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BURKE, Peter. A fabricação do rei: a construção da imagem publica de Luís XIV. 2.e.

Rio de Janeiro: Zahar, 2009. Tradução: Maria Luísa X. de A. Borges.

Poderia ser útil, por exemplo, pensar este livro como um estudo do mito de Luís XIV. À
primeira vista, a expressão parece apropriada, porque Luís XIV era constantemente
comparado com os deuses e heróis da mitologia clássica, como Apolo e Hércules.
Entretanto, o termo “mito” poderia ser empregado de uma maneira mais ambiciosa, e
também mais controvertida. Poderíamos definir mito como uma história com
significado simbólico (como o triunfo do bem sobre o mal), em que os personagens,
quer sejam heróis e vilãos, ganham dimensões maiores que na vida. Cada história se
situa no ponto de intersecção entre os arquétipos e uma conjuntura, em outras palavras,
entre imagens herdadas e acontecimentos específicos e individuais. – pág. 18.

É tentador ir mais longe e falar do “Estado teatral” do Rei Sol. – pág. 18.

O famoso retrato pintado por Rigaud (ver figura I), por exemplo, fazia as vezes do
monarca na sala do trono, em Versailles, quando ele não estava lá. Dar as costas ao
retrato era uma ofensa tão grave quanto dar as costas ao rei. Outros retratos presidiam
festividades em homenagem ao rei nas províncias. Ocorria-lhe até ser carregados em
procissão como a imagem de um santo. A comparação não é tão exagerada quanto pode
parecer, pois algumas vezes o rei foi representado como são Luís. – pág. 20.

O termo “fabricação” não pretende implicar que Luís foi artificial ao passo que outras
pessoas seriam naturais. Num certo sentido, como Goffman demonstra com grande
habilidade, todos nós construímos a nós mesmos. Luís só foi excepcional no auxílio que
recebeu nesse trabalho de construção. – pág. 22.

Um palácio é mais que a soma de suas partes. – pág. 29.

O interesse pela imagem de Luís começou quando de seu nascimento, celebrado pela
França inteira com fogueiras e fogos de artifício,. Repicar de sinos, salvas de canhão e o
canto solene do Te Deum, e comemorando com sermões, discursos e poemas, entre os
quais os versos em latim do filósofo italiano Tommaso Campanella, exilado na França,
que falavam do bebê como uma espécie de Messias em cujo tempo a idade de ouro
retornaria. – pág. 52.

O Parlamento não era uma assembleia representativa no modelo inglês. Ainda assim,
seus magistrados se consideravam guardiães do que chamavam de “leis fundamentais”
do reino. Em 1648, quase no mesmo momento em que o Parlamento inglês submetia
Carlos I a julgamento, o Parlamento de Paris desempenhou um papel preponderane no
movimento político conhecido como a Fronda. – pág. 52.

Segundo uma crença tradicional, os reis de França, como os da Inglaterra, tinham o


poder miraculoso de curar a escrófula, uma doença e de pele, tocando os atingidos e
dizendo “o rei toca, Deus te cura” [...] – pág. 54

A peruca foi explicada a partir de uma doença que, em 1618, o fizera perder grande
quantidade de cabelo. Como foi nessa época que o costume de usar esse adereço se
difundiu entre a nobreza européia, é difícil dizer se Luís estava criando ou seguindo
uma moda. Seja como for, a peruca deu ao rei a altura extra de que ele precisava para
impressionar. A partir desse momento, nunca seria visto em público sem uma. – pág.
58.

Outra parte da burocratização das artes foi a montagem do sistema de academias, o


equivalente nas artes do sistema de colégios que estava se desenvolvendo sob os
governos europeus no século XVII. Colbert não se limitou a fundar academias;
regulamentou o comportamento de seus membros. Os da Académie Française, por
exemplo, receberam horários fixos de trabalho, juntamente com um relógio de pêndulo,
para garantir que seu sentido de tempo seria tão preciso quanto o desejava o ministro. –
pág. 70

A imagem do jovem rei projetada na década de 1660 foi a de um soberano


excepcionalmente dedicado aos negócios do Estado e ao bem-estar de seus súditos. A
própria decisão de governar pessoalmente tornou-se um evento a ser celebrado, e até
mitificado, isto é, apresentado de maneira dramática como uma “maravilha”. – pág. 73.

Os mais importantes projetos da década foram é claro, a construção do Louvre e


Versailles. O Louvre era uma palácio medieval reconstruído no estilo renascentista
durante o reinado de Francisco I. Era um palácio acanhado demais para as necessidades
de uma corte do século XVII e o incêndio que destruiu parte dele em 1661 pôs sua
reconstrução como ponto prioritário na agenda. Tomou-se a decisão de construir um
novo palácio e de encomendar projetos de vários arquitetos de renome, tanto italianos
como franceses: Loius le Vau, François Mansart, Claude Perrault, Carlo Rainaldi e
Gianlorenzo Bernini, artista que chamara a atenção do cardeal Mazarin. – pág. 78.

Luís prezava mais a magnificência que o conforto. – pág. 80.

O palácio foi remodelado porque sua função estava se transformando. Foi em 1682 que
a corte se mudou oficialmente para Versailles, juntamente com a administração central.
Luís continuou a passar parte de seu tempo em outras residências, como Fontainebleau e
Chambord, mas tornou-se um tanto mais sedentário após a morte de sua esposa em 1683
e seu casamento secreto com Madame de Maintenon, alguns meses mais tarde. – pág.
97

Hoje o nome “Versailles” evoca não somente uma construção mas um mundo social, o
da corte, e em particular a ritualização da vida cotidiana do rei. Os atos de levantar de
manhã e ir para a cama de noite foram transformados nas cerimônias do lever e do
coucher – sendo a primeira dividida em duas etapas, o petit lever, menos formal, e o
grand lever, mais formal. As refeições do rei também foram ritualizadas. Luís podia
comer mais formalmente (o grand couvert) ou menos formalmente (o petit couver) mas
até as colações menos formais, o très petit couvert, incluía três serviços e muitos pratos.
Essas refeições eram encenações perante uma audiência. Era uma honra ser autorizado a
ver o rei comer, honra ainda maior receber uma palavra sua durante a refeição, honra
suprema ser convidado a servi-lo ou a comer com ele. Todos os presentes usavam
chapéu, exceto o rei, mas o tiravam para falar com este quando lhes dirigia a palavra, a
menos que estivessem à mesa. – pág. 99

Havia normas formais para a participação nesse espetáculo – quem tinha direito a ver o
rei, a que horas e em que partes da corte, se tal pessoa podia se sentar numa cadeira ou
num tamborete [tabouret] ou tinha que permanecer de pé. A vida diária do rei
compunha-se de ações que não eram simplesmente recorrentes, mas carregadas de
sentido simbólico, porque eram desempenhadas em público por um ator cuja pessoa era
sagrada. Luís esteve no palco durante quase todas a sua vida vigil. Os objetos materiais
mais intimamente associados ao rei também se tornaram sagrados por sua vez, porque o
representava. – pág. 101 e 102.

A última doença de Luís XIV foi teatralizada no mais alto grau, com várias cenas de
leito de morte, em que o rei disse adeus a seus cortesãos e deu conselhos a seu bisneto e
sucessor de cindo anos de idade. – pág. 131.

Media apenas 1,60 metro. Esta discrepância entre sua altura real e o que poderíamos
chamar de sua “altura social” tinha de ser camuflada de vários modos. – pág. 137.

Como vimos, Luís, do mesmo modo que outros soberanos (e talvez mais que outros
soberanos de sua época) era qualificado, na linguagem do paternalismo e do patriarcado,
como o pai de seu povo. Era retratado na forma de são Luís, de Hércules, de Apolo, do
Sol. Era considerado um soberano sagrado e atribuía-se naturalmente a seu toque real o
poder de operar curas milagrosas. – pág. 141.

Era identificado com o Sol numa época em que a lógica da identificação ou da


correspondência estava em questão. Nas memórias reais, é explicado que o Sol é uma
imagem apropriada do monarca porque é “o mais nobre” dos corpos celestes. Nessa
altura, porém, Galileu já apresentara poderosos argumentos contra a aplicação de termos
morais como “nobre” ou “perfeito” à natureza inanimada. – pág. 142.

A lista de palácios que foram classificados como imitações de Versailles é longa, indo
de Cassera a Washington. O critério adotado na classificação nem sempre é claro. Seja
como for, o Palácio do Sol é apenas parte da imagem de Luís XIV. Por isso talvez seja
mais útil examinar três cortes que consideram Luís exemplar sob mais de um aspecto:
Londres, São Petersburgo e Viena. – pág. 181.

Um grão-duque anterior da Toscana, Cosimo de Medici, foi quase certamente um


modelo para Luís XIV e seus conselheiros. Cosimo, que reinou de 1537 e 1574,
transformou seu ducado em monarquia absoluta em miniatura, governando um Estado
com menos de um vigéssimo da população da França sob Luís XIV. Cosimo era filho
de um capitão mercenário, que foi tomado rei de Florença depois que Alessandro de
Medici foi assassinado sem deixar filhos. Sua falta de legitimidade tornou-o ainda mais
cônscio dos usos políticos das artes na criação de uma boa imagem pública. – pág. 200

Também no Havaí havia uma conexão entre a realeza, a divindade e o Sol. O recurso à
mesma imagem de poder em culturas diferentes não deveria nos surpreender. A
identificação implícita entre a ordem política e a ordem cósmica é um exemplo clássico
da legitimação de determinado conjunto de acordos institucionais através de sua
apresentação como natural, de fato, como o único sistema possível. – pág. 208.

A ilusão de intimidade como o povo é necessária, a conversa ao pé do fogo, os apertos


de Mao intermináveis etc. A dignidade é perigosa, porque implica distância. A ênfase
recai agora sobre o dinamismo, a juventude e a vitalidade. – pág. 213 (sobre a mudança
de paradigma da política moderna e a da época de Luís XIV).
Luís proclamava dever seu poder a Deus, não ao povo. Não precisava cultivar eleitor
nenhum. Seus meios de comunicação não eram de massa. Foi apresentado – de fato,
tinha de sê-lo – como alguém especial, o ungido por Deus, le Dieudonné. O contraste
entre os líderes do século XX não é um contraste entre retórica e verdade. É um
contraste entre dois estilos de retórica. – Pág. 213.

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