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MOLLICA, Fabio. Di Stanislavskij e Del Significato Di Perezivanie.

In: TEATRO E STORIA


11 /a. VI, n. 2, ottobre, Il Mulino, Bologna, 1991, pp. 225-255. Traduzido para fins didáticos
por Laédio José Martins, Mar./Abr. 2017.

Fabio Mollica, Sobre Stanislávski e o significado de “perezivanie”. Análise do valor


semântico do verbo russo “perezivat” e do substantivo “perezivanie” tal como são utilizados
por Stanislávski. O autor leva em consideração todas as nuances de significação que ambos os
termos têm na língua falada, bem como na cultura do teatro e das obras literárias russas. Por
estas razões, ele demonstra que os termos italianos “rivivere” e “reviviscenza”, adotados nos
estudos italianos sobre Stanislávski, não abrangem os seus múltiplos significados. Uma imagem
essencialmente nova de Stanislávski resulta, obrigando assim qualquer pesquisador a considerar
o vocabulário de Stanislávski com uma maior atenção filológica.

Resumo [Abstract] disponível em: http://www-static.cc.univaq.it/culturateatrale/teasto/ts-


n11.php Acesso 16/03/2017, 14:00 hrs.

SOBRE STANISLÁVSKI E O SIGNIFICADO DE PEREZIVANIE


Fabio Mollica

1. Nestas páginas pretendemos dar ao leitor uma análise do valor semântico que o verbo
russo perezivat e o substantivo perezivanie adquirem no vocabulário da Stanislávski. É nossa
convicção que “reviver” e “revivescência”, termos escolhidos e usados pela tradição dos
estudos italianos de Stanislávski, não aproveitam plenamente a complexidade semântica.
É sabido, e suponho isso por que traços do discurso sobre Stanislávski e seu sistema são
encontrados em todas as regiões da cultura teatral deste século [XX], que a reflexão sobre
perezivanie1 ocupa um lugar central na vida teatral de Stanislávski. No entanto, o
reconhecimento desta tamanha importância ainda não encontrou um espaço adequado na
historiografia. Não analisaremos aqui as causas e os efeitos, em vez disso, vamos lançar as
bases para uma completa e aprofundada análise do problema.
Para tentar capturar o maior número possível de tonalidades, e ao mesmo tempo dar uma
ideia clara de mudança ou da persistência no tempo do significado do termo em questão, vamos
avançar aos saltos dentro de uma estrutura recortada por nós do universo de documentos
acessíveis, ou seja, os materiais publicados relacionados de alguma forma com a experiência
teatral ou pelo menos com a vida de Stanislávski.
Perezivat’ e perezivanie pertencem, antes mesmo de Stanislávski, à Rússia, à sua cultura
teatral, à sua literatura, à linguagem falada de seu povo. Embora seja impossível, dentro dos
limites deste trabalho, desenvolver uma análise global, ainda há o ponto de vista que guia o

1
De agora em diante evitaremos o itálico, introduzindo o substantivo no uso comum do nosso vocabulário.
nosso recorte da estrutura, uma pesquisa documental, a fim de criar um ambiente que ajude a
produzir sentido.
O vocabulário de Stanislávski será analisado através de seus cadernos de anotações, sua
correspondência, registros estenográficos dos ensaios com os atores e dos livros. Em seguida,
o testemunho de alguns críticos/ensaístas, profundos conhecedores de Stanislávski, foram os
primeiros que escreveram sobre ele e seu trabalho. A linguagem da rua e as vozes dos
dicionários ajudarão a entrar no assunto, mergulhos rápidos e direcionados na literatura teatral
oitocentista contribuirão para enriquecer a perspectiva.
Capítulo ausente deste ensaio é o que deveria levar em consideração a literatura teatral
da Rússia subsequente à morte de Stanislávski (1938). Mas isso seria abrir uma perspectiva de
estudo totalmente diferente da preparada aqui, o que provavelmente teria sobrecarregado e
desviado o trabalho empurrando-o pelas vias de um estudo biblio-historiográfico.
Perigo grave, seja para o autor como para o leitor, seria não levar em conta os limites
dentro dos quais nos movemos: não é do sistema de Stanislávski que se trata aqui, mas
simplesmente do valor semântico que a palavra perezivanie assume no vocabulário desse
artista. Este é, de fato, um ensaio introdutório ao estudo de Stanislávski, não é uma análise
específica do seu trabalho teatral e de sua atividade como ator, diretor e pedagogo.
2. Ao viajante que é guiado pelo desejo de se perder e confundir-se entre as pessoas de
uma cidade russa, evite lugares, itinerários e funcionários de turismo. Procure nos murmúrios,
nos olhares, nas atitudes habituais da vida cotidiana de homens e mulheres sem a consciência
do olhar estranho, acontecerá de ouvir um caixa de supermercado, de olhar ausente e de mãos
perigosamente hábeis, respondendo a um colega rigorosamente atento em esconder o seu ócio
no inútil empilhamento de garrafas de suco búlgaro, que ninguém quer, que ninguém compra,
e que preenchem as prateleiras vazias. O diálogo, breve, seco, provavelmente óbvio, talvez
ritual diário, o viajante perceberá assim: “Como vai?”, pergunta o segundo. “Hoje perezivaju!”,
responde o caixa, com uma careta cansada do lábio superior2.
O nosso viajante ouvirá o verbo perezivat’ conjugado, escutando os murmúrios das
pessoas tranquilas em longas filas, em aparente imobilidade, na expectativa de conquistar o
direito à subsistência.
E ainda o encontrará na boca do judeu que espera há décadas permissão para emigrar,
no jovem que não encontra motivo na esperança de ter uma casa no futuro, para formar uma

2
Já estará claro para o leitor que as fontes deste parágrafo não são senão o conhecimento direto que o autor possui
das cidades e dos cidadãos russos. Destacamos o russo por desejar precisão e distinção das outras culturas
presentes na União Soviética.
família, no intelectual desempregado que não consegue entender o que possa significar o seu
ofício na economia de mercado.
Perezivat’ na linguagem da rua expressa um sentimento inquieto, mesclado de tristeza
e opressão, uma amargura gerada pela confusão de pressentimentos tristes e lembranças
dolorosas, expressa maus momentos, futuro sombrio, experiências que influenciaram e
continuam a influenciar negativamente nossas vidas.
Para o vocábulo Perezivat’ num moderno dicionário russo-italiano lemos: estar na dor,
estar preocupado, angustiar-se, mas também experimentar, suportar, sentir e, no sentido teatral,
identificar-se3. Perezivanie: geralmente usado no plural, emoções, impressão vívida,
palpitações; os exemplos dados têm um significado tendendo para o sofrimento, para a dor.
No dicionário de língua russa de 1822 não aparece o termo perezivanie, e, quanto ao
verbo, assinala o significado de: viver mais tempo do que outros ou viver a serviço em muitas
casas ou para muitas pessoas4.
Dal’, no dicionário da língua russa elaborado por ele em 1882, dá a perezivat’ os
significados de viver mais tempo do que outros, tentar, ver, suportar muito no seu tempo, muitas
vezes viver mudando. Perezivanie é uma condição de ser, um estado; ele não adiciona nenhuma
especificação. Na edição de 1907, as definições permanecem as mesmas5.
Rozanova e Matveev, em 1959, dão a perezivanie o significado de estado psíquico
particular que se expressa na presença de qualquer sensação ou sentimento. Perezivanie é
experimentar agitação, ansiedade, trepidação, emoção, comoção, ou, no sentido teatral,
interpenetração com os sentimentos e pensamentos do personagem representado. Pode ser
interessante notar aqui que o autor escolhe como exemplo um trecho das memórias de Pavel
Orlenev, um ator de tradição russa: “Encontrei em mim ainda novas entonações, tentando
representar sem ênfases, interpenetrando [perezivat’] o meu papel”.6
Perezivanie para Ozegov (1960) é um estado de espírito que se manifesta na presença
de fortes impressões7.
Não encontramos nos vários dicionários, e consultamos muitos outros não citados aqui,
o significado de reviver ou revivescência. Afim de que perezivat’ assuma o significado de

3
Ver B.N. Maizel’- N.A. Skvorcova. Dicionário Russo-Italiano [Russko-italianskj slovar’], Moscou. Russkij
Jazyk, 1977.
4
Ver Dicionário das Academias Russas [Slovar Akademij rossijskoj], 1822.
5
Ver V. Dal’, Dicionário Explicativo da Língua Russa [Tolkovoyj slovar velikorusskogo jazyka], Moscou, S.
Petersburgo, 1882.
6
V. V. Rozanova – I. I. Matveev, Dicionário da Língua Russa [Slovar’ russkogo jazyka], Moscou, Academia de
Ciências da URSS [Akademija Nauk SSSR], 1959.
7
Ver S. J. Ozegov, Dicionário da Língua Russa [Slovar’ russkogo Jazyka], Moscou.
reviver ele precisa ser precedido pelo advérbio vnov’: “de novo, novamente”. Hoje em dia,
revivescência em russo se traduz por ozivlenie, no significado fisiológico de voltar à vida, ou
num sentido figurado vozrozdenie, que significa renascimento, renovação, despertar.
Mas o que há por trás dessa “revivescência” que a historiografia teatral italiana atribuiu
à perezivanie de Stanislávski?
3. Ettore Lo Gatto foi o primeiro estudioso ocidental a apresentar um estudo abrangente
sobre a história do teatro russo. Até hoje a sua obra é considerada insuperável no seu gênero. 8
Sua força reside na amplitude da base documental, na inteligência crítica com a qual o autor foi
capaz de usar as aquisições da historiografia teatral russa e, não menos importante, o
conhecimento direto dos personagens com seus próprios espetáculos, seus trabalhos teóricos,
seu próprio Estúdio, com os quais escreveu as páginas mais importantes do teatro
contemporâneo. Esta grande riqueza transparece no retrato que Lo Gatto nos dá de Stanislávski,
mas aqui nos interessa apenas o significado atribuído a perezivanie.
Para nosso autor, perezivanie, na linguagem teatral, “é a reprodução, por obra do ator,
daquele estado psíquico que se acredita que deva estar no personagem representado.
Stanislávski distingue a arte do “reviver” no sentido indicado acima, arte que tende a sentir a
sensação do papel a cada vez e em qualquer criação; a arte da “representação”, a qual tende a
reviver o papel uma só vez [...] e finalmente o ‘ofício’ [...]”9. Nos parece ser possível
compreender de uma vez nesta passagem que tipo de passo em falso linguístico tem marcado
tanto da historiografia subsequente. Reproduzir o estado psíquico do personagem não conduz
forçadamente ao reviver, e o fato de que na primeira vez Lo Gatto dê o termo entre aspas pode
nos fazer pensar que ele o está aplicando no sentido de gíria, mas não é assim, porque logo
depois, e na sequência de seu livro, muitas vezes o utiliza sem aspas. Observamos também que
“sentir a sensação do papel” está longe, em sentido próprio, de reviver. Podemos pensar que Lo
Gatto, depois de ter lido as obras de Stanislávski e de seus biógrafos, se convenceu de que
reviver era o termo mais apropriado para expressar, sintetizando para evitar fórmulas longas, o
verdadeiro significado de perezivat’ para Stanislávski. Na verdade, Lo Gatto tinha conhecido o
Stanislávski dos anos 30, tinha falado com seus colaboradores e com seus alunos, sabia que na
última década de vida a ênfase cada vez mais recaiu sobre o agir, sobre executar ações que
pudessem gerar expressões de sentimento e não vice-versa. Ele entendeu que perezivanie-ação
de reviver assumia uma conotação de passividade, remetia ao plano das teorias naturalistas, que
provavelmente esse termo pertencia ao vocabulário do jovem Stanislávski, incapaz de se livrar

8
Ver E. Lo Gatto, História do Teatro Russo [Storia del teatro russo]. Firenze. Sansoni, l9632, vol. 2.
9
Idem, vol. II, p. 185.
dele nos anos de maturidade. Aproveitando precisamente este desenvolvimento, Lo Gatto
explica que ao longo dos anos Stanislávski esclareceu a sua ideia de perezivanie: “‘A verdade
na arte – disse ele – é aquilo em que o artista acredita’. É evidente que o ‘reviver’ nesse sentido
foi perdendo a sua cor natural, porque o artista pode acreditar na realidade da imagem criada
por ele, mesmo que seja a mais fantástica”10.
Sabemos assim que Lo Gatto, embora consciente do fato de que perezivanie vivesse no
tempo (e nas pessoas, conforme sua fala, Nemiróvitch-Dântchenko era um estrito defensor da
perezivanie em seu sentido naturalista mais extremo), com diferentes significados semânticos,
no entanto escolheu definitivamente um termo tão difícil de utilizar e conjugar no universo da
reflexão e da prática do trabalho do ator.
O termo “revivescência” vem usado com força por outro grande estudioso da cultura
russa, Angelo Maria Ripellino. Um par de gerações mais jovem que Lo Gatto, formado na
Rússia da segunda metade dos anos 50 em contato com intelectuais e artistas que
testemunharam o horror de décadas de opressão das consciências, Ripellino faz de seu livro
sobre os mestres russos de Direção [Teatral] um tipo de canção libertadora que toma forma
numa cascata contínua de adjetivos colorísticos, num processo assinalado por contínuos
julgamentos incisivos destinados a reabilitar certas instâncias do teatro e a condenar outras. 11
A lenta e pedante filologia de Lo Gatto é suplantada pela aberta parcialidade de Ripellino. O
historiador é suplantado pelo poeta, a análise dialética pelo julgamento sem apelação. Faz
lampejar imagens, ditas por metáforas, estranhadas pela combinação de opostos, remetendo
continuamente ao universo de todas as artes. Imerso nessa atividade poética, Ripellino escolhe
o substantivo revivescência, que pertence basicamente ao vocabulário da biologia e da teologia
católica, para traduzir perezivanie: “A lei do ator de Stanislávski era de fundir-se com o
personagem, de ser e não parecer, de não representar, mas viver, ignorando o público (daqui a
quarta parede). Desta lei emerge o conceito de ‘perezivanie’ (revivescência), oposto à
‘predstavlenie’ (representação): se articulando sem reservas com a figura encarnada, o
intérprete teria que sofrer o papel, como um excerto de vida autêntica”12.
Ripellino não historiciza, não aproveita nenhum desenvolvimento, não busca nenhuma
lógica dialética. Os cinquenta anos de vida teatral de Stanislávski aparecem esmagados,
achatados numa espécie de homogeneidade atemporal que permite ao historiador ao menos
criar mecanismos de distinção, instrumentos calibrados para obter de vez em quando a justa

10
Idem, vol. Il, p. 185.
11
Ver A. M. Ripellino, O Truque e a Alma[Il trucco e l‘anima], Torino. Einaudi, 1965.
12
Idem, p. 79.
medida da precisão. Alguns parágrafos adiante Ripellino escreve sobre perezivanie como “um
tipo de fotografismo resignado e apático”. Na verdade, em toda a estratégia do livro Stanislávski
é utilizado como uma vítima a ser sacrificada no altar de Meyerhold; é o exemplo negativo da
soma do naturalismo, realismo e psicologismo que se opõem à positividade da modernidade
“criativa” e construtiva.
Nos ocorre que Ripellino tenha escolhido propositadamente um termo como
revivescência, com sentido evidentemente negativo, para traduzir perezivanie. Para adicionar
um elemento a mais naquele retrato de obsolescência cinza a que ele queria limitar Stanislávski,
bode expiatório para as falhas hipotéticas que de geração em geração cada nova poética
reconhece na anterior13.
4. O jovem Stanislávski, em abril de 1889, refletindo sobre um de seus desempenhos
atorais na Sociedade de Arte e Literatura de Moscou, escreve que o ator, além do talento e de
outras qualidades necessárias deve desenvolver uma familiaridade na cena e com o público,
controlar os nervos e possuir autocontrole. Se não se realizam estas condições, continua, não
será possível viver em cena, abandonar-se, dar-se ao papel e levar a vida sobre as tábuas do
palco. Escreve: “Felizmente eu chamei estas aquisições do ator a sua gramática, as suas leis
elementares. Do mesmo modo que não é possível ler livremente e compreender [perezivat’] o
que se lê, se letras e sinais de pontuação distraem a atenção do leitor”14.
Para o jovem Stanislávski perezivat’ é sentir, experimentar emoção, envolvimento
emotivo, comprometimento emocional. Mas o termo se repete muito raramente no vocabulário
de seus anos juvenis e na virada do século. Em uma carta a Nemiróvitch-Dântchenko, de junho
de 1898, Stanislávski usa perezivat’ referindo-se à vida privada de um ator do Teatro de Arte
[de Moscou], no sentido usual de experimentar sofrimento moral. 15 Com o mesmo significado
o termo aparece usado em outras cartas escritas nos primeiros anos do século.16 Na mesma
acepção, encontraremos em seu léxico particular, com maior ou menor intensidade de presença
em relação às condições íntimas e aos eventos sociais.
Em uma série de anotações de Stanislávski datadas entre 1899 e 1902 encontramos:

Estudar o papel em casa, chorá-lo ou ri-lo em casa. Viver todos os estados de ânimo em casa.
Enquanto experimenta [perezivat’] os estados de ânimo, a autocrítica, que deve estar sempre com todo
ator, deve perceber como tecnicamente se expressam todos os estados de ânimo e o que faz vir à tona no

13
Depois dos estudos de Lo Gatto e Ripellino, reviver e revivescência entraram na linguagem dos estudiosos
italianos de Stanislávski, e com algumas raras exceções são aceitos sem críticas.
14
K. S. Stanislávski, Iz zapisnych knizek (Dos cadernos de anotações), Moscou, VTO, 1986. t. I. p. 55. A partir
daqui citado como Anotações.
15
Ver K. S. Stanislávski. Sobranie Socinenij (Coleção das obras). Moscou, lskusstvo, 1954-1961, t. VII, Pis’ma
1886-1917 (Cartas), p. 133. Daqui em diante citado como Cartas.
16
Idem, pp. 169, 190, 267, 293.
ator o sentimento espontâneo. Desta forma se compõe uma gama de sentimentos, estados de ânimo,
transições, um sistema inteiro de modalidade técnica de transmissão; no ensaio, acostumados à cena, se
comunica ao público tudo aquilo que é aprendido. No espetáculo o ator dá ao público o resultado do seu
trabalho. Agora, o ator se apaixona e vive apenas em alguns momentos, nos outros momentos do papel
engana o público. Representar todo o papel com os nervos talvez seja possível, talvez seja uma coisa boa,
mas se realizado com sensatez. Representar o papel de Ivan, o Terrível, apenas com os nervos seria um
lento suicídio17.

Será interessante notar que numa anotação escrita no mesmo período de tempo,
Stanislávski escreve: “Mente Mounet-Sully, mente Salvini, quando dizem que sentem sempre.
Tudo isso se pode meramente dizer ...”18.
No caderno de trabalho do Stanislávski diretor, de Ivan Mironych, compilado entre o
final de 1904 e os primeiros meses de 1905, encontramos várias vezes perezivanie e perezivat’.
Stanislávski defende a importância de mostrar os olhos dos atores aos espectadores, e
dadas as dificuldades ligadas ao tamanho da sala é preciso encontrar uma representação que
limita a gestualidade e os movimentos, uma representação “contida e calma”, que dê a
possibilidade ao espectador de focar a atenção nos olhos do ator. Ele escreve:

Quando o ator dá vida ao personagem, as suas sensações se refletem em seus olhos, e se ele é
capaz de mostrá-los à massa, está última irá ler neles os seus sentimentos e viverá [perezivat’] com ele as
sensações e os pensamentos do personagem. É claro que as emoções [perezivanija] do ator devem ser
fortes e os meios expressivos claros para contagiar uma multidão de milhares de pessoas19.

Perezivanie no sentido de emoção, paixão, sentimento, mundo interior e perezivat’


como sentir, experimentar emoções retornam por todo o caderno de direção. Emoções
“verdadeiras” são opostas àquelas “convencionais”, e para intensificar Stanislávski combina a
perezivanie “interior”.
Acusando alguns atores de serem banais, Stanislávski argumenta que são capazes de
elevar o tom apenas “atoralmente”: “Falar alto, rir com e sem propósito, mover-se muito,
representar, e não experimentar [perezivat’] animação. Pelo contrário, é preciso saber conduzir
a si mesmo a um estado de espírito animado”.
Reportar outros exemplos nos levaria apenas a repetições inúteis. Podemos afirmar que
até 1905 no vocabulário de Stanislávski, tanto privado quanto de trabalho, perezivat’ e o relativo
substantivo não assumem um significado especial, não necessitam de interpretação especial, no
entanto, não dão muito espaço para possibilidades interpretativas tentando sustentar o sentido
de reviver ou revivescência. O sentido de repetição, reiteração que traz consigo o prefixo “re”,
nestes anos, é completamente fora de lugar. Stanislávski não acredita que o ator possa viver o

17
Anotações, t. I, p. 135.
18
Idem, p. 138.
19
K.S. Stanislávski. Coleção das Obras [Raccolta di opere], cit., t. V, pp. 211-257.
tempo todo do espetáculo, experimentar ou sentir as emoções que devem animar o personagem,
muito menos pensa em um psicodrama no qual o ator continuamente coloque em questão a sua
própria bagagem emocional. Perezivanie e perezivat’ são utilizados por Stanislávski em sentido
amplo, não se dão neles fortes indicações, são vocábulos habituais, de serviço.
Para traçar uma linha da memória resultará útil, em todo caso, dar um passo atrás de
algumas décadas, para procurar o lugar que os termos por nós investigados ocupavam na cultura
teatral russa.
5. Em 1872 Petr Dmitrievich Boborykin (1836-1921) publicou um livro intitulado A
Arte Teatral20. Dramaturgo, romancista, teatrólogo, Boborykin completou seus estudos em
diversas universidades russas e na Sorbonne, frequentou os conservatórios de Viena e de Paris,
viajava frequentemente para a Europa e escreveu extensivamente sobre a relação entre as artes
teatrais russas e a ocidental; foi defensor do naturalismo na literatura, apoiador do estudo das
ciências sociais e naturais para o progresso da sociedade humana. Seu livro sobre A Arte Teatral
tem como motivação a necessidade do ator de um pleno conhecimento de seus meios
fundamentais de expressão, ou seja, sua própria totalidade psicofísica. O livro, portanto, é uma
montagem de dados provenientes da experiência teatral e da frequência na universidade;
conhecimento vindo dos livros e conhecimento derivado da prática do teatro se fundem num
estudo detalhado de todos os componentes fisiológicos do homem ator. Nós nos interessaremos
apenas ao que diz respeito à perezivanie.
No capítulo treze, Inteligência e sentimento, o autor se coloca uma questão que afirma
ser discutida pelos atores, críticos teatrais e “professores de declamação”: a qualidade
fundamental do ator é a inteligência ou a sensibilidade? Boborykin recomenda a leitura do
Paradoxo de Diderot e reforça partes alegando que o ator deve ser um observador frio e calmo
(parece que estamos ouvindo o Stanislávski de trinta anos depois): “Se o ator realmente
experimentasse [perezivat’] os sentimentos dos momentos cênicos de modo algum poderia
recitar duas vezes a mesma parte com o mesmo foco e o mesmo sucesso”21. O autor, em seguida,
continua tratando da importância da imaginação, do estudo da natureza humana, da memória,
da capacidade de fixar um modelo e saber repeti-lo, e até mesmo aperfeiçoá-lo com o tempo,
mas mantendo-o sempre claramente fixado em sua estrutura geral.
Para Boborykin, culto defensor das novas ciências, perezivanie é um termo que pertence
ao mundo impreciso de um passado romântico e que possui uma aura de irracionalidade que o
torna estranho; não é por nada que nas quase quatrocentas páginas de seu livro raramente o

20
P. D. Boborykìn, A Arte Teatral [Teatral’noe iskusstvo], São Petersburgo, Editora Nekljudov, 1872.
21
Idem, p. 219.
encontramos, e sempre indicando a expressão dos sentimentos, mas com nuances de
sentimentalismo, excesso de sensibilidade.
Victor Burenin (1841-1926), dramaturgo e crítico teatral sampetersburguense, escreveu
diversos artigos em março de 1882 dedicados à turnê russa de Tommaso Salvini. No que diz
respeito ao nosso interesse específico levamos em consideração Tommaso Salvini em Hamlet22.
Burenin pega a deixa de algumas críticas dos assíduos frequentadores e “amantes” da arte teatral
que acusam Salvini de ser demasiado “estudado”, por isso “frio”, incapaz de apaixonar.
Refutando estas afirmações, o crítico argumenta que não devemos confundir “estudado” com a
minuciosa elaboração do papel em cada pequeno detalhe como no todo. Demasiada “sorte” não
pode esconder precisão e profundidade de pensamento e um senso de proporção nos efeitos.
Ser frio seja talvez a altura de uma criação severa que não se entrega ao jogo com o espectador?
Burenin conduz assim o raciocínio a fim de lançar o ataque direto contra os defensores da
representação “visceral”, os defensores da “inspiração”:

E a propósito, dizem os amadores, o ator que durante vinte anos representa o monólogo de uma
única maneira, usa os mesmos gestos nesta e naquela outra cena, sem trocar uma única vírgula dos
procedimentos por ele estudados; esse ator não satisfaz, é ofício [remeslo] e não inspiração artística,
“viver” [perezivanija] o papel na cena. A defesa da necessidade de a cada vez um novo “viver”
[perezivanija] o papel e da originalidade no tom e no gestual, geralmente está baseada na lenda da
representação de Mocalov, que se submetia a tal ponto à “inspiração” que quando esta não o ajudava,
quando os nervos não o sustentavam, representava absolutamente mal, de modo a tornar impossível
assisti-lo.

Na São Petersburgo dos anos [18]80, o crítico de um dos principais jornais nacionais,
relacionava assim a perezivanie à irracionalidade da inspiração, às tendências modernas, aos
hábitos entre o naif [ingênuo] e o esnobe dos playgoers da capital.
Não sabemos quanto o jovem Stanislávski esteve atento às discussões sobre perezivanie
que atravessaram o mundo teatral a ele contemporâneo. Nossos estudos nos levam a afirmar
que entre os anos de 1881 a 1900 o interesse de Stanislávski está mais voltado para a aquisição
de uma cultura técnica e de práticas materiais do fazer teatro. Nestes anos Stanislávski se forma
como ator e experimenta a possibilidade criativa do diretor. A atenção na reflexão teórica, no
estudo da poética, na teatrologia é alcançada nos anos de maturidade, depois de 1904, depois
da morte de Tchekhov, da descoberta da dramaturgia simbolista, do Studio na [Rua] Povarskaia
com Meyerhold e, sobretudo, depois da revolução de 1905: todas feridas abertas no corpo
artístico que Stanislávski pacientemente construiu com a segura lógica positivista de um

22
V. Burenin, Tommaso Salvini em Hamlet [Tomazo Sal'vini v Gamlete], em “Novos Tempos” [“Novoe Vremja”],
5 de março de 1882, p. 2.

Em Inglês no original. Frequentadores de teatro. (N. T.)
desenvolvimento contínuo do progresso, da educação, da elevação do gênero humano. Talvez,
mas é um estudo ainda a ser feito, seja a revolução de 1905, com seu sangue, a tragédia que
toca o coração da cidade penetrando nas casas de milhares de famílias, as barricadas
subversivas, o rigor da autocracia; talvez esteja mesmo no rompimento que estes eventos
marcaram em muitas gerações de intelectuais e artistas o traço revelador daquela necessidade
do estudo introspectivo e da análise questionadora de profundidade em tese mais verdadeira da
superfície aparente do movimento das coisas.
6. Voltemos à correspondência. Em uma carta de dezembro de 1906, em resposta a um
jovem que pede informações sobre as modalidades de acesso à escola do Teatro de Arte,
Stanislávski, além das informações oficiais, escreve: “É preciso preparar monólogos ou poesias
que apresentam uma situação emocional [perezivanie] dramática, trágica, lírica ou cômica”23.
O uso de perezivanie como condição interior do homem em circunstâncias particulares adentra
na lógica do dicionário comum. Stanislávski a utiliza ainda num sentido que não deixa margem
de dúvida: flui no seu diálogo sem criar obstáculos exegéticos. Dois anos depois, exatamente
em dezembro de 1908, numa carta endereçada ao poeta Aleksandr Blok, descobrimos uma
indicação que nos alerta e assinalamos uma mudança de direção. Respondendo ao pedido do
poeta para uma avaliação de uma de suas obras dramáticas, provavelmente A Canção do
Destino [Pesnja sud’by], Stanislávski, com o máximo da impetuosa sinceridade, confessa não
a ter apreciado, exceto como testemunho do virtuosismo criativo do autor. Então, quase como
que justificando seus gostos, argumenta que no seu trabalho toma como ponto de partida o
realismo e prossegue através de uma ampla e profunda generalização. Continua:

O fato é que neste verão aconteceu uma coisa comigo. Eu trabalhei muito em pesquisas práticas
e teóricas sobre a psicologia criativa do artista, e cheguei a conclusões brilhantemente confirmadas na
prática. Somente através deste novo caminho encontramos o que todos nós procuramos na arte. Somente
através deste caminho é possível fazer sentir [perezivat’] com simplicidade e naturalidade, para si mesmo
e para os outros, pensamentos e sentimentos grandes e abstratos. Quando me aproximava de sua obra com
tais pensamentos, parecia que os pontos pelos quais eu era apaixonado eram matematicamente exatos,
também no sentido da fisiologia e da psicologia do homem. Lá, onde caía o interesse, me apareciam erros
que contradiziam a natureza humana. O que é isto: conjectura, minha paixão por uma nova teoria? Eu não
sei e eu não respondo, mas em qualquer caso, eu escrevo. Se é estúpido ou ingênuo, esqueça, se é
interessante, de bom grado tratarei com você, pessoalmente, os resultados das minhas pesquisas. A carta
não dá conta de tudo24.

Perezivat’ expressa ainda um contexto semântico claramente delineado, mas agora


começa a remeter a algo diferente: não expressa só a atividade do sentir entendida como a inter-
relação entre a atividade de todos os sentidos que ligam o homem com o ambiente externo e

23
Cartas, t. VII, p. 354.
24
Idem, p. 416.
com a indefinição da interioridade. Agora perezivat’ começa também a remeter a uma expressão
de poética e a um procedimento de trabalho criativo. Stanislávski usa este termo não só para
expressar uma atividade intelecto-sensorial do homem, mas remete a um contexto específico
de um esboço de expressão poética: “Somente através deste novo caminho encontramos o que
todos nós procuramos na arte”; e para uma atividade prática de experimentação que implica
“pesquisa prática e teórica sobre a psicologia criativa do artista”.
A partir de agora devemos seguir pensando os termos por nós estudados como a um
sistema complexo de referências entre os vários significados literais, os movimentos de ajuste
de uma definição de poética, expressão sintética de processo de trabalho que literalmente não
produz, mas que substancia a expressão verbal.
7. Voltemos então para preencher o espaço de tempo entre as duas cartas citadas no
parágrafo anterior, e vamos escolher os registros estenográficos dos ensaios no Teatro de Arte
e as anotações feitas por Stanislávski em seus cadernos.
Constatamos, na verdade, que ocorre uma transição. Perezivanie e perezivat’ aparecem
sempre com maior frequência no vocabulário de trabalho de Stanislávski e vai maturando
aquela complexidade e intersecção de planos semânticos que complica o trabalho para o leitor-
tradutor, mas que contribui para o sentido da experiência teatral de Stanislávski.
Em 1906, ensaiando O Drama da Vida, de Hamsun e Brand, de Ibsen, Stanislávski usa
o termo perezivanie no sentido literal de emoção, paixão, impulso interior: “Se quiseres levantar
o tom desperte em você um estado de ânimo de emoção verdadeira [perezivanie], então as
palavras sairão mais fortes e mais ardentes”25.
Ensaiando O Pássaro Azul, de Maeterlinck, entre 1907 e 1908, Stanislávski insiste sobre
a perezivanie, dando claramente as primeiras coordenadas da nova direção da pesquisa em
curso.

Agora que você se apoderou do tom da Rainha. Em casa, você terá que compreender o que a
conduziu a isso. O que a conduziu a este estado de ânimo? Quando dominares os procedimentos que a
conduzem às emoções [perezivanie], então, usando-os como oásis, de ensaio em ensaio você vai se
acostumar a rir, chorar, amar, escarnecer etc.

Mais adiante:
Cometemos um erro: tentar alcançar os nervos e uma forte emoção [perezivanie] por meio de
movimentos musculares. Repito: é um erro. Quando o ator tem que passar de um estado de tranquilidade
para um estado em que se ilumina de raiva ou alegria, começa a viver propriamente, será necessária uma
concentração interior precisa e não uma tensão muscular exterior.

E ainda:

25
Stanislávski Ensaia [Stanislavskij repetiruet’], editado por I. Vinogradskaia, Moscou, STD, 1987, p. 22.
Você tem que trabalhar em casa, experimentar como passar de um sentimento ao outro, como
iluminar-se com este ou aquele sentimento, partindo do conteúdo do papel [...].Quando você começa a
viver com este ou aquele sentimento, então, instintivamente, todo o material que você acumulou através
de suas observações na vida cotidiana e que estão em você como se fosse um depósito do qual, mesmo
que você não tenha consciência, todo esse material, por si só pouco a pouco se compacta numa impressão
viva [perezivanie] interior que por fim cria o personagem 26.

O plano poético e o do sistema de trabalho se interceptam. A perezivanie deve estar na


base da criatividade do ator e o trabalho deste último deve estar vinculado à pesquisa dos
métodos para fazer transpirar de forma concreta o magma existente no ‘depósito’ interior. Para
Stanislávski o procedimento agora deve seguir a sequência interioridade-exterioridade: se é a
interioridade do personagem que é preciso mostrar para superar o nivelamento de um realismo
feito somente de imagens exteriores, superficiais, por que não deve ser da interioridade do
artista que devemos escavar essas emoções, paixões, sentimentos capazes de contagiarem o
espectador, para permitir-lhes viver o teatro percebendo os profundos jogos emotivos
apresentados pelos atores? A fisicalidade parece surgir quase como um obstáculo, a psico1ogia,
a ciência mais útil para ajudar o ator no trabalho de aprofundar a compreensão das condições
emocionais do homem. Veremos mais adiante que não será sempre assim, que as direções da
pesquisa com o tempo vão tomar sempre novas direções, tentarão diversas hipóteses.
Com maior clareza a interação entre o plano poético e aquele que podemos definir
laboratorial se encontra nas afirmações escritas por Stanislávski nos cadernos de anotações
entre 1907 e 1908:

A arte do ator-criador está no sentir [perezivanie] e encarnar o personagem e no saber agir por
meio do personagem para os espectadores [...] Os atores que não sentem [perezivat’], mas representam,
se acostumaram graças a seu ofício a exagerar as paixões e o modo de expressá-las. Neles, a simples
surpresa se transforma em terror, o medo em pânico, a simples seriedade em severidade, o sorriso em
risada, uma alegria normal em animação histérica. Tudo que destrói uma psicologia natural e gradual [...]
O ator aprende de cor as palavras do personagem, mas não os pensamentos e os sentimentos. E já nisso
está a mentira e a falta de coerência. Na vida os pensamentos e os sentimentos invocam as palavras, e não
o contrário [...]. Uma representação muscular efetivamente atrai a atenção para si. O público presta
atenção à mobilidade exterior do ator e exteriormente se interessa por ele e por seus gestos. Sua excitação
muscular toca os nervos do espectador, mas através desses lampejos será difícil compreender as emoções
[perezivanie] espirituais do ator, captar o espírito do poeta. O ator deve chamar a atenção por meios
completamente diferentes. É preciso antes de tudo, calma exterior, o domínio dos gestos e dos
movimentos. Isto dará a oportunidade ao público de se interessar pela sua interioridade [perezivanie].
Quanto menos o ator der aos olhos, tanto mais precisará dar para a melodia e a música da alma. Tanto
mais claro e interessante deverá se fazer o desenho psicológico do papel. [...]As pausas e a representação
pesada são causadas pelo fato de que o ator não acostumou suficientemente a sua vontade a uma transição
rápida e enérgica entre os diferentes estados de ânimo e as várias emoções [perezivanie] do personagem.
Interiormente não se familiarizou o suficiente com as diferentes emoções [perezivanie] do personagem e
não desenvolveu a capacidade de acessá-las com prontidão. Precisa de uma pausa para transformar
internamente o próprio espírito e começar com uma nova emoção [perezivanie]. Quando o ator tiver maior
familiaridade em compreender as transições psicológicas e emocionais [perezivanie], então até mesmo as

26
Idem, pp. 25, 29 e 31.
pausas se tornarão mais rápidas, e assim a representação será mais veloz e precisa. [...]. Para uma exata,
natural e sincera emoção [perezivanie] é necessária uma coerência psicológica e lógica dos sentimentos 27.

Em torno da perezivanie Stanislávski construiu passo a passo o seu sistema, mesmo a


partir destas poucas linhas vemos conceitos e expressões como o relaxamento muscular e a
concentração, mas acima de tudo que há ativa participação da interioridade do ator, de todo o
seu mundo sentimental, de toda a sua bagagem da vida vivida, para a criação de um personagem
capaz de falar aos sentimentos e às emoções dos espectadores.
Aparece sempre mais evidente como perezivanie começa a estar vinculada ao
substantivo emoção. Perezivanie é aquele mundo mais ou menos sombrio da interioridade do
homem, e no começo do século, o sombrio sobre este lado da vida humana despertava a fantasia
de quem queria “pesquisar o homem”, investigar a consistência, compreender os aspectos vitais
mais ocultos. Para um ator tudo isso deveria imediatamente converter-se em prática cênica,
caso contrário perderia a sua utilidade, precisaria encontrar a sua dimensão artística, traduzi-la
em comportamento teatral, mas não só. Nestes anos para Stanislávski perezivanie expressa a
vontade de descobrir métodos e novas formas para os atores que deem uma imagem mais
profunda do personagem para um público que seja capaz de compreender essa profundidade. É
a tentativa de dar ao teatro, à relação teatral, um novo significado, baseado sobre uma
participação plena, profundamente ativa, de duas dimensões humanas, aquela dos atores e a dos
espectadores; é uma espécie de contrato ético: definição de regras de conduta que garantam a
importância, a seriedade, e em última análise a necessidade da existência de uma relação.
8. Os anos entre 1908 e 1917 são aqueles nos quais amadurece e toma forma o sistema
de Stanislávski. Perezivanie e perezivat’ acompanham assiduamente sua escrita e seu trabalho,
mas notamos que com o passar dos anos aquela espécie de emaranhado de planos semânticos
tende a se desenlear. Acontece que permanecendo presa ao significado de emoção, paixão e
interioridade, a dimensão poética é mencionada com menos frequência, e agora dada como
certa, e a dimensão laboratorial tende lentamente a substituir este termo, enriquecida de um
variado composto de termos e expressões que definem sempre com maior clareza cada
momento daquela técnica psicofísica que resulta do processo da perezivanie.
Na correspondência deste período os três planos semântico identificados estão
presentes. Por exemplo, em uma carta a Meyerhold, em fevereiro de 1912, Stanislávski escreve:
“Estou muito desanimado com tudo que se apresenta aos olhos e aos ouvidos em cena. Eu só
acredito no sentimento, na emoção [perezivanie] e, o principal, na própria natureza” 28. A

27
Anotações, pp. 221-11; 270,273.
28
Cartas, t. VII, p. 539.
Liubov Gurevitch, em outubro do mesmo ano, escreve ao invés disso: “No verão passado eu
encontrei um modo, um meio natural de reduzir o tempo do processo emotivo [perezivanie].
Isto trouxe vida para os atores. Vou lhe falar pessoalmente” 29. As emoções e os estados
emocionais do ator e do personagem são sempre o outro âmbito semântico, mas o início da
Guerra Mundial e a Revolução de 1917 fazem reacender no vocabulário privado de Stanislávski
o significado que o senso comum dá a perezivat’: experimentar sensações tristes de apreensão,
viver momentos desagradáveis.
Lendo as transcrições dos ensaios encontramos fragmentos particularmente
interessantes. Trabalhando em Hamlet em março 1909, Stanislávski diz:

Desperte em você a memória afetiva na esfera, por exemplo, da doença, quando você sentiu-se febril etc.
Quando você é capaz de despertar em si a memória afetiva, então graças a ela irá encontrar os momentos
de emoções singulares [perezivanie], as quais você precisa e, imediatamente, com tudo aquilo que
acompanha essas emoções [perezivanie], as condições fisiológicas aparecerão por si só, por reflexo. As
mãos agirão conforme devem, o coração pulsará em uníssono com essas emoções e o sangue subirá para
as bochechas, a voz ressoará como deve. 30

Esta parte é extremamente importante porque dá a medida exata de um estágio da


reflexão de Stanislávski. Talvez agora seja possível associar perezivat’ a reviver. A pesquisa no
passado, na experiência do ator se expressa na “memória afetiva”, que é, no entanto, um entre
os diversos meios de pesquisa, uma entre as tantas “armadilhas” que o ator engatilha para
capturar o sentimento, a perezivanie. O prefixo que expressa repetição, re-viver, tem talvez aqui
possibilidade de ser. No entanto perezivanie, agora, não implica que o ator deva reviver em
frente ao espectador experiências íntimas, possivelmente parecidas àquelas do personagem
representado. Não há nenhuma situação de mnemodrama. Stanislávski quer muito mais
simplesmente que o ator não se ajude só por meio dessa excitabilidade “atorial” reflexa,
embasada nos gestos e comportamentos cênicos habituais, fixados pela tradição, mas que
também acerque nas profundezas de sua psique, que coloque em campo sua mente e o depósito
de sua experiência, a fim de obter uma representação que a poética de Stanislávski define como
“verdadeira”; no concreto, um realismo sem moldes recitativos herdados da tradição teatral. Ao
lado, ou no lugar de perezivanie, encontramos cada vez mais, como na parte recém citada, os
novos termos da pesquisa de Stanislávski na direção das ciências psicológicas: memória
emotiva, excitabilidade reflexa, emoções afetivas, atos volitivos. Perezivanie indica a totalidade
do processo e o fundo emocional colocado em jogo, como dizendo junto com a unidade o todo.
Das anotações de Stanislávski de 1909, lemos:

29
Idem, p. 553.
30
Stanislávski ensaia [Stanislavskij repetiruet’], Opus cit., p. 40.
Aqui um exemplo de representação e não de processo emotivo [perezivanie]. Em Stockman, no
ato IV quando Leonídov sentava perto de mim. Ele era um pescador vindo para ouvir ao seu favorito, o
Dr. Stockman. A cena começa, nada ainda comprometeu o médico ante os olhos da multidão e parece que
o pescador com alegria e entusiasmo faz com que seu estimado esteja perto de si na cadeira vazia. Mal
começa a perseguição de Stockman e se revelam uma depois da outra as suas intenções, o pescador deve
passar por todos os sentimentos humanos de maravilha, incredulidade, dúvida, desconfiança, desespero,
arrefecimento, agitação e, finalmente, chegando à maledicência e ao ódio feroz. Leonídov não sente
[perezivat’], mas representa. Só sabe uma coisa, que o título do drama é Um inimigo do povo, então apenas
o estimado Stockman se aproxima e, numa careta selvagem, teatral, vira as costas e resmunga com raiva,
olhando Stockman de soslaio. Esta lógica simplificada impede a verdadeira emoção [perezivanie] e esta
última não pode se realizar senão sobre a base da lógica psicológica e da coerência 31.

Ainda outros exemplos para mostrar como amadurecia o trabalho de Stanislávski.


Das anotações de trabalho de 1912:

Na escola de Chaliutina e Mcdelov os alunos sentem por sentir [perezivat’ radi perezivanie].
Tomam banho nas emoções [perezivanie]. Pausa a cada dois minutos, então pronunciam baixo e de modo
incompreensível uma frase composta. É terrível. Por este motivo, neste ano de 1912 eu não ensinarei a
emoção [perezivanie], mas a ação (ou seja, a realização da tarefa). É preciso entrar no círculo e começar
a viver nele, a fim de que, depois de haver encontrado o estado de ânimo, se possa agir, seguir adiante 32.

Ainda uma parte trata do trabalho sobre A aldeia Stepancikovo, dos primeiros meses de 1916:

O segredo do meu procedimento está no fato de que, parecido com um chamado (o assobio dos
caçadores), isso atrai o sentimento afetivo específico. Se ordenares à vontade que faça isto ou aquilo, ela
não vai te obedecer. Não adianta sentir [perezivat’]. [...] a tarefa é o chamado pela vontade. O que fazer
está no aproximar-se da tarefa, determina-la, e é trabalho do autor, do diretor e deve ser consciente. O
como fazer está na intuição do ator”33.

Continuar a acumular exemplos não fará outra coisa senão enfatizar, como sublinhas
contínuas, aqueles campos que já havíamos identificado. Pelo contrário, é para se ter em mente
a não perder de vista, da parte de Stanislávski, a importância da ação, o agir como motor de
arranque do processo da perezivanie. Não é preciso portanto se deslumbrar com o recorrer
contínuo a termos e expressões da linguagem psicológica; Stanislávski é consciente, e não
poderia ser de outra forma para um ator, de que a sua expressão poética como a dimensão
laboratorial têm um ponto de encontro: “A principal característica distintiva – escreve
Stanislávski aproximadamente em 1915 – entre a arte da emoção [perezivanie] e a arte de
representação está no fato de que a primeira é uma arte ativa, é a arte das tendências interiores
que se mostram nas ações exteriores. A segunda é passiva, copia, repete as formas exteriores”34.
Esse ponto de encontro é a ação. A perezivanie como definição de poética e a perezivanie como
processo criativo têm para Stanislávski raiz comum no ator capaz de ativar a totalidade de suas
possibilidades psicofísicas, a agir por meio dela no pleno de suas faculdades conscientes.

31
Anotações, t. I, p. 349.
32
Anotações, p. 9.
33
Stanislávski ensaia [Stanislavskij repetiruet’], Opus cit., p. 89.
34
Anotações, t. II, p. 140.
9. Nikolai Efros (1867-1923), crítico de Moscou, conhecido de Stanislávski desde o
início dos anos 80 e testemunha de todas as suas produções teatrais, publicou entre 1918 e 1923
seis volumes sobre Stanislávski, seus espetáculos, seus estúdios, o Teatro de Arte.
Na biografia dedicada a Stanislávski o sétimo capítulo aborda o discurso sobre o
sistema35. Reconhecido como um produto de teoria e prática teatral em contínuo
desenvolvimento em cuja base está a teoria da perezivanie, o sistema de Stanislávski é para
Efros a pesquisa do ator criativo, “o único para Stanislávski a ter valor no teatro, e começa lá
onde começa a vida [perezivanie] dos sentimentos36. Efros relata que Stanislávski se colocou
muito cedo o problema da perezivanie, que rapidamente se tornou um dogma, um ponto de
partida de toda a sua pesquisa. Por outro lado, Efros não dá nenhuma definição do termo,
explica sim que o verdadeiro problema está no “como sentir [perezivat’], em que medida de
imediatismo e sinceridade e, o mais importante, como obter a capacidade de poder sentir
[perezivat’] a cada vez em cada espetáculo. Como extrair esta capacidade da própria alma e
como permitir que ela aja a cada vez que o ator entra em cena. De qual reserva psicológica o
ator pode extrair todos aqueles sentimentos que o papel lhe impõe viver? E o que acontece se
nesta reserva espiritual não estão aqueles sentimentos? Finalmente, como fazer com que os
sentimentos conservem o frescor próprio, com que não sejam cobertos de poeira no teatro, não
se mecanizem do uso contínuo no mesmo papel ou em uma sequência de papéis?”37.
Efros aproveita com precisão as perguntas que animam o processo criativo da
perezivanie, mas ao fazê-lo acentua um valor semântico do termo que se inclina para o viver; o
ator com os próprios sentimentos vive em cena o papel atribuído. Algumas páginas adiante
escreve que, segundo a teoria da perezivanie “o ator a cada vez, em cada espetáculo, deve
novamente e naturalmente sentir [perezivat’], não portar os ‘sinais’, mas os sentimentos
mesmo”38.
Efros, afinal, não aprecia esta “teoria”, não por nada fará comentários pouco exaltantes
quando falará das criações atorais de Stanislávski desenvolvidas segundo os seus novos
princípios. Mas o que nos interessa constatar é aquela espécie de rigidez na qual aquele magma
que havíamos registrado folheando cadernos, revistas e várias cartas vinha solidificado.
Perezivat’ não pode ser restringida ao viver, e perezivanie endossa a vida ou os sentimentos.

35
Ver N. Efros, Stanislávski [Stanislavskij]. São Petersburgo, Svetozar, 1918.
36
Idem, p. 115.
37
Idem, pp. 115-116.
38
Idem, p. 118.
Não obstante, Efros entende que esses termos dão à Stanislávski mais perguntas do que
respostas, se força a dar ele uma resposta, que não poderia ser nem parcial e nem falsa.
Vladimir Vol’kenstein (1883-1974) trabalhou ao lado de Stanislávski como dramaturgo,
entre 1911 e 1921, no Teatro de Arte e nos Estúdios. De 1922 é a primeira edição de sua
monografia sobre Stanislávski. Diferentemente de Efros, Vol’kenstein não escreve uma
biografia numa cadência diacrônica – o trabalho de Stanislávski ano após ano – mas capta
aspectos do homem e do artista, dando um retrato completo e problemático, não pitoresco39.
O segundo capítulo, praticamente na abertura, depois de uma breve introdução sobre o
aspecto físico de Stanislávski, é dedicado ao sistema, com o título Stanislávski pensador. O
autor reclama de uma espécie de confusão em Stanislávski devida ao fato de misturar
procedimentos acumulados da prática teatral com abstrações extraídas de leitura de livros de
psicologia. Perezivanie é um termo feio, pouco adequado à uma terminologia científica: “Nele
se encerra como a afirmação de que o ator em cena viva absolutamente como na vida”40. Na
palavra perezivanie há para Vol’kenstein algo de passivo, que limita a escolha ativa e criativa
da imaginação do ator. É um termo que remete à teoria do naturalismo aplicada à cena, teoria
que defende ingenuamente que a arte seja uma reprodução precisa da vida. Mas a limitação,
para Vol’kenstein, está toda no termo e não em Stanislávski, “que conhece muito
profundamente a graça original da criatividade por misturá-la com a vida comum. Na verdade,
ele apreciou mais do que qualquer outra coisa aquelas impressões agudas de verdade artística,
quando o artista com toda a sua essência acredita na realidade do personagem por ele criado,
enquanto fruto da imaginação”41.
Perezivanie é um termo que não abandona Stanislávski, mas que o segue ainda no
sentido de processo. Tanto é que se pode encontrar o termo composto, perezivanie-afetiva ou
perezivanie-criativa: expressões que procuram distanciar o significado da acepção de vida
comum; e nos últimos tempos, escreve sempre Vol’kenstein, Stanislávski segue o caminho que
vai da exterioridade à interioridade, do gesto expressivo ao sentimento correlato, e o verbo
justificar [opravdat’] toma o lugar de perezivat’; justificar a invenção do gesto plástico criado
pela imaginação.
Vol’kenstein tenta nos fazer compreender como perezivanie em Stanislávski vive entre
o plano da poética e aquele do laboratório, mas leva inexoravelmente para trás o peso lexical.
É um termo que na cultura teatral russa tem muitas referências à representação instintiva,

39
Ver V. Vol’kenstein, Stanislávski [Stanislavskij]. Moscou, Sipovnik. 1922.
40
Idem, p. 27.
41
Idem, p. 27.
visceral, o viver no palco como na vida (havíamos visto no parágrafo dedicado à sua história
oitocentista), para poder se adaptar tranquilamente às discussões que envolvem propósitos
científicos.
Escolhemos estes dois autores, e o leitor já deve ter notado, porque suas obras foram as
fontes primárias para Lo Gatto e Ripellino. Revela-se transparente nos estudiosos italianos, à
luz das fontes russas recém analisadas, o quociente de distorção interpretativa colocada em
curso. Onde Lo Gatto segue passo a passo a Vol’kenstein dando o significado de contradição
como de evolução e se limita a uma interpretação filológica fixada em perezivat’-viver,
Ripellino aproveita de Efros e Vol’kenstein somente os aspectos mais negativos ou mesmo
contraditórios, e usa-os com entusiasmo propagandista, dando voz à perezivanie-revivescência
como uma arma do crime consumado no confronto da criatividade teatral.
10. Os anos que vão de 1917 a 1926 foram para Stanislávski anos de crise, de
transformações radicais dos modos de vida, de sofrimentos materiais e íntimos: a revolução
bolchevique, a Guerra Civil, a angústia de uma situação política instável que se refletiu no caos
organizacional da atividade teatral, em seguida a turnê pela Europa e para os Estados Unidos
entre 1922 e 1924, então o retorno, com a dificuldade de ambientação numa realidade social
profundamente modificada, sovietizada, cada vez mais estreitamente vinculada à malha
organizativa do partido-estado.
Nas cartas deste período, perezivanie sempre assume o sentido triste de experiência
vivida ou de emoções, de vida interior. O mesmo sentido se encontra entre as notas de trabalho
para Cain, de Byron42. As Anotações estão repletas de referências à perezivanie porque estes
são os anos do primeiro rascunho do sistema: assim capítulos escritos e reescritos, variações
contínuas do “romance” (são as testemunhas contemporâneas que nos dizem que esta foi a
forma então pensada por Stanislávski). O quadro interpretativo global neste período de tempo
não sofre variações: trazer outros exemplos só nos fará repetitivos.
O ano de 1926 é o ano da publicação da primeira edição soviética de Minha Vida na
Arte43. Um par de anos antes foi publicada em Boston a edição americana, substancialmente
diferente, escrita às pressas entre uma travessia e outra do oceano entre as duas turnês
americanas de 1922-24. A edição em russo teve a curadoria aos cuidados de Liubov Gurevitch,
estudiosa sampetersburguense, próxima de Stanislávski desde 1904, essencialmente uma
espécie de assessora-confidente que o assessora nos estudos histórico-teóricos e, como veremos
melhor mais adiante, apoiadora imparcial da arte da perezivanie.

42
Ver Stanislávski ensaia [Stanislavskij repetiruet’], opus cit., pp. 230-267.
43
Ver K.S. Stanislávski, Minha Vida na Arte [Maja zizn’ v iskusstve], Moscou, GAChN, 1926.
Esta primeira obra de Stanislávski foi traduzida em italiano somente em 1963 com
curadoria de Gerardo Guerrieri para a tradução de Mario Di Lorenzo Borsellino44.
Em sua tradução Borsellino Di Lorenzo foi capaz de dar uma ideia das possibilidades
semânticas oferecidas pelos termos perezivanie e perezivat’ levando em conta o contexto no
qual ele ocorre. A análise comparativa de um capítulo vai nos mostrar como o tradutor soube a
cada vez se adaptar a escolher a solução mais precisa, sem nunca trair o sentido do discurso de
Stanislávski.
Escolhemos A descoberta de verdades há muito conhecidas, pertencente à última seção
dedicada à “maturidade artística”, seja porque o termo por nós investigado ocorre com maior
frequência, seja porque aquele capítulo assume na lógica do livro um lugar central para
compreender os desenvolvimentos do sistema e da pesquisa de Stanislávski.

Sentado sobre a rocha na Finlândia e revivendo [perezivat’] os processos de criação anteriores,


de um modo completamente casual encontrei os sentimentos do meu Stockman, esquecidos na alma. (p
362)
Mais ou menos artisticamente eu aludia o papel, imitava os fenômenos externos da emoção
[perezivanie] e da ação, mas ao mesmo tempo não experimentava nem a própria emoção [perezivanie]
nem uma necessidade sincera para a ação. (p. 363)
Este desequilíbrio mental e físico entre o corpo e a alma os artistas experimentam e suportam
[perezivat’] grande parte de suas vidas... (p. 365)
Quando o artista diz: – Hoje estou bem disposto! Me sinto na veia! – ou: – Represento com
prazer! – ou – Hoje sinto [perezivat’] o papel – isso significa que ele por acaso se encontra no estado
criativo. (p. 366)
Quando isso se produzia em mim sobre o palco, eu experimentava [perezivat’] a mesma sensação
de libertação que, provavelmente, experimenta o prisioneiro depois de quebrar as correntes que durante
anos o impediam de viver e agir livremente. (p. 367)
Tememos não chegar a tempo para a nossa vez, entrar em cena em desordem, com o figurino e
a maquiagem inacabados. Mas não tememos nos atrasar para o início do processo de reviver [perezivanie]
o papel e sempre entramos em cena sem qualquer preparação interior, a alma vazia, e não temos vergonha
de nossa nudez espiritual. (p. 370)

O tradutor nos mostra todo o paradigma de possibilidades interpretativas: experimentar,


sentir, suportar, reviver. Será interessante notar como o primeiro reviver define um tipo de
atividade contemplativa, reflexiva, a atividade de um olho interior que assiste ao desenrolar do
filme da memória inerente aos fatos de sua própria vida; e expressa o verbo perezivat’. No
segundo caso, Stanislávski usou uma fórmula típica, “processo da perezivanie” – note o
substantivo – e o tradutor inseriu um verbo, “processo de reviver”. É uma operação inteligente,
porque um verbo pode expressar muito melhor o conceito dinâmico de processo, porque evita
o obstáculo de escolher um vocábulo impreciso como revivescência, mas por outro lado, mostra
claramente uma incapacidade da nossa língua para encontrar um termo adequado que possa se

44
Ver K.S. Stanislávski. Minha Vida na Arte [La mia vita nell’arte]. Torino, Einaudi. 1963. Nos fragmentos a
seguir daremos entre parênteses as páginas referentes a esta edição.
aproximar de uma vez por todas de perezivanie. Só podemos aceitar “processo de reviver” se
considerado como se fosse um jargão: reviver remete à história de Stanislávski, a uma escolha
contextual numa definição de poética, aos desenvolvimentos de sua atividade de estudo e
pesquisa. Extrapolar uma palavra de um jargão, ou seja, de um contexto ao qual está
intimamente ligada, e inseri-la acriticamente em outros contextos é a melhor maneira de
deturpá-la. E é precisamente isso o que aconteceu à perezivanie de Stanislávski, que não se
apresenta com clareza, mas remete a um contexto que dá uma pista para sua interpretação. Para
o tradutor permanece a dificuldade de saber se mover à vontade naquele contexto, para evitar
os erros de uma deturpação gritante.
11. Em 1927, em Moscou, é publicado um livro intitulado A criatividade do ator; o
subtítulo amplia: Sobre a natureza das emoções [perezivanie] artísticas em cena. A autora deste
livro é Liubov Gurevitch45
Gurevitch, havíamos antecipado, desempenhou um papel muito importante na formação
teórica Stanislávski. Entre os dois se mantém sempre viva uma intensa correspondência.
Gurevitch, crítica teatral e historiadora do teatro, acompanha, em 1907, os estudos teatrais e a
pesquisa de caráter teórica de Stanislávski, aconselhando leituras e traduzindo trechos das
línguas não dominadas. Foi esta senhora sampetersburguense, socialista, feminista,
colaboradora ativa de revistas de extrema esquerda do início do século, que coletou dia após
dia todas as confissões de Stanislávski sobre o desenvolvimento do sistema e suas experiências
laboratoriais, foi curadora das primeiras edições (1926, 1928) de A Minha Vida na Arte e da
primeira parte de O Trabalho do Ator (1938), ou seja, as duas únicas obras de Stanislávski
publicadas antes de sua morte.
Não podemos não dirigir nossa atenção, portanto, a um livro sobre a perezivanie escrito
por alguém que viveu por trinta anos em contato com um artista que fez da perezivanie o sentido
último de sua prática teatral.
No primeiro capítulo Gurevitch analisa os estudos sobre a arte do ator produzidos na
Europa do século XVIII em diante: o alemão Lang, Riccoboni, Sainte-Albine, Diderot, Lessing,
as biografias de Clairon e de Dusmenil, Talma e até mesmo escritos de Tieck, Irving, Coquelin,
Salvini e Rossi; finalmente, os estudos dos e sobre os artistas russos: Schepkin, Lenski,
Stanislávski, Meyerhold e Tairov.
O interesse da autora está focado sobre o problema do ator-quente/ator-frio, do sentir ou
não o papel, do envolvimento emocional do ator no momento criativo, e chega a tocar,

45
Ver L. Gurevitch. A criatividade do Ator. Sobre a natureza das experiências artísticas do ator no palco. Moscou,
GAChN. 1927.
analisando o pensamento de Meyerhold, o conceito de excitabilidade reflexa como a capacidade
de agir sobre as sensações, os movimentos e as palavras, partindo de uma tarefa dada a partir
do exterior.
O segundo capítulo é dedicado à análise de três entrevistas realizadas com atores que
foram convidados a falar sobre sua própria arte. Se trata do trabalho do estudioso Inglês William
Archer, do psicólogo francês Binet e da pesquisa promovida pela seção teatral da Academia de
Ciências Artísticas, da qual uma das organizadoras era a própria Gurevitch. As duas primeiras
pesquisas estão ligadas aos anos 80 e 90 do século XIX, a última aos anos 20 do século XX.
Aqui também o principal interesse para a autora é entender qual era a posição dos atores
em relação ao problema de sentir os sentimentos apresentados pelo personagem.
Os outros dois capítulos são dedicados, respectivamente, ao problema da diferença entre
a atividade emocional do homem na vida cotidiana e aquela do ator em cena, e à posição dos
cientistas da psique em relação ao problema da excitabilidade reflexa, dos movimentos da esfera
emotiva, do controle racional ou não das paixões.
Estas são as conclusões a que chega Gurevitch:

A velha questão sobre a emoção realizada [emocij] no trabalho criativo do ator deve ser resolvida
no sentido de que sem talento emocional, sem capacidade de excitabilidade emocional não há e não pode
haver um ator talentoso, mas que as emoções [emocij] experimentadas por este último no papel de um
personagem possuem valor estético somente no caso de serem passadas através do processo de formação
artística e por toda uma série de sinais que as diferenciam das emoções [emocij] próprias da vida
cotidiana46.

Não nos interessam aqui as conclusões específicas de Gurevitch, ao invés disso nos
surpreende o fato de que em um livro sobre perezivanie, em cujas páginas o termo se encontra
repetido centenas de vezes, a autora traga as conclusões ignorando esse termo e substituindo-o
por “emocij”. Não é um descuido, ou mesmo um deslize, ainda que se possa pensar, já que
quase sempre em seu ensaio perezivat’ e perezivanie podem ser traduzidos por experimentar
sentimentos, emoções, viver, sentir.
Gurevitch captura totalmente o profundo sentido que a perezivanie tem na reflexão de
Stanislávski: o ator criativo enquanto totalidade psicofísica indissociável age ativando
mecanismos de criação que tocam tanto as camadas emocionais profundas como o aparato
físico de sua pessoa, e em ambos ele terá que trabalhar e ter consciência se quiser desenvolver
sua arte. Passar de perezivanie para emoção é para Gurevitch um passo necessário para trazer
para as vias da justeza científica uma discussão amadurecida no interior da linguagem teatral.
Por outro lado, é uma boa maneira de não defraudar o jargão e ao mesmo tempo confundir o

46
Idem, p. 62.
leitor. Para nós é um outro documento a mais para afirmar a profundidade que esconde o termo
perezivanie e a inadequação de traduzi-lo por revivescência.
12. Quem fez a curadoria da edição italiana de O Trabalho do Ator evidentemente não
compartilha nossa opinião47. Além da “originalidade interpretativa” que faz com que às vezes
se torne irreconhecível com o original, devido a cortes e montagens enigmáticas48, o tradutor
utilizou quase sempre para perezivat’ e perezivanie os termos “reviver” e “revivescência”. As
substituições se mostram desde a titulação dos capítulos. Por exemplo, o segundo capítulo da
primeira parte que em Stanislávski é intitulado Arte cênica e ofício cênico em italiano
encontramos Viver? ou Representar? Simplificando, uma nota, inexistente no texto russo,
intenta esclarecer no início do capítulo que perezivanie em russo “indica o processo pelo qual
o ator reinvoca, analisa, entende e revive uma experiência pessoal análoga àquela do
personagem e a usa para identificar-se com ele”49.
Dada esta definição o uso de “reviver” e “revivescência” segue fluindo.
Algumas páginas adiante encontramos uma outra inclusão. Segue o texto italiano:

Mas o que quer dizer representar “no modo correto”?


– Quer dizer: pensar, querer, desejar, agir, existir, sobre o palco, nas condições de vida de um
personagem e em uníssono com o personagem, regularmente, logicamente, coerentemente e
humanamente50.

Tudo certo exceto a palavra “existir”: no texto russo não está presente.
Algumas linhas adiante uma outra inclusão: “É preciso reviver [perezivat’] um papel,
experimentando realmente sentimentos análogos aos dele a cada vez que o repete” 51. Este
“realmente” não existe no texto russo.
Poderíamos continuar, mas na verdade só repetiríamos o conceito já expresso: que o
volume em questão não corresponde fielmente ao original. “Reviver” e “revivescência”
pertencem a uma tradução imprecisa desde o início que de modo algum leva em conta a
amplitude semântica de perezivat’ e perezivanie. Nem leva em consideração os leitores que
utilizam o volume em questão como fonte original para o estudo do sistema de Stanislávski.

47
Ver K. S. Stanislávski. O Trabalho do Ator [Il lavoro dell'attore]. Bari, Laterza, 1956. Usamos a reedição de
1982, impressa pela mesma editora.
48
F. Ruffini se interessou parcialmente por este problema, Romance Pedagógico. Um estudo sobre os livros de
Stanislávski [Romanzo pedagogico. Uno studio sui libri di Stanislavskij], in “Teatro e História” [Teatro e Storia],
n. 10, 1991. Remetemos a este ensaio para esclarecimento das relações entre as edições americanas e as russas
de O Trabalho do Ator.
49
K.S. Stanislávski, O Trabalho do Ator [Il lavoro dell'attore], Opus cit., p. 21.
50
Idem, p. 24.
51
Idem, p. 25.
13. Stanislávski morreu em agosto de 1938. Nos últimos dez anos de vida, também
devido à intensificação de uma doença no aparelho cardiocirculatório, frequentou pouco o
Teatro de Arte; dedicou muito mais tempo aos alunos do estúdio-teatro de Ópera, trabalhou em
casa na escrita do sistema. De fato, nestes últimos anos de vida Stanislávski raramente saia de
casa, a não ser para passar longos períodos em lugares de tratamento. Ele preferiu adaptar em
sala de ensaio um cômodo de sua de casa e ali receber quem estivesse interessado em trabalhar
com ele.
Na correspondência de Stanislávski nestes anos, perezivanie aparece em seu sentido
cotidiano de estado de ânimo e se estabiliza definitivamente no sentido poético e laboratorial.
Para Stanislávski não existe “a arte da perezivanie” e o “processo criativo da perezivanie”. São
duas suposições, duas definições que não necessitam mais de esclarecimentos ou explicações
adicionais. Elas se referem, para Stanislávski, por um lado, a um mundo de coisas já ditas e já
discutidas, e por outro a uma técnica psicofísica que é o sistema. Nas cartas Stanislávski fala
sempre menos de perezivanie e sempre mais daqueles procedimentos técnicos que deverão
ajudar o trabalho criativo do ator.
Além disso, se observa que, nos dois livros dedicados ao Trabalho do ator, a perezivanie
indica o processo geral, mas não há capítulos específicos dedicados a ela. Perezivat’ e
perezivanie expressam a complexidade do pensamento e do trabalho de Stanislávski: daqui a
necessidade de uma contínua historicização capaz de identificar os momentos de
desenvolvimento, para isolar os pontos salientes de um percurso que foi muito pouco
sistemático, mas mais que outra coisa, reflete a vontade de registrar no papel o conhecimento e
a consciência de um processo que, como reconhecem com riso amargo os atores “está escrito
sobre a água”.
Com mais evidências deduzimos tudo isso do trabalho de Stanislávski com os atores.
Lemos dos relatórios de ensaios de Atrizes talentosas e admiradoras de Ostrovski
(1933): “O ator que se esforça a sentir [perezivat’] ou descrever o personagem não consegue
nada. O ator que passa pelo ‘se fosse’ experimenta o caminho exato em direção ao
personagem”52.
E ainda: “Agir, e não fazer se esforçar para sentir [perezivat’]. A atenção e os músculos
relaxados, essa é a primeira coisa que abre as funções do subconsciente”53.

52
Stanislávski ensaia [Stanislavskij repetiruet’], Opus cit., p. 302.
53
Idem, p. 306.
De 1935 é o trabalho sobre Molière, de Bulgakov: “Lembre-se, é preciso falar
respeitando a frase, não se esforçando para sentir [perezivat’], mas se esforçando para alcançar
antes de tudo a ideia”54.
Nestes últimos anos de vida, a expressão “ações físicas” entra definitivamente no
vocabulário de Stanislávski. Isso não quer dizer que antes Stanislávski não utilizasse no seu
processo de trabalho as “ações físicas”, nem que agora dedica a elas um capítulo de reflexão
teórica. O fato é que perezivanie e perezivat’ aparecem sempre menos frequentemente no
vocabulário de trabalho. Tem-se a sensação de que Stanislávski não sente que sua presença seja
útil, não havia a necessidade dela para interagir verbalmente com os atores. Não que
Stanislávski não acredite mais no sentir, apaixonar-se ou mesmo viver em cena. Às vezes é o
que pede especificamente aos atores, mas não usando o verbo perezivat’. Seu sistema baseado
na arte da perezivanie parece, ao evoluir, engolir o seu termo primeiro.
Lembrava Stanislávski, em 1937, aos seus alunos do Estúdio de Ópera dramática:

Executar ações físicas em circunstâncias específicas, dadas e não pensar sobre quais sentimentos
elas devem exigir de você. Faça-o de modo verdadeiro e lógico, faça como se fizesse hoje, no estado de
ânimo de hoje, levando em conta toda a casualidade do hoje. Lembre-se que tudo isso possui um grande
significado. Agindo de modo lógico segundo o dia de hoje, não se irá perceber como nos chegam os
sentimentos necessários. Mas não se pode fixar os sentimentos, e eu procuro só aquilo que é possível
fixar, ou seja, a ação física55.

Neste longo parágrafo falta o termo perezivanie. Isso não quer dizer que Stanislávski
nos últimos anos o havia rejeitado em seu sistema; mas para nós essa parte é emblemática do
valor semântico que é possível dar a perezivanie nestes anos. Como nunca antes, perezivanie
agora está longe do significado de revivescência. A complexidade da pesquisa de Stanislávski
a afastou entre o limbo da definição de poética e o significado comum de emoção, estado de
ânimo. O trabalho concreto com os atores parece ter conduzido Stanislávski em áreas nas quais
a expressão perezivanie resultava cada vez menos útil. Os procedimentos da técnica psicofísica
são fixados num vocabulário amplo e preciso que tende a descartar, mesmo do jargão,
expressões que não são de todo claras.
Esta é uma prova adicional, embora não fosse mais necessário, de que se pode alcançar
o significado do trabalho de Stanislávski reconstruindo os percursos de seu trabalho com os
atores. Perezivanie e perezivat’ vivem no vocabulário de Stanislávski, tanto privado quanto de
trabalho, um desenvolvimento do qual tentamos aqui delinear as linhas principais. Tudo em
torno a estas linhas afetam a história de trabalho dos atores, dos ensaios, dos espetáculos.

54
Idem, p. 371.
55
Idem, p. 513.
Percursos de trabalho e dinâmicas de desenvolvimento que só em parte é possível apreender
dos livros de Stanislávski, que exigem pesquisa mais aprofundada, de uma intricada tessitura
de documentos que criam aquela perspectiva de contexto, única capaz de dar conta da
complexidade de uma situação de trabalho teatral.

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