em “A pedagogia negra
e feminista de bell hooks”. Disponível em: https://
samentos, ou seja: para que(m) esse reco- www.geledes.org.br/a-pedagogia-negra-e-feminista-
nhecimento é necessário? Queremos que -de-bell-hooks/. Acesso em: 7 jan. 2021.

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ênfase na Outridade16, pela sua comodifi- um certo essencialismo cultural, pelo


cação, porque ela oferece a promessa de qual as diferenças culturais são vistas
reconhecimento e reconciliação (hooks, como fixas, restando apenas respeitá-las.
2019, p. 73).
Nesse sentido, as diferenças não
Nesse tipo de reconhecimento em que devem ser simplesmente respeitadas e
as relações de poder não são discutidas, toleradas, pois, por mais desejável que isso
em que não se questiona como o racismo possa parecer, essas representações são
e as desigualdades sociais impactam quem forjadas por meio de relações assimétricas e
é dominado e quem domina, tais culturas desiguais. A percepção dessas questões não
consideradas exóticas são apenas pano de deve, porém, fomentar um sentimento de
fundo para as questões do mundo branco desânimo, fatalismo e tristeza; pelo contrá-
capitalista guiadas pelas motivações de rio, deve nos mostrar a potência que temos
mercado e de lucro. Aquele que solicita o em nossos corpos e perceber que o “desejo
contato com essa outridade – muitas vezes, desestabiliza, subverte e torna a resistência
de modo entusiástico e elogioso – deseja, possível. Não podemos, entretanto, aceitar
ao mesmo tempo, que as fronteiras que o essas novas imagens acriticamente” (hooks,
separa desse outro permaneçam intactas. 2019, p. 95) (grifo nosso).
Desse modo, diluindo os significados de
seus símbolos, “comunidades de resistên-
cia são substituídas por comunidades de
consumo” (Ibidem, p. 85). [ ALINE GUERRA DA COSTA ]
Professora de história da rede pública no estado
Esses aportes conceituais nos permi- de Minas Gerais e mestra em Educação pela
tem colocar em suspeição as relações teci- Universidade Federal de Lavras (Ufla). Integrante
das entre os(as) congadeiros(as) e os demais do grupo de pesquisa Relações entre filosofia e
sujeitos que integram a cidade de Lambari, educação para a sexualidade na contemporaneidade:
na medida em que desvelam o olhar contem- a problemática da formação docente.
plativo, respeitoso e, por vezes, até tolerante E-mail: aline.gu@gmail.com
acerca da Congada. Para Silva (2017, p. 88):
[ CLÁUDIA MARIA RIBEIRO ]
Apesar de seu impulso aparentemente Professora titular aposentada da Ufla. Integrante
generoso, a ideia da tolerância implica do grupo de pesquisa Relações entre filosofia e
também uma certa superioridade por educação para a sexualidade na contemporaneidade:
parte de quem mostra tolerância. Por a problemática da formação docente.
outro lado, a noção de respeito implica E-mail: ribeiro@ded.ufla.br

[ FÁBIO PINTO GONÇALVES DOS REIS ]

16 O conceito de “Outridade”, segundo hooks, difere Professor associado da Ufla. Integrante do grupo
do conceito do “outro” psicanalítico ou etnográfico de pesquisa Relações entre filosofia e educação
(para o qual poderíamos utilizar o termo “alteridade”). para a sexualidade na contemporaneidade:
Aqui, o outro pode ser alguém próximo, de nossa con-
a problemática da formação docente.
vivência, cujas diferenças que o constituem são trata-
das como algo exótico. E-mail: fabioreis@ufla.br

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Referências

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Maria Aparecida Silva; CARONE, Iray (org.). Psicologia social do racismo: estudos sobre
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BHABHA, Homi. O terceiro espaço. [Entrevista cedida a] Jonathan Rutherford. Revista


do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Brasília, DF, n. 24, p. 35-41, 1996. Disponível
em: https://bityli.com/nFMs0. Acesso em: 2 jan. 2020.

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Educação) – Universidade Federal de Lavras, Lavras, 2020.

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Del Rei (1787-1841). Belo Horizonte: Clio Gestão Cultural e Editora, 2017.

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em: https://bityli.com/2VLcB. Acesso em: 9 jan. 2020.

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