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A Fabricação Do Rei - Peter Burke
A Fabricação Do Rei - Peter Burke
Poderia ser útil, por exemplo, pensar este livro como um estudo do mito de Luís XIV. À
primeira vista, a expressão parece apropriada, porque Luís XIV era constantemente
comparado com os deuses e heróis da mitologia clássica, como Apolo e Hércules.
Entretanto, o termo “mito” poderia ser empregado de uma maneira mais ambiciosa, e
também mais controvertida. Poderíamos definir mito como uma história com
significado simbólico (como o triunfo do bem sobre o mal), em que os personagens,
quer sejam heróis e vilãos, ganham dimensões maiores que na vida. Cada história se
situa no ponto de intersecção entre os arquétipos e uma conjuntura, em outras palavras,
entre imagens herdadas e acontecimentos específicos e individuais. – pág. 18.
É tentador ir mais longe e falar do “Estado teatral” do Rei Sol. – pág. 18.
O famoso retrato pintado por Rigaud (ver figura I), por exemplo, fazia as vezes do
monarca na sala do trono, em Versailles, quando ele não estava lá. Dar as costas ao
retrato era uma ofensa tão grave quanto dar as costas ao rei. Outros retratos presidiam
festividades em homenagem ao rei nas províncias. Ocorria-lhe até ser carregados em
procissão como a imagem de um santo. A comparação não é tão exagerada quanto pode
parecer, pois algumas vezes o rei foi representado como são Luís. – pág. 20.
O termo “fabricação” não pretende implicar que Luís foi artificial ao passo que outras
pessoas seriam naturais. Num certo sentido, como Goffman demonstra com grande
habilidade, todos nós construímos a nós mesmos. Luís só foi excepcional no auxílio que
recebeu nesse trabalho de construção. – pág. 22.
O interesse pela imagem de Luís começou quando de seu nascimento, celebrado pela
França inteira com fogueiras e fogos de artifício,. Repicar de sinos, salvas de canhão e o
canto solene do Te Deum, e comemorando com sermões, discursos e poemas, entre os
quais os versos em latim do filósofo italiano Tommaso Campanella, exilado na França,
que falavam do bebê como uma espécie de Messias em cujo tempo a idade de ouro
retornaria. – pág. 52.
O Parlamento não era uma assembleia representativa no modelo inglês. Ainda assim,
seus magistrados se consideravam guardiães do que chamavam de “leis fundamentais”
do reino. Em 1648, quase no mesmo momento em que o Parlamento inglês submetia
Carlos I a julgamento, o Parlamento de Paris desempenhou um papel preponderane no
movimento político conhecido como a Fronda. – pág. 52.
A peruca foi explicada a partir de uma doença que, em 1618, o fizera perder grande
quantidade de cabelo. Como foi nessa época que o costume de usar esse adereço se
difundiu entre a nobreza européia, é difícil dizer se Luís estava criando ou seguindo
uma moda. Seja como for, a peruca deu ao rei a altura extra de que ele precisava para
impressionar. A partir desse momento, nunca seria visto em público sem uma. – pág.
58.
O palácio foi remodelado porque sua função estava se transformando. Foi em 1682 que
a corte se mudou oficialmente para Versailles, juntamente com a administração central.
Luís continuou a passar parte de seu tempo em outras residências, como Fontainebleau e
Chambord, mas tornou-se um tanto mais sedentário após a morte de sua esposa em 1683
e seu casamento secreto com Madame de Maintenon, alguns meses mais tarde. – pág.
97
Hoje o nome “Versailles” evoca não somente uma construção mas um mundo social, o
da corte, e em particular a ritualização da vida cotidiana do rei. Os atos de levantar de
manhã e ir para a cama de noite foram transformados nas cerimônias do lever e do
coucher – sendo a primeira dividida em duas etapas, o petit lever, menos formal, e o
grand lever, mais formal. As refeições do rei também foram ritualizadas. Luís podia
comer mais formalmente (o grand couvert) ou menos formalmente (o petit couver) mas
até as colações menos formais, o très petit couvert, incluía três serviços e muitos pratos.
Essas refeições eram encenações perante uma audiência. Era uma honra ser autorizado a
ver o rei comer, honra ainda maior receber uma palavra sua durante a refeição, honra
suprema ser convidado a servi-lo ou a comer com ele. Todos os presentes usavam
chapéu, exceto o rei, mas o tiravam para falar com este quando lhes dirigia a palavra, a
menos que estivessem à mesa. – pág. 99
Havia normas formais para a participação nesse espetáculo – quem tinha direito a ver o
rei, a que horas e em que partes da corte, se tal pessoa podia se sentar numa cadeira ou
num tamborete [tabouret] ou tinha que permanecer de pé. A vida diária do rei
compunha-se de ações que não eram simplesmente recorrentes, mas carregadas de
sentido simbólico, porque eram desempenhadas em público por um ator cuja pessoa era
sagrada. Luís esteve no palco durante quase todas a sua vida vigil. Os objetos materiais
mais intimamente associados ao rei também se tornaram sagrados por sua vez, porque o
representava. – pág. 101 e 102.
A última doença de Luís XIV foi teatralizada no mais alto grau, com várias cenas de
leito de morte, em que o rei disse adeus a seus cortesãos e deu conselhos a seu bisneto e
sucessor de cindo anos de idade. – pág. 131.
Media apenas 1,60 metro. Esta discrepância entre sua altura real e o que poderíamos
chamar de sua “altura social” tinha de ser camuflada de vários modos. – pág. 137.
Como vimos, Luís, do mesmo modo que outros soberanos (e talvez mais que outros
soberanos de sua época) era qualificado, na linguagem do paternalismo e do patriarcado,
como o pai de seu povo. Era retratado na forma de são Luís, de Hércules, de Apolo, do
Sol. Era considerado um soberano sagrado e atribuía-se naturalmente a seu toque real o
poder de operar curas milagrosas. – pág. 141.
A lista de palácios que foram classificados como imitações de Versailles é longa, indo
de Cassera a Washington. O critério adotado na classificação nem sempre é claro. Seja
como for, o Palácio do Sol é apenas parte da imagem de Luís XIV. Por isso talvez seja
mais útil examinar três cortes que consideram Luís exemplar sob mais de um aspecto:
Londres, São Petersburgo e Viena. – pág. 181.
Também no Havaí havia uma conexão entre a realeza, a divindade e o Sol. O recurso à
mesma imagem de poder em culturas diferentes não deveria nos surpreender. A
identificação implícita entre a ordem política e a ordem cósmica é um exemplo clássico
da legitimação de determinado conjunto de acordos institucionais através de sua
apresentação como natural, de fato, como o único sistema possível. – pág. 208.