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História da Tigresa
Quando descemos da Manchúria com a Quar
ta, a Oitava Armada e a Sétima quase inteira, a
gente já estava caminhando — arrastando os pés —
há muitos dias e muitas noites. Milhares. Éramos
milhares, carregados de trouxas, todos sujos e
cansados, íamos em frente mas os cavalos não agüen
tavam e morriam. A gente comia os cavalos, os as
nos estourados, os cães, e comia até gato, lagartixa,
rato, pra ter o que comer! Que disenteria! Defecá
vamos de uma tal maneira que acho que por muito
tempo vai crescer o mato ma is alto e viçoso do mu ndo
naquela estrada!
e nosOsestouravam...
soldados de aqueles
Chiang-Kai-Chek
bandidos abriam
brancosfogo
ati
ravam contra nós, disparavam pra todos os lados,
todo santo dia... e a gente acabava caindo nas suas
armadilhas... nos esperavam atrás dos muros das
cidades, envenenavam a água. A gente morria, mor
ria, morria.
Fomos além de Shangai, até o ponto de onde
se via — alta, diante de nós — a montanha do Hi
malaia. Nossos chefes disseram:
"Parem que aí pode ter emboscada... Os ban
didos brancos de Chiang-Kai-Chek podem estar lá
em cima, só esperando que a gente passe pelo desfi-

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102 DARI O FO HISTORIA DA TIGRESA 103

ladeiro. Os da retaguarda vão pra cima e nos dêem Cortaram duas varas de bambu longas — de
cobertura enquanto estivermos passando''. oito a dez metros — e dois companheiros (um na
E fomos. Subimos nos arrastando pelos cumes, frente, o outro atrás) se ajeitaram com as varas nas
esperando que ninguém nos acertasse o rabo lá de costas. Fui pro meio, pendurado pelas axilas, e an
baixo. Os companheiros passavam, passavam, pas dava apoiando os pés muito de leve.
savam e nós os tranqüilizáva mos: Eles caminhavam com o rosto virado pra cima
"Fiquem
vocês... tranqüilos
continuem, que estamos cuidando de
continuem!" e o nariz tapa do pra não sentir o fedor.
Uma noite, tínhamos chegado bem próximo do
Passa quase um dia todo de passa-passa. Final chamado "mar verde"; passara a noite toda gritan
mente é a nossa vez. Descemos. do, blasfemando, chamando pela minha mãe. De
"E agora, quem é que cuida do rabo da gente?" manhã, um soldado — um companheiro querido
Descemos olhando pro fundo do vale, com como um irmão — sacou uma enorme pistola e me
medo. Quando estávamos dentro do desfiladeiro, apontou  (Indica as têmporas):
surgem — de repente — os bandidos lá em cima e "Você está se queixando tanto... é demais...
começam a disparar: PIM PIM PAM... Vi duas pe- não consigo agüentar seu sofrimento. Siga o meu
dras grandes e me joguei entre elas. Protegido, ati conselho... uma só bala e tudo está acaba do''.
rava: PAM. Dou uma olhada... e estava com a perna "Agradeço a solidariedade, a compreensão, en
esquerda de fora, sem proteção. tendo a boa vontade, mas fica para uma outra vez.
"Puta que pariu, tomara que não a vejam!"
PAM! Não se preocupe,
me mato. Eu queroquando chegar
re-sis-tir! a horair...
E podem eunão
mesmo
vão
"Viram. Acertaram em cheio uma bala na per mesmo conseguir continuar me arrasta ndo. Podem
na que foi perfurada de fora a fora, um testículo cha ir... podem ir... Deixem aqui comigo uma coberta,
muscado, o segundo pego quase em cheio e se eu uma pistola e um pouco de arroz em uma tigela!"
tivesse um terceiro, eles teriam estourado esse tam
bém!" E eles foram embora... foram embora. En
Que dor! quanto atravessavam em meio à lama do "mar ver
"Porra, me acertaram o osso!" Não, o osso es de", comecei a gritar:
tava inteiro. "Ei, companheiros... Porra... Não contem pra
"Me acertaram uma veia importante... não, minha mãe que morri de podre. Digam que foi uma
não está saindo sangue." bala e eu até estava rindo! Ei!!"
Espremi, espremi para o sangue sair. Tentei Mas eles não se viravam, fingiam não estar ou
andar devagarzinho e consegui, mancando um pou vindo
o quê —praa não
carater quemarcad
toda se virar e mostrar
a pelas —s.eu saiba
lágrima
co. Mas dois dias depois começou a febre, uma fe-
bre que fazia meu coração bater até no dedão do pé: Deitei no chão, me enrolei na coberta e dormi.
TUM, TU M, TUM . Os joelhos e as virilhas estavam Não sei bem como, no meio de um pesadelo,
inchando. comecei a ver um céu cheio de nuvens que se des
"Gangrena! Gangrena maldita!" pedaçavam e caíam como um mar de água. PRA-
Com o sangue podre, o cheiro ruim crescia ao AMMM! Um trovão tremendo! Acordei. Era real
meu redor e meus companheiros me diziam: "Fica mente um mar, uma tempestade. A água dos rios,
um pouco pra trás que você tá fedendo muit o'' . toda, transbordava, descia morro abaixo; os corre-

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104 DARIO FO HISTORIA DA TIGRESA 105

gos explodiam, a água — PLEM, PLUC, PLOC, da mãe. Parecia que tinha um melão na barriga,
PLAM — subia, chegava até o meu joelho. arrastava pelo chão a barriga cheia d'água. A ti
"Puta que pariu, em vez de podre vou acabar gresa levanta a cabeça, cheira... USC, USN... o ar
é afogado!" da caverna...
E subi, subi, subi, cada vez mais em alto, por "Put a que pariu, se ela gostar de carne moída,
uma encosta íngreme que dava em umas ped ras, se eu tou fodido!"
gurando os ramos
nhas unhas com os dentes
se quebravam. pra me
Cheguei apoiar; mi
finalmente no direção,
Faz vem
miravindo.
sobre Amim...
cabeçaVem
aumenta,
vindo aument
na minha
a...
cume. Para atravessar a planície me pus a correr, transborda! Sinto meus cabelos se arrepiarem. Fa
arrastando a perna meio morta; mergulhei em um zem até barulho... GNIAAACH... se arrepiam os
rio, e foi nadando, nadando, com todas as minhas pêlos da orelha, do nariz... e outros pêlos, uma es
forças e cheguei do outro lado. Alcancei a margem cova!
e de repente vejo diante dos meus olhos... oh! uma "Vem vindo, vem vindo, está aqui do meu
gruta enorme, uma caverna. Corri para dentro: lado ." Com a sua cara procur a o meu cheiro.
"Estou salvo! Não vou morrer afogado... vou "AAAHAARRR!"
morrer podre!" E vai embora rebolando. Vai para o fundo da
Olho em volta, está escuro; me acostumo... gruta, se esparrama toda e pux a o filho — o tigrinho
Vejo ossos, a carcaça de um animal devo rado.. . Um a — para junto da sua barriga. Vejo que está com
carcaça enorme... Um despropósito! as tetas cheias de leite, quase estourando. Com toda
"Mas quem será que come desse jeito? Qual água que tinha
mamava. Além despencado,
disso, um dos há filhos,
dias e dias ninguém
o outro tigri
animal? To mara que tenha se mudado — ele e toda a
família — ou tenha se afogado com a água que vem nho, estava morto, afogado... A mãe mete a cabeça
descendo." do moleque entre as tet as e faz:
Bom, vou para o fundo da caverna... Me deito. "AAAHHAARRR!"
Comecei a sentir o coração bater de novo — TUM, E o tigrinho:
TUM — até no dedão do pé. "IAAHHAA!"
"Estou morrendo, estou morrendo, vou mor "OAAHAARRR!"
rer!" "AAAAH!"
De repente, na luz da entrada da caverna, vejo "OAAHAARRRRR!"
uma sombra como se tivesse sido esculpida. Uma "IIAAAHHH!"
cabeça enorme. Muito grande mesmo! Dois olhos Uma cena de família! O coitadinho do mole
amareloscomo
grandes com lanternas.
duas linhas
Quepretas
tigre! como pupila...
Que animalão! que, o tigrinho,
garganta, tinha razã
que parecia umo.barrilzinho...
Estava com água até na
O que se
Um tigre-elefante! Carregava na boca um tigri- poderia fazer num caso destes??! Batizar o leite?
nho com a barriga cheia d'água. Um tigrinho afo Resumindo, o tigrinho fugiu para o fundo da caver
gado. Parecia uma lingüiça, uma bexiga inflada. na... e ficou resmungando:
Joga o tigrinho no chão... TOOM... Faz força... "AAHHAAEEAA."
A pata na barriga... Sai a água... BLOCH... da A tigresa emputecida. Se vira em minha dire
boca. Não tinha jeito, estava afogado! Por perto, ção, levanta e me encara. É comigo mesmo! Fica
um outro tigrinho rondava em torno das pernas com raiva do filho e sou eu quem leva... vem des-

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106 DARIO FO HISTORIA DA TIGRESA 107

contar em cima de mim, agora?!! O que é que eu leite caminhando até pelas veias da perna. Parecia
tenho com isso? Eu nem sequer sou da família! que — talvez fosse impressão — eu sentia o coração
IGNAA TUM, TUM, TUM  (Imita o barulho dos bater menos forte. Sentia também o leite indo para
 pêlos se arrepiand o.)  Escova! Chega pertinho, olhos os pulmões. Tinha leite por tudo quanto é canto.
de lanterna e se vira de uma vez só pro lado de cá — Acabou — PLOC —  (A tigresa)  se vira: outra teta
PAC!, uma teta na cara. (Bateria).  Era uma verdadeira fábrica, uma cadeia
"Mas isso é lá maneira de matar as pessoas? A de montagem. A barriga cada vez mais inchada,
tetadas?" cheia, cheia. Me deixou num tal estado que, aco
Vira a cabeça pro meu lad o e faz: corado como estava, com a barriga inchada, parecia
"AAAHARR" como se dissesse: "M ama! " um Buda. PITOM, PITOM, PITOM... arrotos em
Pego com as duas mãos o bico do peito... en continuação. Mantinha o cu fechado, bem apertado:
costo os lábios de leve. "Se me der disenteria por causa do leite — que
"Obrigado, é só para experimentar."  (Finge cuspida — aquela ali se empute ce, me pega, me mo
estar apenas provando.) lha no leite como se fosse um biscoito no   cappuccino
Antes nunca tivesse feito aquilo! Se vira com e me come!".
cara de má: Mamava, mamava ... e mama, ma ma e no final,
"AAHHAARRR!" meus queridos, estava repleto, inchado, bêbado de
Quem despreza a sua hospitali dade, cai em des leite. Não entendia mais nada. Sentia o leite saindo
graça com os tigres! V iram um as feras! Peguei a tet a
e... CIUM, CIUM, CIUM...  (Executa a pantomima pelas
não respirava...
orelhas, pelo
PRUFF!"
nariz em borbotões! "PRUFF,
da mamada veloz e gulosa)  Que bom! O leite dos
tigres... Bom! Um pouco amargo, mas cremoso. Terminado o serviço, a tigresa me dá uma lam
Descia direto, dava voltas pelo estômago completa bida na cara, de cima até embaixo — BVUAAC!
mente vazio... PLOC, PLIC, PLOC, encontra a pri Meus olhos se apertam como os de um mandarim.
meira trip a... TR OC, se esparrama por todas as tri Em seguida ela vai para o fundo da caverna rebo
pas vazias... há quinze dias eu não comia... P FRII , lando... Se joga no chão, do rme... O tigrinho já es
PRII, PFRII. O leite que se esparramava sacudia tava dormindo. E eu, completamente cheio, imobi
todas as minhas tripas. Acabou. PCIUM, PCIUM, lizado.  (Imita a posição estatuária do Buda.)
PCIUM (Pela mímica, faz como se dobrasse um pei "Azar meu se ousar mexer que sejam os olhos,
to, sem leite, vazio como um saco). expludo... PRUUH!"
"Obrigado." Não sei bem como, peguei no sono calmam ente,
Ela dá
Quantas umtêm
tetas passo
as atigresas?!!
frente — TÓQue—tetaiada!
a outra teta.
Co tranqüilo
pouco mais como um—bebê.
vazio e eraAcordo
só leitedeaomanhã já um
meu redor...
mecei a mamar na noutra. Queria jogar um pouco de não sabia o que tinha acontecido. Vejo que a tigresa
leite fora, mas ela estava sempre ali, de olho, me (Olho se está por ali)  não está, nem o tigrinho...
controlando. Saíram... Devem ter ido dar uma volta... pra mi
Se eu jogar u ma gota de leite fora, ela me come  jar . Espero um pouco ... estava pre ocu pad o. Cada
inteiro. Nem sequer tomo fôlego... PCIUM, PCIUM, vez que ouvia um barulho, tinha medo que fosse
PCIUM! Mamava, mamava. O leite descia e come algum animal de fora. E se um animal feroz entras
çava a me sufocar... PLUC, PLIM, PLOC. Ouvia o se, eu não ia poder dizer:

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108 DARIO FO HISTORIA DA TIGRESA 109

"Sinto muito, mas a patroa não está em casa. lembrei que, quando era pequeno, passavam pela
Saiu. Volta mais tarde. Quer deixar um recado..." minha cidade uns velhinhos curandeiros, bruxos.
Continuei esperando, preocupado. Finalmente Chegavam com xícaras cheias de baba de tigr e. E ro
chega a noite... A tigresa chega... toda bonitona, davam por ali dizendo:
ágil, com as tetas de novo um pouco inchadas, mas "Pessoal, mulheres! Vocês não têm leite? Es
não como no dia anterior que pareciam explodir. freguem as tetas com esta baba! E TUUM... Vão
tigrinho.
Uma pelaLogo
metade.
que Achegou
outra, na
bemcaverna,
cheia. Junto
a tigresa
chega
deuo aparecer duas tetonas
caindo? Uma assim!
passadinha na Velhos, os de
gengiva... ntes estão
THOOMM,
uma cheirada, olhou ao redor, me descobriu: os dentes se colam como presas! Vocês têm furúncu
"AAAHHAAARRR." Como se dissesse: "Você los, verrugas, feridas... infecção? Uma gota e... fim.
ainda está por aqu i?'' Desaparece tudo !"
E o tigrinho também: E era verdade. A baba era milagrosa. E era
"OOAAHHAA." mesmo baba de tigre, sem truque. Eles mesmos iam
E vão para o fundo. A tigresa se deita. O tigri buscá-la. Vejam só a coragem desses velhotes-curan-
nho estava com a barriguinha um pouco menos in deiros. Iam em pessoa buscar a baba do tigre, en
chada de água mas de vez em quando BRUUAAC! quanto ele dormia com a boca escancarada. FFIU-
vomitava umas gotas. Vai para perto da mãe. A mãe, UTT!... PFIUUTT!  (Gesto rápido da coleta de
muito devagar, puxa o beberrãozinho pra junto das baba)  e fugiam. Quase todos eram reconhecidos
suas tetas: pelo bracinho curto  (Imita um maneta).  Acidente
"IAAHAA!"  (Imita a recusa do tigrinho.) de trabalho!
A tigresa: Bom, pode ter sido impressão, mas o fato é que
"OAAHAA!" enquanto ela lambia, chupava, eu sentia o sangue
"IAAHAA!" circular de novo. Sentia o dedão como antes e o joe
E lá vai o tigrinho escapando. Não queria mais lho começava a se mexer... Meu joelho se mexia!
saber de coisa líquida.  (Imita o gesto da tigresa que Porra, é a vida! Errei e, em vez de tetar, assoprei!
se dirige ao soldado. O soldado — submisso, a essas PFUM... PFUM... PFUM... um balão enorme!
alturas — se prepara para ser amamentado.) (Faz o gesto de esvaziar rapidamente, antes que a
"PCIUM, PCIUM, PCIUM." Que vida! En tigresa perceba) ...  Para fora! A tigresa toda con-
quanto eu tetava, ela começa a lamber a minha fe t en t o n a (£ jC jprcs s ã o de satisfação da tigresa) dá mais
rida. uma das suas lambidas e vai para o fundo. Mas não
"Ô, desgraça, tá me experimentando! Se gos pára por aí. Enqu anto a mãe lambia, o t igrinho es
tar, enquanto eu mamo
E, no entanto, elaera
não me come!''
nada disso. Lambia, tava
do a por
mãeperto, olhando
terminou, se cheio de curiosidade.
aproximou de mim comQuana
lambia, queria me curar. lingüinha de fora, como se dissse:
Começa a chupar o pus da ferida. PFLUUU "Posso lamber eu também ?"
WUUAAC cuspia PFLUUU me esvaziava todo: Os tigrinhos são como crianças: tudo o que
WUUAAC! Que eficiência! Esparramava toda a sa vêem as mães fazerem, querem fazer tam bém.
liva, aquela baba espessa, sobre a ferida. E, de re "Quer lamber? Cuidado com esses dentinhos
pente, me lembrei que a baba dos tigres é um medi pontudos de quatro centímetros.   (Mostra o punho)
camento maravilhoso, milagroso, um remédio. Me Toma cuidado pra não morder, hem?!" Veio pra

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110 DARI O FO HISTORIA DA TIGRESA 111

perto... TIN... TIN... TIN... lambia e me fazia có Bem, voltamos ao bodão. A tigresa faz saltar
cegas com aquela lingüinha... Depois de algum tem da pata uma unha tremenda. Derruba a cabra de
po GNAACCHET! uma mordidinha! O meu saco barriga pra cima, largadona. UUAACCH... escan
ali do lado! PHOOMMM!  (Faz o gesto de dar um cara o estômago, a barriga dela. Retira tudo o que
murro.) Um soco! GNAAAA! Como um gato enlou tinha dentro: miúdos, coração, baço... BORON...
quecido! Começou a correr pelas paredes da gruta BORON... Raspou tudo... Tudo limpo. O tigri
comoFaça-se
se estivesse de moto!
respeitar pelos tigres desde que são pe nho... TLIN...
tigresa... PLIN...
putíssima! PLON... pula pra dentro! A
OOAAHAA!
queninos! E realmente, daquela vez em diante, Nunca ponha os pés na sopa diante de um tigre!
quand o passava por perto, n ão ia de perfil não! Pres Viram umas feras! Em segui da, a tigresa se jogou de
tava a maior atenção. Ia assim   (Com os braços e as cabeça dentro da barriga, na caverna do estômago...
 pernas enrijecidas, cruzando-os alternadamente, su e o tigrinho dentro também... OAHAGN... GNIO-
gere o tigrinho que passa, andan do na transversal, OMM... UIIGNOOM... UAGAAAMM... GNO-
 preocupado em manter uma certa distância e se pro OOM... Era um barulho de estourar os tímpanos!
teger de eventuais pancadas nos testículos). Comeram tudo em uma hora! Os ossos todos
Muito bem, a tigresa dormia, o tigrinho pegou lim-pi-nhos. Sobrou só o traseiro com o rabo, uma
no sono e eu também. Naquela noite dormi um sono perna, o joelho do animal, a pata e a perna traseira.
tranqüilo. Não sentia mais dor. Sonhei que estava na A tigresa se vira e faz:
minha casa e dançava com a minha mulher, cantava "OAA HAA" , como se dissesse: "Você está com
com a minha mãe. Acordo de manhã, não tem nem fome?" Pegou a part e traseira e atirou-a pra mim:
tigresa nem tigrinho. Saíram. "PROOMM" ... como se dissesse: "Toma um
"Mas que tipo de família é esta aqui? Não pa lanche"  (Gesto de impotência.).  "FHUF... Comer
ram em casa nem um minuto? E agora, quem é que isso? Mas isso é de madeira ! Não tenh o dentes como
cuida de mim? Aqueles lá são capazes de ficar fora os teus... Olha só, até parece couro de tão duro que
uma semana." é! E além do mais, gordura com pêlo... Todos esses
Espero. Chega a noite. Passa a noite também. gnocchi  de gordura... Se ao menos tivesse um fogo
"Mas que tipo de mãe é aquela lá? Levar uma pra deixá-la tostando por meia hora!" O fogo, claro!
criança tão pequena pra bater perna em plena noi Tem lenha, certo? A cheia trouxe muito tronco e
te?! Quando crescer o que é que vai virar? Um sel raiz. Saio — já estava andando, embora mancasse
vagem!" um pouco. Fui para a frente da caverna onde es
Voltam no dia seguinte, ao amanhecer! Ao tavam os troncos e as raízes. Arrastei para dentro
amanhecer!
A Assim,
tigresa trazia na como
boca se
umnada tivesse morto.
animalão acontecido.
Não uns bonsalto
montão pedaços
assim,dejuntei
lenha,
umalguns
pouco ramos.
de matoFizseco,
um
sei bem o que era. Uma cabra gigante que parecia de folhas que estavam por ali. Depois coloquei dois
uma vaca... Com cada chifrão! A tigresa entra chifres, cruzados, dois ossos, e em cima de tudo —
SLAAM joga a caça no chão. O tigrinho passa pela como um espeto — a parte traseira. Procurei algu
minha frente e faz: mas pedras brancas — aquelas brancas de enxofre
"AAHHAARR" como se dissesse: "Fui eu que que, quando se esfrega uma contra a outra, saltam
matei". (Mostra o punho e imita a reação do tigrinho faíscas. Encontrei duas das boas. Esfreguei uma
que, at errorizado, começa a andar de lado.) contra a outra e PSUT... P SUT.. . TAC (Faz o gesto

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HISTÓRIA DA TIGRESA 113


112 DARIO FO

característico).  Quatro
estrelinhas... Os tigres têm fogo começa a estourar. Mas não tem importância,
medo do fogo. A tigresa lá no fundo: é só prestar atenç ão."
"OOAAHAAA."  (Faz o gesto de se levantar, Meto nos cortes alguns pedaços de salitre. Real
ameaçadora.) mente, depois de pouco tempo aschamas: PF UM !.. .
"Qual é a sua? O que é que há? Você já não PFAAMM!... PFIM !... A tigresa:
comeu a tua carne nojenta? Crua, sanguinolenta? "OAAHHAA..."  (Imita a tigresa assustada:)
Eu gostopula
desce, de carne
fora."bem passada,
  (Imita o tigreentendeu?
que vai Se
se não te
deitar "Isso
Roda,éroda,
coisaroda...
de homem! Fora,
a carne sai da
expele umacozinha!"
fumaça
intimidado.) clara, um perfume...! Depois de uma hora, o per
Conseguir, o mais rápido possível, a dianteira fume delicado aumentava...
sobre a mulher, mesmo ela sendo selvagem! Me "UH UM, que delícia!"
plantei ali com as pedras... FIT... PFOTT... PFI- SCIAAM... Tiro uma fatia da carne  (Finge ex
ITT... o fogo! Aumenta, aumenta, as chamas sobem  perimentá-la)  PCIUM, PICIUM.
OOAACC !... A gordura começa a dourar e solta, cai "UHU M, que delícia!"
sobre o fogo... Sobe uma fumaça densa, preta... que
chega até o fundo da caverna. No momento que a Há muitos e muitos anos não comia nada as
fumaça alcança a tigresa, ela faz: sim. Saborosa, delicada, doce. Olho. O tigrinho
"AAHHHIIAAA." ( Um rugido que lembra um — que estava por ali — tinha entrado e lambia os
espirro.) bigodes.
"A fumaça te incomoda? Rua! E você também, aqui "Você também
te dá nojo! Querquer provar?
mesmo? OlhaBobagem, isso
só   (Imita rapi
tigrinho!"  (Ameaça-o com o punho e imita o tigrinho damente o corte e o arremesso de um pedaço de car
apavorado que sai, andando de lado.) Fora!"
ne que o tigrinho engole em um segundo)  Glup."
E eu ali assando, assando, assando; esticando, Saboreia, man da goela abaixo e faz:
esticando e rodando. FLO M... PSOM ... PS E... Sin "OAHA".
to o odor de coisa selvagem que sai da carne.   (Sai.) "Tá boa? Você gosta? ... Abusado!! Toma
"Droga, se tivesse qualquer coisa para perfu aqui!  (Repete novamente o corte, o arremesso e a
mar esta carne!" Claro, eu tinha visto alho selva comilança do tigrinho.)
gem lá fora. "EHAA... GLOP... CL... OEE... GLOO...
Vou lá fora, no clarão diante da gruta... Sim, OEHAAHHAA!"
ali mesmo... Arranco uma bela cabeça de alho sel "Obrigado, obrigado... Fui eu que fiz sim.
vagem. THUM... Vejo um broto verde, arranco:
"Cebola selvagem!" Quer mais
sabe que umestá
você pouco? Toma
comendo cuidado! Se tua mãe
isso!"
Achei também pimentãozinho picant e... Passo Corto um bom ped aço de filé:
a mão em uma lasca de osso, faço alguns cortes na "Este é meu. O resto é demais pra mim. Fica
coxa e enfio dentro os dentes de alho, a cebola, o pi com a perna toda — vai sobrar mesmo."   (Imita a
mentã o. Daí vou proc urar sal — às vezes se encontra ação de atirar a perna do bode para o tigrinho).
sal-gema dentro das gr utas. Encontro salitre. BLUUMM... Atingido na cara, cai no chão. Dando
"Dá no mesmo, embora o salitre seja um pouco voltas como um bêbado, recolheu-a. Chega a mãe.
amargo. Mais do que isso, seu defeito é que com o Uma cena!

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HISTÓRIA DA TIGRESA 115


114 DARIO FO

"AAHHAAA, quer dizer que está comendo "AAHHAAAAA", como se dissesse: "Cozi
essa carne queimada, nojenta? Vem aqui, vamos! nha!"
Aqui, AAHHAAAAA." (Põe as mãos sobre o rosto, desesperado.)  Ai
"OOHHOOOOCH." daquele que mimar um tigre!!
Sobra um pedaço de carne na boca da mãe. "Mas, espera aí, você entendeu mal, tigresa.
Engole-o. Gosta. Quer dizer que eu me meto na cozinha, pra cima
e pra baixo, e você vai dar umas voltas? Ê? Mas no
"UAAHAAA!",
"UUAHAA! diz a mãe.
", responde o tigrinho.  {Imita mãe que foi que eu me transformei? Eu, a dona de
e filho que se pegam pela carne.) Uma briga!! casa?"  (Imita um tigre rompante que se prepara
"PROEMM... SCIOOMMM... UAAMM..."  para agredi-lo.)
No osso! Branco! A tigresa se vira na minha "OOAAHHAAAOOAAHHAAAAOO!''
direção e faz: "Calmaaaa! OHO, OHO... OHO! É uma ma
"OAAHAAAA, não tem mais?" neira de dizer... Não se pode mais falar? Um pouco
"Ah! não! Essa aqui é minha."   (Indica o pe de dialética! Tudo bem... Tudo bem... OHEOH...
daço de carne que tinha cortado há pouco.) Não precisa engrossar! Concordo, sou eu o cozinhei
Eu comia e a tigresa vindo na minha direção... ro... eu cozinho... Mas vocês é que vão buscar a
Pensei que quisesse comer a carne, mas em vez disso lenha!"
vinha me lamber, cuidar da ferida. Que grande pes "OOAHHAAHH?"  (Imita o tigre que finge não
soa! Me lambeu e depois foi para o seu lugar. Se entender.)
edeitou, esparramada
eu também . O menino já estava dormindo
adormeci. Não banque a espertinha. Sabe o que é lenha?
Acordei de manhã. Os tigres já tinham saído! Olha ali. Vem aqui fora. Isto é lenha. Aqueles ali são
Tornara-se um hábito! Espero o dia todo e não vol troncos. Leva imedia tament e para dentro todos esses
tam. Não chegaram nem mesmo mais tarde. Passei pedaços!"
um nervoso! Não voltam nem no dia seguinte! Tinha entendido muito bem. Recolheu a lenha,
"Quem vai me lamber? Quem vai cuidar de os troncos bem depressa. Foi e voltou, foi e voltou e
mim? Não está certo abandonar as pessoas em casa depois de meia hora a caverna estava cheia até a
dessa m aneira!" metade.
Chegam três dias depois. "E você aí, tigrinho, boa a vida, né? Com as
"Agora faço aquela cena!" mãos no bolso?"  (Se dirigindo ao público.)   Estava
E em vez disso, perco o fôlego, en tontecid o. En com as mãos nos bolsos! Tinha apoiado os dedos da
pata, dobrados, sobre duas listas negras, aqui   (co
tra a tigresa
daquele com um
da outra vez.animal inteiroselvagem...
Um bisonte na boca! Osei
dobro
lá o loca as mãos sobre os quadris) para que se pensasse
que era! O tigrinho também ajudava a carregá-lo. que estavam enfiadas nos bolsos!
E vinham todos os dois... BLUUMM de lado... como "Vamos lá! Ao trabalho! Eu já te digo o que
bêbados pelo cansaço... PROOM. .. Chegam diante deve fazer: cebola, alho selvagem, pimentãozinho
de mim. PHOAAHHAAMM... (Imita os tigres des selvagem, tudo selvagem."
carregando o animal abatido)  A tigresa faz: "AAHAA?"
"HAHA... HAHA..."  (Imita a respiração da "Não entende? Muito bem, eu te ensino. Olha
tigresa.) E aí: lá: a cebola é aquela; aq uilo é um pimen tão. "

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116 DARIO FO HISTORIA DA TIGRESA 117

O coitadinho ia e vinha, com a boca sempre uma manhã, me inclino sobre um monte, olho para
cheia de alho, pimentão, cebola... a rgh... Depois de baixo, para um grande vale. Era todo cultivado, vejo
dois, três dias ainda soltava um bafo que não dava algumas casas lá embaixo, um vilarejo... uma cida
pra ficar do seu lado. Um fedor. E eu, o dia todo al i, dezinha! Com a praça, onde estavam mulheres,
em volta do fogo, assando. Todo estourado... Joelho crianças e homens!
tostado, os culhões ressecados. Á cara estava toda "Olho... gente." Despenquei correndo morro
chamuscada, os olhos cheios de lágrimas, o cabelo abaixo. "Estou salvo, gente. Sou um soldado da
queimado. Na frente, vermelho; atrás, branco. Ê Quarta Armada, sou eu..."
que não dava pra cozinhar com a bunda! Uma au Quando me vêem:
têntica vida de vaca! E eles comiam, davam uma "A morte! Um fantasma!"
mijadinha, voltavam pra dormir. E eu me perg unto: E fogem pra dentro das cabanas, pra dentro das
isso aqui é vida? casas. Se fecham por dentro com trincos e correntes.
Então, numa noite em que eu me sentia arder "Mas por quê... fantasma, morte... mas por
inteiro, disse pra mim mesmo: quê? Não, gente..." Me vejo no vidro de uma ja
"Che ga!. .. Acabo já com isso." nela que me serve de espelho. Levo um susto : estava
Enquanto os dois dormiam, estourando de tão com os cabelos eriçados, brancos, com a cara toda
cheios — eu os tinha empanturrado de propósito — chamuscada — preta e vermelha — os olhos eram
vou engatinhando até a porta; estou quase saindo, carvões acesos. Parecia mesmo a morte! Corri até
estou quase fora... o tigrinho se eriça e se põe a uma fonte, me joguei dentro... Me lavo, me esfrego
gritar:
"AAHHAAAAAAA... Mamãe, está fugindo!" todo "Gente,
com areia.
vêmSaio,
pra finalmente, limpo.
fora! Peguem em mim... Sou
"Tigrinho dedo-duro! Um dia desses te arranco um homem de verdade, o sangue, a carne estão
os culhões com as mãos, preparo ao vapor e dou pra quentes... Venham, venham me ouvir... Não sou a
tua mãe comer recheados de alecrim." morte!"
Chove! De repente começa a chover. U ma tem Saíam com um pouco de medo. Alguns homens,
pestade imprevista. Me lembrei que os tigres têm um algumas mulheres e crianças me tocavam... e, en
medo terrível de água. E então mé atirei p ara fora da quanto me tocavam, eu ia contando:   (Resumo veloz
caverna. Comecei à correr, descendo pelas encostas em tom de farsa.)
em direção ao rio... me joguei dentro do rio... na "Eu sou da Quarta Armada, venho da Manchú
dar. .. nadar. .. nadar! Os tigres aparecem do lado de ria. Quando atiraram em mim, no Himalaia, me
fora: acertaram uma perna; o primeiro e segundo culhão
"OOAAHHAA...!" de raspão; um terceiro teria estourado... depois de
Eu: três dias, gangrena ... me aponta uma pistola: 'Obri
"OOAAHHAAHHAA."  (Transforma a braça gado, fica pra próxima vez'. PROM. Adormeci.
da — da ação de nadar — no banal gesto clássico PROM. Chove. Água, água, PROM, estou em uma
de quem consegue passar a perna em alguém.) caverna, chega a tigresa... tigrinho afogado... e ela
Cheguei ao outro lado do rio e comecei a cor vinha na minha direção eriçando os pêlos... uma es
rer. Andei dias, semanas, um mês, dois meses... cova! Tetadas, e eu teto, teto, teto, só mesmo pra ser
Nem sei quanto andei. Não encontrava uma cabana, gentil, teto, teto, vem o outro: PIM AAHHAA. Mur
um vilarejo, estava sempre na floresta. Finalmente, ro no saco... Outras vezes: BROOMM um anima-

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118 DARIO FO HISTÔRIA DA TIGRESA 114

lão, eu asso, asso, asso. Na frente branco, atrás! HHHAAA. Te salvei a vida! EEOOHHAAA nem
SCIUM! Mãeee, ele tá fugindo! Te arranco os cu- pelo meu homem teria feito isso... por alguém da
lhões! AHHHAHHA e fugi!" minha família... EEOOHHAAA. Me abandonou
Enquanto eu contava a minha história, um ali OOHHAAHHAAA e, além disso, nos ensinou a
olhava pro outro, faziam care ta e diziam: comer carne assada. Agora, todas as vezes EEOO-
"Coitadinho, ficou de miolo mole... Deve ter HHAAHHAA que comemos carne crua, dá vontade
tomado um susto! Ficou louco, coi tad o.. ." E eu: de vomitar... dá disenteria... a gente passa mal se
"Vocês
"Claro, não acredit
claro, por am?"
que não? Ê normal mamar manas inteiras AAAHHAAAHHHAAA!"
E eu retruco:
no tigre... Todo mundo mama no tigre! Aqui tem "OOHHAAAA como é que é? O que foi que
gente grandinha que mama no tigre. De vez em vocês fizeram? Eu também te salvei, tetando, senão
quand o, você pergu nta: 'On de você vai?' 'Vou ma explodia... AHOLAHHH! E quanto que eu assei,
mar no tigre.' Sem falar da carne assada! Os tigres assei até ficar com os culhões estourados, hem?
são gulosíssimos por carne assada!!! Nós temos um AAAHHHAAA. E você, quietinho... mesmo estan
refeitório reservado só para os tigres... Toda semana do grande..." (Mostra o punho para o tigrinho.)
eles descem até aqui só pra comer com a gente!" Mas a gente sabe: quando uma família se quer
Tive a impressão de que estavam tirando uma bem ... fizemos as pazes. Fiz-lhe cócegas no queixo.. .
com a minha cara. A tigresa me deu uma lambidinha ... O tigrinho me
Naquele momento, se escuta um urro de tigre... deu, de leve, uma patada... eu lhe dei um tapa
AAHHAAAAAA...
nha aparece o perfil Um rugido.
de dois NoAalto
tigres. da monta
tigresa e o ti- assim... puxei
tapinhas na suaum pouco
teta... o rabo da
ela gosta... ummãe... deisaco
chute no uns
grinho. O tigrinho se tornara tão grande quanto a do tigrinho e ele todo contente.  (Se dirigindo às pes
tigresa. Meses tinham passado... Imagine só... me soas fechadas nas casas.)
reencontraram depois de tanto tempo! Devo ter dei "Fizemos as pazes! Venham pra fora... Nada de
xado um fedor pelo cam inho !... medo, nada de medo!" (Aos tigres:)
"AAAAHHHAAA." "Você mantenha os dentes pra dentro AAMM,
O povo do vilarejo começou a gritar de susto: assim.  (Cobre por completo os próprios dentes com
"Socorro! Os tigres!" os lábios)  Não os mostre AAMMAA. Recolhe as
E fugiam pra dentro das casas, trancavam-se unhas pra dentro da pata. Esconde as unhas debaixo
com correntes. das axilas... Anda sobre os cotovelos, assim".   (De
"Parem, não fujam... São amigos meus. São monstra. )
aqueles de quem falei... o tigrinho e a tigresa que me As pessoas começam a sair... Uma menina aca
amamentava. Venham para fora. Não tenham me ricia devagar a cabeçona da tigresa... "Que lin
do." da !. .." Gur uguru guru.. . o outro. .. lélélé... e VLA A-
Os dois tigres vinham descendo. BLEM, BLO- AAMMMMM! Lambidas que não acabam mais, ar-
OMMM, BLEM, BLOOM. Quando estavam a dez ranhadinhas, cabeçadas. O tigrinho também. Uns
metros de distância, o tigre-mãe começou a fazer meninos — quatro meninos — subiram na garupa
a maior cena! Mas uma cena! do tigre. Pularam os quatro PLOM... PLOM...
"AAHHAAAA, bela recompensa. Depois de PLOOMMM... O tigre marchava, se fazia de ca
tudo que fiz por você. Até te lambi OOHHAAA- valo. Depois rola e se esparrama. Outros quatro

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120 DARIO FO HISTORIA DA TIGRESA 121

meninos seguravam e arrastavam o tigrinho pela mesmo uma semana de antecedência. Uma vez, doze
cauda.   (Imita o tigrinho arrastado, de pernas para vilarejos junt os. .. O que é que podíamos fazer?
o ar, que tenta opor resistência, afundando as unhas "Temos dois tigres... não podemos ir para todos
no chão.) os lugares. Como é que vamos fazer?"
Eu sempre alerta!  (Mostra o punho),  ia atrás "Falsos! Vamos fazer tigres falsos!", eu disse.
dele... Os tigres têm boa memória! "Como assim, falsos?"
Daí começam a brincar, a rolar, se fazendo
de palhaços. Precisava vê-los. Brincavam o dia in umas"Simples.
cabeçonasTemos aqui ocom
de papelão, modelo. É só fabricar
uma grande massa
teiro com as mulheres, com as crianças, cães e gatos. de cola e papel. A gente faz a máscara com os bu
De vez em quando desaparecia um gato, mas nin racos para os olhos, precisamente iguais aos da ti
guém percebia. Havia tantos! gresa e do tigrinh o, e dent ro fazemos o maxilar solto.
Um dia, estavam brincando por ali, ouvimos Alguém mete a própria cabeça e faz assim: G RAU ...
a voz de um camponês, um velhinho que descia das GRAU... G RAU... mexendo os braços. Um outro se
montanhas gritando: mete atrás do primeiro e um outro, ainda, com seu
"Socorro, socorro, minha gente. Os bandidos braço imita o rabo do tigre, assim. Para terminar,
brancos chegaram na cidade! Estão matando todos uma bela colcha por cima, amarela. Toda amarela
os cavalos, matam as vacas. Estão carregando os com listas pretas. É para cobrir bem os pés também,
porcos... e levando embora as mulheres também. porque seis pés para um ti gre só é um pouco d emais!
Venham nos ajudar... Levem os seus fuzis..." Daí é dar o rugido. Agora, é preciso aprender a dar
E"Mas
as pessoas:
nós não temos fuzis!" o rugido. Aqui, deste lado, os que vão aprender o
rugido falso. Todo mundo pra escola e os tigres se
"Ma s temos os tigres ", eu disse. rão os mestres. Vamos lá, coragem, mostrem como
Vamos levar os tigres... BLIM... BLUMM... se dá um rugido!!!
BLOM... BLAMM... BLAMM... BLAM... subi
mos a colina e descemos do outro lado do vilarejo. "OOAAH HAA." Isso, você agora. Repete.  (Se
volta para um aluno.)
Os soldados de Chiang-Kai-Chek estavam lá dispa
rando, matando, roubando. "OOAAHHAAA!"
"Os tigres." "Outra vez."
"AAAHHHAAAAAAA." "EOAAHHAAA!"
Quando os soldados de Chiang-Kai-Chek viram "Mais forte. Ouçam o tigrinho."
e ouviram os dois animalões, os cintos explodiram "EEOOHHAAHHAA."
e suas calças caíram até o joelho, cagaram nos sapa "Outra vez."
tos. .. em seguida, pernas pra que te quero, fugiram! "EEEHHOOO HH A A A A.''
Daquele dia em diante, todas as vezes que os "Outr a vez. Mais forte!"
homens de Chiang-Kai-Chek chegavam em um vila ;'EEOOHHAAAAAAAAAAA."
rejo vinham nos chamar: "Em coro."  (Começa a dirigir como um grande
"Os tigres!" maestro de orquestra)  "OOOOOHHHHAAAAAA-
E a gente tocava pra lá, às vezes até chegando AAAAAA."
 jun tos — um daq ui, outro de lá. Nos ch amavam de Um tumulto o dia todo naquele vilarejo! Um
tudo quanto era campo... faziam reservas com até velhinho de outra cidade — que passava por detrás

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122 DARIO FO
HISTORIA DA TIGRESA 123

dos muros — foi encontrado  (Imita uma pessoa


imobilizada como uma estátua)  ressequido! com uma bola vermelha e os raios do sol nascente
Mas quando os soldados de Chiang-Kai-Chek enfiada no rabo!
voltaram novamente: "Os tigres!!!"
"Os tigres!!!" "AAAHHHAAAAAHH!!"
"OOQHHHAAAAHHHAAAA!" Arranca a bandeira do fuzil, arranca a ban deira
E todos fugiram em direção ao mar. Então, um do chapéu. Sobrou só a enfiada no rabo. FI UNH.. .
ZIUM... Iam embora, fugiam. Pareciam milhares
edirigente
disse: político do partido apareceu, nos aplaudiu de borboletas.
"Muito bem, muito bem! Essa invenção do ti Apareceu o novo dirigente e nos disse:
gre é extraordinária. O povo tem uma inventividade "Muito bem, vocês fizeram bem em desobede
e imaginação, uma fantasia como ninguém mais no cer, da outra vez, o dirigente que, entre outras coi
mundo. Muito bem! Muito bem! Mas agora os ti sas, era também um revisionista, contra-revolucio-
gres não podem ficar com vocês. É preciso mandá- nário. Vocês fizeram bem!... Quando o inimigo che
los para a floresta, onde estavam antes". ga os tigres precisam estar aqui. Mas a partir deste
"Mas por quê? Estamos tão bem com os nos momento, não é mais preciso. O inimigo fugiu...
sos tigres. Somos compan heiros. Eles estão tão bem, levem os tigres imedia tamente par a a floresta!"
nos protegem, não é necessário..." "O quê, out ra vez?"
"Não podemos. Os tigres são seres anárquicos. "Obedeçam ao partido!"
Falta-lhes dialética. Não podemos dar ao tigre um "Por causa da dialética?"
papel no partido. Se não podem ficar no partido, "Certo!"
muito menos podem ficar nas bases. Não têm dialé "Tudo bem, chega!" Os tigres foram sempre
tica. Obedeçam ao partido. Levem os tigres de volta conservados no galinheiro! E ainda bem, porque os
para a floresta." de Chiang-Kai-Chek voltaram de novo, a rmado s
E nós lhe dissemos: pelos americanos com canhões e tanques. Avança
"Tá, tá, vamos levá-los para a floresta." vam. Tantos, tantíssimos.
Mas, em vez disso, metemos os tigres no gali "Os tigres!!!"
nheiro: fora as galinhas, pra dentro os tigres. Os ti "OOEEHHAAHHAAAAAA!!"
gres no poleiro, assim  (Imita os tigres que se balan Fugiam como o vento! Foram empurrados pra
çam).  Quando o dirigente burocrata passava — nós lá do oceano. Agora não havia mais nenhum, ne
tínhamos dado lições aos tigres — os tigres faziam: nhum inimigo. Aí então chegaram todos os dirigen
"HIIIHHIIIRIHHII"  (Imita o canto do galo.) tes. Todos os dirigentes com uma bandeira na mão...
O burocra
"Galo ta político
tigrad olhava um pouco e aí:
o" e ia embora. Sacudiam
parti do e osasdobandeiras...
exército. Osedirigentes
nos aplaudiam! Osrios
intermediá do
E ainda bem que tínhamos conservado os tigres, superiores de coligação. Os superiores do superior
porque dali a pouco chegaram os japoneses! Peque intermediário central. Todos aplaudindo e gr itando:
nos, tantos, ruins; pernas arqueadas, bunda ras "Muito bem! Muito bem! Muito bem! Vocês fi
teira, com seus espadões e grandes fuzis compridos. zeram bem em desobedecer. O tigre deve permane
Nos fuzis, bandeiras brancas e no centro uma bola cer com o povo, porque faz parte do povo, é invenção
vermelha. Uma outra bandeira no elmo; uma out ra do povo. O tigre será sempre do povo... no museu...
Não! No zoológico. Sempre ali !"

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124 DARIO FO

"O quê? No zoológico?"


"Obedeçam! Não são mais necessários, agora.
Não temos mais necessidade dos tigres. Não temos
mais inimigos. Existe só o povo, o partido e o exér
cito. O partido, o exército e o povo são a mesma
coisa. Existe, naturalmente, a direção, porque se
não existir a direção, não existe nem sequer uma
cabeça; e se não existe uma cabeça, não existe nem
ao menos a dimensão de dialética expressiva que
determina a direção que, naturalmente, parte do
vértice, mas se desenvolve em seguida na base que
recolhe e debate as indicações propostas pelo vértice;
não como extrapolações do poder, mas tipos de
equações determinadas e invariadas para que sejam
aplicadas segundo uma coordenação factiva hori
zontal — mas também vertical — daquelas ações
inseridas nas posições da tese, que se desenvolvem,
então, de baixo em direção ao alto, numa relação de
democracia positiva e recíproc a..."
"Os tigreeeeees"  (Imita um ataque violento
contra os dirigentes).
"EEEAAAAAAAAAAAAAAAHHHHHHH-
HHHHHHHHHHHHHAAAAAAAAAAAAAAA-
AAAAAÜ!"

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